Estarei sempre presente entre vós

Não posso imaginar como terá sido o luto da natureza com Nossa Senhora morta… Mas imagino-A saindo da sepultura com glória delicadíssima, suavíssima, virginalíssima e maternalíssima.

Ressurrecta, vai subindo ao Céu. Enquanto Nosso Senhor, em sua Ascensão, manifestava grandeza e bondade, Ela exprime mais bondade do que grandeza.

Todos os presentes, vendo seu sorriso materno, compreendem-nA cada vez mais e são atraídos por Ela, à medida em que Maria Santíssima vai se elevando ao Céu, até o momento em que Ela desaparece e uma claridade fica espalhada sobre tudo e sobre todos, como quem diz: “Eu, na realidade, fiquei. Rezai, porque estarei sempre presente e unida a vós”.

Lentamente aquilo se desfaz, deixando lembranças que durarão por toda a eternidade…

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/10/1971)

A perfeição da santidade

Os pintores costumam representar a Transfiguração de Nosso Senhor com uma fisionomia muito plácida e serena, e os três apóstolos olhando para Ele numa atitude de admiração.

Isto certamente estava presente em tal episódio. Mas o Redentor, na infinita riqueza de sua santidade, possuía ao mesmo tempo todos os aspectos de todas as virtudes, levadas ao último extremo e à perfeição mais sublime.

Assim, juntamente com a afabilidade, havia em Nosso Senhor majestade e superioridade sem proporção com nenhum conceito humano. A superioridade incutia respeito, afeto e medo, que é o temor de Deus. E a face de Jesus também apresentava ali sublimidade, nobreza régia, poder, seriedade, gravidade e força, deixando estupefatos e tremendo de medo aqueles que O viam.

Na junção de ambos os aspectos, a afabilidade serena e a sublime gravidade, podemos compreender algo de como foi magnífico esse acontecimento, pois a harmonia das virtudes extremas e contrárias constitui a perfeição da santidade.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/8/1965)

Lágrimas, milagroso aviso

Em 1972, uma fato despertara interesse nos católicos do mundo inteiro: uma imagem de Nossa Senhora de Fátima vertera lágrimas em Nova Orleans, Estados Unidos. A fim de atender aos anelos de seus leitores a este respeito, Dr. Plinio serviu-se de sua tribuna semanal na “Folha de São Paulo” para analisar o acontecimento.

Sob a direção imediata [da Irmã Lúcia], um artista esculpiu duas imagens, que correspondem o quanto possível aos traços fisionômicos com que a Santíssima Virgem apareceu em Fátima. Ambas essas imagens, chamadas “peregrinas”, têm percorrido o mundo, conduzidas por sacerdotes e leigos. Uma delas foi levada recentemente a Nova Orleans. E ali verteu lágrimas.

O Pe. Romagosa(1) tinha ouvido falar dessas lacrimações pelo Pe. Joseph Breault, M. A. P., ao qual está confiada a condução da imagem. Entretanto, sentia ele funda relutância em admitir o milagre. Por isto, pediu ao outro sacerdote que o avisasse assim que o fenômeno começasse a se produzir.

O Pe. Breault, notando alguma umidade nos olhos da Virgem peregrina no dia 17 de julho, telefonou ao Pe. Romagosa, o qual acorreu junto à imagem às 21:30, trazendo fotógrafos e jornalistas. De fato, notaram todos alguma umidade nos olhos da imagem, que foi logo fotografada. […]

Às 6:l5 da manhã seguinte, o Pe. Breault telefonou novamente ao Pe. Romagosa, informando-o de que desde as 4 horas da manhã a imagem chorava. O Pe. Romagosa chegou pouco depois ao local, onde, diz ele, “vi uma abundância de líquido nos olhos da imagem, e uma gota grande de líquido na ponta do nariz da mesma”. Foi essa gota, tão graciosamente pendente, que a fotografia divulgada pelos jornais mostrou a nosso público.

O Pe. Romagosa acrescenta que vira “um movimento do líquido enquanto surgia lentamente da pálpebra inferior”.

Mas ele queria eliminar dúvidas. […] Cessado o pranto, o Pe. Romagosa retirou a coroa da cabeça da imagem: a haste metálica estava inteiramente seca. Introduziu ele, então, no orifício respectivo, um arame revestido de papel especial, que absorveria forçosamente todo líquido que ali estivesse. Mas o papel saiu absolutamente seco.

Ainda não satisfeito com tal experiência, introduziu no orifício certa quantidade de líquido. Sem embargo, os olhos se conservaram absolutamente secos. O Pe. Romagosa voltou então a imagem para o solo: todo o líquido colocado no orifício escorreu normalmente. Estava cabalmente provado que do orifício da cabeça — único existente na imagem — nenhuma filtração de líquido para os olhos seria possível.

O Pe. Romagosa ajoelhou-se. Enfim ele acreditara.

* * *

O misterioso pranto nos mostra a Virgem de Fátima a chorar sobre o mundo contemporâneo, como outrora Nosso Senhor chorou sobre Jerusalém. Lágrimas de afeto terníssimo, lágrimas de dor profunda, na previsão do castigo que virá para os homens do século XX se não renunciarem à impiedade e à corrupção.

Ainda é tempo, pois, de sustar o castigo, leitor, leitora! Se vier, tenho por lógico que haverá nele, pelo menos, uma misericórdia especial para os que, em sua vida pessoal, tenham tomado a sério o milagroso aviso de Maria.

É para que minhas leitoras, meus leitores, se beneficiem dessa misericórdia, que lhes ofereço o presente artigo…

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído da “Folha de São Paulo” de 6/8/1972)

1) Pe. Elmo Romagosa, autor do artigo “As lágrimas da imagem molharam meu dedo” publicado em “Clarion Herald” — semanário de Nova Orleans distribuído em onze paróquias do Estado de Louisiana.

Transfiguração de Cristo

Poder-se-ia dizer que Nosso Senhor se valeu da capacidade do homem de recordar para estimulá-lo à fidelidade.

Pensemos, por exemplo, no maravilhoso episódio da Transfiguração: no alto do Monte Tabor, d’Ele se esparge uma irradiação das suas infinitas perfeições, e os apóstolos que presenciam tal cena não desejam outra coisa senão permanecer ali, contemplando aquela manifestação da divindade do Mestre.

Ora, quem sabe, no momento de cada um deles partir deste mundo, não lhes terá servido de coragem e firmeza as lembranças das fulgurações do Tabor?

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 19/7/1984)

Huysmans Retorno ao seio da Igreja

Um dos escritores cuja obra encantou Dr. Plinio nos primeiros tempos de congregado mariano foi Huysmans. O processo de conversão desse grande literato, sublime e espetacular ao mesmo tempo, serviu largamente ao jovem líder católico como instrumento de apostolado. Acompanhemos agora o segundo artigo no qual ele comenta o percurso do neo-convertido rumo à Igreja.

Em um de nossos últimos artigos, consagrados à estupenda obra de J. K. Huysmans, comentávamos seu livro “Là-Bas”, que é o primeiro da série que escreveu sobre sua dolorosa e interessante evolução espiritual, que acabou por conduzi-lo ao verdadeiro porto da salvação, isto é, à Igreja. “Là-Bas”, como os leitores devem estar lembrados, conta como Huysmans, mergulhando no satanismo, nas abominações da magia negra, das missas sacrílegas, das profanações atrozes, viu despertar em sua alma as primeiras inquietações religiosas.

Estas, que encontraram terreno propício em um espírito de escol, trabalhado profundamente pelo horror que lhe causava a época em que vivia (século XIX), e pela solidão que o cercava no domínio sentimental, foram crescendo gradualmente de intensidade, até determiná-lo a ocupar-se decididamente do problema religioso. Nessa altura, termina o “Là-Bas” e começa o “En Route”.

Aproximado pelos acontecimentos de um sacerdote francês inteligente e virtuoso, Huysmans começa a frequentar as cerimônias religiosas católicas, que despertaram nele impressões indeléveis, as quais nos legou em páginas magistrais. Suas descrições da tristeza tenebrosa do “De Profundis”, das imprecações ardentes do “Miserere”, da alegria exultante do “Magnificat”, são páginas literárias que glorificam o idioma em que foram escritas.

Aliás, constitui a obra de Huysmans uma aplicação interessantíssima do naturalismo a assuntos religiosos, aspecto este que a enche de originalidade.

Sob o ponto de vista estritamente religioso, interessava principalmente o gênero novo de apologética que Huysmans tentou instituir. Não o preocupam os argumentos filosóficos, as contendas científicas, em que os silogismos se digladiam pró e contra a Fé. Já dizia o poeta francês que, “à force de raisonner, on perd la raison” (“à força de raciocinar, perde-se a razão”).

Faz da Igreja uma descrição material e objetiva, através da qual procura fazer ressaltar, com inimitável habilidade, os lampejos de sobrenaturalidade que se desprendem da liturgia magnífica, enriquecida por um simplismo comovedor, do cantochão estupendo, nas suas imprecações veementes, no tumultuar de suas contrições, na explosão de seus surtos de confiança na Providência Divina, no lacrimejar harmonioso de seus ofícios de defuntos.

Impressionam-no sobremodo as ordens religiosas, nas quais vê com razão a cristalização do espírito evangélico. Fascinam-no as penitências das carmelitas, as austeridades implacáveis das beneditinas e das sacramentinas, os rigores das regras monásticas em geral. Entre todas, porém, uma Ordem chama sua atenção, pela estupenda beleza de seus princípios constitutivos: a dos trapistas. Resolve-se, então, impulsionado pelos conselhos de seu amigo sacerdote, a fazer em uma Trapa longínqua um retiro de alguns dias.

Entra-se então na parte mais interessante do livro. Cumpre dizer que, à maneira dos antigos cristãos, que proibiam aos pagãos a assistência aos mistérios sagrados, sentimos o desejo de vedar a leitura do que se segue a espíritos incrédulos, que terão provavelmente para a incomparável beleza moral da vida trapista, o riso estulto, ou o trocadilho alvar com que um hotentote comenta a complicação — para ele inútil — de um mecanismo moderno, cujo funcionamento está acima de sua compreensão.

Segundo o dogma da comunhão dos santos, cuja aceitação é imposta pela Igreja a todos os fiéis, os sofrimentos de uma alma podem ser aplicados em expiação dos pecados de outra. Satisfeita assim a justiça divina, pode a misericórdia incitar o pecador à conversão. A importância das Ordens religiosas que, na contemplação de Deus, e na penitência incessante, encerram (deveríamos dizer, sepultam) criaturas durante toda uma vida, em conventos humílimos, para expiar assim as ignomínias do mundo pecador, participa, portanto, de toda a elevação moral do Santo Sacrifício do Calvário.

É certo que os sibaritas, tão freqüentes no século XX, inquietados em seus gozos pela visão de tanta abnegação e de tanto sofrimento, pretenderão qualificar de selvageria desumana tal procedimento. É certo que algumas pessoas, para as quais o ouro é o único ideal da vida e que consideram o homem exclusivamente segundo o que produz, o trapista é um inútil, pois que sua atividade “não rende”. Suas apreciações profanam tais assuntos. Melhor seria que se calassem sobre assuntos alheios à sua compreensão!

Foram tais as considerações que ocuparam Huysmans em sua viagem de Paris para a Trapa. Sua impressão, quando se habituou à vida do convento, foi a de um verdadeiro deslumbramento.

Monges plácidos e austeros, invariavelmente vestidos de branco, se dedicavam, dentro de uma reclusão perpétua, a trabalhos manuais especialmente à oração e à penitência, que lhes consumiam a vida. Só uma voz falava: a da contrição e da reparação, expressas através de todas as atitudes e de todas as ações. Como cama, uma prancha de madeira.

A alimentação, de um rigor extremo, era exatamente o necessário para impedir que os monges adoecessem gravemente, vitimados pela fome. Por toda a parte, o silêncio. As Trapas constituem a mais magistral resposta aos que afirmam que a Igreja perdeu a seiva que alimentava os mártires dos primeiros séculos do cristianismo. Se é certo que é necessário um heroísmo sobre-humano para que se possa alguém sujeitar-se aos tormentos do Coliseu, também é certo que a agonia de uma vida inteira, escoada lentamente entre os cilícios e as mortificações, constitui tormento que a todos excede pelo rigor e pela provação que impõem à perseverança.

Certa noite, Huysmans, inquieto, não conseguia dormir. Levantou-se então e dirigiu-se à capela, que supunha deserta. Quando entrou, divisou vagamente, através da penumbra que coava pela claraboia de uma cúpula, os vultos brancos dos trapistas, que furtavam às suas poucas horas de sono o tempo necessário para alimentar seu espírito de oração.

Alguns, curvados pela humildade, se prostravam no chão. Outros, como chamas de velas que se dirigem ao alto, erguiam o busto numa atitude de imprecação ardente, de súplica veemente, que só a pena de Huysmans consegue descrever.

Outros, enfim, abatidos pela enormidade dos pecados do mundo que deviam expiar, numa atitude de profunda contrição, gemiam um “Miserere”.

Lentamente, a manhã penetra através da claraboia. As formas brancas precisam seu contorno, ainda banhadas na claridade suave da aurora. Raia enfim o sol. Todos os trapistas se dirigem para os bancos. Toca o sino e irrompe radiosa a “Salve Regina”.

A observação de tais cenas atuou profundamente no ânimo de Huysmans, que, enfim, resolvido a confessar seus pecados, se prostra aos pés de um trapista, a quem, em profunda contrição, confia todos os seus delitos contra Deus e contra os homens. No dia imediato, comunga.

Feita assim sua integração no catolicismo, retira-se da Trapa com recordações imorredouras. E o “En route” cede lugar ao “Oblat”.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do “Legionário”, nº 94, de 21-2-1932)
Revista Dr Plinio 40 (Julho de 2001)

Santiago, Admirável continuidade de bênçãos

Certos lugares que reluziram com invulgar esplendor nos áureos tempos da Cristandade conservam ainda hoje, e com intensidade por vezes surpreendente, uma admirável continuidade com seu passado. E em se tratando sobretudo de tradições religiosas, a fé muito acentuada pela qual sempre se distinguiu o povo espanhol nos leva a  encontrar, nesta nação, significativos exemplos dessa continuidade.

Talvez o mais expressivo deles seja o Santuário de Santiago de Compostela. Situado na Galícia, ao norte da Espanha, seu nome deriva do latim “Campus Stellae”, isto é, Campo da Estrela. Segundo as crônicas, após o martírio de São Tiago o Maior, ocorrido em Jerusalém, seu corpo foi transladado por discípulos para aquela região hispânica e ali o sepultaram.

Com o passar do tempo, porém, perdeu-se a noção de onde seus restos mortais haviam sido depositados. Até um dia em que, no século IX, alguns camponeses avistaram uma luz inusitada refulgindo sobre o local.

Começaram a escavar e depararam com os ossos do grande Apóstolo. Em breve erguia-se o santuário, que haveria de se tornar um dos maiores centros de peregrinação de  toda a Cristandade. Da Europa inteira se acorria para Santiago de Compostela, e num tal afluxo que, em determinadas épocas do ano, certos trechos dos caminhos transformavam-se em verdadeiras ruas, repletos de peregrinos!

É difícil existir lugar mais sagrado e mais venerável do que Compostela. O devoto que ali se apresente com verdadeiro espírito de peregrinação e a alma voltada para o  sobrenatural, não pode deixar de sentir as bênçãos  inapreciáveis de continuidade com as mais antigas e excelentes graças da Civilização Cristã. Bênçãos peculiares, diferentes das que se nota em outros santuários igualmente  veneráveis como Aix-la-Chapelle ou Genazzano; bênçãos palpitantes num ambiente repassado de fervor e entusiasmo.

A igreja é o maior templo românico do mundo, embora sua fachada obedeça às linhas de um estilo posterior. É grandiosa, magnífica e imponente. À primeira vista, o exterior pode parecer excessivamente sobrecarregado. Mas depois de uma ponderada análise, e tendo nossos olhos se habituado a considerá-lo, percebe-se que essa sobrecarga é  ordenada e muito bonita. As fachadas laterais também se revestem de uma extrema beleza, e todo o edifício compõe um harmonioso, digno e lindíssimo conjunto com os  outros prédios da praça em que ele se encontra.

Internamente, possui a formosura própria da arte românica, com um pormenor bem espanhol: não há vitrais. A luz penetra através de uma claraboia cuja abertura foi cuidadosamente estudada para que todo o recinto receba suficiente iluminação. Em seus corredores laterais abrem-se diversas capelas, consagradas a certas invocações de  Nossa Senhora e a alguns santos.

E no centro, a meio termo entre o altar-mor e a porta de entrada, existe uma capela do Santíssimo Sacramento, bonita e piedosa. Os fiéis que ali se ajoelham para adorar o  Rei dos Reis, perpetuamente exposto, são acolhidos por uma tocante imagem do  Sagrado Coração de Jesus, impregnada de unção e de bondade celestiais.

Entretanto, o local mais abençoado do Santuário é, a meu ver, a cripta onde se encontram os despojos de São Tiago o Maior. A urna funerária em que estão conservados é, na  verdade, uma bela e rica imagem do Apóstolo, lavorada em ouro e pedras preciosas, com traços de inspiração ainda pré-gótica.

Êmula dessa bênção toda particular é a que se sente noutra capela do Santuário, situada embaixo da escadaria principal. Trata-se de uma construção dos tempos de Carlos  Magno, o grande e piedoso monarca do Sacro Império Romano-Alemão, muito devoto de São Tiago e que ali esteve diversas vezes. Ali dentro torna-se ainda mais nítida a noção da continuidade desse presente com as magníficas tradições da Cristandade, e mais viva a ideia de que as graças de hoje e as de ontem se respeitam e se entrelaçam,  constituindo um tesouro espiritual que nada poderá destruir!

Duas coisas merecem especial destaque no conjunto dos atraentes aspectos do Santuário. Uma é o “botafumero”, imenso turíbulo de prata que, em dias de festa, costuma ser levantado para a vasta abertura da cúpula e, lá no alto, descrevendo um gigantesco semicírculo, se põe a espargir o odorífero incenso por todo o recinto sagrado.

Para alguém que o assista pela primeira vez, esse interessante e louvável ritual de incensamento pode tomar um certo ar de exercício de força, como quem observa se os homens encarregados de puxar as cordas têm o necessário vigor para espalhar aqueles tufos fumegantes. E, portanto, no meio desse ato religioso, há algo de campesino e de um pouco tosco. Mas, de um tosco e um campesino saborosos, encantadores, que dão gosto de serem vistos, porque fazem a beleza dos costumes de um lugar como Santiago de Compostela.

Outra coisa que atrai especialmente a atenção, porque imbuída de simbolismo, é a presença dos sinos que tocam nas majestosas torres da igreja. Eles já ressoavam por aquelas regiões, nos dias anteriores à dominação moura.

Quando os invasores chegaram a Compostela, saquearam o Santuário, levando os sinos para uma mesquita de Sevilha. Séculos depois, durante os heroicos feitos da  Reconquista espanhola, São Fernando de Castela recuperou estes mesmos sinos e ordenou que fossem recolocados em seu lugar de origem.

Quando ali estive, eu também como peregrino, ao ouvir o timbre desses bronzes, testemunhas de tantas epopeias, pensei no triunfo daquele grande rei espanhol e no triunfo  ainda maior da Igreja Católica. E os dobrares que ecoavam das torres imponentes encheram minha alma de uma harmonia extraordinária.

Uma vez mais, reluzia a admirável continuidade das bênçãos da Civilização Cristã.

São João Maria Vianney, modelo para os sacerdotes

Homem pobre e pouco inteligente, São João Maria Vianney tornou-se um exemplo da Onipotência Divina pela santidade de sua vida e eficácia de sua ação.

A vida de São João Maria Vianney, um dos maiores santos do século XIX, apresenta muitos aspectos passíveis de comentários.

Ele foi, nas primeiras décadas do século XIX, um seminarista muito pobre e, além disso, de inteligência notavelmente pequena. Precisou fazer seus estudos de seminário com um esforço extraordinário, e, durante algum tempo, até duvidou-se da sua vocação sacerdotal, por causa dessa insuficiência de inteligência. Formou-se a duras penas — pode-se dizer que ele conseguiu o diploma de fim de curso de seminário apenas no limite mínimo da suficiência — e, por ser um homem tão apagado, de tão poucos predicados naturais, foi encaminhado pelo seu Bispo para um vilarejo minúsculo do Sul da França: a aldeiazinha de Ars.

Ali começou então a sua atuação sacerdotal, que encheu de luz a Europa inteira e depois se propagou para o mundo novo; posteriormente, ele foi proclamado modelo e patrono do clero.

Modelo de sacerdote

O que distinguia esse santo?

Embora não tivesse nenhuma das qualidades naturais para exercer um sacerdócio extraordinário, ele, entretanto, foi um sacerdote magnífico, um apóstolo estupendo, um confessor dotado de raríssimo discernimento, um pregador que exercia profunda influência sobre as almas e, acima de tudo, com um título que é a arquitetura de todo o resto: foi o próprio modelo de sacerdote.

Qual era a razão da eficácia do seu apostolado?

Como bem disse Santa Teresinha do Menino Jesus, para o amor, nada é impossível, e quem verdadeiramente ama a Deus Nosso Senhor e a Nossa Senhora obtém os meios para fazer aquilo a que a Providência Divina o chama.

Um ensinamento dotado de potência

Ele era um pregador extraordinário. Estudava os seus sermões, procurava prepará-los com cuidado. Não subia às altas regiões da Teologia, mas suas homilias cuidavam das noções catequéticas comuns com as quais um sacerdote instrui o povo. Entretanto, o santo Cura d’Ars ensinava com tanta unção, compenetração, Fé e amor que tudo quanto ele dizia se tornava atraente. E muitas vezes, tendo ele voz fraca — naquela época em que não havia microfones —, não conseguia se fazer ouvir pelas multidões que ficavam acumuladas na porta do templo e até do lado de fora. Mas, só de vê-lo e de escutar uma ou outra frase que ele pronunciava, as pessoas se convertiam.

Deus num homem

Dom Chautard, na “Alma de Todo Apostolado”, conta esse fato característico:

Curioso pela fama de São João Maria Vianney, um advogado de Paris foi fazer uma visita à cidadezinha de Ars para conhecê-lo. Quando o advogado voltou a Paris, perguntaram-lhe: — O que o senhor viu lá em Ars?

Ele deu esta resposta, que é a maior glória que um homem pode ter:
— Eu vi Deus num homem.

Quer dizer, notava-se que Deus estava nele.

Era só ele começar a falar, que as almas se comoviam e se modificavam; as conversões que ele fazia eram espantosas e numerosíssimas.

Pergunta Dom Chautard: Por que o Cura d’Ars conseguia converter, sendo pouco dotado intelectualmente, enquanto outros padres tão inteligentes muitas vezes não convertem ninguém? E responde: Ele tinha uma grande vida de pensamento, de meditação, uma intensa vida interior. E porque tinha essa vida interior, ele estava imbuído e compenetrado das doutrinas que ensinava. E quando ele falava, as pessoas tinham a sensação de ter um contato vivo com as verdades das quais ele era o arauto.

Ele possuía a unção, o carisma da pregação, e Ars se tornou um centro de peregrinação: à semelhança do advogado há pouco mencionado, pessoas de toda a França, e também de outras regiões da Europa, iam a Ars a fim de ver e ouvir esse sacerdote.

Verdadeiro mártir do confessionário

Além disso, ele foi um verdadeiro mártir do confessionário, onde permanecia horas inteiras ouvindo confissões. Podemos imaginar o que representa para um padre ficar sentado numa verdadeira cabinezinha de escuridão, a ouvir os pecados das pessoas e dar-lhes os conselhos, durante horas e horas. Que tremenda penitência isto representa!

São João Maria Vianney era um sacerdote que seguia o conselho dado por Santo Afonso de Ligório: ouvia cada confissão sem pressa, como se tivesse só aquela pessoa para ser atendida, e lutava corpo a corpo com os pecados daquele indivíduo.

Ele aconselhava, insistia; e quando a pessoa não tinha o propósito sério e verdadeiro de se emendar de seus pecados, ele negava a absolvição.

Isso chegava a tal ponto, que havia paroquianos que iam confessar-se noutras paróquias, para obter absolvição. Ele dizia: “Se outros padres querem lhes mandar para o Inferno… Eu sou seu pároco, e não lhes dou a absolvição.”

Após um dia inteiro na igreja, começava a batalha noturna com o demônio

Este padre extraordinário passava o dia inteiro na igreja: no púlpito, no confessionário, no altar. Poder-se-ia pensar que, quando ele ia à noite para casa, gozaria de um bom repouso. Entretanto, aí começava uma das mais estranhas facetas da vida dele: era a batalha noturna com o demônio.

Contam os biógrafos de São João Batista Vianney que ele teve, certa vez, um sonho no qual se viu julgado por Deus, e o demônio dizer contra ele: “É preciso castigá-lo, porque em tal ocasião ele estava muito cansado e, passando perto de uma cerca, comeu dois cachos de uvas.” De fato, ele estava fugindo do serviço militar, porque Napoleão obrigava os seminaristas a servir na guerra. E o demônio acrescentou: “Ladrão! Comeu dois cachos de uvas, deve ser punido!”

E São João Maria Vianney respondeu: “Tu mentes, ladrão não sou, porque eu deixei em tal local o dinheiro correspondente ao preço dos cachos de uvas, para que o dono, quando passasse por lá, o pegasse.”

E quando vinha confessar-se uma alma particularmente dominada pelo demônio, este começava a atormentar São João Maria Vianney na noite anterior. Em certa ocasião, ateou fogo em sua cama, tendo uma parte do colchão ficado toda tisnada pelas chamas. Ele, felizmente, não se feriu. O demônio o odiava porque sentia que uma de suas vítimas lhe seria arrancada pelo santo.

O santo Cura d’Ars fazia penitências, se flagelava, rezava por aquelas almas, para conseguir depois que suas palavras fossem portadoras das graças necessárias para operar as conversões delas. Além disso, levou uma vida de jejum intenso, e fez de seu confessionário um longo martírio de sua existência.

Atribuía seus milagres a Santa Filomena

Para acentuar ainda mais o seu apostolado, a Providência deu-lhe o dom dos milagres.

Na igreja dele havia uma relíquia insigne de Santa Filomena, mártir. E antes de fazer algum milagre, ele dizia: “Rezemos a Santa Filomena!” E quando o milagre era realizado, afirmava ter sido Santa Filomena que o fizera, para não tocar a ele a graça e a glória de ter operado o milagre.

Revelando o passado miraculosamente

Encerro recordando um fato extraordinário, contado por uma penitente dele.

Uma moça foi confessar-se e São João Maria Vianney disse para ela:
— Minha filha, você se lembra de que esteve em tal ocasião num baile?

Podemos imaginar a sensação dela.

E continuou ele:
— Lembra-se de que, em certo momento, entrou na sala de baile um rapaz muito bem apessoado, elegante, correto, e dançou com várias moças?
— Sim, lembro-me.
— Lembra-se de que você teve muita vontade de que ele dançasse consigo?
— Lembro-me.
— Lembra-se de que o rapaz não o fez, e por isso você olhou para ele com uma espécie de tristeza? E, na hora de ele sair da sala, fitando incidentemente os pés dele, notou uma luz azul que lhe saía dos pés?
— Lembro-me.
— Aquele homem era o demônio, que tomou a forma humana e dançou neste baile com várias moças. Ele não lhe pediu para dançar porque você é Filha de Maria e estava com a Medalha Milagrosa no peito.

Ele estava revelando um passado que não podia conhecer; logo, isso não podia deixar de ser verdade. Tratava-se uma revelação espantosa.

Pode-se imaginar a atmosfera criada na pequena igreja de Ars quando os peregrinos saíam, uns convertidos, outros com seu passado desvendado, todos regenerados e cantando louvores a São João Maria Vianney.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de10/7/1968, 22/5/1976, 6/10/1990)

Santa Josefina Bakhita

Nascida no Sudão em 1869, foi raptada por traficantes de escravos, os quais lhe impuseram o nome de Bakhita, que significa Afortunada.
 
Após ser vendida várias vezes no mercado, teve a dita de ser comprada pelo cônsul italiano, Callisto Legnani, em cuja casa foi pela primeira vez tratada com bondade e carinho.
 
Quando o cônsul retornou à Itália, a jovem escrava pediu que fosse levada junto com a família. Lá chegando, Legnani acedeu aos insistentes pedidos da esposa de um seu amigo, Augusto Michieli, e permitiu que a jovem fosse residir com eles. Dedicada e afável, em pouco tempo ela conquistou a simpatia e confiança dos novos patrões, tornando-se babá da filha recém-nascida.
 
Pouco depois, o casal Michieli mudou-se para o norte da África, deixando a filha e sua fiel guardiã sob os cuidados das Irmãs Canossianas, de Veneza.
 
Nesse Instituto religioso, Bakhita começou a ouvir falar de um Deus que ela já sentia em seu coração sem saber quem era Ele.. Após alguns meses de catecumenato, foi batizada, em 9 de janeiro de 1890, com o nome de Josefina.
 
Quando o casal Michieli quis levá-la para a África, ela manifestou com firmeza sua decisão de permanecer com as Irmãs Canossianas, a serviço daquele Deus que lhe havia dado tantas provas de seu amor.
 
Em 8 de dezembro de 1896, fez os votos perpétuos no Instituto de Santa Madalena de Canossa. Viveu nessa comunidade mais de 50 anos, exercendo diversas funções. Como irmã porteira, atraía as simpatias de todos, especialmente das crianças, que ouviam com encanto sua agradável e cadenciada voz. Chamavam-na de “Madre Morena”.
 
Suportou com grande paciência os sofrimentos de uma longa e dolorosa enfermidade que a levou à morte no dia 8 de fevereiro de 1947. Logo se espalhou a fama de sua santidade. Foi canonizada em 1º de outubro de 2000.

Consagração, liberdade suprema

Interior da igreja onde repousam as relíquias de São Frei Galvão, Convento da Luz, na capital paulista

Escreve-me um leitor:

“Entre outros títulos de glória, o Sr. atribuiu a Frei Galvão, em seu último artigo, o de “escravo de Maria”. O fato me choca. Este título não traz glória nem para Frei Galvão nem para Maria. A escravidão é a sujeição de um ente a outro, pela força. Ela resulta de que o mais forte tenha roubado ao mais fraco (pela superioridade física ou pela pressão econômica, pouco importa) o atributo essencial da dignidade pessoal, isto é, o direito de cada um a dispor de si segundo seu exclusivo entendimento e interesse. A palavra “escravidão” lembra o chicote, o açoite, as algemas, a subnutrição e as perseguições policiais. Como pode ter escravos Maria, a quem os católicos cultuam como Rainha da bondade? E como pode alguém ter por honra ser escravo, ainda que seja de Maria? Convenhamos, tudo isto é absurdo”.

Tal estilo de relacionamento entre Maria e um seu devoto seria efetivamente absurdo. Ora, sempre que uma pessoa sensata faz algo que parece absurdo, deve-se logicamente procurar para seu ato uma interpretação que o faça ver em seu verdadeiro aspecto, explicável e sensato. Se o grande Frei Galvão, tão obviamente sensato e virtuoso, julgou honrar seu burel de franciscano e seu sacerdócio fazendo-se escravo de Maria, ao missivista tocaria o dever de presumir que há para isto uma explicação razoável e elevada. Tal explicação pode ser encontrada facilmente na sua melhor fonte, o “Traité de la vraie dévotion à la Sainte Vierge” de São Luís Maria Grignion de Montfort, livro aprovado pela Igreja Católica e tido geralmente como uma das obras mais eminentes da Mariologia.

Tentarei explicar aqui, com vistas ao leitor, o que é essa escravidão marial, à qual São Luís Maria chama esclavage d’amour [escravidão de amor] e – note-se – não da força bruta, da coerção.

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Ainda não há muitos anos, um dos mais belos elogios que se poderia fazer de alguém – Chefe de Estado, pai de família, sacerdote, magistrado ou militar – era qualificá-lo de “escravo do dever”. Afirmava-se, assim, que ele era capaz de arcar com quaisquer riscos ou prejuízos para não transgredir os deveres inerentes a seu cargo. Ou, até, para fazer tudo quanto fosse simplesmente aconselhável no sentido do mais esmerado cumprimento de sua missão.

Análogo significado tinha a afirmação de que um chefe de Estado ou de família, um magistrado ou militar fazia de sua missão “um verdadeiro sacerdócio”.

A palavra “escravo” tinha pois, aí, um sentido absolutamente distinto do mencionado pelo leitor. Qualificava alguém que, livremente persuadido da nobreza e elevação de seus deveres e de sua missão, resolvera, também livremente, imolar, a bem dela, se fosse o caso, até mesmo seus legítimos direitos e seus mais caros interesses.

Nessa “escravidão” cheia de amor ao dever, ao ideal, à missão, o homem nem de longe é escravo à maneira dos prisioneiros de guerra romanos ou dos negros embarcados à força para o Brasil. Pelo contrário, ele exerce racionalmente, e no mais alto grau, a sua liberdade, e faz um uso absolutamente lúcido e nobilitante, de si e de tudo quanto é seu.

Assim é o sentido que São Luís Grignion de Montfort dá à consagração de alguém como “escravo de Maria”.

É escravo de amor de Maria Santíssima, quem, persuadido sem qualquer coação, das prerrogativas excelsas que a Ela tocam como Mãe de Deus, e das perfeições morais de que Ela é modelo, a Ela consagra livremente e por amor “seu corpo e sua alma, seus bens interiores e exteriores, e até o valor de suas obras boas passadas, presentes e futuras, deixando a Ela o direito pleno e inteiro de dispor de si e de tudo o que lhe pertence, sem exceção, segundo o gosto dEla, para a maior glória de Deus, no tempo e na eternidade”; as palavras são do Santo. E em troca dessa lúcida e libérrima consagração, Maria, Mãe de misericórdia, não trata seu escravo nem de longe com o egoísmo baixo e violento do romano ou do negreiro, mas com o amor materno, cheio de afeto e consideração, da mais generosa, afável e indulgente das mães.

E passo aqui a outra analogia elucidativa. Essa posição do “esclave d’amour” de Nossa Senhora – considerada enquanto abnegada imolação dos direitos e interesses de alguém, em benefício de um ideal sacrossanto, como é o serviço da Virgem-Mãe tem muito de comum com o ato pelo qual um frade ou uma freira se integra em uma Ordem religiosa, renunciando, num gesto supremamente lúcido e livre, à disposição de si e ao próprio patrimônio, pelos votos de obediência, pobreza e castidade.

Só que quem se consagra como escravo de Maria, sob certo aspecto ainda é mais livre, pois ao contrário do frade ou da freira, não faz votos, e assim conserva a faculdade de desligar-se, a qualquer momento, dessa sublime consagração.

Em todos os países da terra, a faculdade de agir assim se considera liberdade. Exceto, é claro, nos países comunistas. – Mas nestes, o que é ser livre? – É ser escravo, ao pé da letra.

E por sinal: o autor da carta é anticomunista?

Plinio Corrêa de Oliveira

Santo Estêvão, Rei Apostólico

Assim como cada indivíduo, também o Estado deve praticar os Dez Mandamentos. Ele existe, antes de tudo, para servir à Igreja e favorecer o Reino de Deus. Esse princípio foi praticado eximiamente por Santo Estevão, e constitui o fundo das concepções políticas de Dr. Plinio.

Santo Henrique, Imperador do Sacro Império Romano Alemão, se interessou pela conversão do povo húngaro, e destinou para isso a sua irmã Gisela, cujo casamento ele promoveu com o rei pagão daquele povo. Pela ação de Santo Henrique, da Rainha Gisela e de pregadores santos que foram para a Hungria, foi possível converter o rei, e com a conversão dele se tornou mais fácil a conversão dos húngaros. Este rei foi Santo Estêvão.

O enorme império dos maometanos

A Hungria passou a ser um baluarte da Cristandade no Ocidente. Nação de um papel muito importante, porque o que são hoje os comunistas para a Cristandade de nossos dias, para a Cristandade até começo do século XVIII — certamente desde o século VII até o século XVIII, portanto, mais de mil anos — foram os maometanos.

Estes, que eram na sua maioria árabes, também conseguiram trazer para seus erros os turcos. Os maometanos ocupavam a metade do litoral mediterrâneo. Além de todo o Norte da África, chegaram a conquistar durante algum tempo quase toda a Espanha, parte da França até Poitiers e grande parte de Portugal. Posteriormente, no Oriente Próximo, eles ocuparam os Lugares Santos, tomaram Constantinopla e algumas zonas territoriais adjacentes, chegaram até a Albânia, a qual, ainda hoje, é mais ou menos maometana. Isso formava, então, um império enorme.

O Mediterrâneo, considerado naquele tempo o centro do mundo — Mediterrâneo, “no meio da Terra” —, estava dividido, portanto, em dois blocos: um grande bloco católico, que tomava todas as nações da Europa, também a Espanha depois que ela foi reconquistada; e o maometano, que abrangia o Norte da África, regiões da Ásia e uma parte dos Bálcãs. Os dois blocos estavam numa contínua guerra de caráter religioso, numa constante fricção.

E os pontos de ataque mais frequentes foram, nos dois extremos de Europa: a Península Ibérica, onde está a Espanha e Portugal e, de outro lado, a Hungria. Os maometanos subiam em hordas, a partir de Constantinopla, e o intuito deles era de chegar à Hungria, depois até a Áustria, tomar Viena e posteriormente descer à Itália para ocupar a Sé de São Pedro.

O Imperador Bajazet, que foi talvez o mais famoso dos chefes maometanos, dizia que ele queria fazer o seu cavalo comer no altar de São Pedro, como numa manjedoura. E os povos que aguentavam, do lado do Ocidente, a invasão maometana eram o espanhol e o português, que se tornaram famosos por causa de seu heroísmo.

Um povo-baluarte

Não focalizamos bastante o papel que tinham nesse ponto os húngaros. Estes, precisamente, suportavam a pressão maometana, para defender o Ocidente na Europa oriental, do outro lado do alicate, ou da tenaz maometana. E com batalhas heroicas, guerras, santos lutando do lado deles, com milagres, etc., algo que pode legitimamente ser comparado, nos seus pontos altos, ao heroísmo dos espanhóis e portugueses contra os maometanos.

A conquista desse povo-baluarte, ao qual a Europa deveu em grande parte a sua integridade contra as investidas maometanas, e que também soube resistir muito bem ao protestantismo — a Hungria era uma nação de fortíssima maioria católica, apenas uma parte dela passou para o protestantismo —, a conversão dos húngaros teve, portanto, uma série de consequências para a História do Ocidente, para a História da Cristandade.

Tudo começou com a conversão de Santo Estêvão e se consolidou com o reinado de Santo Américo, filho de Santo Estêvão e educado por ele.

Tudo quanto diz respeito e esses primórdios da Cristandade na Hungria nos deve interessar profundamente. Então, comentarei uma ficha(1) que nos fala do modo pelo qual Santo Estêvão instruiu seu filho, Santo Américo, na arte de governar.

”Ninguém deverá aspirar à realeza se não for católico fiel”

Santo Estêvão deixou para seu filho, Santo Américo, uma instrução em dez artigos, sobre a maneira de bem governar.

Esses dez artigos são como que florões que deviam ornamentar a coroa real. O primeiro desses florões é o seguinte. Diz Santo Estêvão:

Como ninguém deverá aspirar à realeza se não for católico fiel, demos o primeiro lugar das nossas instruções à nossa santa Fé. Recomendo-vos, antes de tudo, meu querido filho, se quiserdes ilustrar a coroa real, professar com tanta firmeza a Fé católica que possais servir de modelo aos súditos, e fazer com que todos os filhos e ministros da Igreja vos reconheçam como verdadeiro cristão. Pois aquele que professa uma falsa crença, ou que, professando a verdadeira, não a pratica em suas obras, esse não reinará com glória nem participará do Reino eterno. Porém, se conservardes o escudo da Fé, tereis o capacete e o elmo da salvação. Com essas armas podereis combater legitimamente os inimigos visíveis e invisíveis, pois disse o Apóstolo: “Só será coroado aquele que combater legitimamente.” É esta a Fé a que me refiro — relembra o Símbolo de Santo Atanásio.

Se, pois, alguém sob o vosso domínio procurar dividir, diminuir ou aumentar essa Trindade Santa, ficai ciente de que é filho da heresia e não filho da Santa Igreja. Evitai, pois, seja alimentá-lo, seja defendê-lo, sob pena de parecerdes seu amigo e querer favorecê-lo, pois as pessoas dessa espécie contaminam os filhos da Santa Fé; sobretudo perderiam e corromperiam miseravelmente esse novo povo da Santa Igreja. Velai, acima de tudo, para que tal não aconteça.

Primeira tarefa do rei: ser bom católico

Santo Estêvão se refere a um Credo chamado “Símbolo de Santo Atanásio”, que se conserva até hoje na Igreja, contendo as principais verdades da Fé. Ele, então, deixa ao filho esse Credo e diz que contém a verdadeira Fé católica. Se alguém quiser acrescentar ou tirar algo desse Credo, seja maldito. Porque o acréscimo não será feito pela Igreja, mas por uma iniciativa puramente individual e contra o espírito da Esposa de Cristo. A sua redução é uma mutilação da obra da Igreja.

Só quem pertence verdadeiramente à Igreja merece apoio do rei. Aquele que não é filho da Igreja, que não aceita o Credo católico, não deve ser apoiado pelo monarca; o rei não deve nem alimentá-lo, nem ajudá-lo em nada, mas sim isolá-lo e isolar-se dele, porque o herege contamina aquele que tem Fé. E seria uma tristeza que esse reino novo, nascido há pouco da Fé católica, se contaminasse com a heresia.

E Santo Estêvão acrescenta que a primeira tarefa do rei é ser bom católico. A finalidade do reino é de ser um reino católico. E por causa disso o monarca, por cima de tudo, há de dar provas de que ele é um bom católico, respeitar os ministros do Altíssimo, amar o povo de Deus; ele deve ser o chefe deste povo de Deus na luta.

Se for bom católico, continua Santo Estêvão, então ele terá glória como rei. Se for mau católico, não terá esta glória e vai acabar se perdendo, porque só tem salvação aquele que adota a verdadeira Fé católica.

Procurar antes de tudo o Reino de Deus e sua justiça

Esse princípio é muito verdadeiro. Os países, como os indivíduos, têm obrigação de crer em Deus, servi-Lo e amá-Lo sobre todas as coisas. Um país é comparável a um indivíduo, pois constitui o que se chama uma pessoa jurídica. Essa pessoa tem as mesmas obrigações do indivíduo. Um país, coletivamente, o Estado, tem a obrigação de conhecer e professar a Fé católica. E assim como cada um de nós tem por principal missão nesta vida praticar a Fé e propagá-la, o Estado tem como primordial missão ser instrumento da Igreja para a difusão da Fé católica.

Antes de cuidar de finanças, boa administração, diplomacia, exércitos, ou de qualquer outra coisa, o Estado deve tratar de, dentro de suas próprias fronteiras, servir a Igreja Católica, favorecer a influência dela por todos os meios que estejam ao alcance do poder temporal; e perseguir os inimigos da Igreja, ajudar os amigos dela, fazer com que todos os instrumentos do poder público sejam utilizáveis pela Igreja para influenciar o país.

Se o Estado fizer isso, alcançará todas as outras coisas, pois se aplica a ele o mesmo que Nosso Senhor Jesus Cristo disse aos indivíduos: “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo.”

Quer dizer, se em algum lugar um rei faz todo o possível para servir a Igreja, ele terá realizado o resto; possuirá bons súditos e será amado por eles. O bom súdito é corajoso, leal, bom pagador de impostos, ordeiro, trabalhador, tem grandeza de alma, amor ao maravilhoso, idealismo, entusiasmo pelo sublime, produz uma grande cultura, uma grande civilização. A questão é ser bom católico.

Se, pelo contrário, não é bom católico, não produz nada que preste.

A verdadeira felicidade está muito mais nos bens da alma do que nos do corpo. E abaixo da virtude, o primeiro bem da alma é o equilíbrio mental. A prosperidade de quem não é católico, com desequilíbrios, maluqueiras, crimes, não é verdadeira prosperidade. É preciso procurar o Reino de Deus e sua justiça, e todas as coisas serão dadas de acréscimo.

Santo Estêvão e Santo Américo foram profundamente venerados pelos húngaros de todos os tempos que se seguiram a eles.

Santo Estêvão recebeu uma coroa enviada pelo Papa, e que até hoje se venera na Hungria como sendo o símbolo do poder. E, com a coroa, foi outorgado pelo Sumo Pontífice a Santo Estêvão o título de Rex Apostolicus — Rei Apostólico —, porque ele tinha feito um tão magnífico apostolado, a Hungria estava de tal maneira como uma ponta-de-lança apostólica voltada para as nações bárbaras, a fim de convertê-las e jugulá-las, que mereceu este título. E com um privilégio que nenhum rei da Terra tinha: em toda parte onde ele fosse, podia ser precedido por um dignatário que levava diante dele a Cruz de Cristo. E era tão elevado esse título de Rei Apostólico, que os imperadores da Áustria, até o último deles, que também eram reis da Hungria, se chamavam “Vossa Majestade Imperial Apostólica”, porque o Rei Apostólico era o Rei da Hungria.

O Estado existe para favorecer a Igreja

O que é melhor para um rei: ter esse prestígio ou uma polícia supermoderna, com espias, com escutas, etc.? É evidente que esse prestígio vale mais do que todas as polícias. Significa dominar as almas, influenciar pelos corações. E quem destrói um poder espiritual? Ninguém.

Dou uma prova lindíssima disso: houve um rei que, na Boêmia, teve o papel de Santo Estêvão na Hungria; foi São Venceslau. Até hoje a estátua de São Venceslau está no centro de Praga e não houve comunista que ousasse abatê-la. Os comunistas acabaram com tudo, fecharam as igrejas, e até prenderam o clero. Na estátua de São Venceslau ninguém tocou. E até hoje, quando há movimentos de protesto contra o regime comunista, a estátua de São Venceslau amanhece cheia de flores. É a marca deixada num povo por um rei que procurou antes de tudo o Reino de Deus e sua justiça, e, por isso, todas as coisas lhe foram dadas por acréscimo.

Quem me analisar encontrará no fundo de minhas concepções políticas esta ideia, esta doutrina católica de que o Estado existe, antes de tudo, para servir a Igreja e favorecer o Reino de Deus; e, quando ele realiza esta missão, torna-se grande em todos os sentidos e debaixo de todos os pontos de vista.

(Extraído de conferência de 17/1/1970)

1) Não possuímos referências bibliográficas da obra citada.
2) Mt 6, 33.