CLEMÊNCIA INDIZÍVEL

A realeza que Nossa Senhora exerce sobre o gênero humano não é a do juiz, mas a da advogada, isto é, d’Aquela que não tem por missão julgar e punir os pecadores, mas a de os defender. Por isso  tem Ela para conosco toda sorte de predisposições favoráveis, e sempre nos atende com inefável bondade.

Entretanto, a alma moderna, muito atribulada e tratada com terrível dureza pela atual tirania do demônio, encontra certa dificuldade em compreender o verdadeiro sentido da clemência de Nossa   Senhora.

Tanto mais quanto uma falsa piedade apresenta esta misericórdia de modo alvar e adocicado, como se ela fosse uma espécie de cumplicidade com o erro. Ora, a ternura e a bondade de Maria não  consistem numa vil condescendência para com quem praticou o mal, e sim na materna e invariável disposição de lhe conceder as graças necessárias para abandonar o erro e o pecado.

É nesse sentido que se deve entender a clemência de Nossa Senhora. E enquanto tal, ela é única, suprema e indizível.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 41 (Agosto de 2001)

Um inocente que irradia luz espiritual

São Domingos de Gusmão (cuja festa se celebra em agosto) e São Francisco de Assis, seu contemporâneo, foram dois luzeiros cujas vocações se interpenetram. Considera-se terem realizado o  famoso sonho de Inocêncio III, no qual esse Papa via a Basílica de São João de Latrão, que simbolizava a Cristandade, rachada e sendo sustentada, ora por São Domingos, ora por São Francisco. 

Dr. Plinio tinha por ambos profunda admiração, que se traduziu em numerosos comentários pervadidos de sentimentos de enlevo e veneração. Na conferência que transcrevemos a seguir, ele  analisa um afresco de Fra Angélico, no qual o insigne pintor dominicano procura retratar as perfeições morais de seu santo Fundador

 

Cristandade tendia já naquela época para a moleza, o relaxamento, a perda do senso do sacrifício, do sobrenatural, e se inundava dos bens materiais que o avanço da civilização proporcionava.

Foi neste contexto que, para barrar o progresso do mal, Deus suscitou as vocações de São Francisco e de São Domingos: o primeiro, pela caridade, e o segundo, pela lógica, lograram conjuntamente reerguer a Idade Média do século XIII. A Ordem dos Franciscanos devia praticar em grau exímio a humildade e a pobreza; a dos Dominicanos, combater num terreno mais intelectual o orgulho e a sensualidade.

Na conferência de hoje, pretendo voltar-me particularmente para São Domingos. Procuremos vê-lo pelos olhos de um de seus mais eminentes filhos espirituais, Fra Angélico.

Em um de seus célebres afrescos, ele representa São Domingos ainda muito moço, vestido de dominicano, numa atitude pensativa, meditando ao pé da Cruz. A pintura mostra um personagem muito sereno e calmo. Mas, ao mesmo tempo, dentro da serenidade e da calma dele, está se entregando a uma intensa atividade. Encontra-se numa pesquisa, numa interrogação. Sem tensões nem cansaços errados, a investigação de seu espírito se concentra num determinado ponto. De outro lado, nota-se nele uma atitude de enlevo e de amor.

No todo externo deste homem há algo de luminoso. Ele irradia uma luz que não é física, mas espiritual. Não se trata do viço da mocidade, também presente nele; é uma espécie de luz interior, mais ou menos indefinível, decorrente de uma extraordinária lucidez e de uma clara visão das coisas.

Singular discernimento das almas

Tem-se a impressão de que, se um de nós olhasse o mundo de dentro dos olhos dele, veria o universo com alguns matizes completamente diferentes. Sobretudo, no que diz respeito às almas.

Examinando-as, procurando conhecer caráteres, esse homem está tão distante do lamaçal das atividades comuns, tão longe das paixões que habitualmente os homens têm, que ele, por diferença, percebe muito mais essas desordens e, por conaturalidade, também discerne melhor o que há de bom nos homens. Ele tem uma visão muito mais penetrante do mundo das almas, do que uma pessoa comum.

Fortaleza, clareza de visão e equilíbrio

Uma objeção que se poderia fazer a esta figura é a seguinte: onde está presente dentro dela a combatividade de espírito? Parece uma pessoa feita para concordar com tudo, e capaz apenas desse sorrisinho que esboça. E, a esse título, é uma pessoa que deve ser rejeitada por uma verdadeira formação.

Na realidade, imaginemos este homem fechando o livro e presenciando alguma cena de despudor insolente ou alguma extravagância, que se tornaram tão comuns nas ruas de hoje. Ele ficaria ou não profundamente chocado, e quereria empunhar um látego como aquele com que Nosso Senhor expulsou os vendilhões do Templo? Certamente.

É na sua extrema inocência, na sua extrema candura que reside uma extrema clareza de visão, muita fortaleza e muito equilíbrio. Este homem é capaz de atitudes enérgicas, mas também, no intervalo das batalhas, de sorrir e meditar sobre o Natal. Sem violências, sem choques interiores, ele passa de um estado de alma para outro.

Ele é, entretanto, um homem transparente para cada um de nós compreendê-lo. Um homem que poderíamos sondar, no mais íntimo de sua alma, para perguntarmos qual é o ponto de partida de todo esse equilíbrio que ele demonstra.

O ponto de partida é, antes de tudo, uma noção primeira da ordem. Porque esta é uma pessoa que nunca perdeu a graça batismal. Isto está escrito na sua fisionomia. Não se poderia admitir, por exemplo, que lhe fizessem esta biografia: “Grande santo penitente. Viveu por muito tempo no meio de pessoas corrompidas e cometeu inúmeros assassinatos. Ei-lo depois de convertido”. A penitência tem aspectos mais sublimes, mas não tem o da inocência. Neste homem se discerne a graça batismal na sua candura originária, em sua beleza primaveril.

Certezas extraordinárias

A partir da fidelidade à graça batismal, há uma certa retidão por onde ele vê muito claramente que a verdade é a verdade, e o erro é o erro. E os primeiros princípios universais da lógica e do entendimento não passaram pelo menor abalo, no espírito dele. De maneira que ele possui naturalmente certezas extraordinárias.

Prestemos atenção em sua fisionomia: não há o menor grau de dúvida a respeito de nada. Ele nunca duvidou. Consideremos com que tranqüilidade ele procura o seu caminho. Por quê? Porque ele anda a partir de certezas que nunca foram abaladas, e que lhe abrirão todas as portas.

De outro lado, com essa noção muito grande de todas as certezas, possui ele uma naturalidade e um modo categórico de condenar completamente o erro, e de se desfazer do mal de uma forma que não admite discussão: é, e está acabado!

Fé católica absoluta

Tomemos a fé católica deste homem, por exemplo. É uma fé total, absoluta! Ele acha evidente que a Igreja Católica seja verdadeira. Não há dúvidas para ele a esse respeito. É uma fé que nasce dessas certezas originárias, serenas e magníficas de quem nunca pecou contra a criteriologia, nunca pecou contra os próprios nervos, nunca pecou contra nada! E que progride na sua vida espiritual como o Rio Amazonas corre para o mar: caudaloso, enorme, tranqüilo, arrastando tudo, empurrando o mar longe para frente. Não é um rio wagneriano com cascatas, com quedas d’água nem coisas semelhantes. Ele se dirige para o oceano em linha reta, e chega ao mar. O mar, neste caso, é o Céu!…

Um profundo senso do divino

Outra coisa que há nele é o senso do divino, que se traduziria pouco mais ou menos num raciocínio da seguinte evidência:

“Eu existo. Contudo, é verdade também que antes de mim existiu uma quantidade enorme de seres. É verdade que, ao mesmo tempo em que eu existo, existe uma quantidade enorme de seres, e que depois de mim existirá outra quantidade enorme de seres. Há, portanto, um fluxo do existir dentro do qual, somando e subtraindo, eu sou uma gota, e não o centro dele.

“Por detrás desse fluxo de existência há uma ordenação, uma regra, uma concatenação de fatos, uma sucessão de coisas que constituem um universo coordenado e uno. Esse universo que assim existe me dá a ideia de um Ser ainda maior do que ele e, portanto, um Ser Absoluto, Divino, que também existe. É Ele o Criador de tudo.”

É a primeira impostação da alma diante de Deus.

Este é um homem sem interesses individuais. Ele não tem vaidades, nem complexos, nem ambições. Ele tem o hábito de, no seu pensamento, nas suas reflexões, não reportar as coisas a si, mas a este absoluto que é Deus, e que é o centro para onde ele está voltado.

Da inocência, o espírito apostólico

Então nós temos que, para este homem, rutila com clareza muito maior do que para o comum dos homens a noção de que a verdade é a verdade, o erro é o erro, o bem é o bem, e o mal é o mal. Vamos dizer que este homem, de repente, se encontrasse com Lutero. Ele se diferenciaria do heresiarca por vários abismos sucessivos. Ele iria notando as divergências, e diria: “Não! Errado!” E depois: “Vou pregar contra as idéias erradas de Lutero, pois não posso deixar que leve outros a seus erros! Nós não cabemos juntos no mundo!”

Donde nasceu o ímpeto desse espírito apostólico? Nasceu da candura originária, que é, em última análise, a boa ordem inicial de todo ser. Nasceu de todos os primeiros princípios da razão, de todos os primeiros impulsos dos nervos, de toda a graça do Batismo. Nasceu do senso do divino, e do respeito enorme por tudo o que existe, inclusive por si próprio, sentindo, por detrás, Deus que o envolve e que o transcende. Eis o ponto de partida desta alma inocente, que contém todo o resto.

“Paraíso originário” de todo batizado

Esse estado de alma é o “paraíso originário” que todo batizado tem, em grau maior ou menor do que São Domingos.

E aqui, ao término dos comentários sobre esta magnífica representação do Fundador dos dominicanos, parece-me apropriado ressaltar esta verdade: todos nós tivemos a inocência batismal. É ou não é verdade que todos nós, no fundo de nossas almas, sentimos saudades dos encantos do tempo em que éramos inocentes? Entretanto, como fomos feitos para viver dessa inocência, permanecem na alma mil cordas que ninguém vibrou, mil solicitações que não foram atendidas, mil possibilidades de expansão que de fato não foram aproveitadas, mil apetites feitos para a casa paterna que se vão saciar nas bolotas dos porcos. Resultado: mil remorsos indefinidos, não se está contente consigo mesmo, não se sente limpo diante de Deus.

Achamos que nossa existência é dura. É verdade. Porém, não agravamos nosso exílio, fechando as janelas que davam para o Céu? Há na Escritura uma lamentação de Deus, dirigida ao povo hebraico: “Vós transformastes o meu templo numa barraca para guardar frutas”. Não somos nós um templo do Espírito Santo, que transformamos em barraca para guardar frutas?

Olhando de frente nossa situação atual, lembremo-nos que tudo aquilo pode ser restaurado, desde que rezemos com confiança nesse sentido. Peçamos, pois, a Deus Nosso Senhor, por meio de Maria Santíssima, que nos limpe de nossos pecados e imperfeições, e restaure em nós aquela bondade derivada das graças que o Batismo infundiu em nossas almas.

 

São Domingos de Gusmão – Extraordinária lucidez

Em um de seus célebres afrescos, Fra Angelico representa São Domingos ainda muito moço, vestido com hábito dominicano, numa atitude pensativa, meditando ao pé da Cruz.

A pintura mostra um personagem muito sereno e calmo.

No todo externo deste homem há algo de luminoso. Ele irradia uma luz que não é física, mas espiritual. Não se trata do viço da mocidade, também presente nele; é uma espécie de luz interior, mais ou menos indefinível, decorrente de uma extraordinária lucidez e de uma clara visão das coisas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/4/1972)

Beleza da retidão

Dona Lucilia fazia com que seu filho percebesse, continuamente, a beleza da retidão. De modo especial, ela o manifestava através do olhar. E além de ressaltar o que existe de belo na retidão, ela  lhe dava a conhecer o repouso e a serenidade que a alma humana experimenta ao ser reta. Dessa forma ela alimentava na alma dele a inocência, a suavidade, a tranquilidade e a paz.

 

Há no homem concebido no pecado original um aspecto por onde aparecem os efeitos desse pecado que o inclinam para o mal, e outro lado da personalidade humana que corresponde frequentemente à graça e tem uma tendência ao bem.

Paz de alma e a luta contra as más tendências

Assim, forma-se dentro do homem o que os autores espirituais, com uma linguagem primorosa, chamam de “homem novo” e “homem velho”. O “homem velho” é o que nasceu em sua mera  natureza, e o “homem novo” é o que renasceu pelo Batismo. O homem batizado luta contra o não batizado, concebido no pecado original. Ambos estão em guerra contínua. Então, quando se fala  de paz, é preciso tomar em consideração que em uma pessoa concebida no pecado original não há paz entre esses “dois homens”.

O “homem novo”, ou seja, o lado bom do ser humano pode estar em paz quando a pessoa tem sua Fé firme, a consciência tranquila porque cumpre seu dever, confia na Providência e, portanto, sabe que, aconteça o que acontecer, ela enfrenta os males. É uma paz interior que reina na parte mais nobre, mais excelente de sua própria alma.

Essa paz da alma pode e deve ser imensa e muito profunda; é a paz dos justos. Mas a condição dessa paz do justo é ele se manter em guerra contra o “homem velho”, do contrário ele perde a paz,  porque faz concessão ao mal e começa a cambalhota.

Um exemplo ao alcance de todos é quando uma pessoa mantém integralmente a pureza, evitando qualquer mau olhar ou mau pensamento.  Essa pessoa encontra na pureza uma grande fonte de  paz, cuja condição de  subsistência é a guerra contínua contra todas as tendências para a impureza.

Se não houver essa guerra contínua, a pessoa não obtém a paz profunda proporcionada pela pureza. Outro exemplo é a Fé. A pessoa tem uma Fé íntegra, e recusa qualquer tentação, qualquer  pensamento contra a Fé. Ela descansa na certeza, que é reta, íntegra, coerente, lógica. Evidentemente essa é uma grande fonte de paz, mas supõe a guerra contra todas as tendências que no  homem podem levá-lo à dúvida contra a Fé.

Serenidade proporcionada pela retidão

Dona Lucilia me fazia perceber, continuamente, a beleza da retidão. De modo especial, ela o manifestava através do olhar, muito expressivo nesse sentido. E além de ressaltar o que existe de belo  na retidão, dava-me a conhecer o repouso e a serenidade que a alma humana experimenta ao ser reta.

No próprio exemplo de mamãe, ao se analisar as fotografias dela, pode-se constatar essa verdade. Mesmo naquelas em que aparece preocupada, não se nota qualquer agitação de sua parte. Pelo  contrário, o olhar continua a transmitir uma disposição de espírito inteiramente serena. A preocupação com calma representa, aliás, um grande equilíbrio de alma. Qualquer homem, nesta terra  de exílio, passa por preocupações.

Uma coisa, porém, é ficar preocupado; outra é deixar-se tomar de nervosismo, ansiedades, etc.; atitudes estas que mamãe procurava e conseguia afastar de seu coração. Maneira peculiar de se  perceber a paz que havia na alma de mamãe era observá-la enquanto dormia. Com a intimidade de filho, naturalmente, eu a vi inúmeras vezes nos seus momentos de repouso. Via-a também na hora em que despertava, sobretudo no meu tempo de menino e adolescente, quando me despedia dela antes de ir para o colégio: não fazia cerimônia, acordava-a e com ela trocava uns minutos de prosa. Depois que fiquei mais velho, moderei um tanto esse hábito.

Mas naquela época, depois de tirá-la do seu justo descanso, perguntava-lhe: “Meu bem, bom-dia. Como vai a senhora?” E eu  notava que, nela, a passagem do repouso para o estado de acordada era serena, e com o primeiro olhar já todo aberto para a realidade à sua volta. Tinha-se a impressão de que o sono dela era  profundo, restaurador, reparador. A tal ponto que eu a fitava e me vinha este pensamento: “Como deve ser agradável dormir o sono dela!” Mamãe, aliás, costumava dizer que o sono era um imenso benefício que Deus concede aos homens, porque suspende sobre estes as infelicidades da vida.

Então, eu via uma alma à qual não eram poupados sofrimentos, mas que sabia dormir na paz. Portanto muito distante de ser uma alma agitada e nervosa por causa das preocupações, que sempre  nos colhem ao longo da existência terrena.

Jamais se comparar

Uma das coisas que mais agita o homem é a inveja, e esta nasce das comparações. Por isso, comparar-se com os outros é um dos maiores erros que se possa cometer.

Comparando, começa a inveja, o amor-próprio, a cascata dos vícios; em breve, a tentação da impureza está batendo às portas. A tentação contra a pureza, muitíssimas vezes, é filha dessa comparação que agita a pessoa. Uma coisa que eu nunca vi Dona Lucilia fazer era comparar-se. Só fazia comparação no seguinte sentido: quando passava pito em minha irmã ou em mim, e havia  uma criança que estava procedendo muito bem naquele ponto, mamãe dizia: “Veja tal criança!” Mas nesse caso tratava-se de uma emulação na virtude, e isso está muito bem. Fora disso, nunca fazer comparação com ninguém.

Assim ela alimentava em minha alma a inocência, a suavidade, a tranquilidade e a paz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/6/1982)

REFLEXO DO INESGOTÁVEL ESPÍRITO DA IGREJA

Nascido e cultivado na Cristandade européia, o estilo gótico, em vários dos seus traços, representa de modo muito característico o espírito medieval que o inspirou.

O gótico é forte e, porque forte, tende ao perene. Suas construções têm um visível desejo de durar sempre, de se tornarem algo que nunca mais será substituído. E nisto o gótico bem se mostra um filho da Idade Média, a qual, diferentemente do homem moderno, não era escrava do tempo. Aquela foi uma época em que os edifícios — as catedrais, por exemplo — podiam levar cem, duzentos ou mais anos para serem completados. E as gerações que participavam da edificação de uma catedral, mesmo sabendo que dificilmente a veriam pronta, morriam em paz.

Eram gerações de Fé, imbuídas da noção de que, quando chegassem ao Céu, teriam diante de si uma visão incomparavelmente mais bela do que a catedral: a recompensa da paz com que elas adormeciam em Deus. Nas cercanias do templo, às vezes ainda em construção, os corpos eram inumados com as mãos postas, à espera do juízo e da infinita misericórdia de Nosso Senhor.

Gerações de Fé, numa época de Fé. Além de forte, o estilo gótico tem uma seriedade que confere ao interior de seus edifícios um certo recolhimento, uma compostura própria de quem é profundamente sério. A luz que neles penetra não é comum, mas tamisada pelo colorido feérico dos vitrais, fazendo-nos pensar num dia ideal, num sonho que está do lado de fora.

A esses vitrais deve o gótico a sua capacidade de apaziguar os espíritos, de transmitir serenidade e temperança. Imagine-se uma pessoa muito aflita, tomada por graves angústias e preocupações. Ela passa defronte a uma catedral gótica, resolve entrar e se senta próximo de um vitral. Repara na figura de um santo nele representado, ou numa imagem de Nossa Senhora da qual aquela luz filtrada serve de resplendor.

Começa a rezar. De início, pensa apenas nos seus problemas. Roga à Santíssima Virgem, aos Anjos e Santos que sejam seus intercessores junto ao nosso clementíssimo Salvador, para que a ajude nas dificuldades, obtenha-lhe o perdão de um pecado, a correção de um defeito, etc. Ao cabo de algum tempo de orações, a pessoa passa instintivamente a prestar atenção no vitral. Este, entretanto, antes mesmo dessa observação clara e explícita, já lhe vinha apaziguando a alma, pois nesses vitrais há grande harmonia, vida, riqueza de cores e matizes, abundância de arte nos seus menores aspectos.

Basta a alguém estar perto deles para se sentir tranquilizado. Quando começa uma análise explícita do vitral, a pessoa já está preparada para prestar atenção em algo que não é o seu mero interesse individual. Acalmada, ela volta a rezar, contemplando a imagem de Nossa Senhora, as figuras e as cenas desenhadas no vitral. E assim vai, numa alternância entre a prece, o pedido, a necessidade, e o deixar-se influenciar por uma arte inspirada pela Igreja, que dulcifica a alma e a enche de paz.

* * *

Forte, sério e temperante, o gótico é‚ ao mesmo tempo, delicado. Considerem-se, por exemplo, as formidáveis colunas de uma catedral.

Os medievais lograram atenuar nelas as características que poderiam transmitir a impressão de força quase bruta, dando-lhes o aspecto de um feixe de coluninhas, que parecem amarradas umas às outras para suportarem as grandes abóbadas. E assim, sustentando com toda a firmeza o que lhes vai por cima, esses pesadíssimos pilares góticos dão a ideia de serem leves e elegantes.

Elegância e leveza, entretanto, não dissociada da força. Daí, a extrema beleza das ogivas. De fato, a coluna gótica de grande estilo, ainda que talhada para dar aquela impressão de que acima falamos,
conserva algo de coluna de combate. E do combate medieval, que, quando justo, sempre visava à paz e a uma concórdia equilibrada. Disposição esta muito bem simbolizada pela ogiva: são dois arcos que podemos imaginar opostos, e que se resolvem numa posição de equilíbrio, ou seja, numa reconciliação.

Não é raro existirem florões e adornos no ponto de encontro das duas partes, quase como a festejar a paz.

Presente está também no gótico uma profunda noção do dever. Tal noção se exprime, por exemplo, através das colunatas das abadias e catedrais, que dão ao homem a ideia de um caminho alto, estreito, mas conducente a uma grande solução.

É o caminho do Céu. Uma estrada não larga, não folgada, não espaçosa nem agradável, mas apertada e difícil, sempre a dois passos de precipícios, problemas, tentações e perigos. Representa algo grandioso, metódico, do qual não se pode afastar nem um passo, porque se perderia de vista a meta e se transviaria.

Essa é a imagem da nossa própria existência enquanto vivida à luz dos Mandamentos.

E é precisamente o que nos sugere a colunata gótica: a ideia de um caminho apertado, estreito, sério, reto e, sobretudo, elevado. Quer dizer, se nos sentirmos opressos por estarmos cercados de colunas, nossos olhos e nossa alma encontram os grandes espaços olhando para o alto. O que, em outros termos, significa: “Quando a vida estiver apertada, olhemos para o Céu”. Assim era a alma católica medieval, que deu origem ao gótico.

Na colunata como na ogiva, essa mesma alma, depois de ter explicitado seu desejo e sua afirmação de força, começou a sorrir e a manifestar sua própria doçura, como quem continua a descrever em pedra os diversos aspectos de sua personalidade. Dessa maneira, sem atraiçoar a coluna, que será sempre o objeto do maior entusiasmo, surgem os florões, as figuras esculturais e toda espécie de adornos graciosos do gótico.

E assim, à maneira de alguém que vai retirando de sua arca as mais variadas peças de um opulento tesouro, o medieval foi lentamente manifestando as riquezas de seu espírito através dos requintes da arte gótica.

Esta parece, pois, descrever uma alma profunda e verdadeiramente católica. Sim, porque o gótico é, no fundo, um magnífico reflexo do imenso, inesgotável e fabuloso espírito da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 16 (Julho de 1999)

São Caetano do Tiene

A respeito de São Caetano de Tiene e do significado de sua obra, convém fixar o seguinte: uma das causas da decadência da Idade Média foi o apego às riquezas e à vida de fausto e de grandeza.

Infelizmente, o clero também não foi isento desta culpa… Em vez de conduzir por amor de Deus a magnificência que lhes era devida, muitos dignatários eclesiásticos faziam dela um título de grandeza pessoal; e o que deveria ser um elemento de edificação para os outros se transformou em ocasião de mau exemplo.

Diante dessa situação, entrou um espírito de relaxamento no clero diante do orgulho e da sensualidade, que são as duas principais causas da Revolução. Nós podemos, portanto, localizar esse problema na origem da Revolução.

E, como sempre acontece na Igreja, quando o espírito do mal nela introduz algo de ruim, o Divino Espírito Santo suscita um bem muito maior do que o mal produzido.

Em virtude dessa regra, houve um santo que levou o espírito de pobreza até onde, sob certo aspecto, nem São Francisco de Assis tinha levado: São Caetano de Tiene, fundador dos Teatinos.

A fim de levar o espírito de pobreza a um limite quase inimaginável, São Caetano proibiu seus religiosos inclusive de pedir esmolas: quando precisavam de alguma coisa, deviam ficar parados em algum lugar à espera de que alguém viesse lhes atender…

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/8/1965)

Não há paz sem a Lei de Deus

A paz — na família, na nação, no plano internacional — todos a desejam. Mas onde e como obtê-la? Dr. Plinio dá-nos a resposta neste artigo.

 

Segundo São Tomás de Aquino, a paz é a tranquilidade da ordem. Esta definição do Santo Doutor deixa entrever que há duas espécies de tranquilidade: a que provém da ordem e a que provém da desordem. A paz, fruto da ordem Tome-se um adolescente saudável que dorme. Todo o seu físico está em ordem perfeita.

Todos os órgãos funcionam admiravelmente bem. Nenhuma dor, nenhum mal-estar lhe perturba o repouso. A saúde — que é a ordem do corpo — gera nele uma tranquilidade física que se traduz eloquentemente pela placidez do sono. Fisicamente, o sono é, para este adolescente, uma situação de paz, pois que é um momento de tranquilidade gerada pela sua ordem orgânica.

O mesmo conceito se pode aplicar a um povo. Suponha-se que nele tudo se encontre em ordem: as inteligências, pela posse segura e firme da Verdade, que é a Religião Católica; as vontades, pela sua vigorosa adesão à virtude que a Igreja ensina e ajuda a praticar; as sensibilidades, pelo completo domínio a que a sujeitaram a inteligência e a vontade; os corpos, pela existência de um alto padrão coletivo de saúde; a vida econômica, por um perfeito aproveitamento dos abundantes recursos naturais do lugar.

Evidentemente, uma grande e benfazeja tranquilidade reinará sobre toda a sociedade, como fecundo e feliz transbordamento da tranquilidade interior de cada alma. Esta tranquilidade completa, decorrente da ordem intelectual, moral e econômica existente no país, é o que se pode chamar paz: será a paz interior. A paz exterior se somará a esta, se também as relações do país com outros povos estiverem em ordem. Assim, a paz é realmente a tranquilidade da ordem.

Uma caricatura da verdadeira tranquilidade

Retomemos o exemplo do adolescente. Em dado momento, durante seu sono plácido, alguma perturbação orgânica ocorre: será, digamos, uma nevralgia violentíssima.

Imediatamente, com a cessação da ordem orgânica, desaparecer á a paz: o sono termina, e o paciente começa a dar mostras agudas de sua dor. É a desordem gerando a intranquilidade. Imagine-se, porém, que a dor aumente tanto que chegue a causar um desmaio do paciente. A desordem orgânica terá chegado a seu auge, e a perda dos sentidos e a completa tranquilidade do desmaio serão a consumação da desordem física.

Essa desordem, exatamente por se ter tornado muito aguda e ter com isto suprimido todos os meios de resistência, causará, com a aparente cessação da reação orgânica, uma tranquilidade profunda. Esta tranquilidade será o reinado da desordem, será o cúmulo da desordem, será a desordem erigida em soberana absoluta do corpo. Ela não será senão uma caricatura da tranquilidade da ordem.

Em suma, o sono do adolescente, tranqüilo e saudável, e o desmaio profundo e perigoso que imaginamos em seguida, estão nos extremos opostos. Nos exemplos que figuramos, o maior bem orgânico do corpo terá sido a tranquilidade da ordem; a intranquilidade decorrente da desordem será um mal. Mas o mal supremo será, sem dúvida, a tranquilidade da desordem, ou seja o desmaio, para não dizer a morte.

A tranquilidade da desordem é o pior dos males

O mesmo conceito se pode aplicar à vida espiritual. Tome-se um homem de consciência limpa e reta: sua consciência estará em ordem, e esta ordem gerará nele uma tranquilidade que se chama paz. O que não se tem dito e escrito sobre os encantos da paz de consciência! E no que consistem estes encantos, senão na suave e deleitosa tranquilidade que a ordem origina? Se, por desgraça, a consciência deste homem passa a ser perturbada por uma ação má, esta perturbação suprime a ordem espiritual, e imediatamente a paz desaparece. É a luta terrível dos remorsos que cruciam a alma e, ou a elevam pela humildade e pelo auxílio da graça de Deus até as alturas de uma contrição, ou a abatem, pelo desespero, até os extremos a que Judas chegou.

Imagine-se, entretanto, que nesta alma desgraçada, pouco a pouco, os remorsos vão desaparecendo, até se transformarem em um vago rumor, que só de quando em vez perturba a consciência, logo abafado pelos ruídos das distrações mundanas. Evidentemente, o desaparecimento do remorso gera o desaparecimento da luta espiritual, e uma tranquilidade embrutecida e opaca baixa sobre esta alma em que os últimos lampejos de virtude se extinguiram.

Nesta alma haverá novamente tranquilidade. Mas uma tranquilidade que, sendo o triunfo da desordem, constitui uma desgraça mil vezes maior do que a intranquilidade das torturas de consciência, e se encontra no extremo oposto da tranquilidade ordenada e feliz, em uma palavra, da paz de consciência autêntica, do homem limpo e reto de espírito.

Para resumir: a tranquilidade da ordem é um grande bem, e só ela merece o nome de paz. A luta gerada pela desordem é um mal incontestável; mas o maior dos males será, certamente, a tranquilidade da desordem, a tranquilidade das consciências embrutecidas no vício, dos corpos desmaiados pela moléstia, dos cemitérios onde a morte campeia como soberana […].

Só haverá paz no mundo com a obediência à Lei de Deus

Estes conceitos merecem ser transpostos para o plano internacional. Só merece o nome de verdadeira paz a tranquilidade decorrente da ordem das relações entre as nações. E como a ordem supõe obediência a Deus, só haverá ordem internacional quando houver obediência à Lei de Deus nas relações entre os povos. […]

Evidentemente, violações da Lei de Deus sempre as houve e sempre as haverá, com freqüência maior ou menor, na História da humanidade. Mas que se transforme a violação em direito, a desordem em hierarquia legítima e permanente, e se arvore como princípio básico e fundamental aquilo que é a negação radical e absoluta de toda a Lei de Deus, há nisto uma desordem monstruosa e profunda, com a tendência de se tornar definitiva, que deve apavorar todo espírito em que ainda bruxuleiam alguns lampejos, já não direi de senso católico, mas de simples e reta razão natural. Com feito, o risco a que aludimos não consiste em uma simples injustiça. É na glorificação da injustiça como tal. É na consolidação da injustiça como regra fundamental de ação e norma básica das relações entre os povos.

A paz internacional será uma paz autêntica, se ela for a conseqüência da aplicação dos princípios da Lei de Deus à vida internacional. Realmente, a Lei cumprida gera a ordem, e a ordem gera a tranqüilidade, e esta tranquilidade da ordem será a paz.

Será uma desgraça, já é agora uma desgraça catastrófica, que a tranquilidade da ordem seja violada, e que esta violação traga lutas cruentas como aquelas que atualmente assistimos. A humanidade contemporânea pode ser comparada a um homem doente que se contorce tragicamente nos paroxismos da dor. E este espetáculo não pode deixar de concitar à piedade e à prece os espíritos compassivos.

(Excertos de artigo publicado no “Legionário” de 29/12/1940. Título e subtítulos nossos.)

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 64 (Julho de 2003)

Rei e centro dos corações – II

A queda singular de uma taça de água, durante a exposição em que Dr. Plinio concluía seus comentários a uma das tocantes invocações da Ladainha do Sagrado Coração de Jesus, ofereceu a ele a oportunidade de exaltar e recomendar, uma vez mais a seus discípulos, a ardorosa prática da virtude da confiança: confiar contra todas as aparências da derrota, na misericordiosa e infalível assistência de Nosso Senhor e de sua Mãe Santíssima.

Após considerarmos os direitos de soberania do Sagrado Coração de Jesus sobre a vontade do homem, simbolizada pelo órgão que lateja em nosso peito, cumpre analisarmos o outro termo da invocação que diz: “centro de todos os corações”.

Eixo do qual tudo se aproxima ou se afasta

A palavra “centro” — não o geométrico, pois se trata de uma metáfora — sugere a idéia de uma multidão de corações com um ponto de atração em função do qual todos se movem para aceitar ou rejeitar algo. Ainda que não percebamos, os movimentos da vida particular de cada um, bem como os da História, se fazem em razão do Sagrado Coração de Jesus.

Imaginemos um ímã gigantesco em torno do qual uma imensa quantidade de limalhas de ferro estivesse disposta, e um vento soprando sobre elas. A viração tende a dispersar as limalhas enquanto o ímã busca atraí-las. Os minúsculos fiapos de ferro estão continuamente solicitados por duas forças distintas: a centrípeta, que os leva a se unirem ao ímã, e a centrífuga, a dele se separarem.

Suponhamos que cada uma das limalhas fosse dotada de inteligência e livre arbítrio, e a todo momento, por causa do vento e da atração, sinta-se obrigada a escolher se irá aproximar-se ou distanciar-se do ímã. Essa é uma metáfora para indicar o significado das palavras “rei e centro dos corações”. Assim, a todo instante de nossa vida, estamos nos acercando ou nos afastando d’Ele. É o sentido de todo ato que praticamos.

Entre Deus e o demônio

A imagem do ímã, da limalha e do vento não apresenta toda a realidade. Por exemplo, não alude à fonte desse vento que tende a dispersar as limalhas. Evidentemente, quem o sopra é Satanás o qual sempre procura nos afastar de Nosso Senhor. Devemos continuamente estar caminhando para o centro, ou seja, para Deus, opondo-nos à pressão e atração exercida pelo demônio. De direito, Nosso Senhor é o ímã.

E também o é no sentido de que efetua um poder atrativo sobre todos os corações. Porém, dá ao homem livre arbítrio. Se este recusar, pecará e, caso não se arrependa, será condenado. Esse é o verdadeiro significado da metáfora.

Tais considerações se aplicam igualmente aos países. Estes têm como que uma inteligência e uma vontade coletivas, as quais constituem a opinião pública. Esta se move como as idéias individuais, pois é a síntese ou a soma delas. Assim, cada um de nós exerce um papel — maior ou menor — na opinião pública, e tem responsabilidade sobre sua orientação para um lado ou outro. De modo especial o têm os que pertencem a um movimento (como o nosso) que visa especificamente atuar no consenso geral para combater o mau “vento” soprado em cima da limalha frágil da opinião dos indivíduos, ou seja, contrariar a ação do demônio sobre as almas.

Em favor do Rei e da Rainha, sua Mãe

Com efeito, visamos criar condições favoráveis para que a atração de Nosso Senhor Jesus Cristo se exerça inteiramente. Nesse sentido, somos os soldados do rei que procuram conquistar limalha por limalha, ou partícula por partícula da limalha, cujo conjunto constitui a opinião pública e levá-la para esse divino centro de todos os corações. E, como antes salientamos, segundo o ensinamento de São Luís Grignion de Montfort, o reinado de Maria se estabelecerá quando, pela intercessão d’Ela, a parte mais poderosa e ponderável, decisiva, da opinião pública tenha conduzido o gênero humano a pertencer efetivamente ao Coração de Jesus.

Há, portanto, uma forte analogia entre esta invocação tão bela, “Nosso Senhor, Rei e centro de todos os corações”, e a devoção a Nossa Senhora Rainha. Queremos que a Santíssima Virgem seja, não só Rainha de direito — pois Ela o é como Mãe de Deus e Co-redentora do mundo —, mas de fato, que as almas Lhe pertençam e, dessa maneira, pertençam a Nosso Senhor.

Numa palavra, o Reino de Maria é um meio necessário para existir o Reino de Jesus, o qual representará uma imensa graça para a humanidade, uma insondável misericórdia para os homens que pouco ou muito pouco têm feito para merecê-la. Esta dádiva somente nos será alcançada pelas mãos de Nossa Senhora, Medianeira de todos os favores divinos.

“Torrentes de graças!”: a taça de água que gira no ar e cai de pé

Compreende-se, assim, como nossa devoção ao Reino de Jesus e a seu Sagrado Coração, ao Reino de Maria e a seu Coração Sapiencial e Imaculado se completam, formando um só todo, propiciando grande alento para nós.

Por fim, se tomarmos em consideração que a vitória pela qual nos empenhamos tanto, depende primordialmente da graça — sem a graça, sem muita graça, sem torrentes de graças nada obteremos…

[NR: Neste exato momento de sua exposição, Dr. Plinio, ao fazer um gesto com o braço esquerdo, inadvertidamente derrubou a taça na qual lhe seria servida a água, colocada sobre uma mesinha ao seu lado. A taça, de fino cristal, bateu no bordo da pequena mesa produzindo um lindo som e projetou-se para o solo caiu com a boca para baixo. Depois de tocar no tapete, saltou ao ar, endireitou-se e finalmente pousou de pé. Não sofreu o menor arranhão, como se fora ali depositada por mão cuidadosa. O fato insólito produziu uma natural reação, misto de surpresa e encanto, em todos que o viram. Dr. Plinio aproveitou a circunstância para tirar dele mais um ensinamento, dizendo então:]

Faço notar a beleza peculiar do fato de esta cena não ter sido registrada em fotografia. Poderia sê-lo, como tantos instantâneos que são colhidos em nossas reuniões. Porém, Nossa Senhora não dispôs que houvesse uma máquina fotográfica preparada neste momento. Por quê? Para que ele ficasse gravado no coração de cada um dos meus ouvintes.

Recordemos: falávamos da necessidade de torrentes de graças as quais dependem da intercessão de Maria Santíssima, que escolhe as ocasiões adequadas para alcançá-las. Às vezes quando a alma, compenetrada de sua miséria, se encontra mais tocada e orientada para a receptividade; às vezes, nas piores horas de sua vida espiritual, quando a graça atua e vence nossa maldade.

Por exemplo, ninguém poderá pretender que São Pedro, quando negou Nosso Senhor durante a Paixão, estava com a alma disposta para receber graças. Entretanto, o dom divino pousou sobre ele e operou sua cura salvadora. O Príncipe dos Apóstolos não cessou de chorar, por assim dizer, até o momento em que morreu crucificado de cabeça para baixo.

História de uma gota d’água, lição de confiança

Insisto, pois, na ideia de que o papel soberano da graça e o de Nossa Senhora em obtê-la do Coração infinitamente misericordioso de seu Filho, são decisivos na História. Nessas condições, não nos devemos importar, de modo cruciante, com os fatores e circunstâncias humanos. O importante é que Deus, na sua clemência, nos seja propício, disposição divina esta que poderemos alcançar por meio de preces a Nossa Senhora. E para nos valermos do fato que acaba de ocorrer, acrescento: se estivermos numa boa situação e cairmos, confiando em Nossa Senhora, cairemos de pé!

Imaginemos que no fundo dessa taça houvesse uma gota de água dotada de pensamento. Estaria contente porque habita dentro de um cristal, com seus reluzimentos próprios. Ela não cogitaria que o recipiente pudesse ser derrubado e diria: “Estou na concha desta taça e nada me sucederá!”

De súbito, o cristal recebe uma cotovelada do orador pouco cauteloso… A gota se assusta, sente um estremecimento e, percebendo que a taça se inclina perigosamente, exclama: “Tenha confiança em Nossa Senhora, não há risco de cair!” Quando o cristal dá uma cambalhota, ela instintivamente se pergunta: “O que me irá acontecer agora? Vou cair…” Mas, continua afirmando: “Confiança em Nossa Senhora!” A taça cai de pé, com a gota ilesa em seu fundo.

Ou seja, a virtude da confiança é, ao mesmo tempo, fruto e condição para a perfeita devoção aos Sagrados Corações de Jesus e Maria. Por maiores que sejam os embates que soframos, parecendo estarmos numa sucessão de desastres, devemos confiar em Nossa Senhora. E se os fatos desabonarem nossa confiança, e Ela permitir que passemos por cambalhotas, convém nos lembrarmos da metáfora da gota d’água: ela se agarrou com todas as forças à superfície lisa de um cristal fascinante e, por fim, notou que a taça caiu de pé.

Nada é impossível para o que confia

Quando nos dirigirmos, então, ao Sagrado Coração de Jesus, tenhamos principalmente em vista que Ele é o Rei e centro de todos os corações, centro e Rei da História. Além disso, consideremos a necessidade de cada um possuir uma mente e vontade firmes, uma sensibilidade varonil e forte, que resiste até aos grandes eclipses dos sentidos. E, na pior das aridezes, permanecer com o inabalável desejo de oferecer tudo a Nosso Senhor por meio de Maria, para que venha o Reino do Sagrado Coração de Jesus, através do Reino do Coração Imaculado da Mãe de Deus.

Alguém poderá dizer: “Como isto é penoso!”

Respondo: “A história da gota d’água na taça no-lo comprova: pode ser difícil, mas nada é impossível para quem confia em Jesus e Maria!”

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 100 (Julho de 2019)

Aceitar com alegria os sofrimentos morais

Minha Mãe, vejo tantos e tantos homens fugirem dos sofrimentos morais, no que há uma suprema covardia. A Vós suplico esta forma de integridade: que em todos os sofrimentos morais de minha vida, eu seja inteiramente varonil, um verdadeiro católico. Que veja esses sofrimentos um por um, conte-os, pese-os e meça-os ponto por ponto. Beba cada um deles como taça amarga, até a última gota.

Que eu os sorva com serenidade, clareza, fidelidade, e caminhando resolutamente para os novos sofrimentos que vêm. Que não recuse nenhum, assuma-os todos, dando o exemplo de um homem que sofre moralmente até onde se possa sofrer. E que, nesse sofrimento, minha alma, na sua fina ponta, experimente a alegria de Vos ter dado absolutamente tudo. Vós amais, ó Senhora, quem Vos oferece com alegria este sofrimento total.

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 14/11/1979)

Admiração transformante

A experiência da vida nos confirma o princípio segundo o qual aquilo que admiramos penetra em nossa alma e nos transforma. Exemplo arquetípico dessa verdade encontramos em Nosso Senhor.

Percorramos as páginas do Evangelho sob este ângulo e veremos como Ele, durante todo o tempo de sua passagem pelo mundo, procurou despertar admiração. O povo que O ouvia não cabia em si de tanto admirá-Lo. E como se tal não bastasse, o Divino Mestre ainda se transfigurou no Tabor. Para quê? Para transformá-los, para obter o amor daquela gente, pois o autêntico amor começa pela admiração.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 30/9/1969)