E ASTUTOS COMO AS SERPENTES

Para muitas pessoas, a mera suspeita a respeito de alguém já constitui juízo temerário. Trata-se de um equívoco, que Dr. Plinio procura esclarecer.

 

Grande número de incompreensões a respeito do assunto “juízo temerário” provém de uma análise superficial da palavra “juízo”. Muitas são as pessoas que receiam fazer uma suspeita desfavorável a terceiros, porque, caso a suspeita  não seja comprovada ulteriormente, terão cometido um juízo temerário. Mas uma suspeita poderá ser considerada juízo?

Para decidir a questão, basta recorrermos às noções correntes. O juízo, ou sentença, implica uma afirmação.

Só fazemos um juízo acerca de alguém quando chegamos a uma certeza a respeito desse alguém. Uma suspeita não constitui um juízo, e, assim, quem suspeita de outrem não pode, propriamente, formar um juízo temerário, e isto pela simplicíssima razão de que não chegou a estabelecer juízo algum.

Com efeito, a suspeita é uma hipótese que formulamos a respeito de uma pessoa. E a hipótese evidentemente não é uma certeza.

Assim, ainda que tenhamos feito sobre uma pessoa uma suspeita infundada, não teremos com isto cometido um juízo temerário. …

Virtude, e não fraqueza de princípios

Andam erradamente, e muito erradamente, os que dizem que não querem formar juízos ou suspeitas sobre os outros, porque a tal não têm direito. Distingo. É inconveniente que andemos a fiscalizar as pessoas cuja conduta não se encontra sob o raio de nossa autoridade. Mas que sejamos obrigados a não formar impressões sobre aquilo que naturalmente nos salta aos olhos, na vida  de todo dia, quem ousará sustentá-lo? … Um homem de caráter firme e varonil sente uma dissonância interior cada vez que nota que, em torno de si, as coisas se passam de modo contrário à glória de Deus, à exaltação da Santa Igreja, e da doutrina católica. …

Assim, formar juízo e formar suspeitas, quando isto é dirigido pelas virtudes cardeais, e não se orienta pela ação de qualquer inclinação viciosa, é virtude e alta virtude. E deixar de formar juízo ou suspeita quando o caso se apresenta, pode ser defeito, e grave defeito.

O irretorquível exemplo dos Santos Liricamente, muita gente costuma sustentar que “isto compete à autoridade, e que, como não tenho autoridade, posso dispensar-me dessa tarefa ingrata”. E muito tolo comentará de si para si: “Que coração generoso é esse, como lhe dói ver a maldade do próximo!”

Certamente, há muita generosidade em doer-se alguém da perfídia do próximo. Mas haverá generosidade em fechar os olhos à evidência, para não sentir essa dor? Ah, como os Santos abriram e até escancararam os olhos a essas dolorosas evidências! Como lhes cortava o coração ver a malícia, a ingratidão, a perfídia, a lascívia dos homens! Quantos juízos encontramos, nas obras dos Santos, juízos severíssimos e tremendos, não só a respeito de um ou outro indivíduo nominalmente considerado, mas ainda a respeito de cidades, povos e países inteiros!

Os Santos se doíam, mais do que ninguém, dessa realidade. Mas, em vez de lhe fechar estupidamente os olhos, abriam os olhos para as misérias da terra e o coração para o Céu, em magníficos atos e reparação e desagravo a Deus.

Como está longe da conduta dos Santos certo romantismo piegas com que, tantas vezes, nos defrontamos na vida! … Quando Nosso Senhor Jesus Cristo chamou os fariseus sepulcros caiados, o que fez senão juízo? E quando aconselhou que tomássemos cuidado com os falsos profetas e os lobos metidos em pele de ovelha, o que fez senão impor-nos a suspeita como importantíssimo meio para a nossa salvação?

Uma vítima da Revolução Francesa teve a exclamação famosa: “Ó liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome!” Com quanto direito poderíamos dizer por nossa vez: “Ó caridade, quanta sandice e quanto crime em teu nome se tem praticado!”

Inocentes como pombas, mas astutos como serpentes

Mas, sobretudo, o que importa notar é que um observador sagaz não se improvisa. Que espécie de autoridade será quem esteve de tapa-olhos, ininterruptamente, durante todo o tempo em que foi súdito? Não é, porventura, quando se é súdito que se deve adquirir as qualidades de um chefe? A tal ponto é isso verdade, que todos os exércitos e todas as engrenagens das empresas comerciais,  etc., têm sua linha fixa de promoções. Não valerá isso para nós? Ingênuos como crianças de berço até o dia em que não cai sobre os ombros uma função de responsabilidade, o que faremos quando depender de nós a defesa dos mais importantes interesses espirituais ou temporais, contra os lobos disfarçados na pele da ovelha? …

Plinio Corrêa de Oliveira (Excertos de artigo do “Legionário”, nº 476, 26/10/1941. Título e subtítulos nossos.)

Revista Dr Plinio 53 (Agosto de 2002)

São Lourenço, Mártir

Colocado sobre uma grelha e assado vivo, São Lourenço passou para a História como exemplo para os séculos futuros…

Faremos alguns comentários, com base num texto da obra de Rohrbacher “A vida dos santos”, a respeito de São Lourenço, Mártir.

A perseguição de Valeriano intensificou-se sobremaneira no ano de 258. O Papa São Sisto foi preso com alguns membros do seu clero, quando estava no cemitério de Calisto para celebrar os Santos Mistérios. Quando o levavam ao suplício, Lourenço, o primeiro dos diáconos da Igreja Romana, seguia-o chorando e dizendo: “Aonde ides, pai, sem vosso filho? Aonde ides, Santo Pontífice, sem vosso Diácono? Não estais acostumado a oferecer o sacrifício sem ministro. No que vos desagradei? Experimentai se sou digno da escolha que fizestes de mim, para me confiar a dispensa do Sangue de Nosso Senhor”. Sisto respondeu-lhe: “Não sou eu que te deixo, meu filho, mas um combate maior te está reservado. Poupam-nos, a nós velhos, mas tu me seguirás dentro de três dias”.

Entretanto, o prefeito de Roma, julgando que os cristãos tinham grandes tesouros escondidos e querendo disso certificar-se, mandou chamar Lourenço, que como primeiro Diácono da Igreja Romana era custódio. Pediu-lhe que lhe entregasse os tesouros dos cristãos e Lourenço respondeu-lhe que lhe entregaria, após fazer o cômputo total do que possuíam. Reuniu todos os pobres e doentes de Roma, mostrando-os ao prefeito como únicos tesouros e os maiores da Igreja. Os pobres eram ouro, as virgens e viúvas, as pérolas e demais pedras preciosas. Furioso, o prefeito ordenou a morte do Diácono, mas exigiu que fosse lenta e cruel. Despiram-no e deitaram-no sobre uma grelha, tendo embaixo brasas semi-acesas. Os que assistiam ao suplício viram o rosto do mártir rodeado de esplendor extraordinário. Depois de muito tempo, disse o supliciado ao algoz: “Fazei-me virar. Já estou bastante assado desse lado”. Depois que o viraram, disse ainda: “Está assado, podeis comer.” Olhando então ao céu, rogou a Deus pela conversão de Roma e expirou. Senadores, convertidos pelo exemplo de sua constância, carregaram-lhe o corpo nas costas e o enterraram no Campo Verano, perto de Tivoli, numa gruta.

O sacrifício de um mártir

Há um grande número de dados preciosos nesse texto. O primeiro deles é o diálogo de São Lourenço com o Papa São Sisto. O santo sacrifício da Missa é a repetição incruenta do Santo Sacrifício da Cruz. De sorte que oferecer o Sacrifício da Cruz e oferecer o sacrifício da Missa é uma mesma coisa. O mártir, por outro lado, quando se oferece em holocausto, de algum modo oferece um sacrifício que é o dele e, sem renovar o Sacrifício da Cruz, entretanto imita a Nosso Senhor Jesus Cristo, que se imolou a Si próprio. Há, portanto, um conjunto de correlações entre o Sacrifício do Calvário, a Missa e o martírio. E foi em torno dessas correlações que girou o diálogo, entre todos admirável, do Papa São Sisto com seu Diácono.

O Papa foi preso e conduzido para a morte. E o Diácono dele, São Lourenço, lhe dizia: “Vós oferecestes tantas vezes o sacrifício comigo — era o papel do Diácono ajudar o Papa na celebração da Missa. Agora, vós não o quereis oferecer? Ireis me deixar nesta Terra, no momento em que vosso sacrifício vai ser feito? É como que a vossa Missa. Eu não sou vosso Diácono? Levai-me para eu ser morto convosco; uma vez que eu vos servi a vida in-teira ao pé do altar, quero servir-vos também ao pé da morte.”

Depois dessa maravilha de diálogo, São Sisto profetizou:
“Eu vou ter uma mor-te suave em comparação com a tua. Os moços vão ser menos poupados do que nós, velhos. Daqui a três dias chegará tua oca-sião e serás morto.”

Prenúncio do vínculo feudal

Realmente, essa fidelidade de São Lourenço a São Sisto traz consigo um primeiro lampejo de Idade Média. Trata-se de uma fidelidade que gira em torno de relações de caráter eclesiástico, mas é uma fidelidade feudal. O servidor se une àquele a quem serve, por um vínculo muito maior do que um contrato de locação de serviço; é um vínculo de amor e de dedicação de toda a alma, de consagração da vida inteira, de tal maneira que ele sente que não tem razão de existir a não ser em função daquele a quem serve. Na força desse vínculo vemos prenunciado o feudalismo, em que há os vínculos de fidelidade, já então de ordem temporal, mas concebidos religiosamente, porque a fidelidade é uma virtude religiosa, ainda quando praticada no âmbito temporal.

Nesse vínculo que ligava o Diácono ao Papa, vemos desabrochar a alma feudal, feita do senso do serviço, do senso da alienação e do senso de honra, pois aquele que serve coloca a sua honra em servir de fato àquele a quem se vinculou. Vemos nisso uma admirável alienação, o contrário da desalienação miserável que os revolucionários desejam. E um ante-sabor da Idade Média, onde as articulações das pessoas que constituíam a sociedade eram todas na base de uma alienação, de uma entrega, de uma proteção. Todo o perfume da Idade Média começa a evolar-se nessa lealdade, nessa dedicação, nesse senso de honra, nessa entrega, nessa alienação de São Lourenço para com o Papa São Sisto.

Os tesouros da Igreja…

De outro lado, temos o episódio admirável com os pobres.

Tendo ouvido dizer que os cristãos eram riquíssimos, o prefeito mandou chamar São Lourenço, ao qual, de acordo com a organização da Igreja naquele tempo, como Diácono, cabia a guarda dos objetos que constituíam o tesouro da Igreja romana. Pobre tesouro primitivo: alguns objetos doados pela nobreza romana, ou pelas pessoas ricas de Roma, para o culto. Era uma coisa que não tinha comparação com os tesouros hodiernos da Igreja.

Exigiu, então, que São Lourenço os entregasse. O santo Diácono disse-lhe: “Não tem dúvida. Eu vou trazê-los. Preciso de certo tempo para reuni-los todos para ver quantos são; depois eu os trago.” O prefeito respondeu: “Está bem. Então faça isso.”

No dia marcado aparece grande número de pobres de Roma, viúvas, estropiados, aos quais os romanos pagãos tinham um desprezo soberano; o pouco caso dos romanos em relação ao pobre era uma coisa incomparável. São Lourenço afirmou: “Aqui estão os tesouros da Igreja”. É uma admirável lição de espírito sobrenatural.

O mártir, quando se oferece em holocausto, imita a Nosso Senhor Jesus Cristo, que se imolou a Si próprio.

Por que o pobre é um tesouro? Antes de tudo, porque ele é homem, é cristão, batizado, filho da Igreja Católica. E o que vale no homem não é o que ele tem, sabe, pode ou faz; mas sim o fato de ele ser, acima de tudo, uma criatura de Deus. Em segundo lugar, que ele foi remido pelo Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo. Em terceiro lugar, que ele custou as lágrimas indizivelmente preciosas de Nossa Senhora. Esses títulos fazem de qualquer homem, mesmo que seja um molambo, um verdadeiro tesouro, porque Nosso Senhor Jesus Cristo ter-se-ia encarnado e morrido na Cruz ainda que fosse só por causa dele.

Ora, duas quantidades iguais a uma terceira são iguais entre si. Se aquele homem vale o Sangue de Cristo, como o Sangue de Cristo tem um valor infinito, aquele homem tem de algum modo um valor infinito. Então, por ser homem, por ser filho da Igreja, um pobre tem um valor incomensurável. Mas ele tem um valor ainda maior, não simplesmente pelo fato de ser homem, mas de ser pobre. Não no sentido revolucionário de que só o pobre tem valor. Aos olhos de Deus, há uma série de predicados humanos, até opostos entre si, se bem que não contraditórios, os quais tornam o homem digno de um amor especial de Deus, debaixo de certo título.

O sofrimento: uma forma de predileção!

Por exemplo, “simples de espírito”, no sentido corrente, atual da expressão — não no sentido antigo — quer dizer pessoas pouco inteligentes. Deus ama os simples de espírito de um modo especial; os ama na sua fragilidade porque são desnudados intelectualmente dos recursos necessários para viver, e a Providência Divina pousa sobre eles e os protege. Isso não quer dizer que Deus não ame o sábio. O fato de Deus amar com uma proteção especial aquele que é carente do ponto de vista intelectual não exclui que Ele, por outro título, ame imensamente um São Tomás de Aquino, ou Nossa Senhora, cujo conhecimento de todas as coisas deixava o de São Tomás de Aquino mais longe do que o de São Tomás dista de nós.

São títulos diversos, segundo os quais Deus ama cada coisa. De certa forma, isso ocorre com o homem que se encanta com a rosa, a rainha das flores, porque ela se abre lindíssima e se mostra no seu esplendor. Entretanto, o homem não se maravilha com a violeta pela razão oposta? Porque ela se esconde, é apagada, delicada, pequenina. Dizer que Deus ama o pobre não significa que Ele não ama o rico. Na pobreza há um título especial para o Criador amar quem é pobre. E qual é esse título?

Esse título é: Deus ama os que sofrem; bem entendido, os que padecem com resignação, em união com Ele; o sofrimento é uma prova de predileção. De maneira que quem vê um pobre porque sofre, vê no pobre um tesouro. O que significa que se eu devo amar a pobreza de um pobre, o pobre também precisa amar sua pobreza. É evidente.

Isso não quer dizer que o pobre não deva trabalhar, para deixar de ser pobre. Mas enquanto não consegue sair da pobreza, ele precisa, ao mesmo tempo, ver nela um sofrimento, mas deve carregá-la com resignação. E nós, vendo um pobre, devemos lamentar que ele seja pobre e, na medida em que podemos e tem propósito, precisamos ajudá-lo; mas devemos dar graças a Deus que não só criou os ricos, mas também os pobres. Porque há uma excelência especial da alma humana na aceitação da pobreza.

É como, por exemplo, a doença. Não se pode imaginar a que grau de degradação teria descido o mundo se não houvesse doenças.

Que cúmulo de imoralidades haveria na Terra, se elas não existissem! A Igreja é quem mais faz para acabar com as doenças, mas Ela dá graças a Deus por haver doenças invencíveis, porque é necessário para o homem que haja doenças. Assim, com esse equilíbrio muito grande das coisas, pode-se e deve-se dizer que o pobre, a viúva, o órfão, são verdadeiros tesouros reais dentro da Igreja Católica. São Lourenço deu uma admirável lição ao prefeito de Roma.

Lição para todos os séculos

A última lição ele a deu para todos os séculos: foi o seu martírio. Não se pode compreender sem um milagre, mas um milagre de primeira classe, que um homem aguente o que ele suportou. São Lourenço foi colocado sobre uma grelha, debaixo da qual foram postas brasas. E ele foi assando aos poucos. Podemos imaginar o que representa a dor de ser assado por essa forma.

E São Lourenço, com placidez e o rosto translúcido de alegria, quando percebeu que uma parte de seu corpo estava queimada — é um outro milagre ele não ter morrido com isso —, disse: “Um lado está assado, podem assar o outro lado.” Ele foi virado e na hora de expirar pediu a conversão de Roma; e foi atendido. Vários senadores que assistiram o seu martírio carregaram o seu corpo até a sepultura. Quer dizer, ele, um mero Diácono da Igreja, que vivia como perseguido nas catacumbas, é carregado por componentes do mais alto órgão legislativo da Terra naquele tempo, que era o Senado romano, levado aos ombros por aqueles que ele converteu com seu sofrimento.

Qual o resultado da humildade?

Isso foi o resultado de sua humildade. No Magnificat, disse Nossa Senhora: “Deposuit potentes de sede, et exaltavit humiles — Deus destituiu de suas cátedras os poderosos e exaltou aqueles que são humildes.” Vimos o que aconteceu com São Lourenço. Quem hoje houve falar do Imperador Valeriano? Está desfeito em poeira, apontado ao horror de todos os séculos, quando não, no esquecimento.

Um dos mais célebres palácios do mundo comemora a glória de São Lourenço: o Escorial, construído por Felipe II. Era festa de São Lourenço e Felipe II teria contra os protestantes franceses uma batalha muito árdua. Então, o rei propôs a Deus que ele faria construir uma Basílica magnífica em louvor de São Lourenço, se ganhasse aquela batalha. Ele desbaratou os hereges e mandou construir uma grande obra de arte, o Escorial, que tem exatamente a forma de uma grelha, para celebrar o instrumento do martírio de São Lourenço. E todos os turistas e peregrinos do mundo inteiro, que vão ao Escorial, ficam sabendo das glórias de São Lourenço. Sem falar, naturalmente, no culto que lhe presta a Igreja Universal.

O mártir sacrossanto está no mais alto do Céu, louvado por Nossa Senhora, pelos anjos, objeto de predileção de Deus; até o fim do mundo se celebrará a memória dele e por toda a eternidade os anjos vão cantar sua glória no Paraíso.

E os poderosos, que eram filhos da iniquidade e se orgulhavam do seu poder, foram jogados no chão. Valeriano onde estará?

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/8/1969)

A IGREJA: FORMADORA DE UMA CIVILIZAÇÃO

Dulcificação do trato humano, harmonização do relacionamento entre grandes e pequenos, extinção da escravidão na Europa e elevação das classes sociais mais modestas. Estes sãos alguns dos benefícios conquistados pela Igreja nas áreas sob sua influência, fazendo daquele mundo pagão cruel e impiedoso uma comunidade de nações cristãs regidas pela lei do Evangelho. É o que veremos ao terminar a série de artigos extraídos de aulas e conferências de Dr. Plinio sobre o mundo antigo.

 

Todas as civilizações anteriores a Nosso Senhor Jesus Cristo foram caracterizadas pelo predomínio do egoísmo. Se bem que, de vez em quando, os povos da Antiguidade tenham podido contar com grandes heróis que sacrificavam seus interesses individuais ao amor da Pátria, era o egoísmo que inspirava a organização política, social e as relações internacionais antes da vinda do  Redentor.

Tudo o que temos estudado nas últimas aulas sobre o poder despótico dos reis, a crueldade com que o exerciam, a depravação, o excesso de riqueza, o ócio e o brutal desprezo professado pelas aristocracias em relação à plebe; o espírito de revolta furioso da plebe, que explodiu em Roma, na Grécia e na Fenícia em sanguinolentas revoluções populares; o horror ao trabalho, a indisciplina agressiva e o insopitável ódio das classes pobres contra toda e qualquer instituição ou classe social que trouxesse consigo a ideia da autoridade; a crueldade inenarrável com que aristocratas e plebeus tratavam os escravos, aos quais era dada uma sorte não reservada nem aos animais — tudo isso é, em última análise, fruto do egoísmo.

Uma renovação do mundo

Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo contrário, pregou no mundo o amor ao próximo. E, sobre esta base inteiramente nova, Ele renovou a terra, a tal ponto que a história ficou dividida em dois grandes  períodos: a era anterior ao nascimento d’Ele e a Era Cristã.

Qual foi a doutrina política e social pregada por nosso Salvador?

Certos escritores que não O compreendem costumam chamá-Lo de revolucionário. Ora, revolução é, por definição (no sentido sociológico do termo), uma insurreição de súditos contra a autoridade, uma luta entre inferiores e superiores em que, ou saem vencendo os primeiros ou os segundos.

A transformação que Nosso Senhor veio trazer ao mundo não foi uma revolução, porque não implicou em revolta contra qualquer autoridade, nem levantou os oprimidos contra os opressores. O Cristianismo não trouxe uma revolução, mas uma renovação. Também não tomou partido pelo despotismo contra os oprimidos. Em lugar disso, transformou oprimidos e opressores, fazendo cair-lhes das mãos as armas com que se feriam reciprocamente, e unindo-os num afetuoso abraço de irmãos.

Essa transformação moral e essa reconciliação entre classes sociais que pareciam irremediavelmente desunidas foi, na realidade, a base da grande mudança política e social que Jesus Cristo trouxe ao mundo. Mas essa transformação não era a finalidade da missão d’Ele. Seu fim era essencialmente religioso. E as outras transformações que o cumprimento dessa obra acarretou não foram senão conseqüências da doutrinação religiosa.

O equilíbrio trazido pelo Cristianismo

O mundo antigo parecia vacilar entre excessos igualmente reprováveis. De um lado, o despotismo excessivo, de outro a anarquia demolidora. De um lado, a exagerada concentração de riquezas, e de outro a sua conseqüência indireta, uma plebe paupérrima e revoltada. Finalmente, de um lado, impérios poderosíssimos que viviam na opulência a mais completa, e de outro lado povos que gemiam na miséria, sob o jugo de sua opressão. A todos estes excessos, a pregação da Igreja Católica veio trazer uma solução que representou o equilíbrio.

No terreno político, o Cristianismo afirmou a autoridade, mas condenou o despotismo. No terreno econômico, afirmou a propriedade, mas condenou a excessiva concentração de haveres nas mãos  de poucos proprietários. No terreno familiar, afirmou a monogamia contra a poligamia e, sujeitando embora a mulher e os filhos ao marido, proclamou a sua dignidade eminente, proibindo o chefe da família que os tratasse como escravos ou criados.

O caso da escravidão

Aliás, foi também o Cristianismo que mudou a sorte dos escravos, quando a Igreja começou a se espraiar pelo mundo antigo. Em primeiro lugar, recomendando muito que a escravidão não poderia chegar ao ponto de dar a uma pessoa o direito de vida e de morte sobre outra, nem o de feri-la, mas era preciso respeitar os direitos que são naturais ao homem. Isso já representava um  considerável alívio para a condição de escravo.

Mas a Igreja começou também a trabalhar para que os donos libertassem seus escravos em grande quantidade. Começam, pois, a aparecer os testamentos em que o testador declarava que, quando  morresse, tais e tais de seus escravos ficavam livres. Às vezes determinavam que ficavam livres todos os escravos que possuíam na África, por exemplo, ou na Ásia, ou na Europa. A partir da expansão da Religião Católica, portanto, a libertação dos escravos passou a se tornar freqüente, e o número de servidores não-escravos cresceu muito, o de escravos diminuiu e a própria condição destes últimos ficou menos terrível do que era outrora.

O servo da gleba: mitigação da condição de escravo

Com o tempo, entrando pela Idade Média adentro, houve uma atenuação — sempre por efeito da ação da Igreja — ainda mais sensível da qualidade de escravo: foi o estabelecimento de uma condição  chamada servo da gleba.

Servo é propriamente es- cravo. O sujeito era, portanto, escravo da gleba, isto é, de uma certa porção indefinida de terra. Assim, um servo da gleba já não era mais escravo do dono, mas da terra. Acontece, porém, que a terra não mata, a terra não fere, enfim, é uma forma muito adoçada da servidão.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 41 (Agosto de 2001)

Maternal e Onipotente Realeza

Imaculada pureza, inquebrantável prudência, insondável bondade, sublime sabedoria. Sobre cada uma das qualidades e virtudes da Mãe de Deus, temos visto comentários de Dr. Plinio que constituem verdadeiros hinos de abrasa- do amor. Desta vez, exprime ele seu enlevo e admiração pelo caráter régio da vocação de Maria.

 

Ao instituir a festa de Nossa Igreja glorificar a Deus por meio da realeza de sua Mãe Santíssima, honrando-A e venerando-A com este título, um dos maiores e mais belos que já lhe foram atribuídos. É, portanto, com imenso júbilo que devemos nos associar a essa celebração das prerrogativas régias de Maria, pensando e meditando nelas, não só para crescermos no conhecimento de tão excelsa Soberana, como também e sobretudo aumentarmos nosso amor e nossa devoção a Ela.

Mãe do Rei dos reis

Voltemos-nos em primeiro lugar para os fundamentos dessa realeza, quer dizer, as razões pelas quais Nossa Senhora é chamada de Rainha.

Antes de tudo, por ser a Mãe do Rei, isto é, de Nosso Senhor Jesus Cristo. É Ele Rei  como  Deus,  Autor de toda a Criação. É Rei como Salvador e Redentor do gênero humano, pois este, perdido que estava, foi resgatado pelo sangue infinitamente precioso do Cordeiro Divino, o Qual se tornou assim seu dono e senhor. É Rei por direito de nascença, descendendo da linhagem monárquica de David. É Rei, ainda, como o mais excelente dos homens, no qual nossa natureza atingiu uma superioridade e uma plenitude inimagináveis.

Nossa Senhora o título de Rainha, e não apenas porque convinha a Ele ser filho de uma soberana, mas também porque foi dada a Ela uma participação efetiva no governo de Nosso Senhor sobre todo o Universo.

Com efeito, depois de sua triunfal Assunção, a Santíssima Virgem se viu exaltada pelas Três Pessoas Divinas, recebendo um completo domínio sobre as criaturas visíveis e invisíveis, os Anjos e os Santos no Céu, os homens vivos, as almas do Purgatório, bem como sobre os réprobos e demônios do Inferno. De tal sorte que, a partir de então, Deus executa todas as suas obras e realiza todas as suas vontades por intermédio de sua Mãe. Esta não é apenas o canal por onde passa o império do Rei, mas é a Rainha que decide por alvitre próprio, consoante os desígnios d’Ele.

Medianeira universal de todas as graças

Essa sapiencial disposição da Beatíssima Trindade, concedendo tal poder a Nossa Senhora, nos leva a considerar outro precioso fundamento da realeza mariana: a prerrogativa de Medianeira universal de todas as graças.

É sentença estabelecida na Teologia que, igualmente por vontade divina, todos os dons celestiais nos são outorgados por meio de Maria Santíssima, assim como todas as nossas súplicas e orações só chegam ao trono de Deus se apresentadas pelas maternas e compassivas mãos de sua Mãe.

Ele A constituiu dispensadora de seu inextinguível tesouro de graças e favores, e é por meio d’Ela que deseja atender nossos pedidos. Se todos os Anjos e Santos reunidos suplicassem algo em proveito de um fiel, sem invocar a intercessão de Maria, nada obteriam. Ela sozinha, pedindo por nós, tudo alcança.

Nossa Senhora é, em relação às nossas preces, um alto-falante incomparável a ecoar no Céu. Ela transforma nossas palavras, dá-lhes uma melodia, um som, o valor de um hino, purifica a nossa pronúncia de todas as marcas de nosso desregramento e de nossas insuficiências. E não contente com isso, acaba substituindo nossa voz pela d’Ela, pois nosso timbre, tão menos eminente que o de Maria, vale apenas como um sussurro que se une e se perde no cântico d’Ela ao Senhor da Criação. De tal maneira o foco da predileção divina se concentrou inteiro nesta Filha bem-amada.

Desse modo, a realeza de Nossa Senhora está numa conexão íntima com o fato de Ela ser o canal de todas as graças. Ela é Rainha de tudo, porque tudo é pedido e outorgado por meio d’Ela. Verdade esta corroborada pelo título de Onipotência Suplicante, com o qual os atributos régios da Santíssima Virgem ainda mais se explicam: para ser genuinamente soberana, importa que Ela tenha junto a Deus uma influência sem restrições. Então, porque pode tudo aos pés d’Aquele que tudo pode, por isso Ela é Rainha.

Rainha dos corações

Tomemos, agora, o significado da realeza de Maria vista num ângulo ainda mais acessível à consideração dos homens.

Assim como uma rainha terrena exerce o melhor de seu domínio sobre a parte mais nobre de seu reino, assim também o governo de Nossa Senhora reveste-se de particular excelência quando se trata de seu império sobre o gênero humano, a parcela mais importante de sua universal soberania. E como o que há de mais nobre no homem é a alma, podemos concluir que a plenitude da realeza da Virgem Santíssima se verifica no fato de Ela ser Rainha de nossas almas.

Este maravilhoso predicado mariano foi superiormente exaltado por São Luís Grignion de Montfort, ao invocá-La sob o título de Rainha dos corações. Como coração entende-se, na linguagem das Sagradas Escrituras, a mentalidade do homem, sobretudo sua vontade e seus desígnios, e não a mera sensibilidade, segundo a simbologia moderna.

Assim, Nossa Senhora é Rainha  dos corações enquanto tendo um poder sobre a mente e a vontade dos homens. Este império, Maria o exerce, não por uma imposição tirânica, mas pela ação da graça, em virtude da qual Ela pode liberar os homens de seus defeitos e atraí-los, com soberano agrado e particular doçura, para o bem que Ela lhes deseja.

Esse poder de Nossa Senhora sobre as almas nos revela quão admirável é a sua onipotência suplicante, que tudo obtém da misericórdia divina. Ela nos governa com uma tão extrema suavidade que Ele, como Eterno Juiz, acabaria não podendo fazê-lo em igual medida. Tão augusto é este domínio maternal sobre todos os corações, que ele representa incomparavelmente mais do que ser Soberana de todos os mares, de todas as vias terrestres, de todos os astros do céu. Tal é o valor de uma alma, ainda que seja a do último dos homens!

Reinar nos corações, para reinar sobre o mundo

Dessas consoladoras considerações depreende-se, entretanto, um grave corolário. Se é verdade que Nossa Senhora nunca é mais plenamente Rainha do que quando reinando nos corações e na sociedade humana, cumpre observar que, lamentavelmente, é também verídico que pouco se nota no mundo contemporâneo uma efetiva aceitação dessa realeza. Cada vez mais foi ele rompendo com Nosso Senhor Jesus Cristo, com Maria Santíssima, desprezando e relegando a segundo plano os ensinamentos e ditames da Santa Igreja. O resultado é esse auge de desordem em que hoje vivemos.

Para que Nossa Senhora volte a reinar nas almas e sobre o gênero humano, é necessário que cada devoto d’Ela tenha saudades das épocas católicas em que brilhou essa plenitude da realeza mariana; que tenha, sobretudo, esperança de uma nova era católica que virá, daquele Reino de Maria profetizado e descrito por São Luís Grignion nas páginas de seu Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, em que todos os corações e toda a civilização de bom grado estarão submetidos ao doce império da Mãe de Deus.

Mas, será só isso? Devemos viver apenas de uma grande saudade e de uma grande esperança?

Não. Temos a possibilidade, cada um dentro de si mesmo, de proclamar o Reino de Maria,  de  dizer:  “Em mim, ó minha Mãe, Vós sois a Rainha. Eu reconheço o vosso direito e procuro atender as vossas ordens. Dai-me lúmen de inteligência, força de vontade, espírito de renúncia para que as vossas determinações sejam efetivamente acatadas. Ainda que o mundo inteiro se revolte e Vos negue, eu Vos obedeço”. Desse modo, haverá sempre no meio dessa torrente de desordem, de pus e de pecado, muitos brilhantes puros e adamantinos, ou seja, almas em que Nossa Senhora continua a reinar, corações que são  outros tantos enclaves d’Ela na Terra, a Ela consagrados e a partir dos quais poderá estender seu domínio uma vez mais sobre o resto do mundo.

Rainha indestronável

Algum espírito cético poderia objetar: “Mas, Dr. Plinio, pelo que o senhor acaba de afirmar, tem-se a impressão de que Nossa Senhora, em relação ao mundo de hoje, faz um pouco o papel de uma rainha no exílio, dessas ex-soberanas que vivem em algum canto, longe de seus antigos reinos. Poderão levar uma existência com certo luxo, com certo esplendor até, porém já não exercem verdadeiro domínio. Se, como o senhor disse, Nossa Senhora é rejeitada por uma grande parcela da humanidade, Ela será portanto uma Rainha destronada”.

Eis aí um grande equívoco. Onipotência suplicante e tesoureira das misericórdias divinas, Nossa Senhora é Rainha indestronável. E quando parece não dominar, é porque, em última análise, está exercendo outra de suas prerrogativas régias: a de censurar e punir aqueles que recusam as suas benevolências. Se qualquer soberana, por mais compassiva e materna que seja, tem o direito de repreender seus súditos rebeldes e infiéis, a “fortiori” o terá a Rainha do Céu e da Terra. E pode haver pior castigo do que este de não estar sujeito ao governo e proteção da melhor de todas as Mães?

Na verdade, Nossa Senhora possui os meios de obter de Deus que sempre A atende graças suficientes e até superabundantes para que todas as almas se salvem. Estas, porém, em virtude do livre arbítrio, conservam a liberdade de não corresponderem a essas graças. E se a Santíssima Virgem, apesar de sua insondável solicitude para com tais almas, permite que d’Ela permaneçam afastadas, há de ser, em última análise, por uma punição inteiramente conforme com o exercício efetivo de seu poder de Rainha. E se somos castigados por Ela, Maria continua a ter sobre nós todo o domínio que Ela entenda. Nosso miserável esperneio, nossas péssimas recusas, não são senão movimentos que têm eficácia na medida em que Ela, por superiores desígnios de sua justiça, o tolere.

“Por fim, meu Imaculado Coração triunfou!”

Contudo como nunca será demais repetir e salientar Nossa Senhora é Rainha e Mãe de inesgotáveis misericórdias. Sabendo, como Ela só, que Deus não deseja a morte do pecador mas que ele viva, a Santíssima Virgem quer a salvação de todos os homens. E pode, por uma dessas maravilhas de sua inesgotável clemência, alcançar de Nosso Senhor uma forma super-excelente e irresistível de ação da graça, por onde as almas rebeldes se deixem tocar e se convertam, como que não querendo, mas de fato completamente livres, à maneira de São Paulo no caminho de Damasco. Tão iluminadas e tão auxiliadas do alto, que não têm sequer a tentação de uma recaída.

Devemos, então, pedir a Nossa Senhora que atue assim sobre as almas duras e empedernidas, para que estas se abram à sua realeza toda feita de suavidade e benevolências. Que Ela quebre e remova, do fundo desses corações rebeldes, as resistências abjetas, as paixões desordenadas, as vontades péssimas.

E tenhamos inteira confiança de que está nas mãos dessa celestial Soberana o conquistar um número assombroso de almas, o submeter os impenitentes, aqueles que até agora se fizeram surdos aos seus apelos. De maneira que, num dia não muito distante, poderá Ela proclamar: “Por fim – segundo a promessa que fiz em Fátima – Meu Imaculado Coração Triunfará”.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Verdadeira transfiguração

Durante a Assunção de Maria Santíssima, é possível que o Sol tenha brilhado de um modo magnífico, o céu tenha ficado com cores variadas, refletindo de modos diversos, como uma verdadeira sinfonia, a glória de Deus. Mas nenhum desses esplendores podia se comparar ao próprio esplendor de Nossa Senhora subindo ao Céu.

Toda a glória de Maria provinha de seu interior, e à medida que Ela ia Se elevando, essa glória ia transparecendo aos olhos dos homens como numa verdadeira transfiguração, alcançando todo seu brilho quando, já no alto de sua trajetória celeste, Ela olhou uma última vez para os homens, antes de definitivamente entrar nos Céus.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/8/1968)

As alegrias de Nossa Senhora na Assunção

Devemos nos alegrar não só com as boas coisas que acontecem em nossas vidas, mas também pensar nas alegrias extraordinárias da Assunção, depois da qual Maria Santíssima, entrando no Céu, encontrou-Se com São José, com as almas dos eleitos e todos os Anjos, e foi coroada como Rainha por ser Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Filha do Padre Eterno e Esposa do Divino Espírito Santo.

 

Tem-se tratado muitas vezes a respeito das dores de Nossa Senhora, mas os antigos falavam, mais do que os contemporâneos, das alegrias de Maria Santíssima. E era até uma devoção bastante intensificada, generalizada outrora, a tal ponto que uma das igrejas mais famosas do Brasil foi exatamente a de Nossa Senhora dos Prazeres dos Guararapes, onde os hereges holandeses foram derrotados, e depois se realizou uma espécie de primeiro armistício com eles.

Nesta Terra temos necessidade das verdadeiras alegrias

Devemos tratar também dos prazeres de Nossa Senhora, porque todos os aspectos da vida d’Ela nos são caros, mas também por causa de um lado muito importante, que é o seguinte: São Tomás de Aquino diz que nenhuma pessoa pode subsistir nesta Terra numa infelicidade total. Esta por pouco tempo se aguenta, mas por um longo período é sempre preciso haver algum alívio, sem o qual esse infortúnio não é suportável. Portanto, devemos nos alegrar pelas razões que merecem alegria, e é virtuoso que assim façamos.

A virtude não consiste só em nos entristecermos com as coisas que devem despertar tristeza, mas também em nos alegrarmos com aquilo que causa alegria. E há muitas coisas que devem despertar júbilo na vida do católico, embora não seja de nenhum modo a alegria como o mundo a entende.

Quando falta nas almas a alegria pelas boas razões de alegrar-se, surge a má tristeza, a depressão, e as pessoas começam a sentir atrativo pelas coisas do mundo e a se alegrarem com elas. A partir desse momento, naturalmente, inicia-se um processo de entibiamento, porque um dos sintomas da tibieza é a incapacidade de se alegrar com as coisas boas, santas, acompanhada de uma alegria ruim com uma porção de coisas indiferentes ou positivamente más.

Por isso, notamos na vida da Santíssima Virgem muitos movimentos de alegria, o mais insigne dos quais é, evidentemente, o Magnificat. Mas há outros fatos de sua vida que indicam o prazer que Ela teve. E daí os mistérios gozosos do Rosário, que mostram as alegrias da Mãe de Deus desfrutada em vários momentos de sua existência.

Mas nenhuma alegria de Nossa Senhora nesta vida foi tão grande quanto à da Assunção, que foram as maiores que Ela teve na sua existência terrena, se é que a Assunção pode ser considerada da existência terrena.

Mas elas são passageiras e desaparecem

Como podemos refletir a respeito da Assunção? Usemos de uma comparação.

No cerimonial de coroação da Rainha da Inglaterra, a soberana, portando um diadema, entra numa carruagem dourada magnífica, esplendidamente ornada.

Tocam os sinos, troam os canhões, a carruagem avança, precedida por um esplêndido cortejo de cavalaria, em direção à Abadia de Westminster, onde a rainha recebe a homenagem de todos os pares do Reino, dos membros da Casa Real e de outras notabilidades. Em seguida dirige-se ao seu trono à espera do momento máximo em que, após algumas cerimônias, ela será coroada. Realizada a coroação, o júbilo toma conta da cidade, espalha-se pelo reino e deste para o mundo. Há uma espécie de alegria universal.

Podemos compreender que a alegria desta rainha passe por etapas. Ela amanhece jubilosa e este júbilo — feito de honra, de dignidade e de consórcio com um destino magnífico que o Criador lhe deu: o de reger um enorme povo — vai subindo de grau até o momento da coroação, quando o seu triunfo é completo.

Mas, no meio de todas essas alegrias, quantas pequenas coisas incomodam…

Ela está andando na carruagem e, de repente, sente uma coceira no rosto, mas não pode se coçar porque fica feio. Aguenta esse incômodo e, ao invés de estar cogitando na popularidade, começa a pensar na coceira.

Certa vez, li um comentário da Imperatriz Maria Teresa, do Sacro Império Romano Alemão, descrevendo a coroação dela como Rainha da Boêmia.

Ela falava dos joalheiros que tinham estado, dias antes, adaptando a antiga coroa da Boêmia ao formato de sua cabeça, o que é uma obra de ourivesaria, mas também de estética; porque se um chapéu de senhora precisa ser bem colocado, quanto mais uma coroa! E descrevia, então, a paciência de ficar sentada, enquanto provavam a coroa: mexe um pouco para lá, põe para cá, e ela equilibrando aquele peso na cabeça. Depois, o cortejo, portando a coroa pesadíssima, dentro de uma carruagem que dava solavancos, nos maus calçamentos de Praga daquela época.

Esses pequenos pormenores acabam ofuscando, com seu prosaísmo, cenas magníficas. E, por outro lado, sabemos que tais júbilos desaparecem, não têm continuidade. O momento da coroação é transitório; o dia seguinte já se apresenta pálido em relação à véspera, e cheio de preocupações face ao próximo dia.  Essas são as alegrias autênticas desta vida! Porque essa é uma alegria verdadeira e nobre.

A coroação de Nossa Senhora no Céu

Reportemo-nos, agora, à Assunção de Maria Santíssima.

Nossa Senhora sabia o dia da sua Assunção e que, imediatamente após sua ressurreição, seria elevada pelos Anjos ao Céu. Ela estava na plenitude de sua santidade, sua alma santíssima, que durante toda sua existência terrena não deixou um instante de progredir de um modo perfeitíssimo em matéria de vida espiritual, tinha chegado àquele clímax em que Maria possuía a perfeição perfeita, a beleza belíssima, a virtude virtuosíssima, portanto ao apogeu dos apogeus, e o seu amor de Deus nunca fora maior do que naquele momento.

Podemos imaginar o estado de espírito d’Ela, sabendo que, a partir daquele instante, iria gozar da visão beatífica, passaria por um cortejo infindo de Anjos, dos quais receberia as maiores homenagens possíveis, como nunca nenhuma rainha do mundo recebera ou receberá.

Ademais, a Santíssima Virgem é capaz de compreender a natureza, a luz primordial, a graça de cada Anjo, o amor que cada um deles tem a Deus e o amor do Altíssimo a cada Anjo. E teve um conhecimento perfeito da veneração e da hiperdulia dos milhões e milhões de Anjos, todos se dirigindo a Ela e aclamando-A com o maior amor, o maior respeito, a maior veneração; e sentindo um amor e uma alegria completa por todos e cada um desses louvores, ciente de que eram merecidos porque Ela tinha sido a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo e o espelho fidelíssimo d’Ele.

Imaginem que um Anjo da Guarda aparecesse para um de nós e dissesse: “Meu filho dileto, você é extraordinário e sobre você pousam todas as minhas complacências! Você é digno inteira e perpendicularmente do jorro de minha benevolência!” Um elogio como esse, feito por uma natureza imensamente maior do que a nossa, seria inebriante.

O que seria, então, para uma mera criatura humana, como era Nossa Senhora, o amor entusiástico de todos os Anjos, com o Céu angélico transformado numa coisa lindíssima porque a Rainha estava indo para lá. Era uma corte que durante milhares de anos tinha esperado sua Rainha, a qual chegava e ia pôr o termo final na beleza do Paraíso.

Depois de Nossa Senhora ter percorrido todos esses Anjos — e, antes disso, as almas santas que já haviam subido ao Céu após a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, bem como ter Se encontrado com seu esposo São José e ali permutado com ele uma saudação cheia de um respeito e de um afeto, de que nós nem sequer podemos fazer uma ideia —, a Assunção estava no auge. Maria Santíssima tinha chegado ao termo da Assunção, que foi a coroação d’Ela.

Quer dizer, Ela ia ser coroada como Rainha dos Anjos e dos Santos, do Céu e da Terra, pela Santíssima Trindade. E, com a coroação, houve uma verdadeira festa no Céu; isso não é uma hipérbole, pois se realizou uma festa autêntica no Céu, embora em termos e modos que não podemos imaginar bem.

A festa de coroação foi o auge total e pleno de alegria, mas sem sombra, sem mancha, sem incerteza, sem preocupação, sem a menor nuvem. Porque Ela foi coroada como Rainha por ser Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Filha do Padre Eterno e Esposa do Divino Espírito Santo.

E podemos imaginar o que foi para Nossa Senhora o primeiro momento da visão beatífica — mas desde logo um instante eterno, porque a visão beatífica é eterna —, a primeira alegria da visão direta de Deus? Ora, toda a Assunção d’Ela era uma marcha para isso. E Maria Santíssima o sabia e o desejava ardentemente.

De maneira que é possível, por aí, aquilatar os oceanos — eu diria infinitudes — de alegrias que Ela teve em sua alma santíssima por causa disso.

No Céu, nossas dores serão transformadas em alegrias

Podemos fazer alguma aplicação para nós e tirar disso algum proveito? Evidentemente sim.

Precisamos tomar em consideração que também nós somos chamados para uma verdadeira assunção. Devemos morrer, mas logo depois nossas almas serão julgadas e mostradas a Nossa Senhora, e vão gozar — pela misericórdia d’Ela, evidentemente — da visão beatífica. Depois, quando vier o Juízo Final, seremos levados para o Céu. É misterioso se será por ação angélica ou por império de Deus, mas também nós vamos fazer essa viagem da Terra, completamente transformada, para o Paraíso celeste a fim de gozarmos daquilo que Nossa Senhora já desfruta.

Então, nas delícias do Céu, teremos a familiaridade dos Anjos, dos santos, iremos nos encontrar novamente uns com os outros. E uma das fontes maiores de alegria que teremos lá vai ser de lembrar as dores desta Terra, e tudo quanto aqui passamos.

Ao encontrarmos alguém com quem tínhamos implicância, diremos:

— Oh, meu caro, lembra-se daquele desacordo entre nós? E também daqueles aborrecimentos que lhe dei? Olhe, eu passei no Purgatório tanto tempo…

O outro responde:

— Eu o aborreci também, mas Nossa Senhora nos perdoou. Aquilo vai constituir entre nós um vínculo maior. Lembra-se dos favores que Ela nos concedeu? E de Fulano e Sicrano que eram tão nossos amigos?

— Onde estão? — pergunta o primeiro.

— Estão lá.

Não tenho a menor dificuldade em admitir que haverá festas no Paraíso, em que todos os de nosso Movimento se encontrarão juntos para louvar de um modo especial Maria Santíssima. Então, todas as dores que temos no momento presente serão transformadas em alegrias superabundantes, em satisfações insondáveis, que nos inundarão durante toda a eternidade.

Em comparação com a eternidade nossa vida terrena é um pesadelo

Meus caros, nossa vida pode durar trinta, cinquenta anos, mas passa. É um minuto quando nos colocarmos diante da ideia da eternidade. Sofremos agora, mas depois, quantas alegrias! E a maior delas será olhar para Nossa Senhora.

Há uma história medieval, bastante conhecida, referente a um homem que pediu muito para ver Nossa Senhora. A Mãe de Deus apareceu-lhe e ele ficou encantado, deliciado com a vista d’Ela. Quando Maria Santíssima desapareceu, ele estava cego de um olho. Então um Anjo perguntou-lhe se ele quereria vê-La ainda mais uma vez, com a condição de perder o outro olho. Ele pensou e respondeu: “Quero. Vale a pena ficar cego para ver Nossa Senhora mais uma vez. Qualquer treva é aceitável, desde que, por um instante, eu possa pôr os meus olhos outra vez nessa luz!”

A Santíssima Virgem veio de novo. Ele A contemplou longamente e, quando Ela foi embora, estava curado da outra vista!

Se é tão magnífico ver Nossa Senhora, imaginem o que significa ver Nosso Senhor Jesus Cristo! E, depois, a essência de Deus na visão beatífica. Tudo isso é eterno, pelos séculos dos séculos!

E agora pergunto: Em comparação dessa eternidade fixa, imóvel, perpetuamente nova, sem jaça, insondavelmente interessante, curiosa para ver, animada, empolgante, o que é esta vida que passa? Não é absolutamente nada, é uma escória, um pesadelo. Temos a impressão de que esta vida é uma realidade. Muito mais do que ser uma realidade, ela é um pesadelo.

Então, pensarmos que vamos ter alegrias análogas às de Nossa Senhora, uma ida ao Céu a qual é uma analogia com a ida de Maria Santíssima ao Paraíso no dia da Assunção, é, a meu ver, a melhor das meditações.

Representa-se Nossa Senhora com um coração circundado de rosas brancas, para lembrar a pureza; e também perfurado por sete gládios. Estes evidentemente são gládios espirituais e o coração simboliza a alma d’Ela, ferida pela espada de dor sobre a qual falou o Profeta Simeão.

Eu gostaria de ser pintor para representar Maria Santíssima subindo ao Céu, com o coração à mostra e desses gládios saindo a maior das luzes que se possa imaginar. Porque essa era a grande alegria d’Ela, ou seja, os tormentos sofridos, as lutas aceitas. E também vai ser a nossa. Quanto mais sofrermos, mais devemos lembrar-nos da glória e alegria que teremos na passagem desta Terra para o Céu, e, sobretudo neste, pelos séculos dos séculos.

Na Ladainha do Espírito Santo, há uma jaculatória que sempre me impressionou muito: “Senhor, dignai-vos elevar nossas almas para o desejo das coisas celestes!” É com meditações assim que nos damos conta das coisas celestes, temos alegria e inteira consolação para suportar as coisas da Terra porque o Céu existe.

Contaram-me que uma senhora simples viu pela primeira vez a sala do Reino de Maria(1), e fez este comentário: “Depois de ver esta sala, a gente tem menos medo de morrer”.

Isto é de uma teologia profunda. Até então ninguém fizera igual elogio à sala do Reino de Maria. É o mais faustoso elogio que se possa fazer de uma sala.

Assim deveríamos pensar nós: vendo a sala do Reino de Maria e outras maravilhas, não só não termos medo, mas quase vontade de morrer, para sair depressa daqui e irmos para o Céu. Só não fazemos isso porque, vivendo na Terra todo o tempo que Nossa Senhora quiser, teremos o Paraíso perfeito que para nós Ela destina.

Peçamos a Maria Santíssima, nesta festa de sua Assunção, que essas considerações tenham vida em nossas almas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/8/1966)

 

1) Sala nobre da sede social do Movimento fundado por Dr. Plinio. Ver Revista Dr. Plinio, n. 194, p. 14.

 

Festa de todas as alegrias

A festa de todos os gáudios e todas as alegrias, a festa do dia em que Nossa Senhora, ressurrecta, foi levada aos céus em corpo e alma, terá sido a maior celebração realizada no Paraíso, depois dos esplendores retumbantes da Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Maria Santíssima, a obra-prima da mera criação ocupará seu lugar ao lado do trono de seu Divino Filho.

Pode-se imaginar que, nesse instante, todas as gloriosas perfeições da Mãe de Deus brilharam de modo ímpar: a bondade imensurável, a suavidade, a soberania, o domínio, o atrativo, a virginal firmeza, tudo se manifestou de maneira fulgurante, misteriosamente reluzindo e se acentuando, acentuando-se e reluzindo, para maravilhamento dos anjos e dos bem-aventurados que então A contemplavam na eternidade…

Santa Clara de Assis

A biografia de Santa Clara de Assis muito nos fala da importância da vida interior, assim como da glória verdadeira das coisas santas e católicas. Oriunda de família nobre, fundadora do ramo feminino da Ordem Franciscana, ela abandonou tudo o que possuía de rico e de precioso, para não ter “outro tesouro e outras heranças que o Deus do Presépio e do Calvário”.

Consagrada a Nosso Senhora para todo sempre, esta santa virgem um dia pôs em fuga os sarracenos que invadiam o norte da Itália e sitiavam seu convento.

Avançou de encontro a eles, levando em suas mãos um cibório com o Santíssimo Sacramento: diante dessa frágil religiosa protegida pelo Coração Eucarístico de Jesus, tudo pára, tudo recua!

Prova de que uma alma que se esforce na sua santificação pode fazer um bem maior para a causa católica do que todas as grandes realizações meramente materiais…

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Alegram-se os anjos!

Maria foi levada aos Céus, os anjos se alegram: louvando, glorificam ao Senhor — canta a conhecida antífona com a qual a Santa Igreja celebra a Assunção da Santíssima Virgem, anualmente, no dia 15 de agosto.

O magistério eclesiástico e o ensinamento dos Sumos Pontífices edificaram ao longo dos séculos, com abundância de argumentos e sólida interpretação das Sagradas Escrituras, o fundamento desse augusto privilégio mariano, aceito pelos fiéis de todos os tempos e definido como dogma de fé pelo Papa Pio XII, em 1950.

Entretanto, a imaginação e o vocabulário humanos tornam-se insuficientes para tentar descrever a felicidade e o esplendor incomparáveis que adornaram o Paraíso Celeste quando por suas portas ingressou a Mãe de Deus, em corpo e alma, revestida de inefável e perene beleza!

Os próprios espíritos angélicos, comenta um ilustre autor, diante de tamanha formosura se perguntaram uns aos outros: “Quem é esta que sobe do deserto, inebriada de delícias (Cânt 8, 5)? E se ainda quando Maria andava como peregrina pelos ásperos caminhos deste vale de misérias, os anjos Lhe serviam de criados e ministros,  que não farão agora, vendo-A ascender da Terra ao Céu, e aí colocada magnificamente sobre todas as suas ordens e coros? Reconhecendo-A por Rainha, dançam em sua presença os Anjos, aplaudem-Na os Arcanjos, as Virtudes A glorificam, os Principados A enaltecem, regozijam-se as Dominações e as Potestades, festejam-Na os Tronos, cantam-Lhe louvores os Querubins e celebram seus privilégios os Serafins!”(1)

E se tão imenso foi o gáudio dos anjos ao contemplarem sua Soberana naquele momento, maior e mais insondável terá sido a alegria que marcou o reencontro entre Mãe e Filho na eternidade, conforme salientava Dr. Plinio:

“A este acontecimento de proporções inconcebíveis por nós, só puderam assistir as ‘invejáveis’ almas dos bem‑aventurados que lá estavam, e só elas o poderiam narrar. Pois não existe, neste mundo, qualquer talento ou estro humano capaz de retratar a chegada de Nossa Senhora no Céu, conduzida pelos coros angélicos, e sendo aí recebida por Nosso Senhor Jesus Cristo.

“Na verdade, preciso fora ter visto e admirado as relações terrenas entre ambos, para se compreender a riqueza de sentimentos encerrada nesse reencontro, e se formar uma pálida ideia do olhar com que Jesus, do alto de seu trono de esplendor, considerou a figura excelsa de sua Mãe entrando no Paraíso. Mais ainda. Embora nosso espírito estremeça ao pensar que Ele é Deus, superior a tudo e a todos, inundado de júbilo perfeito, ousaríamos dizer que o Divino Redentor se deixou tocar por um sumo agrado e um sumo respeito no instante de cingir a fronte imaculada de Maria com uma coroa de graças inigualáveis.

“Quem pode vislumbrar tamanha glória? Ela excede a tudo quanto nos é dado imaginar.

“E se Deus prometeu a si mesmo como a recompensa demasiadamente grande reservada àqueles que O amam, confundidos ficamos, se procuramos excogitar quão grande e quão demasiado houve de ser esse prêmio para a criatura que O revestiu de sua própria carne, O cumulou de solicitude e ternuras maternais, e O amou de um amor incomensurável, inexcedível.”

Sejamos, pois, também nós partícipes dessa celestial felicidade, e com os anjos celebremos a gloriosa Assunção de Maria Santíssima. A Ela roguemos nos alcance copiosas graças de perseverança na virtude, nos ampare e ilumine em nossa peregrinação por esta vida, e nos conduza, finalmente, aos pés de seu trono de Mãe e Rainha na eterna bem-aventurança.

 

1 ) Cf. Tesouro de Oratória Sagrada.

 

EUCARISTIA E A PAZ NA TERRA

Nestes dias em que as tensões armadas se avolumam em tantos pontos do globo, vem ecoar novamente a voz de Dr. Plinio, apontando o único caminho para a obtenção da paz: a Eucaristia. Solução “plinianamente”  original e ousada (e bem colada na realidade), como eram as desse líder católico.

 

Não é difícil (encontrar) conseqüência entre os Congressos Eucarísticos e a paz das nações. Guerras são sempre frutos de paixões exacerbadas. E como, entre os indivíduos, a virtude das partes domina os ímpetos do amor-próprio e conserva em harmonia as relações recíprocas, também entre as nações é mister reine a virtude cristã que impeça os excessos das paixões nacionais. Ora, para tanto, muito concorrem os Congressos Eucarísticos. Primeiramente, porque neles há uma consagração da realeza transcendente de Nosso Senhor Jesus Cristo. Reúnem-se representantes dos mais diversos países para, prostrados, reconhecerem a soberania suprema do Rei dos reis, de quem procede todo o poder na terra. Este espetáculo não pode não impressionar os soberanos deste mundo. […]

Sentirão a precariedade de sua soberania, perceberão que sua autoridade não é absoluta ou ilimitada, mas que deve curvar-se diante de outra mais excelsa, a que peça normas por que se regular.  […]

Esta humildade por parte dos governantes, este temor de Deus é o primeiro elemento de ordem e paz entre [as nações]. Pois na Soberania Divina encontrarão os soberanos o limite necessário às demasias do orgulho nacional. Depois, os Congressos Eucarísticos favorecem um conhecimento mais profundo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele já não aparece apenas como o Redentor que uma vez se sacrificou pelos homens para merecer-lhes uma coroa de glória na vida de além-túmulo. Sua vida eucarística, perpetuando o sacrifício, convida os homens a uma reflexão sobre a perenidade e sua Paixão, os motivos que a determinam, seu influxo diuturno nas almas. E vem à luz a vida da graça, a vida estabelecida por Nosso Senhor, como uma realidade que deve ser vivida, intensamente. Daí os frutos mais ocultos, que amadurecem no íntimo dos corações: a reforma dos indivíduos. Uma vida na qual a religião não é um acréscimo acidental, mas o móvel único que dá vitalidade sobrenatural a todas as ações do indivíduo. Um revestimento de Cristo, na frase de São Paulo.

Não se diga que, todos espirituais, estes frutos na sociedade são valores somenos. Absolutamente. Não é possível uma separação real entre os indivíduos e a sociedade. Não há uma sociedade abstrata à qual se apliquem normas e reformas sem considerar os homens que a compõem. Estes são sempre os membros daquela na qual ingressam inteiros, corpo e alma, vícios e virtudes que porventura possuam. E como os vícios concorrem para a desordem e intranquilidade, as virtudes são elementos de ordem e de paz.

A paz social depende, pois, e muito, da paz interna de seus membros. Esta só se obterá quando se compenetrem os homens de sua finalidade extraterrena, sobrenatural, e saibam que ela se subordina ao cumprimento exato de seus deveres para com Deus e para com o próximo. Tal compreensão, proporcionam os ensinamentos de Nosso Senhor; executá-la, facilitam os exemplos de Nosso Senhor: uma e outra coisa se obtêm nos Congressos Eucarísticos.

Há, pois, estreita relação entre os Congressos Eucarísticos e a paz na terra. Já o atual Pontífice gloriosamente reinante, apontava este benéfico influxo dos Congressos Eucarísticos, ao reatar a série dos mesmos, interrompida pela Grande Guerra. E realmente, a paz de Cristo só se pode obter com o reinado de Cristo nos indivíduos e na sociedade.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do “Legionário”, nº 156, de 14/10/1934)

Revista Dr Plinio 41 (Agosto de 2001)