São Fiacre – O perfume da Idade Média

São Fiacre viveu no século VII e é o patrono dos jardineiros. Contemplando sua vida, nota-se a maravilha de uma graça que se evola e perfuma toda a História. Isso descansa nossas almas e nos  coloca diante da perspectiva de que o Céu e a Terra estão unidos e reconciliados.

 

No dia 30 de agosto comemora-se a festa de São Fiacre, anacoreta. A respeito dele vejamos uma linda ficha retirada do livro Vida dos Santos, do Padre Rohrbacher(1).

Filho de um rei da Escócia

São Fiacre nasceu no começo do século VII, de uma ilustre família irlandesa. Os escoceses afirmam que ele era filho de um de seus reis, e que foi educado com os seus irmãos pelo Bispo de Connan. Fiacre aproveitou bem essa educação, pois abandonou, jovem ainda, seus pais e sua família, para servir a Deus em terra estrangeira e na solidão.

Indo para a França, procurou o Bispo de Meaux para pedir que lhe cedesse algum lugar isolado em sua diocese. O Bispo de Meaux, que era também um Santo, encheu-se de alegria e disse a Fiacre:  Tenho, não longe daqui, uma floresta de meu patrimônio, que os habitantes chamam Breuil, e acredito ser própria à vida solitária.”

Os dois Santos foram visitar o lugar e o bispo deu ao emigrado irlandês o que lhe seria necessário. São Fiacre, com a bênção do prelado, limpou o bosque, ergueu uma igreja em honra da  Santíssima Virgem, com uma casa ao lado onde habitava, e recebeu  os hóspedes que ele alimentava com o produto de seu jardim.

Mais tarde construiu uma espécie de hospital, onde ele mesmo servia os pobres e, muitas vezes, os curava pela virtude de suas orações. Mas não permitia nunca que as mulheres penetrassem em  sua ermida. O artigo que impede as mulheres de entrarem em mosteiros de homens é uma regra inviolável  entre os monges irlandeses.

São Fiacre não se desfez dessa regra enquanto viveu, e ainda hoje vê-se, por respeito à sua memória, que as mulheres não entram no lugar onde ele vivia em Breuil, nem na capela, onde foi enterrado.

Ana de Áustria, Rainha da França, dirigindo-se para esse lugar em peregrinação, contentou-se em rezar à porta do seu oratório. Os escoceses contam que, durante esse tempo, tendo vagado o trono da Escócia, os deputados desse país vieram implorar a São Fiacre que subisse ao poder, mas ele recusou, humilde, mas firmemente. O santo anacoreta morreu a 30 de agosto de 670, e foi  enterrado em seu oratório.

Milagres sem conta tornaram seu nome célebre na França, onde geralmente os jardineiros o honram como seu patrono. Com efeito, rezando em seu oratório e trabalhando no seu jardim, São  Fiacre mereceu um trono no Céu. Um jardim, também como um oratório, pode tornar-se um lugar de meditação e de prece.

Modelo de fidelidade ao primeiro propósito

Não sabemos o que mais especialmente assinalar nessa narração: a beleza das várias peripécias que a vida desse Santo teve, ou o conjunto dos fatos que se ligam para deixar um perfume de  legenda em torno dele.

Do ponto de vista da pulcritude das peripécias, poucas coisas são mais belas do que imaginarmos um Santo, filho de um rei, que vai para um lugar distante, foge das pompas da realeza, põe-se  numa floresta, encontra-se com outro Santo, e os dois se dirigem juntos a um lugar na floresta onde acham um ponto adequado para viver; e esse príncipe passa lá a vida inteira, renunciando às  honras da realeza.

Mas, depois de praticar por longo tempo a vida eremítica, ele recebe uma oportunidade de se arrepender do que fizera, uma ocasião para voltar ao trono do qual talvez tivesse nostalgia. Ele recusa  essa segunda possibilidade, e morre como simples jardineiro e humílimo guardião de hospital, na floresta de Breuil, na França, na Diocese de Meaux.

Acho que talvez a segunda recusa seja mais nobre e bela do que a primeira. Porque uma coisa é um homem deixar algo dele. Muitas vezes, pelo costume que ele tem daquilo que vai abandonar, o  indivíduo não sente a falta que lhe fará; depois, ele ainda não experimentou a amargura daquilo para onde ele vai, não imagina bem a coisa como ela é. Pode-se conjeturar que para um príncipe  habituado a um palácio real, e um pouco farto das pompas régias, seja muito sedutor e atraente a ideia de, em certo estado de espírito, ser um solitário na floresta.

Mas depois que o príncipe deixou o principado e foi morar na floresta, ele viu quanto dói não ser príncipe, e a floresta já perdeu a sua poesia; ele passa a encetar uma luta contra bichinhos, contra  o calor, contra mil coisas prosaicas da vida de todos os dias, e tem a oportunidade de aquilatar bem o sacrifício que fez. Então, na segunda ocasião recusar pode ser muito mais nobre do que na  primeira.

Lembro-me de um caso contado por um ímpio inglês do século XIX, que em certa ocasião fora visitar uma Cartuxa na Espanha. Olhando para o lugar com um belo panorama, aqueles frades  procedendo muito bem, ele teve uma exclamação: “Que lindo local!” E o cartuxo – naturalmente é uma piada ímpia –, rompendo  a regra de silêncio, disse para ele: “Lindo para ver, horrível para ficar.”

E caiu no silêncio de novo, para terminar seus dias na Cartuxa. O dito era ímpio, mas exprimia algo de verdadeiro. As situações mais belas ao entrar, depois são, às vezes, duras de ficar. E vemos  esse homem que permanece a vida inteira fiel ao primeiro propósito de sua juventude. Aqui está uma beleza de fidelidade, de continuidade que devemos apreciar.

É próprio da Igreja civilizar e até dulcificar a natureza

De outro lado, notamos também que quadro extraordinário: o  silêncio da floresta de Breuil, na Diocese de Meaux, naquele isolamento – de uma natureza que era mais vigorosa do que a natureza  europeia de hoje –, entra dia, sai dia, entra noite, sai noite, ninguém passa, e apenas aquele Santo reza, isolado! E como é próprio da Igreja civilizar e até cultivar, plantar e dulcificar a natureza,  São Fiacre vai, aos poucos, empurrando a erva daninha e a natureza selvagem de perto de si, e assim vai nascendo em torno de sua cabaninha um jardinzinho. Podemos imaginar o Santo que acaricia a florzinha, planta mais um pouco e dá glória a Deus franciscanamente, pela admiração à flor que vem nascendo.

Depois, o viajante que é um perseguido e passa por ali, o Santo o consola, dá-lhe um bom conselho, e o forasteiro conta posteriormente na cidade que existe naquela floresta um eremita…Vem,  então, um doente que o Santo cura. Aos poucos, aquilo se transforma numa ermidazinha e num hospitalzinho, e aquela obra toda vai se ampliando e, mais do que isso, como um perfume de odor agradável a Deus, a reputação desse Santo se estende por toda a zona.

Vai além da floresta de Meaux, ganha as aldeias, chega até às capitais, e os príncipes e as princesas organizam excursões para beijar o pé do Santo, que os recebe com humildade, respeitosamente,  deixa-os fazer, cura-os, consola-os, etc. Então se diz que um novo Santo surgiu na França, é o grande São Fiacre. Assim, há um aroma de Jesus Cristo que se espalha por toda uma região.

Fiacre, um nome que repercute até os dias de hoje

Para termos ideia da sua personalidade basta notar isto: a permanência da proibição imposta por ele, não permitindo que as mulheres entrassem lá. Pois bem, as próprias mulheres amaram essa  proibição. E mesmo quando uma rainha esteve em visita ao local, ela que, como soberana, podia violar a clausura de acordo com o Direito Canônico, não a transgrediu porque São Fiacre não tinha  querido. Ela ajoelhou junto à porta e, com toda a majestade de Infanta da Espanha, de Arquiduquesa d’Áustria, de Rainha da França – não se podia ser mais do que isso! – osculou as grades que  outrora São Fiacre tinha feito para que ela não entrasse. Isso tudo indica uma espécie de veneração que se estende de geração em geração, e torna São Fiacre célebre na França.

Como vimos, São Fiacre é, até em nossos dias, o patrono dos jardineiros na França, e concorre com um outro Bem-aventurado Fiacre, que dirigia carros de rua em Paris no século XVI, e do qual  veio o nome de fiacre para os carros de aluguel, que durante algum tempo havia na Europa. Recebiam o nome de fiacre por causa do segundo São Fiacre. E assim o nome Fiacre vem retumbando até os dias de hoje.

Essa é a beleza da vida dos Santos, a maravilha dessa graça que se evola e perfuma toda a História, e descansa nossas almas. Depois de passarmos o dia com aborrecimentos, às vezes também com  decepções, considerar a festa de um São Fiacre é algo que nos dá repouso, distensão e nos faz compreender um pouco daquele perfume que, outrora, teve a Idade Média. Régine Pernoud escreveu   um livro intitulado A Luz da Idade Média. Nós poderíamos redigir um com o título “O perfume da Idade Média”, com todos esses imponderáveis que a Idade Média trazia consigo.

Em meio às trevas dos dias de hoje, podemos pensar no que será o Reino de Maria, após os castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima. Quem sabe se ouviremos também falar da glória de  algum Santo que, num lugar inteiramente ermo, deserto, onde só há árvores – e sobre o qual algum erudito de então dirá ter sido a região central de uma grande megalópole contemporânea –, glorificará a Deus, num isolamento espantoso.

Então, diremos a um de nossos irmãos de vocação: “Lembra-se do tempo em que se comentavam as peculiaridades daquele centro urbano horroroso? Agora não resta nada, mas existe a glória de  tal Santo, de cuja vida se contam tais e tais episódios”. E nossos olhos se fecharão em paz, com a ideia de que o perfume do Céu voltou para a Terra, e o Céu e a Terra estão unidos e reconciliados.

Esta é a perspectiva que encontramos diante de nós.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/8/1968)

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. v. XV, p. 339-344.

A medula da Contra-Revolução em Plinio Corrêa de Oliveira

Desde a infância, pode-se dizer que Dr. Plinio teve uma verdadeira troca de vontades com a Igreja, e foi recusando, uma por uma, as coisas revolucionárias que passavam diante dele. E, em sentido oposto, gradualmente foi concebendo uma Ordem Religiosa contrarrevolucionária, através da qual vislumbrou o Reino de Maria.

 

Comigo, as devoções se inserem dentro de ciclos de pensamento e vão sendo assim relacionadas. É uma coisa muito singular. Suponho ser assim com todo o mundo, mas as pessoas não tomam o trabalho de explicitar.

A tintura-mãe mais sacral, forte, perfeita, insondável da Contra-Revolução

As graças que recebi quando pequeno, e até mocinho, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, foram muito profundas como visão de Quem e de como é Nosso Senhor. De tal profundidade e alcance que pude, depois, crescer em explicitação, mas duvido que eu pudesse — salvo um fenômeno da vida mística que não tive — conhecer mais do que conheci.

E isso foi acompanhado o tempo inteiro pela devoção a Maria Santíssima, a partir daquela graça de Nossa Senhora Auxiliadora, que se deu quando eu era ainda muito menino(1).

Na minha impostação, toda a luta da Contra-Revolução é uma defesa do que poderíamos chamar a mentalidade, o espírito do Sagrado Coração de Jesus contra a Revolução; porque é a tintura-mãe mais sacral, mais forte, mais perfeita, mais insondável da Contra-Revolução.

E daí se dar, com o passar do tempo, um contínuo relacionar disso com a luta Revolução e Contra-Revolução, por onde eu ia conhecendo o mesmo espírito, a mesma mentalidade, mas já no contraste com o oposto, aplicando e crescendo muito mais em fidelidade do que compreensão, nessa segunda fase. Em compreensão também, naturalmente, pois ia maturando com a idade; mas o crescimento da fidelidade era muito maior, porque, uma por uma, as coisas revolucionárias passaram diante de mim, e eu tive que recusá-las.

O lado positivo desse processo foi a elaboração gradual do que eu chamaria nossa Ordem Religiosa e, através dela, o vislumbre do Reino de Maria, que antigamente era para mim a mera Idade Média.

Isso levou anos e anos — quase toda a minha vida — correspondendo a elucubrações que, afinal de contas, pressupõem não haver uma concepção cultural, artística, política, moral, ou de qualquer outro caráter, que não gire direta e especificamente em torno disto: o Sagrado Coração de Jesus.

A certa altura, entrou o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, de São Luís Grignion de Montfort, e com isso uma ideia muito maior da intimidade com Nosso Senhor, por meio da sagrada escravidão a Nossa Senhora.

Então, a devoção a Ela cresceu muito, enquanto que a Ele continuou, dando numa dessas adesões estáveis, tranquilas, profundas, se Deus quiser da vida inteira, mas que parece não se mover. Precisamente por ter chegado a um certo ponto onde tem todo o necessário para alimentar o resto da trajetória.

Reflexões a partir da infinita nobreza de Nosso Senhor

Lembro-me de coisas ínfimas. Por exemplo, quando eu era pequeno, e até moço, meu quarto na casa de vovó ficava numa posição em que da janela avistava-se a escada de serviço, por onde entravam os empregados. E eu os ouvia, subindo, descendo e conversando.

Ademais, minha avó era caritativa e apareciam umas figuras populares pitorescas por lá, para pedir esmolas. Por exemplo, uma italiana, velhinha, muito branca, nariz aquilino, com umas veias azuis aparecendo pelo rosto, mãozinhas pequenas, arqueadas, as quais ela não conseguia fechar inteiramente, de tão velha que estava. Ela se arrastava, não sei de que porão das redondezas onde morava, e ia comer, juntamente com o “Antônio cego” e uma mulher chamada Serafina, embaixo da escada, que era um pequeno “Pátio dos Milagres”(2).

Eu ficava deitado na cama, fazendo a sesta, mas acordado, e ouvia o borbulhar daquela gente. Depois, olhava para meu quarto que era muito bem arranjado, agradável, espaçoso, com um papel de parede que me encantava, vindo de Paris.

Chegavam-me também os ecos da sala de jantar: minha mãe, minhas tias, minha avó conversando, com risos, exclamações, o telefone que soava, o cachorrinho lulu da minha prima, que ladrava, etc.

Ora eu analisava o meu quarto, ora os ruídos vindos de fora, e fazia reflexões sobre classes sociais que eram, no fundo, pensamentos sobre a transcendência, mas a partir da ideia da infinita nobreza de Nosso Senhor Jesus Cristo, que me parecia a própria personificação do nobre.

Mas percebia que se não abrisse os olhos e não fizesse essas classificações direito, na ambiguidade de todas as coisas, eu acabaria sendo devorado para baixo. E, portanto, precisava evitar, a todo custo, decair porque deixaria de assemelhar-me a Nosso Senhor Jesus Cristo.

As maneiras “hollywoodianas” pareciam-me o contrário da sacralidade, e um atentado contra Ele. A tintura-mãe do conceito de nobreza é a sacralidade.

Podia ser que, terminada a sesta, eu conseguisse encontrar aberta a sala de visitas, a mais fina da casa. Entrava, então, escondido e ia me ambientar ali. E me regalava com aquela ambientação, que era o extremo da meditação iniciada junto à escadaria, onde estava o meu quarto, e que ia subindo, subindo, até aquele ponto.

Tudo isso representava destilações e aplicações ao concreto da fidelidade ao Sagrado Coração de Jesus. Quer dizer, era uma verdadeira meditação, por onde Ele me acompanhava nisso tudo.

Sucessão de dois estados de espírito

Lembro-me de uma espécie de dualidade que havia em mim a qual mais ou menos se resolveu, cicatrizou de todo em todo quando entrei para o Movimento Católico.

Não era a dualidade clássica, que naturalmente havia e há em nós até morrermos, entre o homem mau e o homem bom, entre o estado de graça e a tentação para o pecado mortal. Não se tratava disso. Nem a matéria de pecado estava diretamente envolvida no assunto.

Eram dois estados de espírito que se sucediam, mais ou menos como uma luz que se apaga ou se acende dentro de uma sala, por exemplo.

Um era de um personagem menino, já muito sério, com as vistas muito voltadas para o maravilhoso, para tudo quanto há de mais elevado, para todas as harmonias, todas as profundidades; portanto, para uma coisa que eu não sabia que se chamava recolhimento — mas que era uma espécie de recolhimento contínuo — e algo que eu não sabia que era piedade — porque piedade para mim existia só na hora estrita de rezar —, mas noto hoje que era piedade. Era, então, um menino muito voltado para os assuntos relacionados com a Revolução e a Contra-Revolução.

Este menino não era um asceta e julgava como natural próprio dele fruir as coisas normais que, dentro do estado de graça, o menino pode desfrutar. Não tinha ideia de santidade, não possuía o intuito de alcançar a perfeição moral, mas apenas o de realizar uma obra para a qual se sentia chamado. Entretanto, tinha um propósito firme de se manter no estado de graça.

Este estado de espírito, no fundo, apesar das misérias, era profundamente bom, elevado e revelando um chamado muitíssimo marcado, que transpassava a minha alma de lado a lado. Era congênere com este estado de espírito uma certa seriedade um tanto melancólica, tristonha, mas carregada com ânimo varonil. E detestando tudo quanto era superficial, brincadeira idiota, etc.

De repente, havia uma amnésia de tudo isso e vinha, durante uma, duas, três horas, um estado de espírito diferente, superficial, brincalhão, e me deixando arrastar pelas formas de alegria dos anos 20 — que eram muito vivas, muito comunicativas, muito “hollywoodianas” —, sempre que eu não notasse nelas qualquer coisa de revolucionário. E elas comportavam muitas coisas que não eram revolucionárias, mas constituíam uma espécie de embalagem para entrar na Revolução. Esta eu não bebia, mas o que não era Revolução eu tomava e gostava, até muito.

Por exemplo, quando tinha entre 13 e 15 anos, de repente eu cantarolava a plenos pulmões esta ou aquela música que estava na moda — e em casa toleravam, não sei como, pois sempre tive uma voz muito forte. Cantarolava ou intimamente me lembrava de alguma coisa divertida, que assistira em algum teatro, repetia aquilo e achava graça.

Nas conversas com minha irmã e meus primos, sobretudo nas quintas-feiras, quando eles iam jantar em casa, havia uma mesa dos mais moços, na qual a brincadeira era debandada e eu era um dos chefes desse divertimento. Nunca havia coisas imorais, mas eram brincadeiras de mocinho, de mocinha, com toda intimidade. Então falando mal deste, daquele, da sociedade, dos parentes deles, empregando apelidos, debicando a minha família do norte… Sem nada de insultante. E às vezes um acentuando o defeito do outro, etc.

Eram coisas que contrastavam com o estado de espírito dessa seriedade que eu devia tomar. E, se me deixasse entregar, isso me levaria depois para uma atitude de alheamento em relação à minha própria vocação, e estremeço em pensar até onde esse alheamento me poderia conduzir.  Mas disso tudo eu não tinha noção.

Como eu vivia continuamente na companhia desses primos, minha presença também determinava, excetuadas as quintas-feiras à noite, muitas conversas sérias sobre História, às vezes discussão a respeito de religião com o marido de uma prima, que era ateu, mas muito meu amigo. Chegava à discussão furibunda, e entrava muito de seriedade pelo meio.

Aos poucos fui me dando conta da contradição entre aquelas brincadeiras e o meu perfil de contrarrevolucionário, e eu mesmo comecei a acentuar o corte com aquilo, até cortar completamente.

Ouvindo músicas de Chopin e Verdi

Certas músicas e formas literárias do século XIX pareciam contrarrevolucionárias, em comparação com o que a Revolução apresentava nesse período descrito por mim. E levei algum tempo para perceber que elas, no fundo, eram revolucionárias também, embora correspondessem à Revolução atrasada.

Então, havia certos compositores que me diziam muito. Desde logo e sempre, mas com prolongamentos de condescendência até hoje — não cumplicidade, mas compreensão —, Mozart. Eu ainda não conhecia Boccherini…

Mas tinha uma certa admiração, por exemplo, por Chopin. Então, na Polonaise Triunfal eu apreciava o lado heroico, contrário ao cinema norte-americano. Na Marcha Fúnebre, via um hino da seriedade, que era o oposto dos funerais hollywoodianos, com o cadáver maquiado sentado numa sala, bem como outras coisas que já naquele tempo se faziam e repercutiam sobre mim muito desfavoravelmente.

Certos trechos de Lamartine e outros literatos franceses do século XIX me pareciam elevados, grandiloquentes, e eu não percebia diretamente o aspecto revolucionário.

Nessa idade eu não tinha conivência com a Revolução; isto posso afirmar. Havia falta de percepção. Por ingenuidade, eu via um lado que existia mesmo e, por contradição, era contrarrevolucionário. Mas não notava o aspecto revolucionário. Com o tempo, percebendo que era ruim, fui deixando também.

Confesso que até Verdi teve uma certa repercussão na minha alma. A Marcha da Aida eu reputava o auge da Contra-Revolução! Eu tinha uma vitrola, um gramofonezinho, comprava discos e certo dia adquiri o dessa marcha. Ao mesmo tempo, comprei-o pela música e pelo fato de ser feito de uma matéria vermelha. Por aí podem ver as cogitações infantis, misturadas com o encanto pelas cores, desde o começo.

Aqueles atores italianos cantavam a plenos pulmões, e eu colocava o gramofone a todo volume e a Marcha da Aida enchia a casa! Não havia quem se lastimasse com aquilo. Fico pasmo e, rememorativamente, agradecido pela paciência que todos tinham, pois eu também não percebia. Não existia a mínima ideia sensual ou sentimental com a Aída, nem nenhuma Aida no meu espírito. Mas aquilo me parecia grandiloquente, o grande drama do teatro.

Eu imaginava o Scala de Milão repleto de gente, o rei, a rainha — a Itália ainda era uma monarquia naquele tempo — assistindo em camarotes, e os atores cantando a plenos pulmões, sustentando aquela espécie de desafio, de maneira a simbolizar a pompa social e a monarquia real em termos culturais no seu esplendor.

O teatrinho ”João Minhoca”

Dou um outro exemplo.

Havia em Santos, onde íamos passar as férias no meio do ano, um parque de diversões próximo ao Hotel Parque Balneário, onde existia o “João Minhoca”, teatro de fantoches animados por um italiano. As figurinhas entravam, cantavam, diziam isto, aquilo, etc., e o bom italiano, talvez sem se dar conta, era extremamente pitoresco.

Um colega descobriu isso e convidou-me para assistir, com mais três ou quatro amigos. Fomos e fizemos propaganda. De maneira que, em certas noites, ia um farrancho de gente do Parque Balneário para ver a representação do “João Minhoca”.

Como a sociedade daquele tempo era muito mais hierarquizada do que a atual, reservavam espontaneamente os primeiros lugares para os eventuais espectadores do Parque Balneário. Então, ficávamos sentados na primeira fila, acabando por dar a nota ao ambiente, cujas pessoas aplaudiam o que aplaudíamos e achavam graça naquilo em que também achássemos.

Um dos bonequinhos representava um engraxate que entrava no palco cantando, em português macarrônico, toda uma ária. Nós achávamos muita graça quando chegava a hora do engraxate, e aplaudíamos vigorosamente. Eu, naturalmente, era dos puxadores de palmas. Depois, em casa, eu cantava a “ária do engraxate”. E todo mundo tolerava de modo surpreendente.

Mas isso revelava uma tendência para súbitos cansaços da clave superior, meio subconscientes, e repentinos anseios de levar uma vida desengajada, não responsável e feita para meu próprio lazer. Mas eu não percebia, no começo, uma incompatibilidade absoluta entre uma coisa e outra; notava serem diferentes, mas julgava que podiam coexistir bem.

Com o tempo fui percebendo que não. Nesse período, os meus olhos foram se abrindo mais para esse problema, e quando me engajei no Movimento Mariano cortei com isso completamente.

Já moço, nas fotografias tiradas antes de me formar em Direito — na Linha de Tiro, nas Congregações Marianas e em outras ocasiões —, nota-se como esse lado desapareceu e o outro preponderou, graças a Nossa Senhora.

Esperança de encontrar pessoas mais contrarrevolucionárias

Ao mesmo tempo, a consciência de minha vocação se apresentava em termos tão altos, que eu podia dizer — sem me comparar, nem de longe, com Carlos Magno — que a missão tinha um porte carolíngio. E o futuro se apresentava a mim com lufadas de caráter profético, de uma grandeza enorme!

Nessa mesma época em que, de vez em quando, eu tinha esses acessos – um misto de infantilidade e de evasão dessa grandeza, que constituíam uma tentação —, ficava na dúvida sobre o real valor dessas previsões que sentia.

Que estava diante de mim a Revolução eu não tinha dúvida nenhuma. Que era preciso fazer a Contra-Revolução e eu teria de trabalhar muito para fazê-la, eu não tinha dúvida nenhuma.  Que ao longo de minha vida não encontrasse pessoas mais contrarrevolucionárias do que eu, tinha receio, mas uma esperança enorme que não fosse assim; pelo contrário, esperava encontrar tais pessoas, investidas de um verdadeiro direito ao mando nessa matéria, e das quais eu pudesse ser um campeão, mas nunca um diretor, um mentor.

Pensava eu: “Nas fileiras das classes sociais que a Revolução pretende destruir, devo encontrar os contrarrevolucionários perfeitos, com direito a mando, e junto aos quais eu possa exercer uma influência na linha do que está no meu espírito”.

Mas, às vezes, a esse pensamento seguia-se outro: “Coitada de Nossa Senhora! Desconfio que Ela terá que se contentar comigo. Porque vejo que fazer Ela fará, pega qualquer ‘dois de paus’ e o utiliza para realizar sua obra, se os naturalmente chamados não quiserem”.

Isso eu considerava sem ambição e, sobretudo, sem qualquer vaidade, sentindo bem minha desproporção. Aquela expressão de São Luís Maria Grignion de Montfort, “petit vermisseau et miserable pécheur”(3), entrou na minha alma até o fundo. Assim sou eu e assim é todo o mundo.

De outro lado, tinha até certo receio de que isso fosse verdade, pois exigiria de mim mais esforço para chegar ao píncaro de mim mesmo, e mais luta do que eu teria se seguisse um chefe. Mas, poderia ser eu, e deveria me preparar inclusive para isso.

Troca de vontades com a Igreja Católica

Depois de minha viagem a Europa, em 1950, a ideia de uma missão pessoal se vincou muito mais em meu espírito, dando-se uma espécie de união entre esta vocação e eu, no sentido de que, na Terra inteira, quem abriu o coração de par em par para isso, pelo menos naquela ocasião, fui eu. E mais ou menos como a pomba de Noé, que teve de voltar para a arca por não encontrar lugar onde pousar, eu sentia incidir sobre mim a vocação.

Com a convicção de que era preciso amar, mais do que nunca, todas as grandezas do passado. E não somente amá-las, mas de algum modo sê-las! De maneira tal que eu percebia tratar-se de uma tradição quase milenar que estava expirando, e que não morria inteiramente porque habitava em mim; e a partir de mim teria o seu renascimento.

Tenho até dificuldade em descrever a união de alma, a verdadeira troca de vontades com a Igreja Católica, enquanto oposta a tudo quanto a Revolução tinha feito, e trazendo em si todos os gérmens para realizar o contrário. E na Igreja Católica, ao pé da letra, com Aquele que era para mim a personificação, por superação, da Igreja Católica: o Sagrado Coração de Jesus.

Para ser bem positivo, essa espécie de troca de vontades começou em menino. E com a minha compenetração, com o exercício progressivo do papel que eu devia realizar, foi-se estabelecendo em minha alma, cada vez mais, uma união com aquilo que em determinado momento se tornou completa.

Tudo isso num processo interior do qual estou marcando algumas etapas, sem cronologia muito definida, porque não me lembro. Recordo-me apenas de que uma etapa sucedeu a outra.

Comecei a frequentar a igreja desde não sei quando. Mamãe me levava à Missa aos domingos no Coração de Jesus, e o edifício material da igreja exercia sobre mim um efeito sobrenatural da graça, que naquele tempo eu não sabia discernir. Eu pensava que decorria do aspecto do templo — de uma majestade doce, suave, acolhedora, embebida de uma tristeza compassiva, mas que ao mesmo tempo pedia compaixão —, de algo em que minha alma se sentia como diante do seu analogado primário(4) do modelo perfeito que queria ter. Tudo me falava de seriedade, de bondade, até o extremo concebível! Eu via que isto se exprimia muito nas cerimônias do culto, nos paramentos, na liturgia, no órgão, etc.

O órgão me maravilhava! O que eu tinha de pendor pelo órgão, era impossível dizer. Mas eu fazia raciocínios assim: “Este órgão parece a imitação de uma voz humana. E dir-se-ia ter havido uma vez na História um homem que falou de tal maneira, que todas as sílabas pronunciadas por ele tiveram o timbre de um órgão. Quem teria sido esse homem? Como é que o espírito dele chegou até quem compôs esse instrumento?”

A imagem do Sagrado Coração de Jesus e o Santo Sudário

Não custei a perceber que a imagem do Sagrado Coração de Jesus ali presente representava isso, ou seja, a Pessoa da qual emanavam todas essas coisas. Era Ele, especificamente enquanto fazendo ver seu Coração aos homens, com todas as perfeições, todas as maravilhas de alma possíveis, tudo quanto pode haver de bom realizado de um modo que eu não podia ter imaginado.

Por não possuir ainda suficiente formação catequética, supunha discernir tudo isso n’Ele pela análise psicológica da imagem. Hoje, quando a observo, vejo como ela está distante, na realidade, daquilo que a graça me fazia ver. É uma imagem digna de respeito, não tem dúvida, a qual quero muito, mas não diz o que eu via nela.

Era uma graça obtida por Nossa Senhora para mim. Eu “arquetipizava” corretamente a imagem. De maneira que, por exemplo, quando vi o Santo Sudário, eu disse: “É Ele!”

Mas hoje posso afirmar que isso que eu via, por ação da graça, na imagem era ainda mais fielmente Ele do que o Santo Sudário. O que se compreende, porque o Santo Sudário é a posição d’Ele como morto e como vítima. E a imagem do Sagrado Coração de Jesus representa-O vivo, acolhedor, afável…

Donde eu deduzia o seguinte: Jesus merece adoração, e eu O adoro inteiramente. É preciso querer até o fim, ter esta mentalidade completamente, assim se deve ser, isto é o meu ideal. Eu só sou congênere com quem é congênere com Ele. E quem não é congênere com Ele não o é comigo. Eu tenho parte com Ele, e quem não tem parte com Ele, não a tem comigo também.

Por conveniências sociais, educação, necessidade de apostolado, posso conduzir um convívio cordial. Mas ter parte com minha alma, querer bem, só quem for como Nosso Senhor.

Ele é Deus, porque ninguém tem inteligência nem virtude para inventar esta figura, a começar por mim. Se eu não tivesse visto isto na Igreja, não seria capaz de ter esta ideia que tenho d’Ele.

De onde longas orações ao pé da imagem, Ladainha do Coração de Jesus, etc.

E isso era o ponto de partida da Contra-Revolução na minha alma. Porque eu via o mundo “hollywoodizado” como o contrário daquilo tudo. E o mundo que a Revolução Francesa destruiu, e que eu também “arquetipizava”, eu o via como realizando em grande parte aquilo que Ele era. E percebia que quando se destruiu aquilo, quis se destruir a Ele, e não se desejou o que era conforme a Ele.

Donde a medula da Contra-Revolução, em mim, ser a devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

Alguém poderia perguntar: “Mas por que o Sagrado Coração de Jesus, e não Jesus expirando na Cruz, por exemplo?”

A graça chama a cada um para certo tipo de devoção. É legítimo. Deus me livre de negar as outras mil formas magníficas de devoção, com que a Igreja Católica não cessa de louvar a Nosso Senhor Jesus Cristo durante a História. Mas sinto que fui chamado para adorá-Lo especialmente assim.

Dona Lucilia e o Sagrado Coração de Jesus

Meu afeto para com mamãe era por isto. Em geral, eu me sentava ao lado dela na igreja, e a olhava rezar e pensava: “É curioso, isto tudo vive nela”.

Eu a via rezar em casa para a imagem do Coração de Jesus que ela possuía em seu quarto, naquele oratório, a qual é muito anterior à imagem de alabastro do salão, e pensava: “Há uma atração entre Ele e ela. Mamãe é assim porque reza para Ele”. De onde o benquerer derivado. Eu a queria enormemente bem, mas por isto.

Para mim, a Igreja Católica é santa porque é como Ele. A influência e a presença d’Ele estão totalmente nela. A própria auréola que nimba a cabeça de Nosso Senhor é a Igreja Católica. É por isto que a amo.

A primeira coisa que me chama a atenção n’Ele é a presença de algo — que eu sei ser a divindade, mas estou procurando descrever o que vejo e não o que conheço pela Fé — de excelso, altíssimo, e que leva todas as qualidades que Ele tem a um grau inimaginável. Por mais que eu tente imaginar, qualquer qualidade d’Ele é de uma elevação, uma altitude, uma plenitude que não chego a compreender, mas vagamente entrevejo.

Por exemplo, Jesus ensinando os doutores no Templo. Aquele grupo de imagens, na Igreja do Coração de Jesus, é interessante, exprime mais ou menos isso. A crítica de homem maduro àquilo tudo eu fiz de modo completo, mas guardei com o máximo cuidado o que interessava.

Ali está Ele difundindo em torno de Si um halo de virtude divina, por onde todas as virtudes de um adolescente eram conduzidas a um elevado grau e procediam de uma fonte altíssima, insondável; por onde tudo o que no adolescente existe, por exemplo, de irrupção de vida, n’Ele era uma vida que irrompia tão cheia de elevação, de grandeza, de nobreza, que nem se sabe o que dizer. E também tão repleta de bondade, de misericórdia, de sabedoria, que galopava muito além da idade; mas que se exprimia com o timbre de voz e num vocabulário que não era inadequado para a idade. Entretanto, dizia muito mais do que todos aqueles doutores juntos.

O píncaro dos píncaros o qual nunca sonhei que existisse, a minha alma entreviu!

É mais ou menos como um monte altíssimo, no cume do qual vejo nascer um fio de água, que pode chegar até mim; mas tenho presente, durante todo o tempo em que bebo a água, que ela vem do alto daquela montanha, que eu vi nascer, a bem dizer, dentro do azul do céu.

A obra-prima
de Maria Santíssima

Isto para mim é a primeira impressão, diante da qual a tendência imediata é, ao mesmo tempo, de aproximar-me de Jesus, ajoelhar-me e, se Ele tolerasse, segurar seus pés para tê-Lo junto comigo, para ver se Ele me impregna mais.

Daí eu gostar tanto do “Anima Christi, sanctifica me”(5). Porque, se eu O visse, a primeira coisa que Lhe diria é: “Santifica-me!” Porque quero ser parecido com Ele. Depois desta elevação, vem tudo quanto uma alma inocente, habitada pela graça, pode imaginar no Menino Deus adolescente: o modo de Ele responder uma pergunta audaciosa, de ser afável com outro, de liquidar uma questão com três palavras simples que os deixavam boquiabertos. Mas com a despretensão e a naturalidade de quem diz: “Olhai os lírios do campo, não tecem nem fiam…”(6). Uma coisa superior, mas de tal superioridade, que junto a ela minha alma respira. Sinto falta de ar em tudo o que não é isto.

Tudo quanto é virtude, que vejo reluzir na Igreja, brilha daquela maneira porque tem n’Ele a fonte, e que em Jesus é de um modo a perder de vista!

Por exemplo, uma procissão nos bons tempos, que sai da Basílica de São Pedro com o Santíssimo Sacramento, o Papa levado numa espécie de estrado e ajoelhado diante da Hóstia; e a longa fileira dos Cardeais, dos Arcebispos, dos Bispos, dos Superiores Gerais das Ordens religiosas, etc., que dão a volta na Colunata de Bernini e entram na Basílica pelo outro lado; os sinos que tocam, o incenso que enche o ar, as pombas que esvoaçam e a multidão genuflexa que pede perdão. Tudo isso é reflexo d’Ele.

Compreende-se como é, no fundo, a Igreja reportando todas essas coisas a Nosso Senhor e, imaginado n’Ele, tudo isto fica tão alto… Mas, nos momentos em que se tem a experiência do “petit vermisseau et miserable pécheur”, vem à nossa mente, de vez em quando, a noção aflitiva da desproporção. Porque, enquanto a afinidade é empolgante, a desproporção é acabrunhadora.

Então, Jesus mesmo preencheu essa distância com a bondade d’Ele. A obra-prima do Coração d’Ele é Aquela de quem Ele é a obra-prima. Nosso Senhor é a obra-prima de Maria, mas antes de todos os séculos Maria foi ideada como a obra-prima da misericórdia d’Ele para preencher essa desproporção. Sem Ela, eu me sentiria ao mesmo tempo atraído indizivelmente, mas apavorado e aniquilado, pensando diante d’Ele: “Si iniquitates observaveris, Domine, Domine, quis sustinebit?”(7) A Mãe d’Ele me sustenta.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 26/11/1985 e 12/12/1985)
Revista Dr Plinio 197 (Agosto de 2014)

 

 

1) Ver Revista Dr. Plinio, n. 122, p. 18-23.

2) Cf. Revista Dr. Plinio, n. 32, p. 27.

3) Do francês: vermezinho e miserável pecador.

4) Termo utilizado em Filosofia, significando matriz, padrão.

5) Do latim: Alma de Cristo, santifica-me.

6) Cf. Mt 6, 28.

7) Do latim: Se consideras as culpas, Senhor, quem poderá se sustentar? (Sl 130, 3).

Monte Saint Michel – expressão da alma humana e simbolo de Deus

Se me fosse dado passar uma tarde diante do Mont Saint Michel, ditosos e abençoados seriam para mim esses momentos. Ali me agradaria estar, ora contemplando e analisando o mosteiro, ora  pensando em temas elevados que teriam com ele uma certa afinidade, sentindo sempre o calor de sua presença como ponto de referência para o voo variegado da cogitação de alguém que  descansa. Por onde enveredariam essas análises e reflexões?

* * *

O Mont Saint Michel é um conjunto de aspectos, uma unidade na variedade, que simboliza de modo muito eloquente determinados valores sobrenaturais, bem como certos movimentos e qualidades da alma humana. Esse simbolismo é mais bem compreendido se considerada a relação entre os diversos elementos que compõem o cenário.

Primeiro, o mar e a elevação rochosa. Para se medir a importância do mar nesse panorama, basta imaginarmos que, depois da praia, não houvesse mais o oceano, mas começasse a se alastrar ali uma megalópole contemporânea. Como tudo mudaria e perderia sua beleza tão singular!

Pelo contrário, como esse conjunto lucra e se enriquece com a presença do mar e seus diversos movimentos! Ora ele vem meio caprichoso, “boudeur”, fazendo um pouco de fronda, inunda a praia, enche todos os espaços em volta do monte e acaba por se chocar contra os rochedos que ele mesmo talhou, e com os quais construiu uma espécie de muralha natural para conter seu próprio  ímpeto. Ora ele se aproxima manso e se retira, deixando seu cartão de visitas nas franjas da areia. Ora são ondas que vêm e vão, lambendo a praia em todas as direções, como se o mar inteiro estivesse se espreguiçando e olhando para o mosteiro que, sobranceiro, do alto o observa.

E nisso temos a expressão de um estado de alma. Pois uma das formas de admirar o Mont Saint Michel seria a de alguém que, morando em frente a ele, ao acordar de manhã, e enquanto se  espreguiça, de sua janela o contempla. A admiração comporta essa atitude de espírito. Considerando o mar, poderíamos ainda ver seus diferentes movimentos se acercando ou não do mosteiro,  admirá-lo a distâncias diversas, como um símbolo dos movimentos — legitimamente vários — da apetência humana.

* * *

Há, depois, a extensa faixa de solo arenoso que aparece junto ao monte, quando as águas refluem e dele se afastam. A pergunta que nos vem à mente é esta: seria mais bonito que o mar tocasse  continuamente no mosteiro, e nunca deixasse à vista esse pedaço de terreno? Certamente, não. Porque, nesse conjunto, a grande praia tem seu papel. Em determinados momentos, ela permite ao  mosteiro conter o mar à distância, e como que dominar em torno de si uma periferia, tendo a seus pés areias  submissas e rasas.

E nesse aspecto do Mont Saint Michel encontramos também analogia com outro estado de alma do homem, quando este exerce alguma  função de mando e senhorio. Por sua vez, o rochedo lucra  bastante em ser único dentro de uma praia lisa e imensa. Parece-me inegável que sua beleza ficaria diminuída se houvesse quinze morros como ele, encostados uns nos outros, formando uma  espécie de cordilheira que avançaria para o mar.

O fato de ser único quase nos faz esquecer de sua altura. Pois quem está cercado de areia por todos os lados, tem todas as  alturas. Ele, nessa planície, não é um anônimo: é supremo.

Ele é ele, envolto por elementos rasos, dominando-os só por si. Muito mais do que sua altura, vale sua unicidade. A esta característica do Mont Saint Michel correspondem também algumas  disposições da alma humana. De fato, há coisas que ela admira quando são únicas e não vêm acompanhadas de outras igualmente belas. Por exemplo, uma joia constituída apenas de uma fina   corrente  de platina, da qual pende um brilhante  grande e claríssimo, posta sobre um fundo de veludo negro, pode ser mais esplêndida do que uma outra emoldurada por cem pedras preciosas. Às vezes é mais bonito ostentar essa valiosa companhia, outras vezes é apresentando- se como único. São estados do belo, que equivalem a estados do espírito humano: ora cada um de nós lucra  sendo visto no seu contexto, ora considerado na sua unicidade.

E para alçarmos logo o supremo voo dessas comparações, digamos que esse aspecto do Mont Saint Michel é uma pequena imagem do por onde o próprio Deus é único. Essa  é uma rocha firme e  alta, no meio de areias e praias movediças, como Deus é eterno e supremo no meio do movediço das coisas que Ele criou.

* * *

O rochedo e a vegetação. Destruamos esta e veremos como a aparência daquele fica prejudicada. Porque é agradável vislumbrar algum aspecto do mosteiro a perder-se na mata cerrada, a qual  imaginamos fresca, coberta de sombras, e talvez umedecida por duas ou três fontes que, nascidas do alto, por ela  correm num suave e apaziguante murmúrio…

Sem dúvida, é interessante ver o edifício como que se desfazendo em sombras e mistérios. Tanto ou mais bonito é vê-lo claro, altivo, agarrando-se ao rochedo que lhe serve de alicerce e  dominando-o; é contemplá-lo na elegância de suas linhas que avançam para o céu, e na solidez de suas pedras que resistem e se afirmam diante dos elementos adversos.

É bela a alma humana quando, com franqueza, proclama sua personalidade, se exprime e se define. É igualmente bela quando, com discrição, conserva alguma coisa consigo, exclusivamente sua.  Ter seus mistérios e suas explicações, ter suas proclamações mas também suas intimidades, constitui um jogo de aspectos muito nobre para o espírito humano. Então, não será algo em nós que  aprecia sua própria penumbra, e se deleita em olhar para o Mont Saint Michel? E não será algo em nós, sedento de proclamar-se, de afirmar-se e de ser uma fortaleza, que se identifica com esse  monte que assim se declara à luz do sol?

Sim, em todo homem se encontram essas várias disposições. Temos,   em nossa alma, facetas que  gostariam de se mostrar inteiras, sem véus; temos zonas delicadas que confiamos a poucos; e  outras  que, embora façam parte de nossa riqueza, nem nós conhecemos e tão-só as pressentimos, pois são vistas apenas por Deus. Resultado, a alma humana encontra na variedade do Mont Saint Michel uma expressão de si mesma, uma semelhança e uma alegria.

* * *

O mosteiro, mais bem um conglomerado de prédios distintos, tem algo de fortaleza, algo de residência e algo de igreja. Ombreando-se por entre as irregularidades do morro, as casas de uma pequena aldeia se eclipsam à sombra do grande e proeminente edifício religioso. No interior deste, um claustro que exprime ordenação e sabedoria extraordinárias, nascidas da piedade medieval,  filha ela mesma da ordem e da sapiência da Igreja Católica. Imaginemos a vida entre essas paredes sagradas: monges estudando em magníficas bibliotecas ou cantando o Ofício na igreja; um que  se acha recolhido em sua cela, desenhando lindas iluminuras num pergaminho, enquanto outro na oficina entalha um bonito  capitel para uma coluna ainda desprovida de ornatos.

Depois, na periferia das construções, há espaços para a luta e a guerra. Confundindo- se com as rochas, erguem-se como que muralhas nas quais podemos figurar monges cruzados resistindo e  expulsando, passo a passo, os invasores que debalde intentam conquistar a fortaleza  inexpugnável.

Como tudo se encaixa bem no Mont Saint Michel! Síntese de oração, de estudo, de recolhimento, de arte e de luta. Unicidade que encontra sua máxima expressão na torre do campanário, forte,  desafiante, inamovível, como se fora um pesa-papéis colocado sobre papéis diferentes, como quem diz: “O vento não os faz esvoaçar nem os tira daqui!” No alto dessa torre, uma flecha. No cimo da  flecha, a estátua do Arcanjo, que parece proclamar: “A síntese, a correlação de todos esses aspectos é tão vária e tão imensa que se perde nas nuvens, abisma-se no céu!”

E então poderíamos dizer que, no seu conjunto, o Mont Saint Michel é um magnífico símbolo do Sapiencial e Imaculado Coração de  Maria, Rainha dos Doutores, Rainha dos Profetas, Rainha dos  Mártires  e dos Guerreiros, Rainha de todos os Santos. Mais. Símbolo d’Aquele que veremos  face a face na bem-aventurança eterna, no seu vulto inteiro, embora não na totalidade de cada uma das  suas perfeições: Deus Nosso Senhor, infinitamente claro e infinitamente misterioso, pelos séculos  dos séculos. Amém!

PERFEIÇÕES DA VIRGEM-MÃE, BELEZAS DA IGREJA

Nossa Senhora é a imagem perfeita da Igreja Católica. Dr. Plinio escolhe esta afirmação de Santo Agostinho, quando se vê na contingência de optar por um tema que seja bem-assimilado por seu auditório de jovens.

 

A propósito da festa de Nossa Senhora das Mercês, gostaria de fazer alguns comentários sobre um trecho de Santo Agostinho. O grande Bispo de Hipona se dirige à Santíssima Virgem neste  belíssimo louvor: Ó Maria, cumpristes perfeitamente a vontade do Pai Celeste. Vossa maior honra, vossa maior felicidade não foi de ter sido a Mãe, mas a discípula de Cristo. Bem-aventurada sois  por terdes ouvido o Verbo de Deus e conservado (suas palavras) em vosso coração. Vós guardastes a verdade de Cristo em vossa  inteligência, mais ainda que sua carne em vosso seio. Não se saberia comparar-Vos às mulheres do Antigo Testamento, a Ana, a Suzana. A que alturas não Vos elevastes acima delas? Aqui ainda não falamos na santa virgindade, mas em vossas outras  virtudes: ó Maria, há no mundo alguém que as ignore?

Para exemplo e ensinamento para todas as mulheres convém somente não esquecer vossa santa e admirável modéstia. Vós fostes julgada digna de conceber o filho do Altíssimo e, entretanto, permanecestes a mais humilde de todas as criaturas; porque fizestes sem cessar a vontade de Deus, sois segundo a carne e o espírito, a Mãe de Cristo, sua Mãe e sua irmã, mulher única, mãe e  virgem, e Vós o sois corporalmente e espiritualmente.

Mãe de nosso Chefe, que é o Salvador, Vós sois também e perfeitamente mãe de todos os membros de Cristo, porque cooperastes, por vossa caridade, para o nascimento dos fiéis na Igreja.

Única entre todas as mulheres sois, ainda uma vez, mãe e virgem. Mãe de Cristo e virgem de Cristo. Foi por Vós, ó Mãe do Senhor, que a dignidade virginal começou (a florescer) sobre a terra. Por  Vós, ó Maria, que merecestes ter um filho, mas que o merecestes sem deixar de ser virgem. Para honra do Salvador Jesus, o pecado não se aproximou de Vós. Sabemos que  para vencer o pecado e   o vencer inteiramente foi dada graça abundante Àquela que foi digna de conceber e de cuidar do Impecável.

A beleza e a dignidade da terra sois Vós, ó Virgem, que fostes sem cessar a imagem da Santa Igreja. Por uma mulher, a morte; por uma mulher, a vida. E esta última sois Vós, ó Mãe de Deus.

Assim como Maria, a Igreja é Virgem e Mãe

É um lindo trecho de Santo Agostinho, talvez num estilo não inteiramente acessível às novas gerações. Por outro lado, seria muito ingrato dessorarmos o santo Autor, tirando o pensamento dele de dentro das palavras majestosas que ele escreveu.

De maneira que me parece suficiente, para aproveitarmos bem esta passagem, compreendermos um pouco a frase final dele, quando fala que Nossa Senhora é a imagem perfeita da Igreja Católica.  Procuremos, então, analisar em que sentido a Igreja é virgem e é mãe, e de que modo ela é, por sua vez, imagem de Nossa Senhora.

A Igreja é virgem nessa acepção da palavra de que ela é de uma santidade absoluta, sem nenhuma forma de condescendência com o erro nem com o mal. Nela não existe qualquer espécie de mácula. Ela é, portanto, intacta como uma virgem.

De outra parte, ela é mãe porque todos os homens nascem para a vida espiritual de dentro da Igreja, são engendrados por ela para a existência cristã. Se não fosse a Igreja, nenhum homem poderia salvar-se. E ela procede como mãe em relação aos filhos, os nutre com os Sacramentos, com a vida sobrenatural da graça; ela os ensina por meio do Magistério infalível; ela os guia através da  autoridade da hierarquia eclesiástica, de maneira tal que ela exerce, em relação a cada homem, a cada um dos católicos, todos os ofícios e todos os misteres que a mãe exerce em relação ao filho.

Esse paralelo se torna ainda mais esplendoroso quando podemos dizer, a exemplo de Nossa Senhora, que ninguém é mais virgem do que a Igreja, e ninguém é mais mãe do que a Esposa Mística de Cristo.

Tomem-se todas as instituições e todas as mães da terra, e nenhuma teve nem terá uma maternidade mais copiosa do que a Santa Igreja. Desde o momento em que ela foi fundada, até o fim do  mundo, todos os homens que se salvarem serão gerados nela e será ela que os conduzirá à vida eterna.

Aceitar ou recusar a Fé, salvar-se ou  condenar-se

Naturalmente, haverá pessoas que se salvarão sem serem católicas. São aquelas que não tiveram oportunidade de conhecer a Igreja, porque viveram em regiões longínquas, porque nunca ouviram falar dela, etc., e não puderam adivinhar que a Igreja Católica existia.

Porém, Santo Tomás de Aquino ensina que, antes de essas pessoas morrerem, elas recebem de algum modo — quiçá por seus Anjos da Guarda — a revelação sobre os mistérios essenciais da Fé cristã, e são convidadas, no seu derradeiro momento de vida, a crer ou a recusar. Se creem, elas se salvam; se recusam, condenam-se. Assim, segundo a doutrina tomista, no último instante todas as pessoas que se salvam acabam pertencendo à Igreja Católica, se não pelo batismo da água, pelo batismo de desejo.

E por esse ensinamento vemos como Santo Tomás de Aquino concebe o papel da Fé na salvação e o papel da Igreja para cada católico. Imaginemos a situação: a alma está nos últimos transes, talvez o homem até sendo dado por morto por todos os circunstantes. Mas vem um Anjo e revela as verdades essenciais da Fé, aquelas sem as quais ninguém se pode salvar. E naquele momento a  pessoa é levada a fazer um ato de amor àquilo e tem para isso as graças suficientes. Mas é possível que, por força de seus vícios, em vez de um ato de amor tenha um ato de ódio. Se ela amar, se  salvará; se ela odiar, se perderá.

O amor à Igreja é uma fonte de virtudes

Compreende-se, então, como o amor a Deus, o amor à Igreja Católica é a fonte de todas as virtudes. Quem ama se salva, porque depois praticará os  Mandamentos e cultivará as melhores qualidades morais. Quem não ama, se perde, porque cortou com a raiz de todos os valores da piedade.

Quantas e quantas vezes tenho ouvido lamentações de pessoas que apresentam dificuldades em tocar a vida espiritual, em perseverar na prática dos Mandamentos, ou pelo menos problemas para  progredir na virtude. A solução qual é?

Uma das muitas soluções — porque a Igreja é a cidade da salvação onde para tudo há diversas saídas— é exatamente aumentar nossa Fé, é aumentar o nosso amor à Igreja Católica. Aumentando esse  amor, cresce igualmente a nossa determinação para praticar o bem e a nossa repulsa ao mal. E, cumpre notar, muitas vezes as pessoas não têm suficiente aversão ao mal, porque no fundo não têm suficiente amor à Igreja.

Infalibilidade papal, Eucaristia e Confissão: três belezas da Igreja

Voltamos então ao pensamento que pretendíamos aprofundar: a Igreja é a figura de Nossa Senhora, e é resplandecente e bela na terra, e devemos procurar amá-la a fim de nos prepararmos para amar Nossa Senhora no Céu. É necessário que tenhamos os olhos sempre voltados para a Igreja eterna, a Igreja imutável, que não se identifica com as misérias presentes e transitórias, a Igreja que devemos amar acima de todas as coisas no mundo. A Igreja na sua hierarquia, nos seus mil aspectos verdadeiramente divinos.

Recordemos, por exemplo, tudo quanto há de belo na infalibilidade papal, na figura de um homem infalível, governando a todos e a todos ensinando o caminho da verdade, num governo que não é temporal, mas do espírito. Nunca se concebeu, em matéria de governo, algo de tão bonito, de tão nobre quanto isso.

Consideremos, de outro lado, a Eucaristia. Deus verdadeira e realmente presente entre nós, embora oculto de modo misterioso sob as espécies eucarísticas, conferindo ao homem a possibilidade  de ter com Deus um convívio tão íntimo e até insondável.

Deus entra nesse homem e como que se faz um com ele. Pode-se imaginar coisa mais esplêndida do que o Todo Poderoso condescender em ter tal familiaridade com cada um dos homens que Ele  criou? Depois, o sacramento da Penitência. Pode-se conceber que inferno seria o mundo sem o confessionário? Se nós não pudéssemos nos abrir sobre os nossos pecados, e não tivéssemos a  certeza do perdão? Que horror seria a incerteza sobre se Deus nos perdoou ou não, se estamos ou não em estado de graça, etc., etc.

Que obra-prima de sabedoria existe no confessionário, e no fato de o segredo de confissão nunca ser traído! E quanto mais o mundo afunda numa decadência moral, mais aparece os raios de luz  que partem da Igreja, mais compreendemos o quanto ela é bela e digna de amor. Quando nós pensarmos em tudo isso, encontraremos mais resolução para combater os nossos pecados e para  praticar a virtude.

Que Nossa Senhora das Mercês nos ajude a isso. “Mercê” é uma graça, é um favor. Nossa Senhora das Mercês é Nossa Senhora dos favores, disposta a todo momento a nos conceder dons excelentes e a nos convidar a pedi-los.

Tenhamos para com Ela esse tipo de relação muito filial e muito confiante, certos de que sobre nós descerão as misericórdias de nossa Mãe santíssima.

 

Hierarquia e amor de Deus

O homem com espírito hierárquico se enleva com tudo de superior que ele vê, está voltado para Deus e dispondo sua alma para adorá-Lo por toda a eternidade, no Céu. E o indivíduo que, diante das qualidades dos outros, sente-se espezinhado ou indiferente, está se preparando para o antro de todas as revoltas, que é o Inferno.

 

Mais de uma vez tenho exposto a doutrina clássica da Igreja sobre a desigualdade, mostrando no que ela dá glória a Deus, por que é necessária, enfim, tudo quanto São Tomás de Aquino afirma a esse respeito.

Entretanto, tenho a impressão de que a mera explanação doutrinária não basta, e seria preciso fazer uma exposição vivencial do assunto por onde pudéssemos, por assim dizer, apalpá-lo, para depois aplicarmos mais facilmente a doutrina. E vou tentar, portanto, tocar o tema com a mão; vejamos como ele se deixa manusear.

Diante dos pombos, na Praça de São Marcos…

Estive algumas ocasiões — podem imaginar com que encanto! — na Praça de São Marcos, em Veneza. Sempre que vejo a Catedral, é com o mesmo entusiasmo, como se fosse a primeira vez. A laguna, as gôndolas, as duas colunas com o leão alado e com São Teodoro e o dragão, — entre as quais figura o lugar onde eram decapitados os réus de morte —, a entrada do Palácio Ducal… Oh! Que palácio! Se ali morasse, não um doge veneziano, mas um imperador — não das margens do Adriático, mas um imperador do Oceano Pacífico — aquele palácio ainda estaria superior ao personagem, de tal maneira é magnífico.

Depois de considerar todas essas maravilhas, o olhar cai naturalmente para as bagatelas, entre as quais os pombos que existem em quantidade na Praça de São Marcos. Os turistas costumam levar saquinhos com miolos de pão e outros alimentos semelhantes, que eles compram por ali, os jogam e os pombos vêm comer.

Eu ficava prestando atenção nos turistas — porque é interessante viajar olhando não só os monumentos, mas os homens e, no caso, também os pombos e os turistas lidando com eles. E eu analisava a reação de almas humanas em relação às aves, e diante do problema da desigualdade.

Quer dizer, eu me transformava de admirador da Praça de São Marcos em observador de uma criatura de Deus, a qual vale mais do que qualquer monumento. Porque qualquer alma humana, enquanto espiritual, sobretudo enquanto batizada, vale incomparavelmente mais do que a Catedral de São Marcos, o Palácio Ducal, e é até mais interessante, quando se sabe analisá-la.

…as atitudes dos turistas

Observando os turistas, eu notava que muitos deles tomavam uma atitude de superioridade em relação aos pombos. É natural: criaturas humanas, seres inteligentes que jogavam no chão a comida e os pombos vinham comer.

De vez em quando, alguns pombos pousavam na mão de um turista, pois se tornaram aves muito mansas à força de serem bem tratadas pelos transeuntes. Outras vezes, os pombos voavam junto ao rosto das pessoas, e estas queriam pegá-los, iam atrás deles, mas não conseguiam; as aves esvoaçavam e saiam elegantes, para voltar de novo.

E eu percebia que aquela sensação de superioridade, ligeiramente depreciativa, cedia lugar a uma impressão de encanto. No pombo, aquele movimento da cabeça, aquelas asas cor de chumbo muito matizado, aquelas pequenas estrias coloridas no pescoço — verde um pouco nacarado —, a graça e, sobretudo, a vitalidade, a variedade, sua instabilidade ordenada  fazem desta pequena ave uma maravilha criada por Deus.

Tendo passado da sensação de superioridade para a do fascínio, os turistas querem agarrar o pombo para terem tempo de observá-lo, mas percebem a instabilidade da ave que pode levantar voo a qualquer momento. Eles ficam meio inseguros e, de repente, começam a sentir, por algum lado, uma certa inferioridade em relação aos pombos. Porque estes possuem um tipo de vitalidade que, para dizer pouco, poucos homens têm. Ademais, o pombo é tão engraçadinho, tão pequenininho, tão vivo, e tem um jeitinho de olhar, que o observador percebe um mistério que ele não chega a explicitar, mas lhe vem à mente o problema: “Como é que um simples bicho tão inferior a mim é, entretanto, por alguns lados, tão superior a mim?”

Em determinado momento, o pombo que estava na mão de um turista se destaca e voa. E, no voar, afirma sua independência e sua alteridade. Há um modo de o pombo ir embora pelo qual parece dizer: “Não me incomodo contigo. Estive um pouquinho em tua mão, mas agora voo.” E o voar dá ao pombo uma certa superioridade em relação ao homem, pois este não voa, é pesadão, atraído pela terra, seus passos o cansam. Então, olhando o pombo que corta o ar, o homem vai se entusiasmando, até que em determinado momento tem vontade de se apoderar da ave. Se ele pudesse, prendia-a numa gaiola e tentaria haurir aquilo de superior que há dentro dela.

São poucas as almas que manifestam a seguinte reação: “Como esse pombo, que agora voa, é bonito e superior a mim, por algum lado! E eu gosto de contemplar essa superioridade dele!”

O homem deve se alegrar ao contemplar a superioridade de outro

Penso ter filmado, assim, em câmara muito lenta, o drama do igualitarismo.

Essas sucessivas atitudes de alma de uma pessoa face ao pombo são uma espécie de apólogo, de conto, no qual se pode perceber a evolução do homem diante daquilo que é superior a ele em todas as ordens; não apenas na sua relação com uma ave, mas, sobretudo, com outros homens. E aí o problema da igualdade ou desigualdade entre os seres humanos encontra um meio de se exprimir.

Por que é natural ao homem reto — ao ver em outro algo mais belo ou melhor do que aquilo que ele possui — exclamar: “Que bom! Então isto existe!”?

Sendo bem entendida a ordem profunda das coisas, a qualidade de cada pessoa é complementar com a da outra, de maneira que aquele predicado, existindo isoladamente, não teria razão de ser.

Exemplifico. Alguém tem um grande talento artístico e pinta um quadro. O pintor, enquanto tal, é muito superior ao homem que simplesmente admira o quadro. Entretanto, que sentido teria pintar se não houvesse outros que admirassem a pintura? Não é verdade que a capacidade de admirar de quem vai ao museu para ver o quadro — aptidão mais modesta do que a do pintor — é um complemento do pintor, e este não se explica sem o admirador? Mas não é verdade também que o admirador seria um órfão e um pobre coitado se, gostando de pinturas, não houvesse pintores que as realizassem?

Portanto, se o pintor, ao invés de desprezar quem não sabe pintar — falando-lhe: “Animal! Dou-te um pincel, borra essa parede, vamos ver o monstro que sai! Olha a bela figura que eu fiz!” —, dissesse ao homem admirativo: “Tu és meu irmão ou meu filho, porque tua alma compreendeu aquilo que eu admirei”, e se unissem, nós teríamos, então, a harmonia da desigualdade.

Sem dúvida, um belo quadro é uma grande coisa. Mas imaginem se Deus tivesse criado o mundo só com pintores. Que pesadelo! É preciso haver o pintor, mas também o padeiro, o ferreiro, o homem letrado; é necessário ter de tudo porque todas as qualidades são diferentes, mas se completam, formam um todo, a sociedade humana, a qual possui uma perfeição como conjunto, que um mundo constituído só de pintores ou de padeiros não poderia ter.

Quer dizer, se considerarmos as coisas retamente, veremos que toda superioridade de outro homem deve constituir um gáudio para quem a contempla. Esta é a ordem reta posta por Deus.

Reação de certos meninos diante de um colega que obtém prêmios na escola

Alguém dirá: “Mas um homem, vendo um outro muito superior, pode pensar sempre o seguinte: Ele possui qualidades que eu não tenho, e que me completam?”

Eu afirmo: Vamos devagar… Ele tem qualidades que desenvolveu e você não. Você foi o preguiçoso que deixou as qualidades dormindo dentro de si; ou foi o homem desatinado que deu a elas um desenvolvimento errado, fora da trilha da Doutrina Católica e do espírito da Igreja. Se você se tivesse desenvolvido como deveria, compreenderia melhor aquele que se desenvolveu como devia. E essa sensação de inferioridade contundida é a sua consciência, que geme sob o peso de sua preguiça.

Não é raro encontrarmos em colégios a seguinte rea­ção: um menino tira uma série de prêmios no fim do ano; certos colegas dizem: “Esse é pretensioso!” Na realidade, aqueles são vagabundos, não querem estudar, não gostam de fazer qualquer esforço. O mínimo que se pode desejar é que eles batam palmas e declarem: “Graças a Deus que alguém fez o que não fizemos!” E cada um precisa pensar: “Se tenho vergonha na cara, ao menos devo aplaudir o mérito dos outros, já que eu não fui capaz de conquistar méritos para mim.”

Se o menino que recebeu prêmios dissesse isso para os colegas que o chamam de pretensioso, o linchariam. Mas se esse colégio tivesse educadores bons, estes diriam aos alunos vagabundos, porque é uma coisa que eles precisariam ouvir.

Muitas vezes, esses sentimentos invejosos de inferioridade vêm do fato de a consciência dizer à pessoa que ela deveria ter feito o que não fez, e o remorso dá uma dentada. A dentada do remorso converte a uns, por exemplo, São Pedro, e perde a outros, como Judas.

Independente disso, Deus Nosso Senhor criou as pessoas desiguais, deu a alguns o talento de pintar, a outros de fabricar pincéis. Podemos estabelecer uma hierarquia: pintar quadro, o principal; excogitar, misturar e compor tintas, em segundo lugar. Para imaginar cores e produzi-las é preciso ser um grande artista; muitas vezes é o próprio pintor quem o faz, como por exemplo, Fra Angélico. Mas pode-se conceber como especialidades separadas. Em terceiro lugar está quem fabrica os pincéis.

A complementaridade

Isso forma uma hierarquia à maneira de graus nobiliárquicos, numa linha que não é estritamente nobiliárquica, mas uma escala de valores. E esses valores estão em relação uns com os outros, como os vários graus de nobreza, por exemplo, do duque ao plebeu, na medida em que a arte vai cedendo lugar ao trabalho meramente manual. Mas é a plebe digna, simpática, necessária dentro dessa ordenação geral posta por Deus.

Então, esta ordenação, na qual habitualmente se quereria ver uma nota meramente política, é política apenas “per accidens”(1), pois se trata, fundamentalmente, da ordenação de todos os valores, inerente a qualquer atividade humana.

Menciono esta hierarquia para sustentar a tese da complementaridade. Cada grau existe em função do outro, o maior deve amar o menor, o menor precisa amar o maior, cada um deve procurar a perfeição dentro do seu próprio grau, e assim se complementarem todos. Esta é a harmonia querida por Deus; as coisas andam bem quando funcionam assim.

Apliquemos essas verdades à parábola inicial das pombas. Se um turista, vendo a pomba levantar voo, admira: “Como é bonito haver seres que voem. Como é belo voar!” Se ele sente, portanto, essa complementaridade admirativa, e pensa: “Nós compomos um todo, e neste todo há algo magnífico, superior e que transcende cada uma das partes, e me faz pensar em Deus”. Então, ele acertou e está na boa via.

Mas se, pelo contrário, ele diz: “Ladrão, você tem reações que eu não teria, e possibilidades que não tenho. O fato de você estar vivo me machuca e me lesa. Fico com a impressão de que você me roubou; vou acabar com você”. Neste caso, ele romperia a obra de Deus.

Donde o homem com espírito hierárquico, que se enleva com tudo de superior que ele vê, ama e se encanta, está voltado para Deus e dispondo sua alma para adorar o Criador, quando colocada durante toda a eternidade à vista da infinitude de Deus.

Pelo contrário, o indivíduo que, diante das qualidades dos outros, sente-se amarfanhado, espezinhado ou pelo menos indiferente, está se preparando para o antro de todas as revoltas, que é o Inferno.

Doutrina de São Tomás sobre a desigualdade

Essas considerações servem de esboço para nos lembrarmos, em duas palavras, da doutrina de São Tomás a respeito da desigualdade. Muito elevada e belamente, ele não considera a questão em termos tão concretos, mas abstratos. Diz o seguinte(2):

Deus, sendo infinitamente sábio, poderoso, bom, enfim, tendo todas as qualidades do Ser perfeito que é Ele, só poderia criar seres nos quais sua infinita perfeição reluzisse. Do contrário não Lhe dariam a devida glória.

Mas, se é assim, Deus não poderia criar um único ser. Porque, sendo Ele infinito, um homem ou um Anjo não O espelharia adequadamente. Seria mais ou menos como um espelho tão pequeno que só refletisse uma pequena parte do rosto; não dá a imagem do indivíduo por inteiro, e nem sequer de sua fisionomia.

Como afirma São Tomás, Deus não precisaria criar, mas tendo criado, era obrigado, por sua própria perfeição, a criar vários seres, e todos diferentes, para exprimir as diferentes perfeições d’Ele. Ora, acrescenta o Doutor Angélico, quando há diferença, não pode deixar de haver hierarquia.

A condição para a sociedade humana espelhar bem a Deus é ser constituída de desigualdades. Na medida em que amamos essas desigualdades e, portanto, amamos um superior pela superioridade que ele tem, estamos, no fundo, amando a Deus.

O espírito igualitário é frontalmente oposto a isso. E como ele odeia a Deus, odeia também todas as desigualdades. Porque cada desigualdade, estabelecendo uma relação entre superior e inferior, é uma imagem da relação entre Deus e o homem. Isso em qualquer terreno: superior de uma Ordem religiosa, general de um exército, diretor de um observatório ou dono de uma barbearia. O superior tem funções que lhe habilitam a olhar o seu inferior como Deus olharia uma criatura.

Cuidado, superiores! Deus, amando as criaturas, amou-as de tal maneira que Se encarnou por elas. E o Verbo de Deus Se fez carne e habitou entre nós. Mais ainda: padeceu tudo quanto sofreu para nos salvar! Assim o superior deve amar o inferior. A missão do superior, como modelo de abnegação, não é deliciosa, mas terrível!  Prestai atenção, ó superiores!

Feita esta ressalva, superior é superior, e para o inferior ele é a imagem de Deus.

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/1/1982)
Revista Dr Plinio 185 (Agosto de 2013)

 

 

1) Do latim: por acidente, por acaso.

2) Cf. Suma Teológica, I, q. 47, a. 1-2.

Comentários à oração composta por Santo Agostinho ao Divino Espírito Santo

Prece ao Espírito Santo

Ó Divino amor, ó vínculo sagrado que unis o Pai e o Filho, Espírito onipotente, fiel consolador dos aflitos, penetrai nos abismos profundos do meu coração e fazei aí brilhar vossa resplandecente luz. Derramai vosso doce orvalho sobre essa terra deserta, a fim de fazer cessar sua longa aridez. Enviai os dardos celestes de vosso amor até este santuário de minha alma, de modo que nela penetrando acendam chamas ardentes que consumam todas as minhas fraquezas, minhas negligências e meus langores.

Vinde, vinde doce Consolador das almas desoladas, refúgio no perigo e protetor na aflição desamparada.

Vinde, Vós que lavais as almas de suas sordícies, e que curais suas chagas.

Vinde, força dos fracos, apoio daqueles que caem.

Vinde, doutor dos humildes e vencedor dos orgulhosos.

Vinde, Pai dos órfãos, esperança dos pobres, tesouro dos que estão na indigência.

Vinde, estrela dos navegantes, porto seguro dos que náufragos.

Vinde, força dos vivos e salvação dos moribundos.

Vinde, ó Espírito santo, vinde e tende piedade de mim. Tornai minha alma simples, dócil e fiel, e condescendei com minha fraqueza. Condescendei com tanta bondade, que minha pequenez ache graça diante de vossa grandeza infinita, minha impotência diante de vossa força, minhas ofensas diante da multidão de vossas misericórdias. Amém.

(Fonte: prière au Saint-Esprit tirée des oeuvres du grand Docteur de l’Eglise d’Occident)

 

Eu queria, antes de ser feita leitura, dizer o seguinte: o voo que essa oração tem, ainda quando não se detenha em analisar cada palavra. Mas Santo Agostinho começa e já vai voando não sei para que altura.

A oração é lindíssima e há passagens que é preciso considerar.

“Fiel consolador dos aflitos”. – A consolação não é apenas trazer um sentimento de doçura e de ânimo que possa compensar a aflição que se está sofrendo. Mas é o fortificador. “Consolador” propriamente é dar força. Então “fiel consolador” é quem dá força sempre. Tonificador e fortificador contínuo dos aflitos: isso nos dá muito mais precisão do que nós devemos pedir. Não é apenas que tenhamos uma sensação de alento, de ânimo, de doçura, nos abrolhos de uma provação muito profunda, mas que tenhamos a força para resistir a essa provação. E não se trata de uma força de bravata, de espadachim, é uma força forte mesmo! É disso que se trata.

“…penetrai nos abismos profundos do meu coração e fazei aí brilhar vossa resplandecente luz”. – Aqui também é necessário considerar a palavra “coração”. Ela abrange a afetividade e ocupa aí não um lugar de contrabando, mas um lugar digno, porém é muito mais: são os abismos da alma onde se desenrola a Revolução tendencial; é – digamos assim – um certo “subconsciente da alma”. Então pede que esta força do Divino Espírito Santo penetre aí e que dê à pessoa o que é próprio à força. É um lugar misterioso da alma em que há trevas: é difícil perceber o que lá dentro se passa.

Outro elemento a se observar: não pede tanto uma palavra quanto uma luz. Os senhores vêem o alcance da oração.

“Derramai vosso doce orvalho sobre essa terra deserta, a fim de fazer cessar sua longa aridez.” – Ele supõe que as profundezas desta alma estejam na aridez. É, portanto, uma alma que está atormentada pela provação da aridez. O que pede então para isso? “Vosso doce orvalho sobre essa terra deserta…” Os senhores estão vendo que aí está mais próximo da palavra “consolação” no sentido comum do termo, ou seja, é um bálsamo, uma suavidade, um orvalho, algo desse gênero.

“…vosso doce orvalho sobre essa terra deserta.” – Ele não se refere a uma terra seca, mas é uma terra onde não há nada, uma terra vazia. E é nesse vazio da alma que deve vir um doce orvalho. São esses vazios interiores que se tem e que se traduzem do seguinte modo: cada um de nós – isso constitui até uma obrigação de polidez – no trato, causa a impressão de bem-estar, de satisfação, etc. Porém há uma certa região da alma onde, por efeito do pecado original, a pessoa sente a saciedade de si mesmo e ao mesmo tempo uma espécie de insuficiência. Não se basta a si próprio, sente-se uma solidão interior que constitui um tormento. E querer fazer cessar esse tormento é uma das molas do instinto de sociabilidade. A pessoa fica com a ideia de que a companhia de A, B ou C pode estancar esse sentimento de carência e não há maior engano, porque ninguém pode fazê-lo a não ser o Divino Espírito Santo. E qualquer outra coisa que não seja isso, é uma ilusão e uma estupidez que não tem nome.

“Enviai os dardos celestes de vosso amor até este santuário de minha alma, de modo que nela penetrando acendam chamas ardentes que consumam todas as minhas fraquezas, minhas negligências e meus langores.” – Os senhores estão vendo que ele toma esta “terra deserta” e a trata ao mesmo tempo de “santuário”, porque há uma continuidade na descrição do estado de alma da pessoa.

Diz: “Enviai os dardos celestes de vosso amor até este santuário de minha alma“ – Esta terra deserta é ao mesmo tempo um santuário. Mas um santuário que ele figura abandonado, que compara a uma terra deserta. É um santuário que está no escuro. Como isso descreve bem certos estados de alma, certas crises espirituais, em que o interior da alma é ao mesmo tempo uma terra deserta e um santuário no escuro.

Não sei se lhes é tão claro quanto me parece a ideia do santuário no escuro que precisa ser penetrado pelas flechas vindas do Céu, que só elas podem penetrar até lá. Vê-se que ele não espera de outrem esta solução, nem este arranjo. São as flechadas, os dardos vindos do Céu que podem penetrar nesta terra deserta e fazer ali algo que só Deus pode realizar.

“Enviai os dardos celestes de vosso amor até este santuário de minha alma”. – O amor sobrenatural a Deus é algo que de Deus parte, que Ele mesmo dá. E que quando não dá, não vem de dentro da alma. É um dom dEle. E é pela oração que  devemos obter esse dom. E devemos pedi-lo por meio de Nossa Senhora, a Medianeira universal de todas as graças. E quando nossa alma está como terra deserta, ou santuário na obscuridão, é este o momento exato de pedir isto que vem do Céu, e que se acende porque só Deus pode iluminar isto. Só Deus pode acender, só Deus pode reacender e dEle é que tudo isso procede, a rogos de Nossa Senhora. Como é útil nós nos lembrarmos disso na nossa vida espiritual!

“…de modo que nela penetrando acendam chamas ardentes que consumam todas as minhas fraquezas, minhas negligências e meus langores”. – Então, é nesta terra deserta, nas sombras tenebrosas desse santuário que está no escuro, que há “faiblesse, négligence et langueur” (fraquezas, negligências e langores). A enumeração é muito saborosa, porque não menciona perfídias, maldades, intenções atrozes, crueldades. Ele toma uma certa família de defeitos e menciona. Esses defeitos são: as fraquezas; negligências, que são um fruto da fraqueza: quando o indivíduo não resiste à fraqueza, o fruto normal é a negligência; langores… É quase a causa e o efeito. Os langores vêm das fraquezas, estas e os langores produzem as negligências. É, portanto, a alma mole.

Isso é um estado de alma de um número incontável de fiéis de nossos dias diante da situação da Igreja Católica. E se os bons da causa da Contra-Revolução são tão isolados e tão abandonados, não o seriam se simplesmente essas almas não fossem nem negligentes, nem fracas, nem langorosas. Aqui Santo Agostinho tem em vista – por uma razão que não sei qual seja – uma linha especial de almas. Não são os bandidos, não são os que conspiram em guerras, os que querem morticínios, não é disso que se trata. Ele tem aqui especialmente em consideração os “santuários abandonados”, esse gênero de fraqueza e de moleza…

“Vinde, vinde doce Consolador das almas desoladas, refúgio no perigo e protetor na aflição desamparada”. – Considerem bem aqui a ideia de uma doçura forte, ou de uma força doce. É muito próprio ao sabor das coisas celestes nos fazerem sentir a bondade, a doçura de Deus, ao mesmo tempo que ipso facto comunicam uma força muito grande. Por exemplo, quando somos objeto de uma graça que nos fale da doçura do Sagrado Coração de Jesus ou do Imaculado Coração de Maria, e experimentamos tal doçura. Sem percebermos saímos mais resistentes às tentações, mais fortes no perigo, mais perseverantes na Fé. Quer dizer, uma doçura que comunica força! Não há, portanto, uma dicotomia entre força de um lado e doçura de outro. A doçura comunica força, a força comunica doçura. É  uma coisa só.

“…doce Consolador das almas desoladas”. – A desolação não é uma tristeza qualquer. É uma espécie de auge, de píncaro de tristeza. Na linguagem comum, quando se diz “estou desolado”, não se quer dizer apenas que estou muito triste. Mas “estou tristíssimo, em mim não há quase senão tristeza”. Não exclui naturalmente a fórmula de cortesia: “Estou desolado, estou…” Não exclui isso. Mas aí a palavra fica balofa, como tantas coisas que a cortesia neo-pagã torna balofas. Entretanto o sentido próprio da desolação é esse. Nós podemos falar da desolação de Nosso Senhor no Horto das Oliveiras, pois foi uma desolação.

“…refúgio nos perigos”. Quais são os perigos? Os perigos que ele tem em vista não são principalmente os do corpo, mas os que afetam a alma. A salvação da alma é continuamente posta em perigo por toda espécie de circunstâncias. O refúgio nesse perigo é o Divino Espírito Santo, com suas graças, sua ação nas profundidades de nossa alma, etc. E com isso eu gostaria – se me fosse possível – comunicar às almas uma certa segurança. As pessoas sentindo dentro de si o enigmático desse santuário no escuro e desta terra árida, ficam achando que têm dentro delas problemas que não vão vencer, e se põem meio desanimadas de continuar no caminho da salvação. Se se tiver em vista que o Divino Espírito Santo é o Esposo de Nossa Senhora, e que não recusa coisa nenhuma a Ela, as pessoas terão ânimo, porque para tudo isso o Espírito Santo é o remédio. Podem pedir as graças dEle e obterão.

“…Protetor na aflição desamparada” (détresse). – “Détresse” é uma palavra muito bonita. “Détresse” é uma aflição desamparada, um apuro muito carregado. Quantas situações de vida espiritual há assim? A pessoa está na “détresse”, pede ao Espírito Santo e contra o curso normal dos seus pensamentos, a concatenação normal das suas idéias, a pessoa sai da “détresse”. É uma impressão qualquer, uma coisa qualquer, que toca a alma e muda. É a ação do Divino Espírito Santo…

“Vinde, Vós que lavais as almas de suas sordícies, e que curais suas chagas”. – A construção da frase, se está bem traduzida do latim, é a seguinte: Vós sois quem por excelência lava as almas. Quer dizer, “Vós que fazeis isto”, inclina o espírito a admitir: “Vós que sois o único a fazer isto”. É para onde propende o espírito.

Aqui, mais uma vez, é um alento cheio de doçura. Porque as pessoas muitas vezes consideram o interior de suas almas e notam-no tão cheio de chagas purulentas, tão cheias de sordícies, que a pessoa desanima. Mas é claro que vai desanimar, porque ela não tem força para isso! É preciso uma força do Céu que lhe dê ânimo, que lhe dê meios para isto, ou que opere isto, por vezes sem que ela tenha que fazer outra coisa senão dizer “sim”. Entra aquela luz e cura a alma…

Mas por que, na nossa vida espiritual, não temos toda a esperança, todo o ardor que este modo de ver a ação do Espírito Santo comunica? É ou não verdade que essa consideração daria às nossas almas outro élan para subir, para continuar para frente do que habitualmente nós temos?

“Vinde, força dos fracos, apoio daqueles que caem”. – É tão claro que não tenho nada a dizer.

“Vinde, doutor dos humildes e vencedor dos orgulhosos.” – Isso é muito bonito! O doutor que esclarece, que ensina aos que são humildes, antes de tudo em face dEle. E que, portanto, não são orgulhosos que imaginam que sua cabeça contém a solução para todos os problemas, mas sabem que é o Divino Espírito Santo que possui a solução para todos os problemas. E que é preciso rezar, é preciso pedir, é preciso implorar, mas implorar muitas vezes e com humildade. Eu não resolvo, eu Plinio, porque não sou capaz de resolver! Mas se eu rezar, também não obtenho. Se eu pedir por meio de Nossa Senhora, Ela que é Mãe de misericórdia reza por mim e Ela obtém. Mas aí é fácil, é seguro e é rápido que obterei. Isso me mantém alegre e de pé no meio das aflições que todo homem tem no meio desse vale de lágrimas. Eu tenho receio de estar dizendo banalidades…

A oração tem uma concisão, uma substância extraordinária!

“Vinde, Pai dos órfãos, esperança dos pobres, tesouro dos que estão na indigência”. – Aqui também se deve considerar o lado da vida espiritual, que é sempre o que o Santo tem em vista antes de tudo: a santificação de quem vai rezar, que vai usar a fórmula.

“…Pai dos órfãos…” – Quanto órfão existe em matéria de vida espiritual! (…) Como o homem ao longo da viagem nesta terra é um órfão! Ainda que ele atinja os 81 anos, é um órfão! Então Ele é Pai dos homens que sentem a terrível orfandade desta vida. Esta vida é uma orfandade.

“…Pai dos órfãos, esperança dos pobres…” – É aquele que não tem nada para esperar, e que internamente é um pobre, quer dizer, não tem títulos para pedir, não tem direito quase de pedir, vive da misericórdia. É dele que o Divino Espírito Santo é Pai cheio de bondade, de acessibilidade.

“…tesouro dos que estão na indigência” – Não temos diante de Deus méritos nenhum para alegar. Estamos na indigência. Mas o Divino Espírito Santo é o nosso tesouro. Nós pedimos e Ele dá.

Estão vendo quanta substância contém essa oração e quão magnífica ela é?!

“Vinde, estrela dos navegantes, porto seguro dos que náufragos”. – São dois conceitos: um é a estrela dos navegantes. O que lembra a invocação a Nossa Senhora: Ave Maris Stella. Se Ela é a Estrela do Mar, Ela é a Estrela dos que navegam, evidentemente. Mas, então, por que se diz do Espírito Santo a mesma coisa que d’Ela se diz? Porque o que se diz da Esposa, se diz também do Esposo. E Ela é a Estrela dos navegantes porque Ela é a Esposa mística daquele que é a Estrela dos navegantes por excelência, que é o Divino Espírito Santo.

Ou seja, para todos que vão andando pela vida, com os seus riscos, com seus problemas, etc., a Estrela é o Divino Espírito Santo. Ele fala primeiro dos navegantes e depois dos náufragos. O náufrago… pode se imaginar o navio que se destroçou. O sujeito se agarra a um destroço, a uma “épave”, e vai por onde as águas tocam. De repente, as correntes marítimas o levam para dentro de um porto. Esse porto é o Divino Espírito Santo. Quer dizer, os vagalhões da alma, das paixões, levam o homem de um lado para outro e ele está entregue às apetências mais desregradas, aos orgulhos mais desordenados, às coisas mais sem remédio. Para ele não há mais porto. Não há mais!… Ou seja, não haveria se não fosse a oração de Nossa Senhora ao Divino Espírito Santo, que é o porto seguro dos que naufragaram. Entrou lá, está tudo resolvido.

“Vinde, força dos vivos e salvação dos moribundos”. – Vejam que bonita alternativa: força dos vivos e salvação dos que moribundos! Quase não se tem o que dizer… O homem está vivo, a vida é uma luta, ele precisa ter força. Mas ao morrer, precisa de uma graça autônoma de todas as que recebeu na vida: é a graça da boa morte. E esta salvação a pessoa tem se rezar ao Divino Espírito Santo.

Eu toda a vida considerei muito pungente aquela cerimônia que havia nas arenas antes de começar o martírio. Havia jogo de gladiadores, depois imolavam os mártires. E os gladiadores entravam em ordem, paravam diante da tribuna do Imperador, e diziam: “Saudação a ti, ó César, os que vão morrer te saúdam! – Ave Caesar, morituri te salutant!” Quer dizer, uma coisa pungente. Aquele César – em geral um soldadão tosco, boçal, semi-bêbado, sensual, ordinário, venal, que tinha subido comprando seu cargo, refestelado na segurança da tribuna imperial – vê chegar junto a ele os que vêm em marcha, fortes, jovens, com espadas, com tridentes, com redes, com lanças, etc., para começarem o combate. E sabe que vão lutar apenas para divertir aquele pândego que está ali em cima! Situação triste na vida, mas é isto: são os “morituri” (os que vão morrer). Todo homem, quando está na iminência da morte, pode dizer não a um César imundo, mas a Deus infinitamente perfeito: “Ave, ó Deus, o que vai morrer te saúda!” É a última saudação antes da morte! Pois bem, para que essa saudação seja perfeita, é necessário o auxílio do Divino Espírito Santo, sempre a rogos de Maria, sem A qual nós não conseguimos nada.

“Vinde, ó Espírito santo, vinde e tende piedade de mim. Tornai minha alma simples, dócil e fiel, e condescendei com minha fraqueza”. – É uma frase lindíssima, que a bem dizer perde sendo comentada, porque há uma beleza que qualquer comentário deslustra. É preciso tomar como uma fonte donde nasce a água. Não vale a pena captar a água; deixa brotar da fonte assim aos borbulhões. Assim está Santo Agostinho…

Enfim, para meter a camisa de força do comentário de alto a baixo do texto, vem então o seguinte: “Vinde, ó Espírito santo, vinde”. – Os senhores vejam a ênfase: “vinde, vinde!  E tende piedade de mim”. Aquele necessitado de piedade implora com insistência, pede duas vezes: “Vinde, vinde!” E agora vem a enumeração do que quer da piedade. O ter misericórdia dele, para seu caso concreto, o que significa? Então vem: “Tornai minha alma simples, dócil e fiel”. As três palavras devem ser consideradas juntas, pois constituem uma espécie de tríptico. Simples é a alma que não tem requebros, vaidades, complicações. O contrário, portanto, de quem não quer se ver a si mesmo direito, que não quer olhar-se de frente, que não é “pão, pão, queijo, queijo”. Nosso Senhor disse: “Seja vossa linguagem sim, sim, não, não”. “Seja o vosso pensar interior sim, sim, não, não. Tenha a coragem de ver a verdade e o erro, mas também no que diz respeito a vós! Não é só o mundo objetivo, externo a vós, mas também no que diz respeito a vós interiormente. Tende essa coragem!”

Esta é uma alma simples. A alma simples é dócil. Por que? Quanto mais uma alma é complicada em obedecer, tanto mais a essa alma falta simplicidade. Não sei se os senhores conhecem uma coisa que não sei se se usa hoje, mas antigamente, quando eu tinha tempo de prestar atenção nessas coisas, eu via os empregados às vezes passarem no chão uma espécie de carapinha de palha de aço para limparem o lugar, nem sei bem para o que era. Depois enceravam. Acho que era para tirar sujeira impregnada no chão.

Há almas complicadas como aquelas palha de aço! Engruvinhada uma coisa na outra… Então se propõe uma coisa: “Pode, mas se der tal coisa, se fizer assim, e se acontecer de outro jeito, e se der uma carambola assim… então eu estou de acordo”. São as almas às quais faltam docilidade. Complicadas no obedecer. Pelo contrário, as almas simples recebem um convite do Espírito Santo: “Pois não”. Vão e fazem!… Nós poderíamos examinar um pouco: somos parecidos com a palha de aço ou retos como a lâmina de uma espada? É uma pergunta que se poderia fazer.

Dócil e fiel. A fidelidade é muito difícil para a palha de aço; ela é muito mais fácil para o gládio. Alma-gládio e alma-palha de aço: não poderíamos fazer disso uma classificação para as almas? E se fôssemos nos analisar… Os senhores sabem o que acontece? A palha de aço começaria a ferver: “Não, é assim, mas é preciso considerar tal coisa, eu tenho tal atenuante! É verdade que tenho tal agravante… Eu vejo que você acha isso de mim e por isso é meu inimigo, você vê essa agravante! – como se ver a verdade em alguém fosse ser inimigo de alguém! – e também tem tal lado, tal, tal, tal! Em todo caso, você também tem tal coisa!” Eu não estou em jogo. Está em jogo você, meu caro! Vamos conversar… Isso é a palha de aço! Quanto há, por vezes, palha de aço em nossas almas.

Alguém poderia, enquanto estou falando, responder: “Mas, Dr. Plinio, não tem saída, eu sou palha de aço mesmo!…” Meu filho, não diga isso… Você ajoelhe, reze a Nossa Senhora com confiança para que Ela faça vir sobre si o Divino Espírito Santo, e as coisas mudem.

 

Mater mea, fiducia mea (Minha Mãe, minha confiança)

“…e condescendei com minha fraqueza…” – Eu não conheço a etimologia da palavra “condescendência”. Mas sou tentado a achar, pelo sentido da palavra mais do que pela composição dela, que é “descer com”: “Tende a bondade de descer dentro de mim até o fundo, mas com bondade, em espírito de perdão, uma tendência a curar-me, a sarar as minhas chagas, e não a castigar-me. Descei até esse fundo culpado de minha alma, descei até lá, mas descei como Pai, como médico, como curador. Tende pena de mim, e sarai as minhas chagas!”. É uma oração que se pode fazer, que se deve fazer.

E condescendei ao quê? À fraqueza. Mais uma vez é a preocupação com os lânguidos, etc. “Eu sou fraco, deveria ter energia e não tenho. Vejo outros que têm energia, e me pergunto: como é que vou sair desse buraco? Enérgico eu não sou…” Reze, meu filho! Reze com coragem, reze com ânimo! Você deixará de ser fraco.

“Condescendei com tanta bondade, que minha pequenez ache graça diante de vossa grandeza infinita”. – Um poca, por exemplo, que só gosta de conversar sobre coisinhas, só trata de assuntinhos sem importância, que não tem alma grande para nada… Ele vê, por exemplo, uma reunião onde todos os presentes estão preocupados com grandes temas, e pensa: “Eu estou achando isso cacete. Eu gosto tanto de tratar de coisinhas… Eu tenho que resolver a que horas amanhã vou levar meus sapatos para consertar. E gosto de pensar nisso. Estão aí estas águias voando alto e eu sou tão chulo, tão droga… Eu tenho vontade de me esconder até”… Não faça isso. Faça o contrário. Mostre-se! Mas mostre-se ao olhar de Deus, o Qual, aliás, vê tudo… quer eu me mostre, quer eu não me mostre. Ele vê tudo… vê também se estou querendo me esconder como Adão e Eva depois do pecado. Então é melhor eu dizer: “Vede, Senhor, eu sou tão zero, tão poca, tão nada! Mas Vós podeis dar-me aquele nível para o qual Vós me criastes. Vinde e agi!”

“…que minha pequenez ache graça diante de vossa grandeza infinita”. – O que significa “encontrar graça”? É Deus considerar do alto de Sua onipotência a minha impotência. E considerando exatamente a minha impotência, Ele vê nisso uma razão para sorrir e me tratar com bondade e me suspender, dar-me um poder que eu não tenho. Esse é o sentido dessa oração.

… minha impotência diante de vossa força, minhas ofensas diante da multidão de vossas misericórdias”. – Tal é a multidão de vossa misericórdia, que encontro – para qualquer espécie de culpa que tenha – a vossa bondade que vem de encontro a mim.

Isso seria o sentido da oração! A qual recomendo aos senhores que guardem. Eu peço a um dos senhores para dar ao Sr. Fernando a fim de guardar para mim, porque no meu bolso vai se transformar num “chiffon” a qualquer momento. E que a rezem de vez em quando, tendo um movimento para tal, pois seria sumamente conveniente.

Plinio Corrêa de Oliveira (Domingo, 20 de maio de 1990)

Uma verdadeira procura do Absoluto

No colóquio de Óstia, entre Santa Mônica e Santo Agostinho, vemos a beleza de dois Santos conversarem sobre como seria a vida eterna dos bem-aventurados, e a alegria daquela mãe santa em ver o filho, outrora perdido, incendiado de desejos de contemplar o Céu.

É uma verdadeira procura do Absoluto. Depois de terem considerado todas as coisas materiais, começaram a contemplar as espirituais e a alma, como elemento para se ter ideia da beleza da perfeição de Deus. Por fim, chegaram à conclusão de que, no ápice de tudo, figura a Sabedoria eterna e incriada.

Esses dois Santos mantêm uma conversa que é uma oração, a qual vai subindo de ponto em ponto até chegar, num êxtase, ao seu ápice. Tudo isso com tanta simplicidade, junto à janela de um quarto dos fundos de uma hospedaria de Óstia, dando para um jardim. Uma verdadeira maravilha!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 31/8/1965)

Santo Agostinho

Quando lemos as “As Confissões” de Santo Agostinho, facilmente aquilatamos a profundidade de sua alma e a retidão de seu espírito de convertido. Podemos “ouvir” nas linhas o latejar de seu coração arrependido pelos pecados de sua vida passada, e nos é dado admirar, semeado por aquelas páginas imortais, o talento maravilhoso de um homem chamado por Deus a enriquecer a Igreja com altíssimos ensinamentos e explicitações.

O belo e vigoroso alçar de uma águia aos ares, atraída pelos fulgores do sol, nada é em comparação com o voo luminosíssimo do pensamento de Santo Agostinho. Ele se eleva no firmamento da doutrina católica com um ímpeto que se diria quase inimaginável numa alma humana.

Pois esse foi o grande Bispo de Hipona, uma das maiores intelectualidades que houve na História, um gigante da Fé, da sabedoria e da santidade, para todos os séculos até o fim do mundo..

Plinio Corrêa de Oliveira

Senso do maravilhoso: padrão para o conhecimento da verdade – I

Desde criança, Dr. Plinio tinha encantos pela Europa; e, sendo moço, quando conheceu a Baía de Guanabara ficou maravilhado e se perguntava se poderia haver algo mais belo. Possuía ele em sua alma um padrão de maravilhoso, pelo qual avaliava todas as coisas.

 

Toda criança tem uma tendência para o maravilhoso. De maneira tal que, colocando vários brinquedos diante de uma criança, normalmente ela se inclina para o mais colorido, que chama mais a atenção e dá mais a ideia do maravilhoso. E o espírito dela também tende a fixar-se de preferência nas coisas maravilhosas que vê.

O mais alto padrão de civilização a que chegou o mundo

Lembro-me de mim mesmo, em pequeno, em várias circunstâncias, vendo coisas maravilhosas e fixando minha atenção. Isso ia preparando o meu espírito para dar o primado da preferência e da atenção para certas coisas lindíssimas, mais do que outras. Com o fundo da ideia de que era possível haver uma ordem de coisas muito mais bonita do que aquela que eu tinha diante dos meus olhos. E, por causa disso, eu deveria tender a conhecer e admirar essas coisas mais bonitas.

Então, desde muito pequeno, tive admiração pela Europa. Porque é o mais alto padrão de civilização a que tenha chegado o Ocidente, ou o mundo. E quando eu observava ilustrações da Europa em revistas, lembrava-me de coisas que tinha visto em menino e dizia: “Tudo isso é de todo teto superior ao que eu tenho aqui. Portanto deve haver um mundo assim, e a alma humana foi feita para considerá-lo, estimá-lo, amá-lo, respeitá-lo. E, não podendo estar lá, pode-se ver em fotografias — é a única missão verdadeira da fotografia! — as maravilhas que não se tem, e se encantando com elas!”

E em certas ocasiões eu pensava: “Isto é maravilhoso!” E, levado por esse desejo do maravilhoso, cogitava a respeito de qualquer coisa: “Poderia ser ainda mais maravilhosa! Deus não é obrigado a criar o mundo mais bonito possível para os homens, nem há um mais bonito possível para o Altíssimo, porque, sendo Deus infinito, Ele pode sempre fazer o mais belo, que não tem limite. Por mais maravilhoso que Ele faça, nunca tocará n’Ele. Não há um limite do máximo. Vai até onde minha imaginação puder ir, até onde a sabedoria e a bondade do Criador quiserem que vá”.

Um episódio tão conhecido entre nós: eu, em menino, querendo comprar Versailles com uma libra esterlina… Isso porque, na minha inteligência infantil, aquilo rompia todos os padrões de maravilhoso que eu tinha concebido até então. Lembro-me de vir-me à mente a seguinte ideia: “Nunca imaginei que pudesse haver uma coisa tão maravilhosa!”

Assistindo a um filme sobre os funerais de Francisco José

Mais tarde, fiquei encantado assistindo a uma fita de cinema que representava os funerais do Imperador Francisco José(1) — executados com precisão, uma coisa estupenda! —, e a Fräulein(2), que era uma senhora da nobreza e conhecia bem os personagens, ia indicando: “Agora o funeral vai passar em frente à igreja tal, e é a hora do Conde tal fazer uma saudação para a Duquesa tal…” Acontecia exatamente como ela dizia, e o funeral continuava.

Aquilo me encantava! Por quê? Por causa de uma medida vaga de perfeição em matéria de funeral, muito incompleta, que eu concebera vendo os enterros, tão mais modestos, em São Paulo. E de repente me esbarrar com aquela cerimônia, que ultrapassava tudo quanto eu tinha imaginado, o meu senso do maravilhoso se abria e se escancarava! Daí uma espécie de respeito e entusiasmo por aquelas coisas, que a crítica da idade madura não fez senão confirmar.

Baía de Guanabara

Indo em moço para o Rio de Janeiro, analisei várias vezes as três enseadas clássicas: Flamengo, Botafogo, Copacabana. Depois um trecho de mar mais adiante, que creio chamar-se Leblon — uma maravilha também!  Em todas, perguntei-me, subconscientemente, se era possível imaginar uma coisa mais bela. E cheguei à conclusão de que, mar por mar, eu não conseguiria imaginar mais bonito. Não quero dizer que não haja, mas minha inteligência não chegou a imaginar algo mais belo. E porque não chegou, vem meu assentimento inteiro de que aquela Baía é realmente uma maravilha.

De onde vinha minha inteira adesão à Baía de Guanabara? Do fato de haver uma coincidência entre o que eu via e aquilo que, mais ou menos subconscientemente, representava a ideia que eu podia ter do maravilhoso de uma baía.

Padrão de maravilhoso a respeito de todas as coisas

Uma das perfeições do espírito humano é ter uma noção do que seria o ideal de todos os seres. Quer dizer, um conceito de maravilhoso a respeito de todas as coisas, e o hábito de confrontá-las com esse padrão maravilhoso que se deveria formar a respeito de tudo quanto se vê.

Quando se diz, habitualmente, que alguém conheceu uma coisa inteiramente, afirma-se que a pessoa aprofundou-se naquele ponto. Ora, a expressão é verdadeira, porque em algum sentido se aprofunda; mas em outro sentido deve-se chegar até o píncaro. E a cognição inteira de algo vem da junção do mais profundo com o mais elevado, o mais admirável daquilo.

Portanto, nós entendemos algo não apenas quando percebemos suas qualidades e defeitos, mas quando temos também um padrão mais ou menos instintivo do maravilhoso correspondente àquilo.

Para que as almas almejem grandes ideais, grandes realizações, elas precisam habituar-se a terem uma plataforma em função da qual calculem as maravilhas das coisas. E saibam, portanto, aquilatar, avaliá-las pelos seus mais altos aspectos.

Quando li os comentários de Cornélio a Lápide(3) sobre o Céu empíreo, tive uma explosão de entusiasmo: “Chegará uma ocasião em que conhecerei esse maravilhoso e me deleitarei com ele. E enquanto minha alma estiver vendo Deus face a face, que é a maravilha das maravilhas, meu corpo estará ao mesmo tempo — porque, com minha alma, forma uma só pessoa — em contato com maravilhas físicas, que facilitarão o meu corpo a acompanhar o “élan” de minha alma rumo a Deus!”  v

 

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/8/1988)
Revista Dr Plinio 185 (Agosto de 2013)

 

 

1) Imperador da Áustria-Hungria, falecido em 1916.

2) Do alemão: senhorita. Aqui Dr. Plinio refere-se à sua preceptora alemã, Srta. Mathilde Heldmann.

3) Jesuíta e exegeta flamengo (* 1567 – † 1637).

Santo Agostinho, farol de sabedoria e de amor a Deus

De pecador a modelo de perfeição espiritual, Santo Agostinho abraçou a Fé católica com fervor e zelo invulgares, defendendo-a e a enriquecendo com a extraordinária inteligência que lhe foi concedida por Deus. Algumas facetas dessa grande figura da Igreja reluzem aos nossos olhos, comentadas por Dr. Plinio.

Considerado um dos mais luminosos teólogos da Igreja em todos os tempos, Santo Agostinho legou à História não apenas seus tratados espirituais, como também a narrativa da própria conversão, a descrição de suas lutas interiores e de seu triunfo sobre o pecado. “Confissões”, a célebre obra do Bispo de Hipona, tem produzido inúmeros frutos de emenda de vida, de retomada do caminho da virtude, por parte dos que se deixaram tocar pelo exemplo desse herói da Fé.

Antes de comentarmos uma eloquente passagem dessa autobiografia, convém tomarmos conhecimento de alguns breves contornos do perfil de Santo Agostinho.

Retórico e filósofo ilustre

“Pai por excelência de todos os Padres da Igreja, Doutor da graça, monge, pastor, teólogo, autor de uma obra monumental e escritor de gênio, Agostinho permanece o símbolo vivo do convertido, não cessando de influenciar o espírito e o imaginário da Europa.

“Esse romano da África, de origem berbere, nascido no ano de 354, em Tagasta, na atual Argélia, alcançou grande renome por seu extraordinário domínio das artes liberais, e foi considerado por seus contemporâneos como o mais ilustre dos retóricos e o mais autorizado dos filósofos. Adepto de Cícero, o jovem Agostinho vai para Cartago, e depois para Roma e Milão, que era então a capital do Império. As suas peregrinações espirituais o levaram a aderir ao maniqueísmo, mas é o encontro com o cristianismo que vai revolucionar a sua existência. Aos trinta e dois anos, por insistência de sua mãe, Santa Mônica, e de Santo Ambrósio, e após uma revelação sobrenatural nos jardins da sua casa, Agostinho pede que seja batizado.

“Diz uma tradição que, terminada a cerimônia do Batismo, Santo Ambrósio exclamou: ‘Te Deum laudamus!’, e que Santo Agostinho acrescentou: ‘Te Dominum confittemur!’; e assim, alternando suas frases um e outro, entre os dois improvisaram naquela ocasião os conceitos e palavras que compõem o cântico litúrgico do ‘Te Deum’.

Incansável adversário da heresia

“Depois de um breve retiro em Cassiciaco, Agostinho volta à sua terra natal, torna-se monge e consagra três anos à oração e ao estudo.

“Em 391, O Bispo Valério de Hipona (atual Annaba) chama-o para junto de si. Agostinho suceder-lhe-á em 395 nessa importante sede episcopal. Começa então para esse pregador e catequista infatigável uma era de grandes controvérsias — contra os donatistas, em primeiro lugar, que negam aos ‘lapsi’ (apóstatas) o perdão da Igreja; em seguida contra os pelagianos, que atribuem exclusivamente ao homem o mérito da salvação.

“O Bispo de Hipona descobre em si uma vocação de lutador contra as heresias, capaz não só de inscrever a sua reflexão nas problemáticas do seu tempo, como também de edificar uma autêntica Teologia perene. No fim da sua vida, já em plena invasão dos Vândalos, enfrentou um último desvio à Fé: o dos homeanos, que negam o dogma cristológico.

A tristeza, companheira no fim da vida

“Por volta do ano 430, os bárbaros devastam totalmente o norte da África. Ao atingirem Hipona, os invasores a cercaram e lhe impuseram um rigoroso assédio. Este acontecimento agravou a já amarga e triste ancianidade de Santo Agostinho, que sofreu mais do que todos, e se alimentou de dia e de noite com a torrente de lágrimas que brotavam de seus olhos ao ver como uns caíam mortos e outros fugiam, e ao considerar que as igrejas ficavam viúvas de seus sacerdotes, e as populações arrasadas se transformavam em desertos.

“Como os horrores continuassem, reuniu seus monges e lhes disse: ‘Pedi ao Senhor que nos tire desta angustiosa situação, ou nos dê forças para suportá-la, ou me leve desta vida e me livre de presenciar tantas calamidades’.

“O Senhor o ouviu e lhe concedeu a terceira dessas petições. Meses após o início do cerco da cidade, Santo Agostinho caiu enfermo. Compreendendo que o dia de sua morte se aproximava, mandou que escrevessem os Sete Salmos Penitenciais em grandes cartazes e os pregassem a uma das paredes de sua cela, de maneira a poder lê-los e rezá-los a partir do leito em que se achava prostrado. Assim foi feito, e o Santo, sempre com imensa emoção de alma, recitava constantemente ditas orações.

“Pouco antes de sua morte, Santo Agostinho teve essas interessantes palavras: ‘Ninguém, por muito virtuosamente que tenha vivido, deve sair deste mundo sem fazer previamente confissão de seus pecados e sem receber a Eucaristia’.

“Até o último momento de sua vida conservou perfeito estado de suas faculdades, seus membros e sua vista, de maneira que, com completa lucidez mental, no instante supremo, rodeado de seus monges que o assistiam com suas preces, aos 77 anos de idade e 40 de episcopado entregou seu espírito a Deus.

Apaixonado investigador da verdade

“Luminosíssimo farol de sabedoria, baluarte da ortodoxia, fortaleza inexpugnável da Fé, sobressaindo em talento e ciência entre os demais doutores da Igreja, Agostinho foi homem eminente, tanto pelos exemplos de ­suas virtudes, quanto pela riqueza de sua doutrina.

“A obra que deixou é imensa. Cento e treze Tratados, entre os quais se destacam o ‘De Trinitate’ e ‘A Cidade de Deus’ que inaugura a teologia da História; 218 epístolas, mais de 500 ‘Sermões’, ‘Diálogos’ e ‘Comentários’ bíblicos, e, por fim, essa obra singular que são as ‘Confissões’, a primeira autobiografia de todos os tempos.

“A sua teologia, feita de experiência e permanentemente existencial, eleva-se até a contemplação pura, sem ignorar a psicologia, a historicidade, a realidade humana. Da iluminação fulgurante da sua juventude ao final da sua velhice, Santo Agostinho nunca deixou de meditar sobre o dom feito por Deus ao homem, e que faz dele um investigador apaixonado da verdade.”

“Dai-me o que me ordenais; ordenai-me o que quiserdes!”

Vemos, portanto, como Santo Agostinho se destacou não apenas por suas insignes virtudes, mas também pela luminosa sabedoria que Deus lhe concedeu, a fim de a utilizar para o bem das almas e da doutrina católica.

Em seu famoso livro autobiográfico — “Confissões” — tem ele esta linda passagem sobre a qual gostaria de tecer alguns breves comentários:

“Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e sempre nova. Tarde Vos amei! Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-Vos! Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava convosco! Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós. Porém, chamaste-me com uma voz tão forte que rompestes a minha surdez. Brilhastes, cintilastes e logo afugentastes a minha cegueira! Exalastes perfume: respirei-o suspirando por Vós. Saboreei-Vos, e agora tenho sede e fome de Vós. Tocastes-me e ardi no desejo da vossa paz. Só na grandeza da vossa misericórdia coloca toda a minha esperança. Dai-me o que me ordenais, e ordenai-me o que quiserdes.

“Ora, afirmou um sábio: ‘É já um efeito da inteligência saber que ninguém pode ser casto sem o dom de Deus’. Pela continência, reunimo-nos e nos reduzimos à unidade, da qual nos afastamos ao nos derramarmos por inumeráveis criaturas. Pouco Vos ama aquele que ama, ao mesmo tempo, outra criatura sem ser por vossa causa. Ó amor que sempre ardeis e nunca Vos extinguis! Ó caridade, ó meu Deus, inflamai-me! Ordenais-me a continência. Dai-me o que me ordenais e ordenai-me o que quiserdes!”

Trata-se de um texto tão elevado e nobre que sua intelecção pode parecer, à primeira vista, um pouco árdua.

Belos jogos de palavras

Santo Agostinho faz alguns jogos de palavras, muito apreciados pelos antigos. Não sei como soam e que sabor têm na audição e no paladar espiritual das gerações posteriores à minha, mas a meu ver são lindíssimos.

Como se sabe, Santo Agostinho se converteu na idade madura, após ter levado uma vida de pecados. Por isso, se dirige a Deus dizendo: “Tarde Vos amei”, e utiliza o primeiro jogo de palavras: “Ó Beleza tão antiga e sempre nova”. O Criador é antigo, pois, sendo eterno, existiu antes de todos os séculos. Mas é uma Beleza sempre renovada, porque é infinito, manifestando continuamente algo de inédito à nossa consideração. E o homem, adorando-O por tais predicados, encontra em Deus a plenitude, a perfeição expressa pelo aludido jogo de palavras. Este como que vincula dons antitéticos que o espírito humano não saberia unir.

Exclama o Santo: “Eis que habitáveis dentro de mim e eu lá fora a procurar-Vos!”

Em todos os homens, sobretudo nos batizados, Deus age de modo permanente através da ação da graça. Portanto, o Altíssimo permanecia no interior de Santo Agostinho. Porém, como um louco, ele O procurava fora, almejando um contentamento que as criaturas não dão, pois a verdadeira felicidade está dentro de nós.

Vemos, então, outro jogo de palavras: dentro e fora. Ele possuía, no mais fundo da alma, aquilo que tinha o desatino de procurar fora.

Continua o Bispo de Hipona: “Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava convosco!”

Quer dizer, Deus habitava em seu interior, mas ele não permanecia com o Senhor. É uma antítese, sem ser uma contradição.

Recebemos graças para obedecer às ordens divinas

Em certo trecho, Santo Agostinho tem esta linda afirmação: Deus nos proporciona aquilo que nos ordena. O que significa isso?

Quando o Criador nos prescreve um mandamento, nos concede anteriormente a possibilidade de observá-lo. Assim, antes de nos preceitua a castidade, Ele nos dá a graça para praticá-la. Pois Deus, ao contrário de certos dirigentes humanos, é um bom Pai e nos governa pelas regras da sua inesgotável misericórdia.

Com base nessa concepção, Santo Agostinho apresenta uma interessante justificativa para a castidade. Segundo ele, o bem de cada ser e o da ordem do universo é a unidade. O homem puro é aquele que ama a Deus acima de tudo, e as outras coisas por amor ao Criador. Pelo contrário, o impuro corre atrás de mil criaturas, e nessa espécie de pluralidade se afasta da unidade originária, primitiva, para a qual deve tender. Ao agir assim, ofende a ordem do universo.

Tal visualização encerra uma maravilhosa repulsa da poligamia e do divórcio, e é mais valiosa, penso eu, do que qualquer refutação sociológica contra esses desvios morais. Pois a metafísica é muito mais apropriada para convencer o espírito humano do que os dados técnicos, mesmo quando acompanhados de argumentos de índole psico-social. Creio que em qualquer época de minha vida, esse raciocínio a favor da castidade, baseado no conceito da unidade, convenceria mais do que todos os outros.

Com esses breves comentários é-nos dado recordar, então, a memória deste extraordinário varão de Fé e de sabedoria, exemplo fulgurante de amor a Deus, que foi o grande Santo Agostinho de Hipona.