O brilho de Luís XIV

Embora tenha proporcionado à França esplendor e elegância, Luís XIV introduziu no país a frivolidade e a leviandade, as quais se desenvolveram no tempo de Luís XV e passaram a ser quase tóxicos, que prepararam a Revolução Francesa. O único modo de consertar isso era abrir-se à influência do Sagrado Coração de Jesus, que teria posto a Europa nos seus trilhos, evitado a Revolução e dado início a uma Contra-Revolução admirável.,

 

Quem lê a vida de Santa Margarida Maria Alacoque fica com a impressão de que o relacionamento do Sagrado Coração de Jesus com Luís XIV não foi publicado por inteiro. Mas o Sagrado Coração de Jesus fez uma tentativa comovedora de converter o Rei da França. O que teria acontecido se ele se tivesse aberto à graça, convertido inteiramente e ficado um santo?

A grandeza de São Luís IX e a de Luís XIV

Luís XIV já estava com Versailles construída, a corte montada, a etiqueta feita e com o aparato resplandecente dentro do mundo: ele era o “Rei-Sol”! O que teria acontecido com esse “sol” se ele se abrisse para um outro “Sol” maior, que eram os dardos de amor do Sagrado Coração de Jesus na alma dele? Com essa grandeza, o que teria acontecido?

O que há em Luís XIV diferente de São Luís é o seguinte: São Luís tinha uma verdadeira grandeza no seu aspecto físico — não era dos homens mais altos do seu tempo, mas um varão de alta estatura segundo os padrões de sua época; além disso, muito bem apresentado, possuía um caráter quase de herói mítico. Ele poderia ser quase uma figura wagneriana como apresentação física, sem ser propriamente um Tarzan. Mas era um homem com aquela força francesa, que é elástica, destra, não esmaga, mas ágil e sabe ferir.

De outro lado, São Luís continuamente foi acrescentando alguma coisa à grandeza dos seus antepassados, de maneira que talvez tenha sido, como manifestação de esplendor, em relação aos predecessores, aquele que possuiu mais esplendor. Não digo dos sucessores, nem de todos os anteriores.

Há uma coisa que contrasta com Luís XIV e chama a atenção. São Luís era grande por uma espécie de naturalidade; sua grandeza era um fato, como pode ser num outro a saúde. Não havia uma programação de ser tão grande quanto possível em todas as direções, mas o desejo de ser inteiramente o que é, com autenticidade, e com o propósito marcado de deixar ver aquilo que ele é.

Em São Luís não existia nada daquilo de esticado que há em Luís XIV, o qual dá a impressão de que está continuamente levando ao auge a manifestação da sua grandeza, o que é, a meu ver, um lado desagradável da grandeza do “Rei-Sol”.

Outra coisa desagradável é procurar aliar uma espécie de boa apresentação natural, de maneira a fazer admirar-se a si próprio, como homem muito bem apessoado. Consideração esta que parece ter sido inteiramente alheia a São Luís, o qual não procurava enfeitar-se, fazer-se bonito, mas sim adornar-se como um rei deve se apresentar.

Se fica mais bonito uma coroa em que a base é mais alta ou menos alta; e se tal cor de tal pedra preciosa para pôr na coroa vai bem com a cor dos olhos, etc., são considerações que eu acho que não passaram pela mente de São Luís. Com Luís XIV não garanto nada! Ele pode ter feito combinações nem sei de que gênero! Cor da peruca para combinar com a pele, etc.

Moedas guardadas como medalhas

E, coisa desagradável, vê-se em Luís XIV a fruição que ele tem da sua própria grandeza, sem nenhum medo de se deixar inebriar por ela. Não se percebe ascese nesse rei. Ele bebia o líquido delicioso da própria grandeza a largos haustos, sem preocupação.

E em São Luís se nota a ascese procurada, o medo humilde da fraqueza humana que busca se embriagar com a glória, o evitar aparecer. Isso fazia com que ele sempre pudesse ornar-se e manifestar um tanto mais a grandeza que possuía, mas nunca se inebriava com a delícia do papel que estava realizando. Pavão fazendo roda ele não era. Em Luís XIV existe muito do pavão fazendo roda.

Creio que em São Luís a santidade dava um quilate à grandeza dele que a de Luís XIV não tinha. E que era exatamente uma espécie de sacralidade maior do que todos os tufos, perucas, plumas e enfeites de Luís XIV. E que tudo muito bem considerado fazia de São Luís, no fundo, um rei superior. Mas é por uma maior participação de Deus.

Há um fato tocante: das antigas moedas francesas, as que têm menos valor na Europa são as do tempo de São Luís IX. Porque o povo as guardava como medalhas e, assim, tornaram-se muito comuns. Isso corresponde a um verdadeiro plebiscito.

Pode-se imaginar a quantidade de moedas que Luís XIV deve ter mandado cunhar com sua efígie. Pois bem, foram fundidas. E as de São Luís guardadas como medalhas pelo camponês pobre que às vezes passava necessidade, não comprava um remédio ou um pão, mas conservava a moeda do Rei santo consigo. Existe aí uma coisa qualquer que não sei exprimir bem, mas que toca o coração: “hic taceat omnis língua!”(1)

Qual é a primeira nação da Europa?

Não obstante, em defesa de Luís XIV poderíamos considerar o seguinte.

As comunicações entre os povos europeus foram se tornando cada vez mais fáceis e frequentes, à medida que o banditismo — legado ainda dos bárbaros que se estendeu mais ou menos até o fim da Idade Média — ia se tornando mais raro nas estradas.

Com a diminuição dos riscos, aumentou muito a circulação de pessoas entre os países e, consequentemente, foi-se aprimorando o sistema de hotéis, dando origem a algo à maneira de turismo.

O intercâmbio das nações tornou-se mais frequente, trazendo consigo a comparação e a pergunta pontiaguda: Qual é a primeira nação da Europa?

Naturalmente estabeleceu-se entre os países uma rivalidade cuja noção o homem pragmático de hoje não tem mais, e que era a seguinte: cada um afirmava a superioridade de um determinado padrão humano, de uma determinada luz de alma, de uma forma de cultura. Houve uma espécie de luta para tomar uma forma de influência, e fazer prevalecer no mundo aquele tipo de perfeições divinas.

De maneira que não era tanto a procura da primazia financeira ou militar, mas a de um certo tipo de alma, que se pareceria com uma luta dos Anjos na presença de Deus.

A Alemanha, nessa época, já possuía uma grandeza militar vista como um traço de alma; não era a supremacia militar, mas a do espírito militar, como uma das componentes do espírito europeu.

Essa luta chegou ao seu auge no tempo em que Luís XIV foi rei. E ele teve o desejo imenso de fazer vencer o charme, a elegância, a glória, a língua e o esplendor franceses.

A cada rei competia tomar parte nessa porfia e levar a grandeza de seu povo ao máximo. A Luís XIV cabia, portanto, a missão providencial de levar o esplendor da França a esse auge. Isso é uma coisa que não se pode discutir.

Então, sentindo-se ele um homem pessoalmente muito dotado, tinha a obrigação de pôr esses dotes a serviço desse papel. Ora, tratando-se de uma porfia, e não de um simples resplandecer — com São Luís IX era um resplandecer, não uma porfia —, compreende-se algo de esticado que havia na obra de Luís XIV.

Ademais, uma porfia muito dura, com rivais difíceis de vencer. Por onde se vê que Luís XIV deitou o corpo numa coisa que tinha um sentido. Ele batalhou pela difusão da cultura francesa, como um rei guerreiro lutaria pela expansão dos exércitos franceses. Quer dizer, ele foi na difusão da cultura o que Napoleão da legenda teria sido na expansão do Império francês sobre o resto da Europa.

Assim, naquilo que apreciei com severidade não desaparece a censura, porque se vê que essa missão ele a exerceu sem virtude; mas se percebe também que se ele tivesse tido virtude, seria de um tom diferente de São Luís.

Em meio ao esplendor e à elegância…

Há um ponto onde se nota particularmente a falta de virtude de Luís XIV. Com o favorecimento das estradas, o cosmopolitismo começava a nascer. E com o cosmopolitismo, a procura de um padrão universal válido igualmente para todos os povos. Vê-se que Luís XIV não teve virtude para compreender que uma Rússia e um Pedro, o Grande, deveriam continuar a ser o que eram, e se aperfeiçoarem naquela linha.

Na sua expansão, o “Rei-Sol” insinuava que aquilo era um padrão universal que todos deviam imitar. Ele considerava que o ser imitado por todos era o auge dessa porfia. Ora, tal porfia não precisava ter esse auge, mas que todos se inspirassem ali para melhorar características próprias, conservando os regionalismos. E Luís XIV quis acabar com os regionalismos nacionais e de fato os eliminou.

Não obstante, no sentido cultural Luís XIV encheu a França da luz dele, e transformou toda a vida meio burguesona da França, de maneira a todo o país ficar luzidio de uma certa luz de Versailles.

Uma coisa característica: no reinado dos Valois havia em Paris o Louvre, com aquela corte muito bonita, mas fora dela uma cidade completamente comum, uma maçaroca de casas com uma ou outra igreja bonita. Não tinha o esplendor de vida que Luís XIV lhe deu, que inspirou nos franceses o desejo de cada um adornar a sua existência com uma beleza, uma distinção, proporcionada a seus meios, fazendo com que a França inteira ficasse uma nação luzidia, solar, que ela não era anteriormente.

As vistas panorâmicas desenhadas de Paris, do tempo dos Valois, representam um casario com muitos restos do pitoresco medieval, mas, de si, era uma montoeira de burgueses. Os nobres moravam em casas um pouco acasteladas, mas feias, sem brilho. Levavam uma vida mais rica do que o plebeu, mas não com o esplendor que depois a existência dos nobres teve.

Luís XIV inaugurou uma coisa na qual a nação inteira se sentiu interpretada e subiu até ele. Foi um regente de orquestra que fez com que o último francês, do último recanto, começasse a tocar seu instrumento à maneira do rei, como se ele dissesse aos franceses: “França sou eu, França sois vós. Entrai na minha orquestra e a França inteira fará ouvir seu som no mundo!” E foi o que aconteceu. Resultado: a atração enorme de gente indo para a França, e a expansão desse brilho por todo o orbe.

…introduz-se a frivolidade

Por outro lado, Luís XIV inseriu nesse mundo de elegâncias a frivolidade.

O Príncipe de Krue, um grande militar da corte austríaca que frequentava muito a corte francesa e era famoso pelo seu espírito, deixou memórias nas quais ele conta que, em sua juventude, quando entrava um grande marechal num salão, era o ornato do ambiente e a conversa toda se acendia. Mas, estando envelhecido, quando ele entrava era o funeral do salão. Porque ele trazia consigo a glória, a seriedade, a força. E a frivolidade detestava isso. Segundo ele, tinha iniciado o reino das mulheres na França. Tudo na França começou a tomar um caráter feminino.

Sem dúvida, o “Rei-Sol” colocou a força e a grandeza na ordem do dia, mas uma força e uma grandeza tão brilhantes que não se podia concebê-las no infortúnio, na dor, na tristeza, na seriedade. E com isso entrou na França uma identificação entre charme leve, frivolidade e cultura, que intoxicou os reinados seguintes.

Isso tudo começou do século XVII para o XVIII. Luís XIV pôs as premissas, e no tempo de Luís XV houve seu desenvolvimento normal. Preparava-se a Revolução Francesa. Então, a frivolidade, a leviandade francesa, uma porção de coisas encantadoras seriam quase uns tóxicos!

Como consertar isso? De que modo um pregador poderia dizer essas coisas ao rei, e fazer com que ele as entendesse? Há muitas coisas aqui que nenhum homem descreve. Mas uma influência do Sagrado Coração de Jesus era o único fato que poderia acertar isso, colocaria a Europa nos seus trilhos e evitaria a Revolução Francesa. Teria começado uma Contra-Revolução admirável!

Situação da Europa: uma coisa de cortar o coração!

Poderíamos imaginá-lo com a majestade do Sagrado Coração de Jesus. Mas, então, de um rei também sofredor, penitente, expiante dos seus próprios pecados em público, e fazendo penitência descalço, como fez São Luís! Este teve compunção dos pecados que não cometeu; e Luís XIV não se arrependeu dos pecados que praticou…

Então, na Sexta-Feira Santa, a magnificência que teria sido ver Luís XIV carregar uma cruz às costas, para pedir perdão de sua péssima vida e, diante do povo, penitenciar-se. Introduzir esse ornamento incomparável, a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é a tristeza e até a derrota dentro da vida dele.

Creio que, até do ponto de vista arquitetônico, se entrasse a fundo uma geminação daquilo que houve com o senso da cruz, teria saído qualquer coisa como nós não imaginamos, mas podemos ter uma ideia comparando o lado de fora de Versailles com a capela. A capela de Versailles não é muito homogênea com o restante do palácio. Ela é muito mais bonita do que Versailles.

Aquele teto ligeiramente gótico da capela de Versailles, com uma nota à qual não se pode recusar certa impressão de tristeza, de doçura régia, tranquila, contemplativa, algo que se faz em torno do Sacrifício da Cruz que se renova sempre, diante de um rei que sofre aflições, de uma rainha que é uma infeliz, isso teria acabado marcando Versailles. O próprio Luís XIV deveria fazer isso, e o que se passava na alma dele depois transporia para fora; era preciso tê-lo conhecido penitente, para poder imaginar o tônus cultural que daí sairia.

Ele daria o tônus, até sem querer. Afinal de contas, é o espetáculo de um homem a quem a Providência incumbiu a tarefa de — por uma ação de presença, e por vê-lo viver nesta grande e mundial cena humana que era a corte dele — dar o curso ao pensamento de todo um continente. Mais do que um filósofo, um “maître-à-penser” na linha Ambientes e Costumes, o que eu considero muito mais importante do que um “maître-à-penser” na linha puramente racional.

Visitando a Europa nesta minha última viagem, comecei a conferir todas essas visões, e nasceu uma grande tristeza.

Por exemplo, a Praça de Siena. Eu desejei a vida inteira vê-la. Cheguei numa ocasião em que eram relativamente poucos os turistas, porque já estávamos no começo do outono e essa gente quer saber do verão. Apesar disso, havia muito mais turista do que eu quereria. O resultado é que a Praça de Siena me dava a impressão de invadida por uma ralé, não digo intelectual nem social, mas como estofo de espírito. Não havia um espírito elevado ali.

Quando fomos visitar o Palácio Municipal por dentro, que é muito bonito. O tempo inteiro eu pensava: se Luís XIV e seus sucessores tivessem sido fiéis, se a Europa tivesse sido católica, o que se teria irradiado deste Palácio com suas ogivas, sua capela, seu salão, suas pinturas… O que foi cortado na obra de Deus!

Então, a flagelação de Nosso Senhor Jesus Cristo na Europa é uma coisa de cortar o coração! Como é de cortar o coração ver a Torre de Belém vazia, um esqueleto do qual saiu toda a carne, e colocada ali à beira do Tejo. Lindo esqueleto, mas um esqueleto: aquilo está morto.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/4/1989)
Revista Dr Plinio 222 (Setembro de 2016)

 

1) Do latim: Aqui toda língua emudeça.

 

As realidades terrenas devem ser parecidas com o Céu

Na consideração da festa de São Rafael Arcanjo devemos impetrar-lhe a graça de ver em todas as realidades terrestres a semelhança com as celestes. Somente na medida em que amarmos as realidades terrenas parecidas com o Céu é que prepararemos as nossas almas para o Reinado de Maria Santíssima e para a eterna beatitude.

 

Oculto aos Santos Anjos está muito relacionado com a nossa espiritualidade, razão pela qual o estudo dos espíritos angélicos ocupa um papel muito importante em nossas cogitações.

Pedir graças espirituais e temporais

São Rafael, como um dos mais eminentes dos Anjos, naturalmente tem um lugar privilegiado em nossa devoção. Por outro lado, o fato de ele encaminhar as orações dos homens para Deus e, naturalmente, para Nossa Senhora, que é intercessora também para os Anjos, é um motivo especial para cultuarmos São Rafael.

O Arcanjo São Rafael é padroeiro dos que viajam e também dos enfermos. Há tanta gente entre nós que, a um ou outro título, é doente. Considero uma boa coisa a pessoa, em face de suas próprias enfermidades, situar-se assim: “Meu Deus, eu Vos peço que me liberteis desta doença, mas se não me libertardes, porque é de vosso desígnio, fazei-me, pelo menos, tirar todo o fruto espiritual dela.”

Alguém poderia pensar que pedir a saúde não corresponde a uma atitude perfeita, porque é uma graça temporal e não espiritual. Deus me livre de uma religiosidade que só peça as graças temporais, mas que Ele me livre igualmente de outra que julga haver uma imperfeição espiritual em pedir as graças temporais. Deve-se pedir também “o pão nosso de cada dia nos dai hoje”.

Protocolo monárquico dos bons tempos

Uma das noções que se apagaram muito a respeito do culto aos Anjos, e que me parece interessante relembrar, é a de que o Céu constitui uma verdadeira corte. Antigamente falava-se muito em Corte Celeste, o que encontra seu fundamento na ideia de que Deus está perante os Anjos e Santos, na Igreja gloriosa, como o rei perante sua corte.

Mas o curioso é que algumas peculiaridades próprias às cortes existentes na Terra, pelas similitudes entre as coisas da Terra e as do Céu, acabam existindo na Corte Celeste também, constituindo-se uma corte no sentido muito mais literal da palavra do que se poderia imaginar.

Se considerarmos um protocolo monárquico dos bons tempos, veremos que não era, como imaginam alguns, uma coisa formal, completamente vazia. Mas era a maneira de reger a existência das várias pessoas a serviço do rei, de maneira a tudo se passar de um modo prático, simples e decoroso, facilitando de todas as formas a vida do monarca.

Assim, por exemplo, quando o rei se colocava à disposição para receber os pedidos de seus súditos, ele os atendia tendo em torno de si, nas grandes ocasiões, os príncipes da Casa real, pessoas de alta nobreza. As demandas eram entregues por escrito. Porém, o interessado comparecia diante do monarca e podia dirigir-lhe a palavra para dizer o que quisesse. Algum príncipe, uma pessoa de alta categoria ou alguém que fosse chegado ao interessado também podia dizer algo. Então o solicitante entregava a um dignatário um rolo de papel com seu pedido, que o rei examinaria depois. Havia uma mesa sobre a qual iam se acumulando os pedidos que depois eram despachados por um Conselho especial.

Vê-se como há uma espécie de hierarquia de funções, de dignidades, de intercessões que conduz ao rei e, depois, procede dele e chega aos particulares. Esse é o mecanismo de uma corte.

Padrão para todas as cortes terrestres

Na Corte Celeste o mesmo protocolo existe, em última análise, pelas mesmas razões. Deus Nosso Senhor, que evidentemente não precisa de ninguém, entretanto, tendo criado seres diversificados, era natural que entregasse a eles missões junto a Si, segundo uma disposição hierárquica. E também que esses seres possuíssem um brilho, um esplendor, uma dignidade na mansão celeste correspondente às tarefas das quais são incumbidos, tarefas essas que, por sua vez, correspondem à própria natureza deles.

Assim, é de acordo com a ordem do universo que os seres humanos sejam regidos pelos Anjos, e estes sejam intercessores dos homens junto a Deus. De maneira que é verdadeiramente uma vida de corte, com um protocolo, uma dignidade, que serve de padrão para todas as cortes terrestres, e indica a necessidade de existir um protocolo, uma hierarquia, uma diversificação de funções.

Temos o exemplo contrário disso nos discursos de chefes de Estado e de sindicalistas modernos, onde há uma pilha de gente atrás, dezenas de microfones, gente em volta conversando; o indivíduo interrompe a arenga, dá uma ordem para este e aquele, conta uma piada, depois continua a falar para a massa. Uma bagunça em que não há compostura nem dignidade. E essa carência de ordem, compostura e dignidade vão constituindo a igualdade e a democracia.

Ao contrário, no estilo aristocrático-monárquico nós temos essa diferenciação, essa hierarquia que é a própria imagem do Céu, e compreendemos melhor aquela afirmação de Pio XII de que, até mesmo nas democracias verdadeiramente cristãs, é indispensável que as instituições sejam de um alto tonus aristocrático.

Condição psíquica de sobrevivência na Terra

A festa de São Rafael nos conduz exatamente a essa ideia. É um intercessor celeste de alta categoria que leva nossas preces a Deus, porque é um dos espíritos angélicos mais elevados que assistem junto a Ele e, portanto, estão mais próximos d’Ele para pedir por nós, constituindo os canais naturais das graças que desejamos.

Essa consideração nos conduz à ideia de reforçarmos cada vez mais em nós o desejo de que as realidades terrestres sejam semelhantes às celestes. Porque apenas na medida em que amarmos as realidades terrenas parecidas com o Céu é que preparamos as nossas almas para a beatitude celeste. Se, ao morrermos, não tivermos apetência das realidades terrestres parecidas com as celestes, não teremos apetência do Céu.

Há, portanto, algo nesse espírito de hierarquia, de distinção, de nobreza, de elevação que corresponde a uma verdadeira preparação para o Céu; preparação esta tanto mais desejável quanto mais vamos afundando num mundo de horror, no qual todas as exterioridades com as quais tomamos contato são monstruosas, caóticas, desorganizadas.

É uma necessidade do espírito humano, para não afundar no desespero, que a pessoa possa pousar as suas vistas extenuadas e doloridas em algo digno e bem ordenado. Não é próprio ao homem viver no “mare magnum” de coisas que caem, afundam, se deterioram. Em algum lugar ele necessita pôr a sua alegria, a sua esperança.

Mas de tal maneira tudo quanto é digno está desaparecendo deste mundo que, ou temos cada vez mais o nosso desejo, a nossa esperança postos no Céu, ou não teremos mais condição psíquica de sobrevivência na Terra.

Houve uma Santa que teve uma revelação na qual ela viu o seu próprio Anjo da Guarda. Era um ente de uma natureza tão elevada, tão nobre e excelsa, que ela se ajoelhou diante dele para adorá-lo, pensando ser o próprio Deus. O espírito celeste precisou explicar-lhe que ele era apenas o seu Anjo da Guarda. Ora, sabemos que os Anjos da Guarda pertencem à hierarquia menos alta que existe no Céu. Em comparação com isso, o que podemos imaginar de um Anjo como São Rafael, das mais elevadas hierarquias?

São Luís, Rei de França, e São Rafael, Príncipe celeste

Mas para não ficarmos na concepção de um puro espírito, podemos nos servir de uma comparação antropomórfica que nos faça degustar melhor essa realidade, imaginando, por exemplo, São Rafael tratando com Nossa Senhora no Céu, à maneira de São Luís, Rei de França, falando com sua mãe, Branca de Castela.

É sabido que São Luís era um homem de alto porte, grande beleza, muito imponente, de maneira que, ao mesmo tempo atraía, incutia um respeito profundo e suscitava um imenso amor. Possuía o feitio de um guerreiro terrível na hora do combate, e era o rei mais pomposo e decoroso do seu tempo.

Esse rei, no qual transluziam todas as glórias da santidade e que era um filho muito amoroso, podemos imaginá-lo nos esplendores da corte da França, conversando com Branca de Castela. Quanta distinção, quanto respeito, quanta elevação, quanta sublimidade nessa cena! Ela nos dá um pouco a ideia do que seria São Rafael se dirigindo a Nossa Senhora. Um rei como São Luís era uma espécie de Anjo na Terra; São Rafael vagamente pode ser considerado como uma espécie de São Luís celeste. Ele é um Príncipe celeste, apenas com a diferença de que São Luís era rei e São Rafael não; e Nossa Senhora é Rainha a um título muito mais alto do que Branca Castela.

Por esta transposição podemos ter um pouco a noção, à maneira de homens, da alegria de que nós vamos estar inundados no Céu quando pudermos contemplar um Arcanjo como São Rafael, e tudo quanto veremos de Deus admirando esse Príncipe celeste.

Peçamos a ele que tenhamos essa contemplação, mas também que algo dessas ideias penetrem em nós nesta vida, e que a consideração dessa ordem ideal e realmente existente nos conforte para uma esperança do Céu e do Reinado de Maria, dissipando toda a tristeza crescente destes dias em que os castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima vão se aproximando tão rapidamente de nós.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 23/10/1963 e 23/10/1964)

Revista Dr Plinio 258 (Setembro de 2019)

Majestade com tranquilidade, força com bondade

Possuindo em altíssimo grau a virtude da combatividade, Dr. Plinio tinha grande admiração por Carlos Magno, varão católico que levou o combate desde o Reno até Santiago de Compostela, e desde o norte das florestas alemãs até o centro do poder árabe na Espanha.

 

Analisemos segundo a regra do ver, julgar e agir, de São Tomás de Aquino, o relicário de Carlos Magno, que se encontra na Catedral de Aachen.

Firmamento de equilíbrio e de bom gosto

O objeto é constituído de duas partes: uma caixa e uma tampa. A caixa é quadrangular, comum. Mas sobre uma forma tão simples — uma caixa com tampa — está colocado um mundo, um verdadeiro firmamento de equilíbrio e de bom gosto.

Em primeiro lugar, vejamos de que espécie de metal é feito. Não é propriamente ouro. Creio que eles nem tinham ouro suficiente para fazer uma caixa como esta. Mas é uma espécie de bronze dourado que tende a imitar o ouro, e talvez entre um tanto de ouro nessa liga.

É uma caixa que dá a ideia de ser forte; tem-se a impressão de se tratar de um cofre que não se arromba com facilidade, o qual guarda um tesouro. A urna manifesta, de algum modo, a grandeza do tesouro que ela encerra em si. Quer dizer, ela exprime, de certa maneira, a grande alma de Carlos Magno. Em que sentido?

A vida dele foi de equilíbrio, de ação reta e de uma constância admirável. Notem a bonita proporção existente entre a altura da caixa e a da tampa. Se a tampa tivesse três vezes a altura da caixa, por exemplo, o objeto estaria estragado. Caso ela fosse um pouco mais baixa do que é, ficaria achatado. Tem o tamanho necessário para uma obra de equilíbrio que representa o equilíbrio do grande Carlos.

Modelo para a formação de nossas almas

Para adornar a caixa, ela tem externamente essas colunas e esses arcos, próprios à parede de uma capela. Cada Santo está colocado em um trono no interior de uma espécie de capelinha.  Porque convém a cada Santo ter seu altar e seu culto. Mas convém também a cada rei ter um reino com sua corte. E esses são reis que ficaram santos exercendo a função e a vocação de rei; a realeza e a santidade estão apresentadas juntas no caixão daquele que foi um rei-modelo, e esperamos que um dia a Igreja o declare um verdadeiro Santo.

Há uma coisa curiosa que talvez alguns não notem à primeira vista: nenhum deles está gesticulando, falando, nem nada disso.  Se ficassem “gesticulando” e “falando” dava a impressão de uma feira. Entretanto, na posição em que eles todos estão, tem-se a impressão de que cada um possui a sua individualidade, tem seu papel, mas não procura abafar os outros, não procura dominar. É o convívio perfeito dos reis na Cristandade, convívio perfeito dos Santos no Céu.

A meu ver, é esta a impressão causada, e é muito bonito que seja assim.

É interessante o papel das pedras preciosas. Há um formoso trabalho de ourivesaria aí, cheio de pedras preciosas de cá, de lá e acolá. Contudo, tem todas as pedras que convém, na medida e proporção exatas, tudo bonito, bem arranjado.

Quem contempla esta urna encontra nela um misto de calma, majestade com tranquilidade, e força com bondade. Aí está retratado o grande Carlos.

Esse relicário é uma obra de equilíbrio, bom gosto e santidade.

Bem, isso já é julgar. Portanto, nós vimos e julgamos. Agora, resta-nos agir.

Devemos perguntar se em face disso tomamos a atitude interior que devemos tomar. Quer dizer, se damos a esse objeto a importância que precisamos dar, pois ele é um modelo para a formação de nossas almas.

Por exemplo, se eu tivesse muitas fotografias dessas, colocaria à disposição de qualquer um que pedisse para ter, por exemplo, no respectivo aposento, porque é uma coisa que faz bem olhar antes de dormir.

Se não no quarto de dormir, no lugar onde trabalha ter um quadro sobre a mesa. É bonito, agradável e faz-nos sentir ao mesmo tempo pequenos — porque isso é grandioso —, mas também filhos. Não há aí nenhum desprezo por nós. Há um convite como quem diz: “Chegue perto e admire. Seja filho disso, ame isso, na harmonia que deve haver entre todas as coisas. Essa atmosfera é sua.”

A pedra em “cabochon” e a lapidada

Vemos em outra fotografia o famoso busto de Carlos Magno.

Prestem bem atenção nesta fisionomia esculpida por alguém que estava muito menos distante dele no tempo. Observem como é doce, natural. Não tem nada de orgulhoso. É o homem que levou o combate dele desde o Reno até Santiago de Compostela, e desde o norte das florestas alemãs até o centro do poder árabe na Espanha. Uma coisa formidável! Mas vejam a naturalidade, a bondade, a nobreza, ao mesmo tempo. Que grande pessoa!

Notem que, além das pérolas, há várias pedras preciosas, todas elas lapidadas à maneira do que em francês se diz “en cabochon”.

Qual a diferença do “cabochon” para o outro modo de lapidar? Na pedra lapidada, corrente hoje, corta-se a pedra em várias superfícies para fazer ângulos. E os ângulos aumentam o brilho da pedra quando uma pessoa, uma senhora, por exemplo, está com um anel e gesticula.

Aqui não. Eles não sabiam lapidar; simplesmente arredondavam o contorno da pedra. Mas tinha isto de bonito: de longe brilhava menos, mas guardava mais luz dentro de si. Essas pedras são pequenos reservatórios de luz.

É supérfluo dizer que eu gosto muito mais da lapidação “en cabochon” do que da lapidação moderna.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/11/1988)

Nossa Senhora de Coromoto

Harmonia augusta, nívea e maternal.

A insondável majestade e a infatigável solicitude materna de Maria Santíssima se unem e reluzem aos nossos olhos, salientadas nesses comentários de Dr. Plinio a uma bela imagem de Nossa Senhora de Coromoto, Padroeira da Venezuela, cuja festa é comemorada em 8 de setembro.

Ao contemplarmos essa linda imagem de Nossa Senhora de Coromoto, notamos de imediato o proporcionado do conjunto que com ela estabelece a base e a cadeira. Esta última possui um espaldar alto que sobrepuja a cabeça da Virgem, e apresenta em seu topo um arco singelo, porém elegante, semelhante a um dossel.

Majestade e intimidade

Trata-se de um detalhe interessante, pois ele frisa a ideia de que Maria Santíssima tem perfeita noção da própria majestade e, sendo a Rainha do Céu e da Terra, condescende em manifestar tanta bondade para conosco.

Por sua vez, a base, um tanto elevada, encontra-se numa proporção muito amena com a imagem, situando-a numa altura que transmite a noção da intimidade — repassada de sacralidade — que Nossa Senhora deseja estabelecer com seus devotos. Cumpre observar, entretanto, que a base e o dossel são apenas elementos auxiliares para visualizarmos o conjunto.

Nas laterais aparecem quadriláteros superpostos, encimados  por dois triângulos que insinuam vagamente duas colunas, com seus capitéis, de uma hipotética catedral cuja abóbada seria representada pelo arco. Embora tais figuras geométricas pudessem ter sido concebidas de modo mais artístico, se fossem retiradas o conjunto perderia em expressão.

Brancura nívea

A qualquer hora do dia, a primeira impressão causada pela imagem é de uma brancura tal que se diria ser feita de uma matéria desconhecida nesta Terra. Ao substantivo “brancura” convém acrescentar o adjetivo “nívea”, que pode parecer exagerado, mas seria uma exceção permitida pelo rico vocabulário da língua portuguesa. Ele realça, exprime melhor esse tipo de brancura que admiramos na imagem de Nossa Senhora de Coromoto: brancura nívea.

Sobretudo à noite sente-se estar em presença de um material que teria vindo, por exemplo, da lua. Não da lua explorada pelos astronautas, mas da lua cantada em versos de poesia…

Escrínio da vida divina

Esta brancura nívea indica como a Virgem Santíssima está penetrada, repleta da graça de Deus. Realça uma transparência do Criador na alma de sua criatura eleita. Nas horas noturnas,  naturalmente, tudo isso resplandece  de modo mais acentuado. E não apenas porque a alvura se destaca no contraste com as sombras. Esta seria uma explicação verídica, mas evidente. O fato é que, de dia, tem-se a impressão de que o mármore reflete a brancura; e à noite, de que nele habita uma luz, causando-nos a sensação de que, se apertássemos aquela matéria da qual a imagem é feita, dela jorraria luz em estado líquido.

Mais ainda. A própria psicologia da personagem (no caso, Nossa Senhora) é imaculadíssima, puríssima, toda constituída para viver dentro desse níveo, que seria uma espécie de “substância” existente no Céu.

A meu ver, a primeira nota de majestade e grandeza que dela emana é um reflexo da participação de Nossa Senhora num outro mundo e da presença dentro d’Ela da vida divina, que A coloca acima de comparação com qualquer outra mera criatura.

Insondável solicitude materna

A partir dessas impressões iniciais, realçadas pela iluminação noturna, analisemos outras.

Maria Santíssima tem consciência de todos esses aspectos de sua pessoa, e demonstra estabilidade através da posição e atitude calmas, de quem se sente perfeitamente em ordem e não se acha impelido por pressa alguma. Para a imagem, o tempo como que não existe: Nossa Senhora passaria séculos acomodada onde está. É o que, com profundo respeito, se pode chamar “felicidade de situação”.

De outro lado, percebe-se que a Santíssima Virgem tem dupla atenção: uma para seus valores internos e celestes, e outra, minor, para a pessoa que d’Ela se aproxima. Dir-se-ia que Ela é toda solicitude materna, e não nota, porque não o quer, a extrema inferioridade de quem se ajoelha a seus pés. Maria não se compara com o filho que vem lhe apresentar uma súplica, dirigir-lhe uma
prece. Assim, a Mãe de Deus eleva o devoto à categoria d’Ela, sem analisá-lo: “Você tem culpa ou não; é bom ou ruim”. Apenas diz: “Você existe e, portanto, tenho misericórdia. O que deseja?”

Nesta imagem transparece muito essa bondade maternal de Nossa Senhora, e a pergunta que dirige ao fiel —  “O que deseja?” — é discernida no olhar e na leve inclinação da cabeça para frente, significando seu extremo desvelo e a disposição de atender até os nossos menores pedidos.

 

Brancura nívea que indica
como a Santíssima Virgem se
acha repleta da graça de Deus,
situando-A acima de qualquer
outra mera criatura

Breve história de Nossa Senhora de Coromoto

Nossa Senhora de Coromoto é a Padroeira da Venezuela, venerada de modo particular na cidade de Guanare, onde apareceu há 354 anos. Quando os espanhóis chegaram a essa região, em 1591, um grupo de índios da tribo dos Coromotos decidiu abandonar sua terra e fugir para a selva próxima ao rio Tucupido, dando as costas à evangelização que a Igreja Católica começara a empreender entre eles.

Seis décadas mais tarde, num dia de 1652, o cacique Coromoto e sua mulher atravessavam uma corrente de água quando viram uma Senhora de extraordinária beleza, levando nos braços um menino igualmente esplendoroso. A Senhora lhes disse no seu idioma: “Dirijam-se à casa dos brancos e peçam que lhes derramem a água sobre a cabeça (o batismo), para que possam alcançar o céu”.

Algum tempo depois, um espanhol chamado João Sanchez viajava por aquela mesma região quando o cacique Coromoto lhe vem ao encontro, relata a visão que tivera da bela Senhora e as palavras que dela ouvira.

João Sanchez combinou com o índio o necessário para que toda a tribo fosse instruída na doutrina cristã e recebesse as águas do batismo. De fato, vários indígenas foram batizados, não porém o cacique, o qual, acostumado à liberdade dos bosques, não conseguia se adaptar ao novo regime de vida. Junto com sua família, retornou à existência na selva.

Entretanto, no dia 8 de setembro de 1652, sábado, Nossa Senhora aparece novamente para o índio na sua choça, em presença da sua mulher, sua cunhada Isabel e um sobrinho desta. O cacique pega o arco e a flecha para matá-la. Tendo a Virgem Maria se aproximado, Coromoto larga o arco e tenta agarrá-la. Mas, no exato momento em que ia ser tocada, Nossa Senhora desaparece, deixando nas mãos do índio um pergaminho com sua imagem. O sobrinho da cunhada Isabel saiu correndo para avisar a João Sanchez do sucedido. Este, com mais dois companheiros, dirigiu-se ao local da aparição e recolheu a preciosa relíquia.

No dia seguinte, acompanhado por alguns de seus índios, o cacique tentou uma fuga para os montes. Contudo, ao embrenhar pelo bosque foi mordido por uma cobra venenosa. Vendose imortalmente ferido e conhecendo nisto um castigo do Céu pela péssima conduta que tivera diante da excelsa Senhora, começou a se arrepender, suplicando em altas vozes que lhe administrassem o santo batismo. A divina Maria, que tanto fizera pela conversão dos índios e seu cacique; Ela, canal de todas as graças, alcançou para o moribundo a regeneração pelas salvadoras águas batismais. Por especial providência de Deus, passava por ali um católico da cidade de Barinas, que imediatamente o batizou. O cacique recomendou aos índios que se mantivessem com os brancos e, resignado, em meio a acerbas dores, rendeu o último suspiro.

Atualmente, o pergaminho com a imagem, encerrado num belíssimo relicário de ouro, brilhantes e pérolas, encontra-se no Santuário Nacional Nossa Senhora de Coromoto, erguido no lugar da segunda aparição, e inaugurado com a solene Eucaristia presidida pelo Papa João Paulo II, em 10 de fevereiro de 1996.

No caráter virginal e na extrema delicadeza dos traços da mãe e do filho está presente a noção de uma insondável misericórdia para conosco.

Nascimento da criatura perfeita

Por que a Igreja festeja especialmente o Santo Natal de Nossa Senhora? Porque Ela foi tão grande que a data de sua entrada no mundo marca uma nova era na história do Antigo Testamento, a qual podemos dizer que se divide, sob este ponto de vista, em duas partes: antes e depois da Santíssima Virgem.

Porque, se o Antigo Testamento é uma longa espera do Messias, esta espera tem dois aspectos: os milhares de anos pelos quais a Divina Providência permitiu que esta expectativa se espichasse e, depois, o momento abençoado em que Deus resolveu fazer nascer Aquela que obteria o advento do Salvador.

O nascimento de Maria Santíssima é a chegada ao mundo da criatura perfeita que encontra plena graça diante de Deus, da única pessoa cujas orações têm o mérito suficiente para acabar com a espera e fazer com que, afinal, os rogos, os sofrimentos de todos os justos e a fidelidade de todos aqueles que tinham sido fiéis conseguissem aquilo que sem Nossa Senhora não se teria obtido.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/9/1966)

Nossa Senhora de Coromoto Harmonia augusta, nívea e maternal

A insondável majestade e a infatigável solicitude materna de Maria Santíssima se unem e reluzem aos nossos olhos, salientadas nesses comentários de Dr. Plinio a uma bela imagem de Nossa Senhora de Coromoto, Padroeira da Venezuela, cuja festa é comemorada em 8 de setembro.

 

Ao contemplarmos essa linda imagem de Nossa Senhora de Coromoto, notamos de imediato o proporcionado do conjunto que com ela estabelece a base e a cadeira. Esta última possui um espaldar alto que sobrepuja a cabeça da Virgem, e apresenta em seu topo um arco singelo, porém elegante, semelhante a um dossel.

Majestade e intimidade

Trata-se de um detalhe interessante, pois ele frisa a ideia de que Maria Santíssima tem perfeita noção da própria majestade e, sendo a Rainha do Céu e da Terra, condescende em manifestar tanta bondade para conosco.

Por sua vez, a base, um tanto elevada, encontra-se numa proporção muito amena com a imagem, situando-a numa altura que transmite a noção da intimidade — repassada de sacralidade — que Nossa Senhora deseja estabelecer com seus devotos. Cumpre observar, entretanto, que a base e o dossel são apenas elementos auxiliares para visualizarmos o conjunto.

Nas laterais aparecem quadriláteros superpostos, encimados por dois triângulos que insinuam vagamente ­duas colunas, com seus capitéis, de uma hipotética catedral cuja abóbada seria representada pelo arco. Embora tais figuras geométricas pudessem ter sido concebidas de modo mais artístico, se fossem retiradas o conjunto perderia em expressão.

Brancura nívea

A qualquer hora do dia, a primeira impressão causada pela imagem é de uma brancura tal que se diria ser feita de uma matéria desconhecida nesta Terra. Ao substantivo “brancura” convém acrescentar o adjetivo “nívea”, que pode parecer exagerado, mas seria uma exceção permitida pelo rico vocabulário da língua portuguesa. Ele realça, exprime melhor esse tipo de brancura que admiramos na imagem de Nossa Senhora de Coromoto: brancura nívea.

Sobretudo à noite sente-se estar em presença de um material que teria vindo, por exemplo, da lua. Não da lua explorada pelos astronautas, mas da lua cantada em versos de poesia…

Escrínio da vida divina

Esta brancura nívea indica como a Virgem Santíssima está penetrada, repleta da graça de Deus. Realça uma transparência do Criador na alma de sua criatura eleita. Nas horas noturnas, naturalmente, tudo isso resplandece de modo mais acentuado. E não apenas porque a alvura se destaca no contraste com as sombras. Esta seria uma explicação verídica, mas evidente. O fato é que, de dia, tem-se a impressão de que o mármore reflete a brancura; e à noite, de que nele habita uma luz, causando-nos a sensação de que, se apertássemos aquela matéria da qual a imagem é feita, dela jorraria luz em estado líquido.

Mais ainda. A própria psicologia da personagem (no caso, Nossa Senhora) é imaculadíssima, puríssima, toda constituída para viver dentro desse níveo, que seria uma espécie de “substância” existente no Céu.

A meu ver, a primeira nota de majestade e grandeza que dela emana é um reflexo da participação de Nossa Senhora num outro mundo e da presença dentro d’Ela da vida divina, que A coloca acima de comparação com qualquer outra mera criatura.

Insondável solicitude materna

A partir dessas impressões iniciais, realçadas pela iluminação noturna, analisemos outras.

Maria Santíssima tem consciência de todos esses aspectos de sua pessoa, e demonstra estabilidade através da posição e atitude calmas, de quem se sente perfeitamente em ordem e não se acha impelido por pressa alguma. Para a imagem, o tempo como que não existe: Nossa Senhora passaria séculos acomodada onde está. É o que, com profundo respeito, se pode chamar “felicidade de situação”.

De outro lado, percebe-se que a Santíssima Virgem tem dupla atenção: uma para seus valores internos e celestes, e outra, minor, para a pessoa que d’Ela se aproxima. Dir-se-ia que Ela é toda solicitude materna, e não nota, porque não o quer, a extrema inferioridade de quem se ajoelha a seus pés. Maria não se compara com o filho que vem lhe apresentar uma súplica, dirigir-lhe uma prece. Assim, a Mãe de Deus eleva o devoto à categoria d’Ela, sem analisá-lo: “Você tem culpa ou não; é bom ou ruim”. Apenas diz: “Você existe e, portanto, tenho misericórdia. O que deseja?”

Nesta imagem transparece muito essa bondade maternal de Nossa Senhora, e a pergunta que dirige ao fiel — “O que deseja?” — é discernida no olhar e na leve inclinação da cabeça para frente, significando seu extremo desvelo e a disposição de atender até os nossos menores pedidos.

Rainha no pleno exercício de seu poder

Nota-se, também, um senso moral firmíssimo. Ela perdoa qualquer ofensa, mas tem total incompatibilidade com o mal. Quem, diante dessa imagem, pedisse algo de ruim, causar-lhe-ia horror e se sentiria fortemente censurado. Esses extremos harmônicos — bondade e rejeição do mal — fazem parte da beleza e da perfeição de Nossa Senhora de Coromoto.

Percebe-se outrossim sua majestade pela consciência que Ela possui de governo. É uma Rainha, tem a visão superior das coisas, as considera no seu conjunto e sabe como se compaginam na criação. Ou seja, por disposição divina, Ela tem o direito de mandar na ordem universal e o exerce de modo perfeito.

Esse governo se exprime de forma interessante pelo relacionamento d’Ela com o Menino. A Mãe de Deus O segura como quem pode lhe dar ordens; de outro lado, O aponta, como quem diz: “Se Eu tenho algum direito e valor, é por causa d’Ele, que é o Redentor. Se quiserem me agradar, voltem-se para meu Divino Filho, porque vivo para Ele. Sou apenas uma intercessora junto ao Verbo Encarnado”.

Ao mesmo tempo em que Ela manda n’Ele, é a primeira de seus súditos. O Menino é o cetro de Nossa Senhora, e a Virgem é o trono no qual Ele se senta. A soberania do Rei é realçada pela majestade da Rainha, e vice-versa.

Na delicadeza dos traços, a ideia de misericórdia

Julgo que a misericórdia se afirma no caráter virginal da imagem, na extrema delicadeza e harmonia dos traços de mãe e filho. Em suas fisionomias há um misto de medieval e sulpiciano(1), que são estilos incongruentes, mas aqui apresentam uma conjunção feliz: são hieráticos como o medieval, com qualquer coisa de sumamente acessível do sulpiciano.

O manto de Nossa Senhora, que cobre sua cabeça e deixa aparecer um pouco de seus cabelos, possui um pregueado muito amplo, bonito, majestoso, lembrando a toga de um magistrado e o manto de rainha. Indica também que Ela se acha inteiramente à vontade onde está e que — independentemente do que pensem, queiram, façam ou digam — tomou conta do lugar. É verdadeiramente a Soberana.

Augusta e maternal

Tudo o acima exposto seria a descrição da imagem. O passo seguinte é a exclamação que temos diante dela.

Desde logo: nívea! Porém, essa palavra requer um complemento que a enriqueça. Exclamar: “Ó Mãe nívea, ó Rainha nívea” não seria suficiente. Poder-se-ia acrescentar “augusta”, posto ser Nossa Senhora a obra-prima da mera criação.

Aprofundando essas cogitações, creio que os títulos “harmonia nívea, régia e maternal” exprimem em algo o conjunto da imagem. Corroborados pelo seguinte fato: a matéria de que ela é feita, considerada à luz dos presentes comentários, adquire um aspecto que cria a ilusão de estar numa relação de “transcendência” quanto à matéria comum da qual provêm esculturas semelhantes. Ela possui, ao mesmo tempo, predicados análogos e diversos dessa substância trivial, e nos introduz na ideia de branco absoluto, porque o níveo é uma impressão deste último.

Diante desse tipo de luminosidade nívea, tem-se uma sensação de contato com uma ordem de realidades parecida com a conhecida por nós, mas que não se imaginaria pudesse existir. Então, essa alvura nívea está para o branco comum, mais ou menos como as coisas divinas estão para as criadas. Possui algo da luz incriada. É semelhante aos outros brancos, mas inimaginável. Transcende-os. E nos conduz Àquele que é o transcendente por excelência, Deus.

Digamos, portanto, que a exclamação inteira, louvando essa linda imagem de Nossa Senhora de Coromoto, seria: ó harmonia nívea, régia, augusta e maternal!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

1) No século XIX, tendo como foco a igreja da Ordem Religiosa dos Sacerdotes de São Sulpício, em Paris, surgiu uma arte sacra denominada “sulpiciana”, que procurou realçar em suas imagens o afeto e a misericórdia dos personagens por elas simbolizados. Vale mencionar que os Sacerdotes de São Sulpício, além de sua presença na França, contam com membros em todo o mundo, especialmente no Canadá.

 

Para cada pessoa Deus envia o sofrimento adequado

O espírito pagão leva as pessoas a considerarem a dor como um azar. Entretanto, cada sofrimento pelo qual passamos pode ser comparado a um golpe de cinzel dado por Deus que, à maneira de um escultor habilíssimo, nos modela para o nosso bem, segundo sua infinita sabedoria.

 

Sois membros de Jesus Cristo. Que honra! Mas quanta necessidade de sofrer por causa disto! A cabeça está coroada de espinhos e os membros estariam coroados de rosas? A cabeça está escarnecida e coberta de lama no caminho do Calvário, e os membros estariam no trono, cobertos de perfumes? A cabeça não tem um travesseiro para repousar e os membros estariam delicadamente deitados entre plumas e arminho? Seria monstruosidade inaudita.

O homem que não se mortifica tem ódio do crucificado

Nós poderíamos aplicar esse trecho da Carta Circular aos Amigos da Cruz(1) – escrita por São Luís Maria Grignion de Montfort – à situação atual da Igreja, Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo do qual somos membros, e que, estando ela coroada de espinhos, poderíamos estar coroados de rosas? Em nossos dias, a Igreja Católica está escarnecida e coberta de lama, no caminho do Calvário; podem seus membros ocupar um trono coberto de perfumes?

Não, não vos enganeis; estes cristãos que vedes de todos os lados, enfeitados na moda, maravilhosamente delicados, excessivamente educados e circunspectos, não são verdadeiros discípulos nem verdadeiros membros de Jesus Cristo crucificado; faríamos injúria a essa cabeça coroada de espinhos e à verdade do Evangelho se acreditássemos o contrário.

Ao se referir aos cristãos excessivamente educados e circunspectos, São Luís Grignion põe o dedo na chaga de um dos aspectos do “Ancien Régime”. A escola de educação e de circunspecção daquela época é uma verdadeira maravilha, mas chegou a um exagero, evidentemente. Porque reduzir todo o convívio social a um perpétuo sorrir e a um mútuo lisonjear contínuo é uma coisa contrária à verdade, à seriedade e à compostura que a vida deve ter, e preparava o rugido da Revolução Francesa, exatamente por esse excesso.

Ah, meu Deus, quantos fantasmas de cristãos se consideram membros do Salvador e são seus mais traiçoeiros perseguidores, porque, enquanto fazem com a mão o sinal da cruz, são, de coração, seus inimigos!

Como nós poderíamos dizer isso hoje! Quantos indivíduos são inimigos da Cruz! Quando alguém está nessas condições, não é só inimigo da Cruz porque não se deixa crucificar, mas há uma coisa sutil: é que o homem imortificado tem ódio do crucificado e da mortificação. Vendo outro que se crucifica, ele se indigna, e quando lhe falam de cruz fica extremamente irritado.

Deus faz com as almas como o pedreiro com suas pedras

Se sois conduzidos pelo mesmo espírito, se viveis da mesma vida que Jesus Cristo, vosso Chefe coberto de espinhos, não espereis senão espinhos, chicotadas, pregos – numa palavra, cruz –, porque é necessário que o discípulo seja tratado como o Mestre e o membro como a cabeça. E se o Chefe vos apresentar, como a Santa Catarina de Sena, uma cora de espinhos e outra de rosas, escolhei com ela a de espinhos, sem hesitar, e ponde-a na cabeça para vos assemelhar a Jesus Cristo.

Não ignorais que sois os templos vivos do Espírito Santo e que deveis, como outras tantas pedras vivas, ser colocados pelo Deus de Amor no edifício da Jerusalém celeste.

A Jerusalém celeste tem aqui na Terra a sua prefiguração na Igreja Católica que, considerada no seu conjunto, pode ser vista como um Templo do qual cada um de nós é uma pedra viva.

Disponde-vos, pois, a ser trabalhados, cortados e cinzelados pelo martelo da Cruz; de outra maneira permaneceríeis como pedras brutas que em nada são empregadas, que são desprezadas e repelidas para longe.

A ideia dele é muito bonita: Deus faz com as almas como o pedreiro com suas pedras: as que deseja aproveitar ele talha, corta, martela, fere de mil modos para adequá-las às finalidades que tem em vista. Enquanto na pedra que o pedreiro rejeita, ele não mexe, não toca. Assim também os homens que sofrem são os que serão aproveitados para a Igreja. Portanto, quando vemos um homem sofrer muito, devemos dizer: “Este é uma pedra que o construtor vai aproveitar.” E o instrumento para talhar as pedras, o modo pelo qual se faz o martírio do homem, é a Cruz. São os sofrimentos sucessivos que sobre a pessoa devem cair.

Tende cuidado para não opor resistência ao martelo que vos bate; prestai atenção ao cinzel que vos talha e à mão que vos molda! Talvez o hábil e amoroso arquiteto queira fazer de vós uma das primeiras pedras de seu edifício eterno e um dos mais belos retratos de seu Reino celeste.

Exatamente as pedras mais lavradas são as que na arquitetura têm mais importância. Também as almas mais sofredoras são as mais aproveitadas para o edifício de Deus.

Devemos aceitar, com amor, a dor inexplicável

Deixai-o fazê-lo, pois. Ele vos ama, sabe o que faz, tem experiência; todos os seus golpes são hábeis e amorosos, nenhum é falso, a menos que o inutilizeis pela vossa impaciência.

Esse é um ponto que muito especialmente nos deve consolar na hora do sofrimento. Muitas pessoas com espírito pagão em face da dor têm uma mentalidade pela qual consideram o sofrimento um azar que desabou em cima delas. Uma coisa que podia não ter caído, mas caiu, e não deve fazer para eles bem nenhum. É um puro horror que aconteceu, está acabado. Nós, pelo contrário, sabemos que Deus nos faz sofrer para o nosso bem. Mas, sobretudo, o que devemos ter em mente é que cada sofrimento pelo qual passamos corresponde a um golpe de cinzel dado por um escultor, um pedreiro habilíssimo que nos toca no ponto que vai nos fazer bem naquela hora. Assim, o sofrimento mais estúpido, mais imprevisto é, entretanto, o melhor para a nossa alma, naquela hora e daquele jeito. Nesse sentido, não é nenhuma forma de azar, mas, pelo contrário, é por excelência a aplicação daquilo que Nosso Senhor diz no Evangelho: a Providência toma conta de cada homem a ponto de até os fios de cabelo de nossa cabeça não caírem sem o seu consentimento (Lc 21,18).

Às vezes vemos acontecerem coisas das quais se diria: “Mas, meu Deus, o menos arquitetônico, o mais maluco é isso! Tudo podia me acontecer, mas isso eu não compreendo”.

Ora, na aparência anti-arquitetônica do que aconteceu talvez esteja o mais arquitetônico. Precisamente aquilo que Deus nos pede, daquele jeito que não quereríamos imaginar, é o que nos deve fazer bem. Neste sentido, Deus é como um cirurgião exímio que nunca corta a não ser onde é preciso. Ademais, ainda que o cirurgião faça um talho enorme, sabemos que foi o menor possível. Conosco também, às vezes, não entendemos bem tanta coisa. Ainda aí foi a mão de Deus que abriu o menos possível, mas nossa alma precisava daquilo e daquele tamanho. Entretanto, tudo foi feito com muito amor, muita consideração e muito propósito.

Portanto, devemos aceitar, ainda que não entendamos, porque o melhor está em não entender a dor inexplicável, o sofrimento que vem sem eira nem beira e cai em cima de nós, mais ou menos como se entrasse de repente aqui um cachorro bravo e mordesse alguém. É esse o melhor sofrimento, com o qual Deus fere aqueles a quem Ele mais quer salvar.

Quem suporta o sofrimento é um elemento escolhido da Igreja

O Espírito Santo compara às vezes a cruz a uma peneira, que purifica o grão da palha e das escórias: sem resistir, deixai-vos, pois, sacudir e agitar como o grão na peneira; estais na peneira do Pai de família e dentro em pouco estareis em seu celeiro.

Aqui também, a expressão é muito bonita. Porque a única seleção verdadeira é a que se pode fazer na dor. Aquele que suporta o sofrimento é o elemento selecionado da Igreja de Cristo. Aquele que não tem padecimento nenhum, afinal de contas, o que vale diante de Deus? Nada, pois não passou por provação nenhuma.

Outras vezes Ele a compara ao fogo que tira a ferrugem do ferro pela vivacidade de suas chamas. Nosso Deus é um fogo que, pela cruz, permanece numa alma a fim de purificá-la, sem a consumir, como outrora na sarça ardente. Outras vezes a cruz é comparada ao cadinho de uma forja, onde o ouro bom se afirma e o falso desaparece na fumaça: o bom sofrendo pacientemente a provação do fogo, o falso erguendo-se como fumaça contra as chamas. É no cadinho da tribulação e da tentação que os verdadeiros amigos da Cruz se purificam pela paciência, enquanto que seus inimigos desaparecem na fumaça por causa de suas impaciências e murmurações.

O papel da tentação aí é muito grande. Tenho encontrado muitas dificuldades em fazer aceitar isso pelas gerações mais novas, que sempre tomam a tentação como sinal de decadência na vida espiritual. É automático: “Fui tentado; logo, estou apetecendo coisas ruins. Se estou apetecendo coisas ruins é porque piorei.” Não é verdade. A tentação pode atingir um santo. Ademais, ela é uma das modalidades mais duras de sofrimento e, por isso mesmo, uma forma de cruz que devemos amar. Nós devemos pedir para a tentação passar, mas nos alegrar por termos sido tentados, e até mesmo pelo fato de a Providência não tirar a tentação de nossa alma, desde que seja desígnio d’Ela. Até lá precisamos chegar.

Embora esses conceitos sejam conhecidos, é sempre bom lembrá-los. Quem de nós não tem algo que o faça sofrer? Oxalá seja uma só coisa… Como receberíamos melhor esse sofrimento se nos lembrássemos do que acabo de dizer, da mão de Deus que deu aquele sofrimento para ser recebido daquele jeito, naquela hora. É evidente.

Inclusive no apostolado o sofrimento é necessário, inteiramente indispensável. Que o apostolado nos traga aborrecimentos, amarguras, é normal. O apostolado que não acarrete aborrecimentos e amarguras não é abençoado por Deus.

Por vezes, as dificuldades no apostolado são tais que nos dão a impressão de abandono de Nossa Senhora. Se nos dedicamos inteiramente a uma obra de apostolado, basta dar início que começam a se multiplicar em torno de nós as dificuldades, às vezes completamente inesperadas, imprevistas.

Pedir o espírito de cruz

Olhai, meus queridos Amigos da Cruz, olhai diante de vós uma grande nuvem de testemunhas que provam, sem nada dizer, o que vos digo. Vede, de passagem, o justo Abel assassinado por seu irmão; o justo Abraão estrangeiro na terra, o justo Ló expulso de seu país; o justo Tobias atingido pela cegueira; o justo Jó empobrecido, humilhado e coberto, dos pés à cabeça, por uma chaga.

Olhai tantos Apóstolos e Mártires cobertos com a púrpura de seu sangue; tantas Virgens e Confessores empobrecidos, humilhados, expulsos, desprezados, que com São Paulo exclamam: “Olhai nosso bom Jesus, autor e consumador da fé que temos n’Ele e na sua Cruz; foi preciso que Ele sofresse a fim de, pela Cruz, entrar em sua glória.”

Vede ao lado de Jesus Cristo um agudo gládio que penetra, até o fundo, no coração terno e inocente de Maria, que nunca tivera qualquer pecado, original ou atual. Como me pesa não poder estender-me falando sobre a Paixão de um e de outro, para mostrar que o que sofremos nada é em comparação do que sofreram!

Depois disto, qual de vós poderá eximir-se de levar sua cruz? Qual de vós não voará depressa para os lugares onde sabe que a cruz o espera? Quem não exclamará, com Santo Inácio mártir: “Que o fogo, o patíbulo, as feras e todos os tormentos do demônio desabem sobre mim, para que eu possa gozar de Jesus Cristo!”?

Essas são considerações muito sabidas, mas que convém sempre relembrar. O que mais me empolga é precisamente a ideia de que o sofrimento foi medido, adequado para mim, embora eu não perceba e, portanto, daquilo nada se perderá.

Para cada pessoa haverá outras dificuldades e soluções a considerar em face do problema da dor. Mas pelo menos quando sabemos que aquilo tem uma utilidade superior, sentimo-nos bem.

Que Nossa Senhora nos dê esse espírito de cruz para nos consagrarmos adequadamente ao Coração Imaculado d’Ela.   v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/9/1967)
Revista Dr Plinio 258 (Setembro de 2018)

 

1) Os trechos comentados por Dr. Plinio nesta conferência correspondem aos números 27 a 32.

 

Instintos, Revolução e Contra-Revolução

Só se tem a perfeição do equilíbrio mental quando os instintos são regidos pela Moral Católica e a inteligência recebe como norma a Doutrina da Igreja. Faz-se, então, o amplexo ordenado entre o instinto e a inteligência. A Revolução vai fazendo com que os homens se tornem cada vez mais joguetes dos instintos, levando-os até o delírio e depois insuflando neles a acomodação

 

A meu ver, o processo intelectual mais fecundo de elaborar um tema não é ir ao livro diretamente, mas tentar explicitar e colocar por escrito tudo o que se tem na cabeça a respeito do assunto. Depois disso é que se está com critérios seletivos adequados para ler analiticamente sem se deixar devorar pelo livro. Qualquer leitura que não seja feita assim é a deglutição do leitor. Não que ele vá se convencer das opiniões do autor, mas acabará por engolir os pressupostos da obra. Começar analiticamente a leitura de um livro é o jeito de barrá-lo inteiro na alfândega; não fazer assim me parece que é capitular diante do livro, de algum modo.

Na leitura de São Tomás, uma complementação necessária

Eu só não sigo essa regra com relação à Igreja. Tudo aquilo que vejo proveniente de fonte séria, idônea, de pensamento católico não espero ter pensado antes para depois ler. Porque há em mim, que sou batizado, por efeito da graça – e creio que em todo católico quando cogita com senso católico a respeito das coisas –, algo por onde minha alma já propende para o fundo da Doutrina Católica em determinada matéria. A Doutrina Católica, portanto, ensina em parte explicitando o que, pela própria graça, a pessoa já possuía pendor de saber.

De maneira que entre o ensino católico e a alma do batizado há uma relação que não é a mesma existente entre o livro seco e o católico. Por esta razão, nas coisas da Igreja, sem sequer eu me dar conta – por exemplo, na leitura de encíclicas papais, etc. – fui embarcando assim: “É verdade, não tem análise prévia…” Isso me dá um bem-estar de alma fenomenal! Porque me sinto encontrado, realizado ao longo da leitura daquilo.

Entretanto, no que diz respeito a São Tomás – que é Doutrina Católica pura, e todos conhecem a minha devoção a ele – é preciso levar em consideração que o modo do Doutor Angélico apresentar os temas é, não inteiramente, mas quase, desligado da realidade concreta. De maneira a termos muitas vezes dificuldades em nos dar conta de qual é a realidade concreta à qual ele está se reportando.

Então, debaixo deste ponto de vista, estudar São Tomás é de grande ajuda na medida em que se faça um trabalho de “conversio ad phantasmata”, de voltar à situação concreta depois ou antes de o ter lido, e entender bem de que coisas concretas ele está tratando.

Assim, na leitura de São Tomás não é necessário um cuidado prévio, mas uma complementação que, conforme o feitio de espírito, será anterior, ou mais ou menos concomitante, ou posterior, mas parece-me necessária sob pena de darem muitos tomistas subindo no ar eternamente, que não se entusiasmam nem entusiasmam ninguém.

Como construir o sistema dentro do qual se deseja expor um tema? Em geral, pelo senso católico se dá o seguinte: quando um tema passa diante de nós, ele causa em nosso espírito a sensação que a caça produz em um bom caçador. Ele pensa: “Ah, é uma perdiz!” Lá vai o tiro! Mas se passar diante dele outra ave que ele não costuma caçar, o caçador se mantém inerte.

Assim também conosco, habitualmente, passa determinada coisa que, ou é uma verdade que desejamos muito demonstrar, ou um erro que queremos muito refutar. Mas este “queremos muito”, em geral, é em função da elaboração genérica dos nossos espíritos em face da Revolução, ou por uma necessidade de alma, ou ainda por exigência da Causa Católica. Nasce então em nós a ideia: “Isto é preciso pegar!” Daí surge naturalmente o método, em função da meta e da natureza da “flecha” que tenho a jogar. O que é a “flecha”? São os recursos de produção intelectual que eu possua, ou seja, o que está na minha cabeça, a minha aptidão para aquilo, os meios de informação e a leitura que tenha para completar os dados sobre aquele tema.

Apresentados estes pressupostos, passo a tratar da temática sobre os instintos no ser humano.

Perfeição do equilíbrio mental do homem

Não afirmo que os instintos mandam de tal maneira que a razão não tem influência e o homem não é senão um joguete dos seus instintos. Penso o contrário. Infelizmente, a Revolução vai tornando o ser humano cada vez mais um joguete dos instintos; porém, na realidade, ele não é um mero joguete deles. O equilíbrio mental do homem provém de um feliz consórcio entre os instintos, no seu estado de equilíbrio, e a inteligência. Portanto, do racional com o razoável. Aí entra a perfeição do equilíbrio mental.

A pessoa só tem essa perfeição quando os instintos são regidos pela Moral Católica e quando a inteligência recebe como norma a Doutrina Católica. Porque então se faz esse amplexo ordenado entre o instinto e a inteligência, e o homem chega, enfim, à perfeição, ao equilíbrio de si mesmo.

Embora a prevalência deva ser da Fé sobre a razão – uma prevalência normativa, amiga, não despótica e persecutória, com uma submissão enlevada da razão em relação à Fé –, não obstante, continua verdade que mesmo os movimentos realizados pela inteligência e pela vontade para conhecer a verdade e querer o bem não são feitos sem os instintos, mas sim com o auxílio, a colaboração deles para captar a realidade, dentro de um alegre convívio, uma coexistência mais do que pacífica, colaboradora dos instintos com a inteligência.

Por exemplo, quando leio São Tomás e tenho noção da lucidez do pensamento dele, isto produz na minha inteligência o efeito de se sujeitar: São Tomás tem razão. Mas produz também outro resultado: eu me encanto com essa diáfana transparência do pensamento e da demonstração dele. E nisto encontro uma alegria do meu instinto que me leva a querer a verdade. Esse deleite, essa degustação da verdade enquanto tal tem qualquer coisa de instintivo. De maneira que o instinto é, no sentido bom da expressão, companheiro de viagem da razão. Não há um determinado momento do processo mental em que a razão diz ao instinto: “Cala-te, escravo miserável! Agora vou te matar e andar sem ti.”

Uma maravilhosa harmonia das inteligências, das vontades e dos instintos

Ontem, ao ouvir o órgão tocar, pouco antes da Missa, e vendo o teclado dedilhado pelo organista, veio-me ao espírito a seguinte reflexão a respeito dos instintos.

A instintividade humana é tal que ela possui uma multidão de movimentos. E assim como a conservação do órgão supõe que, de vez em quando, cada tecla seja tocada – imagino que se algumas teclas não fossem tocadas nunca e outras o fossem muito, esse órgão ficaria meio cambaio –, assim também todos os instintos têm, ora com mais frequência, ora com menos, necessidade de serem satisfeitos, ou seja, de serem postos em movimento para aceitarem ou rejeitarem algo. Por causa disso, a vida é um contínuo tocar de teclado da Providencia através dos Anjos e dos acontecimentos. Mais ainda: através dos demônios, que Deus também permite que toquem o teclado de modo errado, de maneira a, de vez em quando, vibrarem em nossas almas teclas que, conforme o gênero de tentação, emitem notas aloucadas no meio da mais delicada harmonia, ou um ruído que falseia todo o som.

Mas tudo em nós tem que tocar. Cada um de nós é um “órgão”, quer dizer, um jogo de instintos que de modo irrepetível, isto é, nunca houve nem haverá em ninguém daquele jeito, tem uma espécie de equilíbrio, de harmonia que o indivíduo precisa realizar durante a vida, e que ele efetuará por meio da sua santificação, dando-lhe um certo tipo de perfeição como nunca ninguém teve ou terá.

Então, não se trata só de elaborar, “in genere”, o conceito teórico de equilíbrio – o que é muito válido e bom –, mas em concreto o equilíbrio que cada homem individualmente considerado realiza, o qual é uma obra-prima de Deus dentro da grande harmonia dos incontáveis teclados que são os homens criados ao longo da História. De maneira que, no fim do mundo, quando todos os justos estiverem salvos, se tocará uma harmonia não só das inteligências e das vontades, vendo e querendo de modo complementar e maravilhoso, mas também dos instintos, fazendo uma harmonia de cuja beleza nós nem sequer temos uma ideia.

Por outro lado, do fato de o homem ser sociável, os seus instintos não são isolados – há uma interação de uns sobre os outros que, quando todos os indivíduos são virtuosos, ou os virtuosos sabem recusar as instintividades más que outros lhes sopram – provém uma harmonia de instintos que forma propriamente o deleite da sociabilidade e constitui um outro modo de interferir no jogo dos instintos, dentro do plano da Providência; de tal maneira que os instintos das outras pessoas com quem estou em contato, os quais percebo mais ou menos confusamente, repercutem em mim. E se eu reagir adequadamente diante deles, como o órgão, estarei executando aos “ouvidos” de Deus a sinfonia que Ele quer ouvir, o “canticum novum”(1) que devo cantar para Ele, e que ninguém entoou em nenhum século, pois é o meu canto, o qual estarei cantando até mesmo sem perceber.

Instinto genérico do brasileiro: afeto e bondade

Aqui caberia uma consideração a respeito dos povos e nações.

Os homens individualmente têm instintos, mas não se pode dizer que um povo possua instintos, nem que ele forme uma família de instintos ou que há famílias de instintos dentro dos povos, com uma interação parecida com a dos indivíduos de uma família. Entretanto, dentro do Brasil, por exemplo, o modo de fazer política de um gaúcho, um paulista, um mineiro, um carioca ou de um baiano são, no fundo, meio complementares.

É curioso que todos esses instintos dão origem, em cada nação, província, Estado, município, como em cada família, a uma espécie de axiologia própria dependente do instinto. O brasileiro tem o instinto genérico de que, por fim, o afeto e a bondade acabam tendo a melhor palavra, com vantagem para todo mundo. De maneira que se houve uma briga ou guerra entre duas nações ou indivíduos, foi um desastre ou uma inabilidade. Mas o verdadeiro equilíbrio se encontrará num jeito pelo qual aquilo se recompõe. E, portanto, não vale a pena estar gastando demais a atenção em tratados. Caso não se chegue a uma composição afetiva, nada é nada na terra de ninguém. Embora esse afeto recíproco possa ser muito decepcionado, de qualquer forma é preciso apelar para ele como a carta suprema, fora da qual a vida não vale a pena ser vivida.

Esta seria a ideia primeira a respeito dos instintos. Só depois de estar ela bem posta se pode, então, tratar a respeito dos instintos em relação à Revolução e à Contra-Revolução.

Equilíbrio sacral existente na Idade Média

Consideremos a Idade Média. A atmosfera das catedrais, dos castelos, das aldeias medievais criava uma espécie de equilíbrio instintivo ocasionado, em larga medida, pelo sacral. Porque fora de uma perspectiva sacral não pensem em equilíbrio dos instintos, porque seria como cogitar em voar sem asas, andar sem pernas, ver sem olhos; não se consegue, simplesmente.

Na Idade Média esse equilíbrio sacral tinha chegado a modelar a sociedade temporal do modo mais alto possível, depois de ter exercido na própria Igreja o influxo mais salutar, pois, nascido da própria sociedade espiritual, lhe faz bem como uma fonte que surge do chão e começa por regar o solo de onde nasceu.

Há uma espécie de equilíbrio medieval, um ponto de repouso dos instintos na presença do sacral por onde eles perdem sua condição de impulsos perpetuamente famintos ou sedentos, que marca todas as outras situações de instintos fora dessa alta cúpula medieval. Ninguém conhece um conjunto de povos tão altamente equilibrado nos seus instintos como a Europa daquele tempo. Não porque não houvesse também desequilíbrios, mas o ponto-chave era equilibrado.

Explosão dos instintos e acomodação

Insisto então nesta ideia: os instintos se movimentam em nós, mas geralmente prestamos atenção neles quando estão uivando de sede ou de fome. Mas fora disso não os percebemos. Habitualmente todos os nossos instintos são assim: alguns estão inertes e outros querendo criar caso. E toda a capacidade vital se concentra desordenadamente sobre alguns instintos que, uma vez ausente o sacral, tornam-se insaciáveis. A partir disso, se colocamos numa alma o tonel das Danaides(2), onde quanto mais se põe água mais o tonel se esvazia, então não há solução para nada.

Para jogar o povo no “mare magnum” de uma revolução é preciso, antes, fazê-lo rejeitar o equilíbrio instintivo do sagrado para que se ponha a fazer papel de louco: assobiar, silvar, uivar…  Por onde se chega à conclusão profunda, mais ou menos inadvertida, de que não pode haver ordem. Sucede, então, um caos das tendências, dos projetos, das doutrinas, tudo a serviço de certas metas que o indivíduo reputa que vão proporcionar para ele uma determinada felicidade nesta Terra. Mas todos têm, ao mesmo tempo, uma certa noção confusa de que essa situação é insolúvel.

Há muita gente que nunca pensou nesses assuntos; entretanto, têm mais ou menos isso no fundo da cabeça e vivem assim, sempre com a ideia de que no próximo gole satisfazem o instinto. E cada vez que bebem mais um gole ficam com mais sede. Não podem parar de beber, porque se não beberem é um tormento; bebem, o tormento aumenta.

Então, o sujeito compra um automóvel e pensa: “Afinal tenho um automóvel…” Logo em seguida ele precisa de um automóvel melhor e, pouco depois, se ele não tiver o automóvel-ápice, aquele que ele possui não vale nada. Mas quando obtiver o automóvel-ápice, ele reflete: “O que é esse automóvel? Imagine viver só com um automóvel, coisa ridícula! Eu preciso ter mais tal outro…” E lá vai! Não tem limites. São os instintos desatarraxados.

Acontece que, depois da primeira explosão revolucionária dos instintos, há uma certa acomodação. Porque está no jogo dos instintos não gastar demais a vitalidade. Aquilo que a pessoa queria demais, quando ela sente ter sacado demais de si para obter, ela já não tem vontade de dar. Então, há períodos de revolução e períodos de acomodação.

As revoluções na História se fazem, em geral, de eras nas quais está sobrando o instinto vital para o combate, e eras em que aquilo cessa e a pessoa quer se entregar de qualquer jeito, ter uma vida sossegada. É um instinto que dá lugar a outro.

Desprovida do sacral, a ambição por coisas belas e nobres transformou-se em instrumento da Revolução

E como faz a Revolução para desencadear uma revolução? Na Idade Média o que ela fez? Começou por tomar instintos nobres e, por falta de sacralidade, levou as pessoas a ambicionarem aquelas coisas nobres e belas desordenadamente, a quererem umas e rejeitarem outras; e as desejadas o eram numa perspectiva forçada, errada.

Dou um exemplo. A coragem é uma nobre posição da alma que corresponde à ideia de que o homem se encontra em estado de prova – já estava antes mesmo do pecado original –, e que precisa, portanto, combater. Para isso ele tem o instinto que o leva à luta. Mais ainda, a culpa original tornou sua pugna mais urgente, mais cogente. Mas ele tem proporção com isso e há uma beleza que talvez não existisse nem no Paraíso terrestre, que é a luta do homem sobre os efeitos do pecado original.

Então, uma certa ideia da beleza que há na aventura, no risco, no enfrentar o incógnito, sem o que a alma não tem equilíbrio. A isso se alia a noção de como é razoável e intrinsecamente belo expor nobremente a vida por um ideal superior.

Entretanto, como o homem que pratica esse heroísmo se torna digno de aplauso, começa então um elogio debandado do herói e de suas qualidades, mas abstração feita da perspectiva sacral. O herói, por ser herói, é um colosso. E o heroísmo é tão belo se praticado do lado de Maomé quanto de Nosso Senhor Jesus Cristo; ou feito simplesmente para ganhar glória e brilhar aos olhos dos homens.

Temos, então, a Cavalaria que passa de religiosa para puramente metafísica e natural, e de idealista para faceira. Ela baixou o teto. Ela continua a ser heroica, mas um heroísmo que, por ter perdido o caráter religioso, se degenera nas mais diversas formas, inclusive a do duelo.

O respeito do cavaleiro andante pela viúva, pelo órfão, por todos aqueles que são presas dos fortes se faz muito sentir e, enquanto tal, é uma coisa sublime, não há dúvida nenhuma. Mas, se formos analisar bem, isso foi levado ao respeito, ao culto à dama, porque ela, como mais fraca, merece reverência. Acabou resultando daí uma espécie de sublimação da debilidade feminina e, em função do que a mulher tem de mais delicado que o homem, a afirmação da superioridade dela sobre ele, sendo transformada num ideal do homem.

Vêm, então, aquelas descrições – a fisionomia é assim, com olhos de tal cor, nariz e pele de tal jeito, mãos e pés pequenos, etc. – que fazem pensar na dama como uma criatura ideal, produzindo uma afetividade por uma pessoa cuja alma se deduz do rosto e da linha geral do corpo. Essa afetividade já é meio divinizante, dessacralizada e pagã, e leva o indivíduo à adoração de uma determinada mulher. Mas, depois, à adoração a várias mulheres de um tipo feminino ideal que ele não encontra em nenhuma. Daí surge o romantismo com todos os seus desvios, sua sensualidade e tudo o mais. O respeito religioso à dama séria, à mulher forte da Escritura desaparece para dar origem ao culto à “mulher-bibelot”, ao mesmo tempo, à mulher-sonho, à mulher pseudomística: a Isolda do Tristão ou a Julieta do Romeu, daí para fora… Uma avalanche de sentimentalismo e de sensualidade derramou-se sobre o mundo.

A Revolução aciona os instintos para toda forma de excesso

Com a tendência para desequilibrar a afetividade e a coragem, surgiu também a propensão ao desequilíbrio de outro instinto legítimo, que leva ao gosto da prudência. O burguês que deseja levar uma vida trabalhosa, mas sossegada e, por causa disso, quer amealhar dinheiro, ter uma garantia contra o infortúnio, contra o ladrão, pondo cinco trancas na porta de sua casa e grades em todas as janelas. Tem ele um instinto razoável que se compraz na segurança. Mas, destemperado, esse instinto delira: o homem quer ficar riquíssimo; começam a aparecer em todas as nações os “Cresos”(3) desarrazoadamente ricos que acionam as alavancas monetárias dos acontecimentos. Assim, tudo tende a extremos desordenados.

A Revolução vê que todos os instintos são manuseáveis para tudo, exceto o equilíbrio, e que ela pode facilmente acioná-los para qualquer forma de excesso. Então, ela estuda um pouco e percebe quais instintos prevalecem livremente no momento e quais passaram para o segundo plano. Com base nisso, ela apresenta uma meta cultural, ideológica, afetiva, consuetudinária que encaminha para levar até o delírio aquilo para o que há uma tendência. Trata-se, então, de conduzir os indivíduos fazendo-os galopar com ênfases e na euforia de uma suposta juventude – pois todos os desregrados se pretendem eternamente jovens – até esse ponto do exagero e do delírio.

Quando o instinto delirou, ele passa por uma “quarta-feira de cinzas”; é o palhaço que durante os três dias de Carnaval bebeu e comeu demais, se “empalhaçou” demais, e deita jururu no chão do seu quarto, ainda fantasiado, e cozinha sua bebedeira, farto de tudo. Depois, quando acorda, lava-se mais ou menos e vai para a repartição onde ele é datilógrafo. Sonhou exageros, delírios de fantasia durante três dias; quando chegou à saturação e à explosão do instinto, ele tende ao oposto.

A Revolução já sabe e vem com sua proposta: “Olha, tal coisa assim é boa…” De fato, ele está precisando pôr dentro de si algo do que rejeitou, sob pena de não readquirir o equilíbrio, e o instinto de conservação não permite. Então ele vai voltando atrás em alguma medida do caminho percorrido. Em certo momento o pouco que voltou atrás já o sacia, e ele dá um pulo bem mais para a frente, procurando refúgio em outro exagero ainda maior. Assim, balançando, a Revolução o vai jogando até delírios que são uma explosão. Ou, então, ele apostata daquele caminho e entra num outro instinto que começa a tocar nele.

No Ocidente, por razões históricas, nós ainda estamos no jogo dos instintos correspondente a um horror ao sacral, ao equilibrado, ao sensato, àquilo que se mantém seriamente, com o desejo de algo que nos liberte disso, custe o que custar, aceitando qualquer forma de delírio. Os vários recuos da Revolução e os posteriores avanços para excessos maiores se explicam assim.                v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/3/1986)
Revista Dr Plinio

 

1) Do latim: cântico novo (Sl 96, 1).

2) Lenda da mitologia grega, segundo a qual as Danaides tinham sido condenadas a encher perpetuamente de água um tonel furado.

3) Creso, último Rei da Lídia, da dinastia Mermnadas. Famoso por sua riqueza, reinou de 560 a 546 a. C.

A medula da Contra-Revolução em Plinio Corrêa de Oliveira

Desde a infância, pode-se dizer que Dr. Plinio teve uma verdadeira troca de vontades com a Igreja, e foi recusando, uma por uma, as coisas revolucionárias que passavam diante dele. E, em sentido oposto, gradualmente foi concebendo uma Ordem Religiosa contrarrevolucionária, através da qual vislumbrou o Reino de Maria.

 

Comigo, as devoções se inserem dentro de ciclos de pensamento e vão sendo assim relacionadas. É uma coisa muito singular. Suponho ser assim com todo o mundo, mas as pessoas não tomam o trabalho de explicitar.

A tintura-mãe mais sacral, forte, perfeita, insondável da Contra-Revolução

As graças que recebi quando pequeno, e até mocinho, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, foram muito profundas como visão de Quem e de como é Nosso Senhor. De tal profundidade e alcance que pude, depois, crescer em explicitação, mas duvido que eu pudesse — salvo um fenômeno da vida mística que não tive — conhecer mais do que conheci.

E isso foi acompanhado o tempo inteiro pela devoção a Maria Santíssima, a partir daquela graça de Nossa Senhora Auxiliadora, que se deu quando eu era ainda muito menino(1).

Na minha impostação, toda a luta da Contra-Revolução é uma defesa do que poderíamos chamar a mentalidade, o espírito do Sagrado Coração de Jesus contra a Revolução; porque é a tintura-mãe mais sacral, mais forte, mais perfeita, mais insondável da Contra-Revolução.

E daí se dar, com o passar do tempo, um contínuo relacionar disso com a luta Revolução e Contra-Revolução, por onde eu ia conhecendo o mesmo espírito, a mesma mentalidade, mas já no contraste com o oposto, aplicando e crescendo muito mais em fidelidade do que compreensão, nessa segunda fase. Em compreensão também, naturalmente, pois ia maturando com a idade; mas o crescimento da fidelidade era muito maior, porque, uma por uma, as coisas revolucionárias passaram diante de mim, e eu tive que recusá-las.

O lado positivo desse processo foi a elaboração gradual do que eu chamaria nossa Ordem Religiosa e, através dela, o vislumbre do Reino de Maria, que antigamente era para mim a mera Idade Média.

Isso levou anos e anos — quase toda a minha vida — correspondendo a elucubrações que, afinal de contas, pressupõem não haver uma concepção cultural, artística, política, moral, ou de qualquer outro caráter, que não gire direta e especificamente em torno disto: o Sagrado Coração de Jesus.

A certa altura, entrou o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, de São Luís Grignion de Montfort, e com isso uma ideia muito maior da intimidade com Nosso Senhor, por meio da sagrada escravidão a Nossa Senhora.

Então, a devoção a Ela cresceu muito, enquanto que a Ele continuou, dando numa dessas adesões estáveis, tranquilas, profundas, se Deus quiser da vida inteira, mas que parece não se mover. Precisamente por ter chegado a um certo ponto onde tem todo o necessário para alimentar o resto da trajetória.

Reflexões a partir da infinita nobreza de Nosso Senhor

Lembro-me de coisas ínfimas. Por exemplo, quando eu era pequeno, e até moço, meu quarto na casa de vovó ficava numa posição em que da janela avistava-se a escada de serviço, por onde entravam os empregados. E eu os ouvia, subindo, descendo e conversando.

Ademais, minha avó era caritativa e apareciam umas figuras populares pitorescas por lá, para pedir esmolas. Por exemplo, uma italiana, velhinha, muito branca, nariz aquilino, com umas veias azuis aparecendo pelo rosto, mãozinhas pequenas, arqueadas, as quais ela não conseguia fechar inteiramente, de tão velha que estava. Ela se arrastava, não sei de que porão das redondezas onde morava, e ia comer, juntamente com o “Antônio cego” e uma mulher chamada Serafina, embaixo da escada, que era um pequeno “Pátio dos Milagres”(2).

Eu ficava deitado na cama, fazendo a sesta, mas acordado, e ouvia o borbulhar daquela gente. Depois, olhava para meu quarto que era muito bem arranjado, agradável, espaçoso, com um papel de parede que me encantava, vindo de Paris.

Chegavam-me também os ecos da sala de jantar: minha mãe, minhas tias, minha avó conversando, com risos, exclamações, o telefone que soava, o cachorrinho lulu da minha prima, que ladrava, etc.

Ora eu analisava o meu quarto, ora os ruídos vindos de fora, e fazia reflexões sobre classes sociais que eram, no fundo, pensamentos sobre a transcendência, mas a partir da ideia da infinita nobreza de Nosso Senhor Jesus Cristo, que me parecia a própria personificação do nobre.

Mas percebia que se não abrisse os olhos e não fizesse essas classificações direito, na ambiguidade de todas as coisas, eu acabaria sendo devorado para baixo. E, portanto, precisava evitar, a todo custo, decair porque deixaria de assemelhar-me a Nosso Senhor Jesus Cristo.

As maneiras “hollywoodianas” pareciam-me o contrário da sacralidade, e um atentado contra Ele. A tintura-mãe do conceito de nobreza é a sacralidade.

Podia ser que, terminada a sesta, eu conseguisse encontrar aberta a sala de visitas, a mais fina da casa. Entrava, então, escondido e ia me ambientar ali. E me regalava com aquela ambientação, que era o extremo da meditação iniciada junto à escadaria, onde estava o meu quarto, e que ia subindo, subindo, até aquele ponto.

Tudo isso representava destilações e aplicações ao concreto da fidelidade ao Sagrado Coração de Jesus. Quer dizer, era uma verdadeira meditação, por onde Ele me acompanhava nisso tudo.

Sucessão de dois estados de espírito

Lembro-me de uma espécie de dualidade que havia em mim a qual mais ou menos se resolveu, cicatrizou de todo em todo quando entrei para o Movimento Católico.

Não era a dualidade clássica, que naturalmente havia e há em nós até morrermos, entre o homem mau e o homem bom, entre o estado de graça e a tentação para o pecado mortal. Não se tratava disso. Nem a matéria de pecado estava diretamente envolvida no assunto.

Eram dois estados de espírito que se sucediam, mais ou menos como uma luz que se apaga ou se acende dentro de uma sala, por exemplo.

Um era de um personagem menino, já muito sério, com as vistas muito voltadas para o maravilhoso, para tudo quanto há de mais elevado, para todas as harmonias, todas as profundidades; portanto, para uma coisa que eu não sabia que se chamava recolhimento — mas que era uma espécie de recolhimento contínuo — e algo que eu não sabia que era piedade — porque piedade para mim existia só na hora estrita de rezar —, mas noto hoje que era piedade. Era, então, um menino muito voltado para os assuntos relacionados com a Revolução e a Contra-Revolução.

Este menino não era um asceta e julgava como natural próprio dele fruir as coisas normais que, dentro do estado de graça, o menino pode desfrutar. Não tinha ideia de santidade, não possuía o intuito de alcançar a perfeição moral, mas apenas o de realizar uma obra para a qual se sentia chamado. Entretanto, tinha um propósito firme de se manter no estado de graça.

Este estado de espírito, no fundo, apesar das misérias, era profundamente bom, elevado e revelando um chamado muitíssimo marcado, que transpassava a minha alma de lado a lado. Era congênere com este estado de espírito uma certa seriedade um tanto melancólica, tristonha, mas carregada com ânimo varonil. E detestando tudo quanto era superficial, brincadeira idiota, etc.

De repente, havia uma amnésia de tudo isso e vinha, durante uma, duas, três horas, um estado de espírito diferente, superficial, brincalhão, e me deixando arrastar pelas formas de alegria dos anos 20 — que eram muito vivas, muito comunicativas, muito “hollywoodianas” —, sempre que eu não notasse nelas qualquer coisa de revolucionário. E elas comportavam muitas coisas que não eram revolucionárias, mas constituíam uma espécie de embalagem para entrar na Revolução. Esta eu não bebia, mas o que não era Revolução eu tomava e gostava, até muito.

Por exemplo, quando tinha entre 13 e 15 anos, de repente eu cantarolava a plenos pulmões esta ou aquela música que estava na moda — e em casa toleravam, não sei como, pois sempre tive uma voz muito forte. Cantarolava ou intimamente me lembrava de alguma coisa divertida, que assistira em algum teatro, repetia aquilo e achava graça.

Nas conversas com minha irmã e meus primos, sobretudo nas quintas-feiras, quando eles iam jantar em casa, havia uma mesa dos mais moços, na qual a brincadeira era debandada e eu era um dos chefes desse divertimento. Nunca havia coisas imorais, mas eram brincadeiras de mocinho, de mocinha, com toda intimidade. Então falando mal deste, daquele, da sociedade, dos parentes deles, empregando apelidos, debicando a minha família do norte… Sem nada de insultante. E às vezes um acentuando o defeito do outro, etc.

Eram coisas que contrastavam com o estado de espírito dessa seriedade que eu devia tomar. E, se me deixasse entregar, isso me levaria depois para uma atitude de alheamento em relação à minha própria vocação, e estremeço em pensar até onde esse alheamento me poderia conduzir.  Mas disso tudo eu não tinha noção.

Como eu vivia continuamente na companhia desses primos, minha presença também determinava, excetuadas as quintas-feiras à noite, muitas conversas sérias sobre História, às vezes discussão a respeito de religião com o marido de uma prima, que era ateu, mas muito meu amigo. Chegava à discussão furibunda, e entrava muito de seriedade pelo meio.

Aos poucos fui me dando conta da contradição entre aquelas brincadeiras e o meu perfil de contrarrevolucionário, e eu mesmo comecei a acentuar o corte com aquilo, até cortar completamente.

Ouvindo músicas de Chopin e Verdi

Certas músicas e formas literárias do século XIX pareciam contrarrevolucionárias, em comparação com o que a Revolução apresentava nesse período descrito por mim. E levei algum tempo para perceber que elas, no fundo, eram revolucionárias também, embora correspondessem à Revolução atrasada.

Então, havia certos compositores que me diziam muito. Desde logo e sempre, mas com prolongamentos de condescendência até hoje — não cumplicidade, mas compreensão —, Mozart. Eu ainda não conhecia Boccherini…

Mas tinha uma certa admiração, por exemplo, por Chopin. Então, na Polonaise Triunfal eu apreciava o lado heroico, contrário ao cinema norte-americano. Na Marcha Fúnebre, via um hino da seriedade, que era o oposto dos funerais hollywoodianos, com o cadáver maquiado sentado numa sala, bem como outras coisas que já naquele tempo se faziam e repercutiam sobre mim muito desfavoravelmente.

Certos trechos de Lamartine e outros literatos franceses do século XIX me pareciam elevados, grandiloquentes, e eu não percebia diretamente o aspecto revolucionário.

Nessa idade eu não tinha conivência com a Revolução; isto posso afirmar. Havia falta de percepção. Por ingenuidade, eu via um lado que existia mesmo e, por contradição, era contrarrevolucionário. Mas não notava o aspecto revolucionário. Com o tempo, percebendo que era ruim, fui deixando também.

Confesso que até Verdi teve uma certa repercussão na minha alma. A Marcha da Aida eu reputava o auge da Contra-Revolução! Eu tinha uma vitrola, um gramofonezinho, comprava discos e certo dia adquiri o dessa marcha. Ao mesmo tempo, comprei-o pela música e pelo fato de ser feito de uma matéria vermelha. Por aí podem ver as cogitações infantis, misturadas com o encanto pelas cores, desde o começo.

Aqueles atores italianos cantavam a plenos pulmões, e eu colocava o gramofone a todo volume e a Marcha da Aida enchia a casa! Não havia quem se lastimasse com aquilo. Fico pasmo e, rememorativamente, agradecido pela paciência que todos tinham, pois eu também não percebia. Não existia a mínima ideia sensual ou sentimental com a Aída, nem nenhuma Aida no meu espírito. Mas aquilo me parecia grandiloquente, o grande drama do teatro.

Eu imaginava o Scala de Milão repleto de gente, o rei, a rainha — a Itália ainda era uma monarquia naquele tempo — assistindo em camarotes, e os atores cantando a plenos pulmões, sustentando aquela espécie de desafio, de maneira a simbolizar a pompa social e a monarquia real em termos culturais no seu esplendor.

O teatrinho ”João Minhoca”

Dou um outro exemplo.

Havia em Santos, onde íamos passar as férias no meio do ano, um parque de diversões próximo ao Hotel Parque Balneário, onde existia o “João Minhoca”, teatro de fantoches animados por um italiano. As figurinhas entravam, cantavam, diziam isto, aquilo, etc., e o bom italiano, talvez sem se dar conta, era extremamente pitoresco.

Um colega descobriu isso e convidou-me para assistir, com mais três ou quatro amigos. Fomos e fizemos propaganda. De maneira que, em certas noites, ia um farrancho de gente do Parque Balneário para ver a representação do “João Minhoca”.

Como a sociedade daquele tempo era muito mais hierarquizada do que a atual, reservavam espontaneamente os primeiros lugares para os eventuais espectadores do Parque Balneário. Então, ficávamos sentados na primeira fila, acabando por dar a nota ao ambiente, cujas pessoas aplaudiam o que aplaudíamos e achavam graça naquilo em que também achássemos.

Um dos bonequinhos representava um engraxate que entrava no palco cantando, em português macarrônico, toda uma ária. Nós achávamos muita graça quando chegava a hora do engraxate, e aplaudíamos vigorosamente. Eu, naturalmente, era dos puxadores de palmas. Depois, em casa, eu cantava a “ária do engraxate”. E todo mundo tolerava de modo surpreendente.

Mas isso revelava uma tendência para súbitos cansaços da clave superior, meio subconscientes, e repentinos anseios de levar uma vida desengajada, não responsável e feita para meu próprio lazer. Mas eu não percebia, no começo, uma incompatibilidade absoluta entre uma coisa e outra; notava serem diferentes, mas julgava que podiam coexistir bem.

Com o tempo fui percebendo que não. Nesse período, os meus olhos foram se abrindo mais para esse problema, e quando me engajei no Movimento Mariano cortei com isso completamente.

Já moço, nas fotografias tiradas antes de me formar em Direito — na Linha de Tiro, nas Congregações Marianas e em outras ocasiões —, nota-se como esse lado desapareceu e o outro preponderou, graças a Nossa Senhora.

Esperança de encontrar pessoas mais contrarrevolucionárias

Ao mesmo tempo, a consciência de minha vocação se apresentava em termos tão altos, que eu podia dizer — sem me comparar, nem de longe, com Carlos Magno — que a missão tinha um porte carolíngio. E o futuro se apresentava a mim com lufadas de caráter profético, de uma grandeza enorme!

Nessa mesma época em que, de vez em quando, eu tinha esses acessos – um misto de infantilidade e de evasão dessa grandeza, que constituíam uma tentação —, ficava na dúvida sobre o real valor dessas previsões que sentia.

Que estava diante de mim a Revolução eu não tinha dúvida nenhuma. Que era preciso fazer a Contra-Revolução e eu teria de trabalhar muito para fazê-la, eu não tinha dúvida nenhuma.  Que ao longo de minha vida não encontrasse pessoas mais contrarrevolucionárias do que eu, tinha receio, mas uma esperança enorme que não fosse assim; pelo contrário, esperava encontrar tais pessoas, investidas de um verdadeiro direito ao mando nessa matéria, e das quais eu pudesse ser um campeão, mas nunca um diretor, um mentor.

Pensava eu: “Nas fileiras das classes sociais que a Revolução pretende destruir, devo encontrar os contrarrevolucionários perfeitos, com direito a mando, e junto aos quais eu possa exercer uma influência na linha do que está no meu espírito.”

Mas, às vezes, a esse pensamento seguia-se outro: “Coitada de Nossa Senhora! Desconfio que Ela terá que se contentar comigo. Porque vejo que fazer Ela fará, pega qualquer ‘dois de paus’ e o utiliza para realizar sua obra, se os naturalmente chamados não quiserem.”

Isso eu considerava sem ambição e, sobretudo, sem qualquer vaidade, sentindo bem minha desproporção. Aquela expressão de São Luís Maria Grignion de Montfort, “petit vermisseau et miserable pécheur”(3), entrou na minha alma até o fundo. Assim sou eu e assim é todo o mundo.

De outro lado, tinha até certo receio de que isso fosse verdade, pois exigiria de mim mais esforço para chegar ao píncaro de mim mesmo, e mais luta do que eu teria se seguisse um chefe. Mas, poderia ser eu, e deveria me preparar inclusive para isso.

Troca de vontades com a Igreja Católica

Depois de minha viagem a Europa, em 1950, a ideia de uma missão pessoal se vincou muito mais em meu espírito, dando-se uma espécie de união entre esta vocação e eu, no sentido de que, na Terra inteira, quem abriu o coração de par em par para isso, pelo menos naquela ocasião, fui eu. E mais ou menos como a pomba de Noé, que teve de voltar para a arca por não encontrar lugar onde pousar, eu sentia incidir sobre mim a vocação.

Com a convicção de que era preciso amar, mais do que nunca, todas as grandezas do passado. E não somente amá-las, mas de algum modo sê-las! De maneira tal que eu percebia tratar-se de uma tradição quase milenar que estava expirando, e que não morria inteiramente porque habitava em mim; e a partir de mim teria o seu renascimento.

Tenho até dificuldade em descrever a união de alma, a verdadeira troca de vontades com a Igreja Católica, enquanto oposta a tudo quanto a Revolução tinha feito, e trazendo em si todos os gérmens para realizar o contrário. E na Igreja Católica, ao pé da letra, com Aquele que era para mim a personificação, por superação, da Igreja Católica: o Sagrado Coração de Jesus.

Para ser bem positivo, essa espécie de troca de vontades começou em menino. E com a minha compenetração, com o exercício progressivo do papel que eu devia realizar, foi-se estabelecendo em minha alma, cada vez mais, uma união com aquilo que em determinado momento se tornou completa.

Tudo isso num processo interior do qual estou marcando algumas etapas, sem cronologia muito definida, porque não me lembro. Recordo-me apenas de que uma etapa sucedeu a outra.

Comecei a frequentar a igreja desde não sei quando. Mamãe me levava à Missa aos domingos no Coração de Jesus, e o edifício material da igreja exercia sobre mim um efeito sobrenatural da graça, que naquele tempo eu não sabia discernir. Eu pensava que decorria do aspecto do templo — de uma majestade doce, suave, acolhedora, embebida de uma tristeza compassiva, mas que ao mesmo tempo pedia compaixão —, de algo em que minha alma se sentia como diante do seu analogado primário4 do modelo perfeito que queria ter. Tudo me falava de seriedade, de bondade, até o extremo concebível! Eu via que isto se exprimia muito nas cerimônias do culto, nos paramentos, na liturgia, no órgão, etc.

O órgão me maravilhava! O que eu tinha de pendor pelo órgão, era impossível dizer. Mas eu fazia raciocínios assim: “Este órgão parece a imitação de uma voz humana. E dir-se-ia ter havido uma vez na História um homem que falou de tal maneira, que todas as sílabas pronunciadas por ele tiveram o timbre de um órgão. Quem teria sido esse homem? Como é que o espírito dele chegou até quem compôs esse instrumento?”

A imagem do Sagrado Coração de Jesus e o Santo Sudário

Não custei a perceber que a imagem do Sagrado Coração de Jesus ali presente representava isso, ou seja, a Pessoa da qual emanavam todas essas coisas. Era Ele, especificamente enquanto fazendo ver seu Coração aos homens, com todas as perfeições, todas as maravilhas de alma possíveis, tudo quanto pode haver de bom realizado de um modo que eu não podia ter imaginado.

Por não possuir ainda suficiente formação catequética, supunha discernir tudo isso n’Ele pela análise psicológica da imagem. Hoje, quando a observo, vejo como ela está distante, na realidade, daquilo que a graça me fazia ver. É uma imagem digna de respeito, não tem dúvida, a qual quero muito, mas não diz o que eu via nela.

Era uma graça obtida por Nossa Senhora para mim. Eu arquetipizava corretamente a imagem. De maneira que, por exemplo, quando vi o Santo Sudário, eu disse: “É Ele!”

Mas hoje posso afirmar que isso que eu via, por ação da graça, na imagem era ainda mais fielmente Ele do que o Santo Sudário. O que se compreende, porque o Santo Sudário é a posição d’Ele como morto e como vítima. E a imagem do Sagrado Coração de Jesus representa-O vivo, acolhedor, afável…

Donde eu deduzia o seguinte: Jesus merece adoração, e eu O adoro inteiramente. É preciso querer até o fim, ter esta mentalidade completamente, assim se deve ser, isto é o meu ideal. Eu só sou congênere com quem é congênere com Ele. E quem não é congênere com Ele não o é comigo. Eu tenho parte com Ele, e quem não tem parte com Ele, não a tem comigo também.

Por conveniências sociais, educação, necessidade de apostolado, posso conduzir um convívio cordial. Mas ter parte com minha alma, querer bem, só quem for como Nosso Senhor.

Ele é Deus, porque ninguém tem inteligência nem virtude para inventar esta figura, a começar por mim. Se eu não tivesse visto isto na Igreja, não seria capaz de ter esta ideia que tenho d’Ele.

De onde longas orações ao pé da imagem, Ladainha do Coração de Jesus, etc.

E isso era o ponto de partida da Contra-Revolução na minha alma. Porque eu via o mundo “hollywoodizado” como o contrário daquilo tudo. E o mundo que a Revolução Francesa destruiu, e que eu também arquetipizava, eu o via como realizando em grande parte aquilo que Ele era. E percebia que quando se destruiu aquilo, quis se destruir a Ele, e não se desejou o que era conforme a Ele.

Donde a medula da Contra-Revolução, em mim, ser a devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

Alguém poderia perguntar: “Mas por que o Sagrado Coração de Jesus, e não Jesus expirando na Cruz, por exemplo?”

A graça chama a cada um para certo tipo de devoção. É legítimo. Deus me livre de negar as outras mil formas magníficas de devoção, com que a Igreja Católica não cessa de louvar a Nosso Senhor Jesus Cristo durante a História. Mas sinto que fui chamado para adorá-Lo especialmente assim.

Dona Lucilia e o Sagrado Coração de Jesus

Meu afeto para com mamãe era por isto. Em geral, eu me sentava ao lado dela na igreja, e a olhava rezar e pensava: “É curioso, isto tudo vive nela.”

Eu a via rezar em casa para a imagem do Coração de Jesus que ela possuía em seu quarto, naquele oratório, a qual é muito anterior à imagem de alabastro do salão, e pensava: “Há uma atração entre Ele e ela. Mamãe é assim porque reza para Ele.” De onde o benquerer derivado. Eu a queria enormemente bem, mas por isto.

Para mim, a Igreja Católica é santa porque é como Ele. A influência e a presença d’Ele estão totalmente nela. A própria auréola que nimba a cabeça de Nosso Senhor é a Igreja Católica. É por isto que a amo.

A primeira coisa que me chama a atenção n’Ele é a presença de algo — que eu sei ser a divindade, mas estou procurando descrever o que vejo e não o que conheço pela Fé — de excelso, altíssimo, e que leva todas as qualidades que Ele tem a um grau inimaginável. Por mais que eu tente imaginar, qualquer qualidade d’Ele é de uma elevação, uma altitude, uma plenitude que não chego a compreender, mas vagamente entrevejo.

Por exemplo, Jesus ensinando os doutores no Templo. Aquele grupo de imagens, na Igreja do Coração de Jesus, é interessante, exprime mais ou menos isso. A crítica de homem maduro àquilo tudo eu fiz de modo completo, mas guardei com o máximo cuidado o que interessava.

Ali está Ele difundindo em torno de Si um halo de virtude divina, por onde todas as virtudes de um adolescente eram conduzidas a um elevado grau e procediam de uma fonte altíssima, insondável; por onde tudo o que no adolescente existe, por exemplo, de irrupção de vida, n’Ele era uma vida que irrompia tão cheia de elevação, de grandeza, de nobreza, que nem se sabe o que dizer. E também tão repleta de bondade, de misericórdia, de sabedoria, que galopava muito além da idade; mas que se exprimia com o timbre de voz e num vocabulário que não era inadequado para a idade. Entretanto, dizia muito mais do que todos aqueles doutores juntos.

O píncaro dos píncaros o qual nunca sonhei que existisse, a minha alma entreviu!

É mais ou menos como um monte altíssimo, no cume do qual vejo nascer um fio de água, que pode chegar até mim; mas tenho presente, durante todo o tempo em que bebo a água, que ela vem do alto daquela montanha, que eu vi nascer, a bem dizer, dentro do azul do céu.

A obra-prima de Maria Santíssima

Isto para mim é a primeira impressão, diante da qual a tendência imediata é, ao mesmo tempo, de aproximar-me de Jesus, ajoelhar-me e, se Ele tolerasse, segurar seus pés para tê-Lo junto comigo, para ver se Ele me impregna mais.

Daí eu gostar tanto do “Anima Christi, sanctifica me”(5). Porque, se eu O visse, a primeira coisa que Lhe diria é: “Santifica-me!” Porque quero ser parecido com Ele. Depois desta elevação, vem tudo quanto uma alma inocente, habitada pela graça, pode imaginar no Menino Deus adolescente: o modo de Ele responder uma pergunta audaciosa, de ser afável com outro, de liquidar uma questão com três palavras simples que os deixavam boquiabertos. Mas com a despretensão e a naturalidade de quem diz: “Olhai os lírios do campo, não tecem nem fiam…”(6). Uma coisa superior, mas de tal superioridade, que junto a ela minha alma respira. Sinto falta de ar em tudo o que não é isto.

Tudo quanto é virtude, que vejo reluzir na Igreja, brilha daquela maneira porque tem n’Ele a fonte, e que em Jesus é de um modo a perder de vista!

Por exemplo, uma procissão nos bons tempos, que sai da Basílica de São Pedro com o Santíssimo Sacramento, o Papa levado numa espécie de estrado e ajoelhado diante da Hóstia; e a longa fileira dos Cardeais, dos Arcebispos, dos Bispos, dos Superiores Gerais das Ordens religiosas, etc., que dão a volta na Colunata de Bernini e entram na Basílica pelo outro lado; os sinos que tocam, o incenso que enche o ar, as pombas que esvoaçam e a multidão genuflexa que pede perdão. Tudo isso é reflexo d’Ele.

Compreende-se como é, no fundo, a Igreja reportando todas essas coisas a Nosso Senhor e, imaginado n’Ele, tudo isto fica tão alto… Mas, nos momentos em que se tem a experiência do “petit vermisseau et miserable pécheur”, vem à nossa mente, de vez em quando, a noção aflitiva da desproporção. Porque, enquanto a afinidade é empolgante, a desproporção é acabrunhadora.

Então, Jesus mesmo preencheu essa distância com a bondade d’Ele. A obra-prima do Coração d’Ele é Aquela de quem Ele é a obra-prima. Nosso Senhor é a obra-prima de Maria, mas antes de todos os séculos Maria foi ideada como a obra-prima da misericórdia d’Ele para preencher essa desproporção. Sem Ela, eu me sentiria ao mesmo tempo atraído indizivelmente, mas apavorado e aniquilado, pensando diante d’Ele: “Si iniquitates observaveris, Domine, Domine, quis sustinebit?”(7). A Mãe d’Ele me sustenta.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 26/11/1985 e 12/12/1985)
Revista Dr Plinio 197 (Agosto de 2014)

 

 

1) Ver Revista Dr. Plinio, n. 122, p. 18-23.

2) Cf. Revista Dr. Plinio, n. 32, p. 27.

3) Do francês: vermezinho e miserável pecador.

4) Termo utilizado em Filosofia, significando matriz, padrão.

5) Do latim: Alma de Cristo, santifica-me.

6) Cf. Mt 6, 28.

7) Do latim: Se consideras as culpas, Senhor, quem poderá se sustentar? (Sl 130, 3).

A maior fonte de bênçãos de todos os tempos

Com o nascimento de Maria Santíssima abriu-se a maior fonte de bênçãos de todos os tempos, cuja irradiação pessoal e ação de presença eram o prenúncio da vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi o início daquilo que iria derrubar, afinal, as muralhas do paganismo.

A Natividade de Maria é, pois, uma festa de altíssimo significado na qual podemos implorar que, assim como Ela veio à Terra e imediatamente começou a pedir o advento do Messias e o fim daquela ordem de coisas embargada pelo pecado, Nossa Senhora nos dê um desejo ardente, sapiencial, refletido, ponderado, sério e profundo do Reino de Maria, que não deixe em nossas almas apego a mais nada.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/9/1966)