Deus ama a oração importuna

No número de agosto publicamos excertos da série de conferências que Dr. Plinio pronunciou em 1957 sobre o livro de Santo Afonso Maria de Ligório — “A oração, o grande meio da salvação”. Continuamos com alguns outros trechos da mesma, dada a grande importância que o tema representa para a vida espiritual de todo católico.

 

Para obter que Nosso Senhor nos abra a porta, basta ser importuno. Isso está dito textualmente e comentado por um Doutor da Igreja do porte de Santo Afonso de Ligório. Devemos considerar, de uma vez por todas que, na oração, não são nossas misérias que entram em linha de conta.

A oração não é um cheque bancário contra Deus

A oração tampouco é um cheque que eu saco do fundo dos meus créditos e compro de Deus um favor. É preciso desfazer tal ideia, pois é um obstáculo para o desenvolvimento da nossa vida espiritual.

Oração é algo diferente. Ainda que eu não tenha nenhuma razão para ser atendido, sê-lo-ei pela minha importunidade. A importunidade do pecador abre as portas do Céu e obtém, afinal, tudo quanto possa desejar. É frisante, nesse sentido, a palavra de Nosso Senhor.

S. João Crisóstomo, grande Doutor da Igreja, comenta no mesmo sentido: A oração vale mais junto de Deus do que a amizade(1).

É uma afirmação que eu não teria coragem de fazer: estabelecer uma distinção entre a oração e a amizade com Deus, para concluir que a primeira vale mais que a segunda. Ora, isso foi dito por São João Crisóstomo, que Santo Afonso por sua vez cita.

A oração vale mais diante de Deus do que a amizade. Entre uma pessoa em estado de graça, mas que não reza, e outra que reza mas não está em estado de graça, quem reza alcança mais favor diante de Deus. Outro argumento interessante, invocado por Santo Afonso para justificar a tese de ser a oração do pecador eficaz e grata diante de Deus, é a passagem evangélica em que Nosso Senhor elogia a oração do publicano: “Assim é que se deve rezar!”

Qual é o título que o publicano apresenta diante de Deus para ser atendido? Não é o “cheque” que os fariseus apresentam: “Agora tu, Deus, que me põe uma barreira, tu tens que me dar um prêmio, porque eu fiz algo. Aqui está o que eu fiz!”

Na sua oração, pelo contrário, o publicano invoca o título de pecador: “Deus, sede-me propício, a mim que sou pecador”.

Ora, tendo alegado esse título de pecador, o Evangelho acrescenta: … este (o publicano) voltou justificado para a sua casa (Lc 18,14).

Quando nós alegamos o título de pecador, somos atendidos. É engano achar que devemos estar num alto grau de virtude para que nossas orações sejam atendidas por Nosso Senhor. É preciso abandonar essa ideia heterodoxa, se quisermos ter verdadeiro espírito católico. Outra frase, também muito interessante, é tirada de uma oração do Profeta Daniel: Inclinai, meu Deus, o vosso ouvido, e ouvi-me (…) porque nós, prostrando-nos por terra diante da vossa face, não fazemos essas deprecações fundadas em alguns merecimentos de nossa justiça, mas sim, na multidão das vossas misericórdias (Dan 9, 18).

Essas palavras, ditas pelo Profeta, não constituem figura de retórica, como quem dissesse: “Vê tudo isto! eu ainda vou pôr mais um enfeite, vou dizer que não tenho nada. Mas, é para mostrar que eu sou humilde e, portanto, não digas que há contrabando na minha mercadoria. Dá-me agora aquilo que tu me prometeste!”

Não se trata disso. A humildade está presente na verdade, e na oração não pode haver mentiras. O Profeta Daniel, realmente, se dirige a Deus em nome do povo judeu, carregado de pecados e prostrado por terra.

Esse povo judeu, prostrado pelo pecado, na condição de pecador, faz uma oração. Ele alega essa condição ao se apresentar ante Deus e é atendido.

É uma oração tirada da Bíblia, inspirada pelo Espírito Santo. Assim, compreendemos quanta confiança também nós devemos ter.

O pior do pecado é o desespero

Há outro trecho, dessa vez tirado  de São Mateus: Vinde a mim todos que andais em trabalho e vos achais carregados que eu vos aliviarei (Mt 11, 28). Segundo São Jerônimo, Santo Agostinho e outros, qual é essa categoria de gente que está em trabalhos? São os pecadores que têm algum pesar de ter cometido pecado.

Esse é o sentido da palavra trabalho, neste contexto. É para esses pecadores que Nosso Senhor disse: “Vinde a mim que Eu vos aliviarei”. Quanta cordura e quanto amor ao pecador! Quanto desejo de atraí-lo! Que absurdo, que aberração comete o pecador se ele se desespera! O pior do pecado dele não é a falta, é o desespero.

Enquanto ele conservar a confiança ele pode voltar, e há torrentes de razão para confiar. Outra citação, também muito interessante: “Não desejas — diz São João Crisóstomo dirigindo-se ao pecador — tanto a remissão de teus pecados quanto Deus deseja perdoar-te”.

São João Crisóstomo, ao ver um pecador querendo sair do seu pecado lhe diz: “Deus deseja mais que tu te convertas, do que tu mesmo o desejas”.

Compreende-se, portanto, quanta confiança deve ter um pecador quando ele pede sua conversão a Deus. Ele pede uma graça que o próprio Deus deseja mais do que ele. Como não ter toda a confiança?

Importunidade, o principal requisito da oração

Ainda São João Crisóstomo, ao comentar São Mateus, diz: “Não há o que não obtenhas pela oração, ainda que estejas carregado de mil pecados, contanto que a oração seja instante e contínua”
(Hom. 23 in Matth.).

Note-se bem que São João Crisóstomo é um dos grandes Doutores da Igreja.

Sua frase condensa o que acima afirmávamos. “Não há o que não obtenhas pela oração”, diz ele. Ou seja, ele inclui tudo. “Ainda que estejas carregado de mil pecados…”, não de um só pecado. Para se obter o que se pede, a condição será ter firme propósito ou qualquer outra coisa? Não, não é. “Contanto que a oração seja instante e contínua”, não é necessário mais nada.

É preciso ser importuno. A oração obtém tudo na medida em que é insistente, caso contrário não é boa oração. Mais claro não podia ser. Ou as palavras humanas não têm sentido, ou o sentido é esse.

Mais adiante é citado um trecho de uma epístola de São Tiago: Se algum de vós necessita de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá com abundância e não impropera (Tg 1, 5). Sabedoria é juízo, sabedoria é critério, sabedoria é conduzir-se bem, é não ter algum dos defeitos que levam ao pecado. Se alguém precisa disso, peça. Deus dá com abundância a qualquer um que pede.

Como Deus é generoso! Como Ele é misericordioso! E como é taxativo!  “Se alguém precisar, peça, Eu darei”. Ou Deus não existe, ou Ele é mentiroso, ou isso é verdade. Não há outra alternativa. Santo Afonso se pergunta o que querem dizer estas palavras: “Deus dá com abundância e não impropera”.

Citando mais uma vez São João Crisóstomo em abono de suas teses, ele explica que os poderosos da Terra, quando se lhes pede algo, não dão com abundância e ainda por cima improperam. É bem verdade. Quando dão, dão pouco e de má vontade. Com Deus é diferente. Deus não impropera quando se Lhe pede. Santo Afonso demonstra que Deus impropera quando não se lhe pede. O que O ofende — contrariamente ao que se dá com os homens — é não ser importuno com Ele. Sendo importunos não O ofendemos, mas Lhe somos agradá-
veis. Esta é a realidade.

Deus nunca nos acha “”cacetes””

Meu avô costumava dizer o seguinte à minha mãe, que rezava muito: — Deus deve te achar muito cacete, embora você seja uma boa menina. Porque até eu, que te quero tanto bem, se você falasse tanto comigo como fala com Deus, acabava te mandando embora e te achando cacete. E assim eu também acho que você deveria rezar menos. É o contrário! Deus nunca nos julga cacetes. Se há lugar no mundo onde nós podemos ir, certos de não estarmos sobrando, é aos pés do Santíssimo Sacramento. E onde haja uma imagem de Nossa Senhora, ali somos sempre bem recebidos, ainda que nos consideremos os piores mulambos da Terra. Em todos os outros lugares, não devemos ter dúvida nenhuma, sempre há uma determinada situação na qual nós podemos ser cacetes aos olhos de alguém.

E o melhor argumento nessa linha, talvez sejam estas palavras do Evangelho de São Lucas: “Se vós, sendo maus, sabeis dar boas dádivas a vossos filhos, quanto mais vosso Pai celestial dará espírito bom aos que lho pedem” (Lc 11, 13).

Se um homem qualquer sabe dar um bom presente quando o filho pede, podemos acaso conceber que Deus, quando Lhe pedimos o bom espírito, não nos atenda? Certamente atenderá! É questão de pedirmos.

Nos períodos melhores, pedir graças para suportar os piores

Há um ponto que eu tenho muito empenho em desenvolver: é o problema da oração de quem está em estado de graça para não cair em pecado. Santo Afonso mostra o seguinte: quem está nas alturas, animado, deve rezar pedindo graças para quando estiver na provação e no desânimo. Porque é quando este sobrevém que se corre o risco de rezar menos. O desânimo é um estado de alma que congela toda a vida espiritual de uma pessoa, e no qual a coragem e a resolução de rezar minguam.

Deve-se fazer provisão de orações para quando vier o desânimo. Isso de dizer “eu rezo quando estiver tentado”, é mais ou menos como quem acha que vai converter-se quando estiver para morrer. No momento da agonia a pessoa estará pensando no pé que está doendo, no coração que está parando, na vista que já não está enxergando a não ser à curta distância. Ela estará vendo a morte se aproximar e estará pensando no próprio corpo.

Não estará pensando na alma, ou terá muita dificuldade em pensar nela, e por isso quando se está saudável deve-se rezar pela hora da morte. O mesmo se dá conosco, quando estamos bem na vida espiritual. Devemos nessa hora rezar pedindo proteção para o momento em que vierem as tentações, pois não há homens invulneráveis em matéria de vida espiritual.

E eu tenho visto diminuir o brilho das estrelas no céu!… Não quero dizer apagar-se, mas passar por temporárias eclipses. Ou porque, de repente, a pessoa é afligida por um vendaval tremendo e reage estupidamente, com uma brutalidade idiota; ou então é uma dúvida que começa a surgir, e ela pensa: se houver isto haverá aquilo, se houver aquilo haverá mais aquilo, e eu farei não sei o quê, e de repente se apega a algo a que não deveria apegar-se, e quando se vai tentar ajudar, já é tarde.

Nesta hora, chegar junto de alguém e dizer: “Agora reze!”… É necessário! Mas não seria muito melhor se a pessoa tivesse aproveitado a hora do fervor para rezar?

É muito ruim ser olímpico na hora em que se está num auge de vida espiritual. Devemos, isso sim, nessas horas, armazenar cargas de oração.

Santo Afonso menciona um texto do Concílio de Trento (seção 6ª cap.  XIII): “Não se pode obter essa graça senão d’Aquele que tem poder de conservar a quem está de pé, de sorte que persevere com fé” (Seção 6ª cap. XIII).

Quem está de pé deve pedir perseverança

Àquele que o conserva neste estado. O que é mais importante: rezar para nos levantarmos quando já tivermos caído, ou rezar para não cair quando estamos de pé? Evidentemente, o segundo tipo de oração é o mais importante: rezar para não cairmos.

Ele menciona também outro trecho do Concílio de Trento, no qual é citado Santo Agostinho: “Esse dom de Deus, a perseverança, pode merecer-se suplicando, isto é, se pode conseguir pela oração” (De don. persev., c. 6.).

Se nós queremos perseverar, por mais firmes que nos sintamos, peçamos essa graça da perseverança. Recorrendo à autoridade de São Tomás, Santo Afonso cita a seguinte afirmação do Doutor Angélico. “Depois do batismo, é necessário ao homem a oração contínua para ele poder entrar no céu”.

Depois do batismo, quando todos os pecados do homem foram apagados por virtude desse sacramento, o que é preciso? Oração contínua! Não há o que justifique o não rezar. Outra citação interessante: “Vigiai, pois, e orai em todo o tempo a fim de que vos torneis dignos de evitar todos esses males que têm de suceder — quer dizer, as tentações — e de vos apresentardes com confiança diante do Filho do Homem” (Lc 21, 36).

Portanto, não é sempre no tempo mau, mas em todo o tempo. O mesmo diz o Eclesiastes: “Nenhuma coisa te impeça de orar sempre” (Ecl 18, 22). Não há razão para não estarmos rezando sempre. Outra frase, dessa vez de Tobias: “Bendize a Deus todo o tempo e pede-lhe que dirija os teus caminhos” (Tob 4, 20).

Todo o tempo, quer dizer, no tempo bom também. Ainda, numa epístola de São Paulo: “Orai sem intermissão” (1 Tes 5, 17). Não é, portanto, com as intermissões do tempo de virtude. Outra é da  Epístola de São Paulo aos Colossenses: “Perseverai na oração, velando nela com ação de graças” (Col 4, 12).

Perseverai sempre na oração. Não é só quando se está em pecado, ou se está sem pecado, mas é sempre. Também na Epístola a Timóteo: “Quero pois que os homens orem em todo o lugar” (1 Tim 2,  ). E o próprio Santo Afonso de Ligório comenta: Muitos pecadores com o auxílio da graça chegam a converter-se a Deus e a receber o perdão; mas, porque deixam depois de pedir a perseverança, tornam a cair e perdem tudo.

Ou seja, a pessoa chegou, com a graça, a emendar-se, mas depois não pediu a sua própria perseverança. Não pediu, logo perdeu. Então, quando se está em dificuldade é preciso lembrar-se disso, e rezar para conseguir a perseverança. E quando se vai bem na vida espiritual, é de uma importância capital ter essa humildade, esse medo de cair e implorar a graça da perseverança.

No Padre Nosso, Deus nos ensina a pedir a perseverança

E, por fim, temos a petição do Padre-Nosso: “Não nos deixeis cair em tentação”. É súplica para, na hora da tentação, eu ter o suprimento necessário do que eu pedi quando não estava tentado. Nosso Senhor ao formular a oração perfeita estabeleceu, exatamente, esse pedido de não sermos abandonados no momento da tentação.

Este momento é tremendo. É como um turbilhão pavoroso, ou como uma ideia das mais sedutoras. Nessa hora a pessoa já está, às vezes, quase impossibilitada de rezar. Dois conselhos valiosos Por isso recomendo duas coisas: Primeiro, incluir na nossa rotina uma oração para que Deus nos conserve numa perseverança perfeita.

Em segundo lugar, assegurarmo-nos de uma outra forma, ou seja, pedindo que se celebrem missas e que se façam orações em conventos, por nós.

Deus já estabeleceu que haja freiras, religiosos contemplativos, para recitarem as orações que nós não podemos fazer. Por que não nos munirmos desses recursos incomparáveis? Se desconfiamos que não somos capazes de rezar bastante, por que não recorrer às orações de outrem? Mas, estas práticas devem constituir uma rotina, sobretudo quando se está em perigo, em situações difíceis, mas também quando se está em situações boas. Não há recurso melhor do que recorrer às orações de uma religiosa, para ter uma alma que carregue a cruz conosco, e nos ajude a levar aquilo que pesa demais para nós.

Mas a melhor pessoa para rezar por nós, já sabemos, é Nossa Senhora. Devemos pedir muito à Santíssima Virgem. O alfa e o ômega de tudo isso é a oração d’Ela e a oração a Ela. Nossa Senhora nos concederá tudo de que temos necessidade.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 66 (Setembro de 2003)

(1) Santo Afonso Maria de Ligório, A Oração, o Grande Meio da Salvação, Editora Vozes Ltda, Petrópolis, 1956, 3ª edição, pgs. 90 e 91.

 

Senso do maravilhoso: padrão para o conhecimento da verdade – II

O desenvolvimento do senso do maravilhoso faz crescer o nível intelectual das pessoas, e até mesmo o moral. Comprimir esse senso, sob a alegação de que é fantasia, torna os espíritos achatados, baixos e sem valor.,

 

Ao considerarmos as grandes civilizações, notamos que todas elas tendem a uma forma de maravilhoso que chegaram a tocar, por assim dizer, com a ponta do dedo, entretanto imaginaram muito mais do que de fato realizaram.

Algumas construções maravilhosas

Tomemos, por exemplo, o famoso Taj Mahal, na Ásia. É perfeito! Olha-se e, no primeiro momento, contenta-se inteiramente. Logo depois, não surgem censuras, porque aquilo é muito bonito, mas a alma pergunta: “Está bem! Mas não haverá mais?” E é imaginando vagamente o mais, que acabamos de entender bem o Taj Mahal.

Outra coisa que eu acho muito bonita é o minarete. Aquelas torrezinhas finas, com terracinho, onde fica um homem sentado e cantando, é de uma elegância, de uma beleza… Imaginar um minarete no Bósforo é uma coisa simplesmente fantástica!

Por exemplo, aquele minarete na Igreja de Santa Sofia não tende para alguma coisa de maravilhoso, de irreal? Como eu gostaria que essa igreja fosse católica! Ela é arredondada, e dentro é lindíssima! Fora, a beleza dela está no contraste daquele arredondado com um minarete esguio que sobe para o céu. Uma verdadeira maravilha!

O pagode chinês é lindo! Mas meu gosto do maravilhoso não se contenta com isso. Por fervor religioso e gosto artístico, eu gostaria de imaginar bem no alto do pagode uma imagem da Imaculada Conceição, com uma lua, verdadeiramente elaborada com prata, aos pés, e esmagando a cabeça de uma serpente feita de jade.

Existe na França uma escola de equitação pertencente ao Exército, que é uma antiga fortaleza medieval, na cidade de Saumur, onde se fazem os exercícios militares.

Eu vi, numa iluminura medieval, uma pintura do Castelo de Saumur, completamente diferente do que é hoje. Tinha uma grande quantidade de torres, e no alto de cada uma figurava uma flor de lis, formando uma espécie de jogo de campanários imaginários, que é uma das coisas mais belas que eu tenha visto na minha vida!

O mais bonito está no seguinte: parece que o Castelo de Saumur nunca foi como esse artista o pintou. O pintor viu o Castelo e imaginou um outro que não existia, mas que correspondia ao maravilhoso que desprendia de seu espírito, a partir daquilo que ele tinha visto!

Se tomássemos essa tendência para o maravilhoso — que a educação moderna comprime o quanto pode, sob a alegação de que não é prático, é fantasia, etc. — e a desenvolvêssemos, cresceria muito em nós o nível intelectual e até mesmo o moral.

O maravilhoso irreal é a ponta da realidade

A meu ver, foi esse desejo do maravilhoso que criou os vitrais. Porque os vitrais apresentam, o tempo inteiro, as coisas com as cores que elas não têm. E isto faz propriamente a beleza do vitral. O artista imaginou um maravilhoso irreal que não é uma mentira, mas a ponta da realidade, e por causa disso os vitrais são maravilhosos; ele imaginou cores de vidros, reflexos, lampejos e, afinal de contas, chegou a um verde, a um vermelho ideal, que nos deixa encantados. Isso porque ele possuía uma alma fecunda em maravilhoso.

Estamos acostumados a ouvir uma comparação exata, mas que a repetição tornou banal: quem entra numa igreja e vê o sol incidindo no vitral, projetando suas mais variadas cores no chão, é levado a dizer que o pavimento encheu-se de pedras preciosas. Realmente, aquelas cores são como que pedras preciosas que ficam pelo chão. Portanto, quem elaborou o vitral pintou a cena com uma atmosfera de pedra preciosa que a realidade não tem.

Ora, o critério hoje em dia é o seguinte: “Se você quer conhecer algo, faça um inquérito, analise sua substância química, a quantidade, a qualidade, e só então o conhecerá.”

Minha resposta seria: “É verdade. Mas enquanto você não vislumbrou o que a coisa poderia ser e não é, você não a conheceu inteiramente.” Essa análise científica é necessária, e deve-se reconhecer sua importância. Entretanto a incapacidade de imaginar alguma coisa acima daquilo é o desastre, pois torna os espíritos chatos, baixos e sem valor.

Uma coisa que toda a vida eu quis conhecer foi a aurora boreal. Porque, pelas descrições que me têm sido feitas, ela representa um céu irreal na aparência, uma fantasmagoria feita por Deus para o homem, como quem diz: “Meu filho, Eu fiz um céu muito bonito para você imaginar um ainda mais belo. Não é para você ficar sentado como um idiota, olhando para aquele firmamento. Imagine outro! E, sendo incapaz de imaginar, para ter ideia de como é isso veja fotografias de auroras boreais. Aí você tem algo mais alto; levante sua alma!”

Equilíbrio entre bom senso e desejo do maravilhoso

Olhando para o Santo Sudário — a respeito do qual não existe no meu espírito a menor dúvida de que é verdadeiro —, percebe-se que Nosso Senhor Jesus Cristo, nas suas condições normais, era um Homem-Deus maravilhoso, como nunca se poderia imaginar. E qualquer rei seria uma ninharia, em comparação com Ele se apresentando e falando.

Mesmo assim, Nosso Senhor, por assim dizer, treinou os Apóstolos para algo mais. Na Transfiguração, no alto do Tabor, Ele não se adornou com elementos externos. O Redentor fez aparecer uma beleza maior, que havia no fundo d’Ele pela natureza divina. E ali apareceu multiplicado por Ele mesmo, produzindo nos Apóstolos o efeito que conhecemos. Quer dizer, mesmo na maravilha das maravilhas, que é Nosso Senhor Jesus Cristo, a graça filtrando faz aparecer uma maravilha ainda maior, inerente a Ele, mas que era sua Transfiguração, a figura multiplicada pela figura, ficando maravilhosa como ficou.

Esse é o sinal de que em todas as coisas devemos procurar seu “trans-aspecto”, com o qual verdadeiramente a nossa alma se forma, desde que tenha um bom senso robusto, porque do contrário isso conduz para o rodopio. Deve haver um equilíbrio entre o bom senso e o desejo da maravilha, que forma propriamente a força da alma humana. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/8/1988)

 

Reflexo da sabedoria cristã

As primeiras impressões sobre a Idade Média que tocaram minha alma — as quais encontrariam mais tarde na palavra “Cristandade” a sua expressão adequada — vieram através de livros para crianças folheados por mim, um ou outro cartão postal que me caía sob os olhos, assim como fotografias e gravuras retratando paisagens e monumentos da antiga Europa, e que produziam no meu espírito verdadeiros frêmitos de entusiasmo na consideração das coisas medievais.

Encantavam-me as catedrais góticas, as ruínas de castelos ou as velhas construções conservadas intactas, admirava o mundo da heráldica que começou a luzir à minha vista como um conjunto de vitrais sem vidro, escudos medievais parecendo rosáceas impressas num papel resplandecente, tudo me falando da mesma época em que floresceu a música sacra, uma época em que a fé católica espargia grande influência sobre a mentalidade e a sensibilidade humanas, dando origem a uma ordem temporal de esplendor incomparável.

Ogivas, torres, campanários, vitrais, armaduras… Detenho-me na contemplação destas últimas.

Poucas vezes o homem se tem revestido, no sentido material da palavra, de tal manifestação de força como quando se cobre de ferro, com pequenas aberturas no elmo que o permitam ver e respirar. De resto, está todo envolto pelo ferro, manifestando um misto de prudência e de coragem que traduz o equilíbrio da sabedoria cristã. Coragem e prudência que indicam, ao mesmo tempo, um amor à vida, uma consciência plena do inestimável preço da existência humana para protegê-la de tal maneira, e uma inteira disposição para sacrificá-la, se preciso for, a serviço de Deus e da Igreja.

O homem se veste inteiro de metal, para se defender e para se lançar no centro do perigo, revelando a magnífica estatura do combatente que soube compreender e amar verdades eternas, preceitos morais, tesouros de fé cristã pelos quais vale a pena não só lutar, mas morrer. É praticar essa mesma fé cristã até as suas últimas e gloriosas conseqüências.

Assim, toda a sua personalidade se acha tão imbuída do espírito católico que ele se apresenta revestido de ferro, afirmando a serena convicção de seu direito e da santidade de sua causa. Na véspera de partir para uma batalha em que lutará pelos interesses da Igreja, ele se entregou à vigília das armas: rezou, implorou o socorro do Céu, pesou e mediu os sacrifícios, as dores e, quiçá, o holocausto supremo que se aproximavam. E ele a tudo aceitou de antemão. Os penachos de seu elmo deixaram de ser meros enfeites, e sua armadura uma simples afirmação de riqueza ou categoria.

Simbolizam, agora, a intrepidez de uma alma heroica. São reflexos da sabedoria cristã. Representam a força a serviço da sublimidade.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 102 (Setembro de 2006)

 

Secos e molhados…

Desde os meus tempos de menino, percorrendo algumas regiões da capital paulistana, comprouve-me observar o exercício de uma profissão pouco renomada: a de vendeiro. Hoje quase não existem mais aquelas quitandas —  em geral de proprietários lusitanos — como as conheci, substituídas por lojas, bares e outros  estabelecimentos adaptados às conveniências da vida moderna.

Porém, aqui e ali, sobretudo em nosso Portugal avoengo, pode-se encontrar algo dos antigos comércios de “secos e molhados”, com vestígios do sabor e do pitoresco que tanto atraíam minha curiosidade infantil.

A própria expressão “secos e molhados” já nos sorri, gotejando realidade, cheirando a bacalhau defumado e a tragos de vinho para acompanhar os aperitivos, consumidos em animadas rodas de amigos. Pois a venda era também um lugar com mesas ao ar livre, na calçada, para os fregueses se sentarem e colocar em dia a conversa. Portanto, uma espécie de clube da rua, na rua, para os homens de rua, de categoria social menos favorecida.

Ela tinha, inclusive, algo de instituição bancária. As pessoas de trato, clientes do armazém, se não podiam ou não queriam se dar o trabalho de ir ao banco retirar dinheiro, chamavam a criada e lhe davam a incumbência: “Diga lá ao seu Manuel da venda que vou descontar este cheque com ele”. O “seu” Manuel, bonachão, solícito e seguro de suas economias, satisfazia o freguês. No dia seguinte ele mesmo ia descontar o cheque, e embolsava a quantia dispensada na véspera.  Ele havia feito mais uma gentileza ao fazendeiro afidalgado e indolente que morava perto…

A venda não pode ter luxo, mas uma exuberância de produtos, inclusive pendurados no teto, como garrafas de vinhos, queijos, presuntos, linguiças, pernis, etc. Mal iluminada, sem ornatos nem decorações de estilo. Seu grande adorno é a figura do vendeiro, presidindo a vida que ali dentro se desenrola, sob seu olhar acolhedor e vigilante.

A sua família reside nos fundos da loja, numa casa comprida em forma de flauta, um corredor extenso, para o qual se abrem todos os quartos.  E ele, embora estando no balcão, tem um sexto sentido voltado para o que se passa no lar. De maneira que, verificando-se ali qualquer coisa de anormal, ele sabe e toma providências. É o rei de dois reinos — um “reino unido”, como eram Brasil e Portugal: a casa do vendeiro e a venda.

A antiga caixa registradora, atrás da qual ele se instala, eleva-se sobre o balcão, e o seu Manuel a opera com visível satisfação, contente de ouvir os sons daqueles mecanismos repercutirem pela venda inteira. A manivela roda, a gaveta se abre com ruídos de campainha, as notas roçam umas nas outras, as moedas tilintam, e a conjugação desses ruídos constituem a harmonia do progresso dele. Uma prosperidade plebeia no que o plebeu tem de maior suco de vida, de realidade. É pão, pão, queijo, queijo, mas fecundo.

Com seus bigodes “a la Rei Dom Carlos”, ele supervisiona tudo, conversa pouco, mas sabe da existência de todos, porque não perde um detalhe das conversas à sua volta. Seus diálogos são com a gaveta da registradora: o que entrou, o que vai depositar, o que vai ou não recolher, os investimentos com a quantia acumulada, a outra venda que ele pretende abrir, e já pensando em encaminhar o filho mais velho para assumir e continuar os negócios.

Sim, pois ele não tem ambições de que o seu primogênito se torne um médico, advogado ou engenheiro, como aqueles que andam sempre devendo à quitanda. Não. Basta-lhe o seu status, eminentemente abdominal e saudável a ponto de as bochechas serem pontudas, a bigodeira abundante, a voz estentórica, mãos nas quais se nota o proletariado, mas em cujo dedo anular refulge um anel de brilhante usado por ele no dia do casamento da filha.  É tudo o que deseja para si e seu sucessor.

A um canto da loja se vê a imagem da devoção dele, iluminada constantemente por uma pequena luz dourada. Será do seu Santo padroeiro ou de Nossa Senhora, sob alguma invocação venerada na sua aldeia natal. A imagem está lá, intocável como uma preciosa tradição, recebendo de quando em vez um olhar piedoso da velha freguesa, uma súplica dele próprio, quando as preocupações o atormentam.

Em suma, a figura do vendeiro se torna simpática para quem a sabe compreender e admirar no seu peculiar contexto. Foi, aliás, o meu caso. Comecei a frequentar a venda do “seu Manuel” com certa reticência. Em determinado momento, percebi o papel que desempenhavam numa sociedade organicamente estabelecida. E pensei: “Não, mas essa gente é interessante, tem vitalidade, disposições, pitorescos, funcionalidades que desempenham sua missão benéfica e enriquecedora no ambiente social onde se insere.”

E aí passei a compreender melhor o “meu” Portugal…

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 78 (Setembro de 2010)

 

Misericórdia infindável

Enquanto dormimos, Maria Santíssima continua a velar por nós, rogando a seu Divino Filho que nos auxilie e nos olhe favoravelmente.

Quando acordamos para um novo dia, e temos a infelicidade de começar a ofender a Deus, Nossa Senhora passa também a nos perdoar e a nos incentivar em atos de virtude. Se A ouvimos, Ela nos sorri e redobra sua solicitude, seu encorajamento maternal. Se, apesar de tudo, caímos, Ela está pronta a nos socorrer sem demora, a nos dirigir sorriso ainda mais terno e consolador, a novamente nos perdoar e reerguer.

Na verdade, a misericórdia de Nossa Senhora não conhece fim.

Plinio Corrêa de Oliveira

Peregrinando dentro de uma oração cantada

No canto gregoriano não há dramaticidade, mas uma serenidade plena de reflexão. É recitado por pessoas que, encontrando-se à margem dos acontecimentos, entoam hinos os quais muitas vezes tratam da vida dos homens e das nações, sempre elevando nossas mentes até Deus, e tirando conclusões que são verdadeiros princípios de História.

 

O  Ofício Parvo de Nossa Senhora foi cantado há pouco magnificamente, segundo os melhores princípios da música sacra. Princípios estes estudados pela Igreja, através de especialistas, durante séculos. Aprimorados, destilados, postos no ponto exato até chegarem, por exemplo, ao que todos nós ouvimos.

Em nossos dias, o bulício contagiou todos os ambientes

Nesta matéria, como em todas as outras, há uma porção de escolas, e a Igreja, sempre sábia, sempre mãe, naquilo que não está ligado à Revelação deixa uma liberdade de opinião e de pensamento àqueles que são filhos dela. Assim, essas várias escolas musicais têm cidadania dentro da Igreja.

Sempre que ouvia o Ofício bem rezado, tinha uma impressão curiosa que eu descreveria empregando o título de um artigo que certa vez escrevi: “Peregrinando dentro de um olhar”(1); eu, então, diria: “Peregrinando dentro de uma oração cantada”.

Como é minha peregrinação pessoal dentro dessa oração cantada? Ao responder a esta pergunta tenho em vista, evidentemente, ajudá-los a explicitarem as suas próprias impressões; explicitando-as, conhecerem-nas melhor; conhecendo-as melhor, saborearem melhor o cantochão, compreenderem melhor o canto da Igreja e o amarem mais.

O bulício de nossos dias contagiou todos os ambientes pela imposição das circunstâncias. Se tudo corre, tudo se agita; ou corremos também ou perdemos o avião, o trem, o bonde… Então, é preciso absolutamente correr.

Hoje em dia, levo uma vida como antigamente se ouvia falar, no cinema, que levava um banqueiro riquíssimo: tomava o elevador com um secretário, com quem ele despachava alguma coisa; no trajeto entre o elevador e o automóvel ainda atendia alguma pessoa, sentava-se dentro do automóvel, tinha ali outro secretário para tomar nota de diversos assuntos. E assim conduzia a vida dele, até durante as refeições. De maneira que ele dormia o menos possível e, quando conciliava o sono, ainda sonhava com despachos!

Todo o meu temperamento é o contrário disso que representa para mim um pesadelo. Desse pesadelo, eu só não tenho duas coisas: o dinheiro do banqueiro e, graças a Deus, o sonho com negócios. Ainda os mais sagrados “negócios” de apostolado, não sonho com eles. Na hora de dormir, tomo um livro para ler, penso em outras coisas, mas não em despachar assuntos concretos.

Quando acordo de manhã, já recebo as primeiras notícias do dia e começa a roldana. De maneira que, contra a minha vontade, como um prisioneiro que está amarrado a uma máquina e é obrigado a correr com ela, levo essa vida que eu não quereria levar.

Calma, tranquilidade, distância psíquica que defluem do cantochão

Por isso posso medir bem a transição entre essa vida corrida e o momento em que, de repente, começa-se a ouvir o canto sacro. No primeiro instante, é uma sensação subconsciente, nada violenta, nada desagradável, de defasagem. Quando se está começando a pensar como fazer para corrigir o que está defasado, a ação do canto sacro — ainda quando não se entendam as palavras — vai penetrando na alma e abrindo nela certos “compartimentos” que estavam fechados.

Vai pondo em evidência e colocando em condições de vibratilidade certas possibilidades de sentir que estavam colocadas de lado, e nas quais não se prestava muita atenção. E começa a emergir, de dentro da agitação, uma calma, uma tranquilidade, uma distância psíquica(2), que fazem as coisas fluírem como flui o som do cantochão.

Para quem não tem sensibilidade, esse canto é uma contínua repetição, mas na realidade não é. Aquilo, a cada vez que se repete, diz algo de novo para a alma capaz de saborear. Depende da alma.

O sabor de uma inflexão de voz não é bem o da outra, aquilo diz uma coisa nova a cada inflexão que, de um lado, é parecidíssima com a anterior, e de outro lado fala uma coisa completamente diferente da anterior.

É preciso que o cantochão tenha entrado muito nos nossos ouvidos para nos familiarizarmos com a linguagem dele. Ele tem todo um timbre de voz e toda uma linguagem discretíssimos. Tal linguagem discretíssima supõe que alguém esteja nos falando numa certa clave, e que vai nos induzindo a nos pormos nessa mesma clave para ouvirmos e respondermos. Dessa forma é um diálogo que se abre, mas de um abrir que é um afetuoso impor.

Isso é assim, mesmo quando não se compreendem as palavras; se estas são entendidas, tomam um outro sabor.

Compreendendo o fundo dos acontecimentos, mas recusando-se a vibrar com eles

Há pouco, por exemplo, foi cantado o Salmo cujos dizeres eram:

“Se o Senhor não construir a casa, em vão trabalham os construtores. Se o Senhor não guarda a cidade, em vão vigiam as sentinelas.”(3)

Em arte declamatória, essas palavras poderiam ser recitadas legitimamente em tom de aviso, contendo uma ameaça, como quem dissesse: “Enquanto o Senhor não defender a cidade, inútil vos é defendê-la! Pedi, então, a Deus que a defenda, e vencereis! Do contrário, cairá sobre vós a mão do Altíssimo cujo auxílio não pedistes!”

Isso que estou imaginando, dito como uma advertência de alguém que vê uma cidade defendida por outros que não rezam por ela, no cantochão não tem essa dramaticidade. É recitado à maneira de uma reflexão feita por quem, encontrando-se à margem dos acontecimentos ­­— e tendo ouvido falar da ruína de muitas cidades pelas quais os defensores não oraram —, conclui um grande princípio geral da História. São desses princípios em que as torres da História entram pelas nuvens sagradas da Teologia.

São reflexões que se sucedem, feitas por homens que estão no silêncio, muito atentos ao que se passa na Terra, mas já com os ouvidos postos no Céu. Pessoas que ponderam dentro de um estado de espírito todo especial, sem as agitações terrenas, mas às quais chegam todos os ecos da vida. E que, portanto, dentro de um silêncio sacral e celeste, redestilam toda a Terra e toda a vida, com muita força de alma, pois compreendem o fundo dos acontecimentos, tomam-lhes inteiramente o sabor, recusando-se a vibrar com eles.

Uma batalha entre dois exércitos que combatem em campo raso

Imaginemos uma batalha travada em terra plana, cujos exércitos opositores são comandados por dois generais postados, cada um, no alto de uma colina. Embora esses generais não se vejam, eles estão atracados inteiramente um ao outro. Apesar de que estejam retirados e, aparentemente, não participarem da luta, o suco do combate se dá ali. Porque, como a direção da batalha vem desses generais, é ali que tudo repercute. E é essa repercussão que impede a batalha de se transformar numa brigaria individual.

A guerra é, portanto, uma realidade que exige estar um pouco fora dela para se penetrar inteiramente nela.

Suponhamos, agora, que numa colina mais elevada especialistas de guerra assistem à batalha. Eles não torcem por nenhum dos dois lados, mas estão estudando a arte militar pelo modo daqueles dois exércitos combaterem.

O tom no Estado-Maior das duas primeiras colinas deve ser tranquilo, atuante e rápido. Na colina mais alta, o tom é ainda mais tranquilo, mais distante dos acontecimentos, entretanto o suco dos acontecimentos sobe até lá com maior força. Porque ali não se resolve uma batalha, mas são os conhecimentos do gênero humano sobre a arte de guerrear que progridem. Se aquela batalha for bem observada, a História da Guerra pode mudar de direção.

Esses especialistas conversam entre si com uma cordialidade normal, observam, nunca levantam a voz, dialogam, concluem. Eles estão muito mais alto, e acima deles há apenas um “teto” chamado “teoria”. Eles viram e mexem, sobem ao mirante da teoria, depois voltam para uma prática observada de longe, chegam a uma alta consideração sobre a guerra.

Seja qual for o exército vencedor, quem tirou a melhor lição da guerra foram os que estiveram na clave humana mais elevada.

Com os olhos voltados para a vida, mas elevando-se continuamente para Deus

Essas orações do saltério referem-se continuamente a acontecimentos humanos passados, mas perenes, porque em algo a História sempre repete aqueles episódios. E os Salmos nos mostram atitudes dos homens perante esses acontecimentos, regras gerais de sabedoria sobre o modo de proceder, a conduta de Deus, para aprendermos como Ele é, como devemos agir com Ele, e como Deus agirá conosco. O píncaro é propriamente saber agir com o Criador na hora da aflição.

Então, o cantochão deve ser visto como homens que se colocam intencionalmente nesse píncaro do pensamento, com os olhos voltados para a vida, mas elevando-se continuamente para Deus.

Esta posição supõe uma atitude de alma preparatória para a ação, porque é um estudo da ação. Antes de tudo, ação de Deus, depois nossa ação com o Criador e com os homens, e de como o Altíssimo toma esta nossa ação com os homens.

Ora é alguém que pecou, cometeu tal crime e pede perdão, mas sente que Deus está demorando em concedê-lo. Então, invoca de um modo, alega outra coisa… Ora, pelo contrário, é um hino de ação de graças porque Deus concedeu um favor qualquer, e sentimos o sabor do dom quando nele ainda se encontra o calor da mão divina.

Trata-se, portanto, de uma espécie de oração a propósito do acontecer interno humano, da vida interior, da vida externa individual e das nações e, em face daquilo, a atitude de Deus. O coro sereno salmodia e, com as próprias palavras da Escritura, aprende a louvar a Deus.

Exercícios de voo de alma

Qual é o resultado disso na hora da ação?

O espírito sai tranquilizado, serenado e muito mais capaz de subir. São verdadeiros exercícios de voo de alma contidos não só no que o texto diz, mas, além do texto, há algo da posição temperamental do homem que pensa e reflexivamente sente, alegra-se, se entristece, chegando às vezes aos extremos da alegria ou da dor, porém sem sair daquela serenidade da reflexão, de quem está à margem e acima dos fatos.

Por vezes as pessoas formam a ideia errada de que na torcida encontra-se o próprio sabor da vida. Na verdade, encontramos o sabor da vida quando mandamos embora a torcida e olhamos de cima.

Certa ocasião, vi um homem conhecedor de vinhos que provava um vinho muito bom oferecido a ele. Ele disse que o vinho era muito saboroso, mas a análise do mesmo não se limitava em bebê-lo, era preciso também saber sentir seu aroma. Ele, então, parava de tomar e cheirava um pouco o vinho.

No cheirar há uma tomada de distância psíquica em relação ao beber, porque se analisa um pouco mais do que quando se tem a bebida meramente sobre a língua. Na língua se associam outras sensações, e logo depois se engole. O cheirar é uma análise mais intelectiva.

Saber sentir o perfume do “bouquet”(4) da vida é não torcer. É adquirir essa serenidade que constitui a própria clave da existência.

Temos, assim, algumas ideias gerais sobre o conteúdo dos Salmos e a clave em que eles nos põem, por meio do cantochão.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/4/1983)

 

 

1) Publicado na Folha de São Paulo, em 12/11/1976.

2) Expressão utilizada por Dr. Plinio para significar uma calma fundamental, temperante, que confere ao homem a capacidade de tomar distância dos acontecimentos que o cercam.

3) Sl 126, 1.

4) Do francês: conjunto de elementos.

Prece a São Miguel Arcanjo

São Miguel Arcanjo, vede o quanto há, em nossos dias, uma presença preternatural especialíssima. Quebrai o poder e a eficácia dessa presença pela ação de vossa força.

Vós, que arrastastes na luta contra os espíritos revolucionários as coortes vencedoras dos Anjos contrarrevolucionários, aumentai em nós a Fé, a retidão da inteligência, a firmeza de princípios e a combatividade heroica, de maneira a discernirmos cada ardil do demônio, formando em nossa alma uma execração perfeita que esmague, inutilize e expulse os dragões infernais. Amém

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 2/12/1973)

Maria Santíssima, nossa âncora nas nuvens

Favorecido pela Providência com o dom de se expressar  de modo muito claro e com beleza literária, Dr. Plinio utilizou largamente esse predicado  para fazer o bem ao próximo. Nesse apostolado, um dos recursos mais atraentes de que se valia era o uso das  metáforas, por meio das quais ilustrava seus ensinamentos e os tornava de fácil compreensão. A seguir, inaugurando esta nova seção,  recordamos a imagem concebida por Dr. Plinio para salientar o indispensável auxílio da Mãe de Deus em nossa vida espiritual.

 

Ao longo dos nossos anos de apostolado, analisando a ação da graça nessa e naquela alma, dir-se-ia que, para um católico dos dias de hoje — e, de maneira especial, para um membro do nosso movimento — a fidelidade à vocação consiste em desejar um retorno dos melhores frutos da Civilização Cristã que foram sendo destruídos pela incorrespondência dos homens.

A confiança de um navegante em situação desesperadora

Tal anelo, parece-me, seria compreensível e justificável noutra época. Porém, após tanto tempo de dita incorrespondência e, por conseguinte, de pecados e ofensas cometidos contra a bondade divina, a fidelidade se nos apresenta de modo diverso: exige-se de nós que sonhemos, no sentido mais nobre da palavra, com uma ordem de coisas na linha do que teria sido aquela anterior se não tivesse sido destruída e, mais ainda, que a supere totalmente.

Como sonhar? Como confiar nessa superação?

Creio que a única solução para quem se encontra em situação semelhante a essa em que estamos, e na qual provavelmente estaremos cada vez mais imersos, é lançar uma âncora. Contudo, fazê-lo à maneira de um navegante que se acha numa circunstância tão desesperadora que, ao invés de deitar a âncora no fundo do mar, arroja-a em direção às nuvens, esperando que o Céu a segure por ele. Ou seja, é preciso chegar até essa ousadia de confiança.

Quanto mais generosa a alma, mais ela acredita no socorro de Maria

 E, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, seria uma atitude racional. Com efeito, sendo a voragem da água tal que o próprio fundo do mar se descobre aos olhos do navegante, ele não tem outro recurso senão lançar a sua âncora para o Céu. E é tanto mais provável que o Céu atenda seu apelo, quanto mais terá sido sua confiança na hora de jogar a âncora.

Noutras palavras, quanto mais a alma for própria a dar‑se, quanto mais for generosa em dedicar-se ao serviço de Deus e de Maria Santíssima, tanto mais ela acreditará, no momento da provação e da angústia, que Nossa Senhora fará por ela o inconcebível em matéria de socorro, de amparo, de solicitude.

Nossa Senhora segura a âncora no Céu

Alguém poderia me perguntar, muito a propósito: como se joga uma âncora para o Céu?

Responderia eu que há determinadas circunstâncias nas quais percebemos claramente que uma ação nossa corresponde ao plano da Providência para conosco, mas, ao mesmo tempo, de acordo com as disposições humanas, tal realização é por inteiro improvável. Ora, nós nos engajamos nessa obra porque percebemos tratar-se do desígnio da Providência, e só por isso, pois do contrário seria uma temeridade e uma loucura. A âncora foi jogada para o Céu.

Importa notar o seguinte aspecto: não é tanto algo que resolvemos fazer, mas uma situação que aceitamos com confiança, por discernirmos que Nossa Senhora colocou por nós a  âncora nas nuvens.

Por exemplo, aqueles que me acompanham há mais tempo em nosso apostolado nunca me viram traçar um plano com este estado de espírito: “Tal lance é uma loucura, mas vamos fazê-lo porque a Providência quer”. Porém, ouviram incontáveis vezes eu dizer: “Tal situação está perdida, mas vou me manter em paz porque a Providência nos ajudará”.

Essa, repito, é a âncora nas nuvens. Nossa Senhora a colocou ali por nós. Percebemos que o navio desapareceu, o mar corre por debaixo dos nossos pés, estamos pendurados numa corda, presa não sabemos onde. Olhamos para cima: está numa nuvem e com uma âncora na ponta. E o mais extraordinário: está ventando de tal maneira que o vento pode levar a nuvem a qualquer hora… Entretanto, Nossa Senhora quer que permaneçamos tranquilos, pendurados na âncora como se estivéssemos com o chão sob nossos pés.

Sei que não é uma atitude fácil de ser adotada. Mas, pela minha própria experiência, posso afirmar que ela é, ao mesmo tempo, terrível e altamente deleitável.

Confiança na gloriosa mediação da Virgem

Cumpre, pois, que nos formemos nessa generosidade de alma e, quando for preciso, lancemos a âncora para o Céu com toda a segurança. Preparemo-nos para jogá-la às nuvens, pedindo a Nossa Senhora que nos alcance uma virtude da confiança semelhante à d’Ela.

A abundância da misericórdia de Maria sobrepuja tudo quanto qualquer um de nós possa excogitar. Deixemos nossas apreensões inteiramente nas mãos de Nossa Senhora e Ela tudo resolverá. Essa certeza não é gratuita: baseia-se na mediação onipotente da Mãe de Deus em nosso favor. Mediação, aliás, belamente assinalada na oração final da Ladainha Lauretana, que me apraz muito recitar: “Pela gloriosa intercessão da bem-aventurada sempre Virgem Maria, sejamos livres da presente tristeza e gozemos da eterna alegria”.

Ou seja, de tal modo uma súplica de Nossa Senhora é atendida por seu divino Filho que seus pedidos podem ser qualificados de gloriosos. Isso deve nos entusiasmar e cumular de confiança n’Aquela que incansavelmente está disposta a nos socorrer.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 1 e 2/3/1980)

“Meu filho…”

Ao tecer enlevados comentários a uma passagem do livro do Eclesiástico, Dr. Plinio nos mostra a Sabedoria divina ensinando aos filhos de Deus — verdadeiro Pai e protetor dos que O amam — a paciência, a humildade e a confiança, especialmente nos momentos de infelicidade e provação nos quais a alma se edifica e se modela, conformando-se aos desígnios que lhe reserva a Providência.

 

Inspirados pelo Divino Espírito Santo, os livros da Bíblia estão permeados de uma riqueza de ensinamentos, aliada a uma beleza literária e poética, que nunca cansamos de admirar e haurir para o engrandecimento de nossa alma.

A título de exemplo, consideremos os seguintes versículos do Eclesiástico (2, 1-6;11-12):

Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, permanece firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a provação; humilha teu coração, espera com paciência, dá ouvidos e acolhe as palavras de sabedoria; não te perturbes no tempo da infelicidade, sofre as demoras de Deus; dedica-te a Deus, espera com paciência, a fim de que no derradeiro momento tua vida se enriqueça.

Aceita tudo o que te acontecer. Na dor, permanece firme; na humilhação, tem paciência. Pois é pelo fogo que se experimentam o ouro e a prata, e os homens agradáveis a Deus, pelo cadinho da humilhação.

Põe tua confiança em Deus e ele te salvará; orienta bem o teu caminho e espera nele. Conserva o temor dele até na velhice.

Considerai, meus filhos, as gerações humanas: sabei que nenhum daqueles que confiavam no Senhor foi confundido. Pois quem foi abandonado após ter perseverado em seus mandamentos? Quem é aquele cuja oração foi desprezada?

Pois Deus é cheio de bondade e de misericórdia, ele perdoa os pecados no dia da aflição. Ele é o protetor de todos os que verdadeiramente o procuram.

Inefável timbre da Escritura

A Escritura como que possui um timbre de voz próprio, em virtude do qual quando diz “meu filho”, sente-se realmente o desvelo materno ou paterno para com seu filho. Quase nos tomamos de remorso ao ler tais palavras em voz alta, acrescentando nosso verbo ao inefável, mas verdadeiro, que os livros sagrados expressam.

Nota-se, aliás, um reflexo desse predicado na frase que São Bento escreveu na introdução de sua regra: “Escuta, filho meu,  os preceitos do mestre, e inclina o ouvido do teu coração. Recebe de bom grado o conselho de um bom pai, e cumpre-o eficazmente, para que, pelo trabalho da obediência, voltes Àquele de quem te havias afastado” (Regra de São Bento, Prólogo).

Dever-se-ia aprender a exprimir frases semelhantes, não se fazendo a pergunta: “Qual o melhor efeito que posso tirar de minha voz pronunciando essas palavras?”, mas formulando outra indagação: “Qual o timbre com que a Escritura afirma tal coisa? De que modo posso obrigar minha laringe a emitir os acentos dessa voz inspirada por Deus?”

Esta última seria a disposição correta para se saborear a beleza do texto do Eclesiástico acima citado.

Humildade e paciência

Então diz o autor sagrado:

Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, permanece firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a provação.

Ou seja, na prática das virtudes e no temor de Deus, preparamos nossa alma para o momento da tentação. É um esplêndido conselho! “Começastes a amar o Criador? Atenção: prepara-te, pois a provação virá.”

E prossegue:

Humilha teu coração, espera com paciência…

É interessante notar a correlação estabelecida pela Escritura entre humildade e paciência. O homem humilde espera com paciência; o orgulhoso se exaspera com a demora.

Dá ouvidos e acolhe as palavras de sabedoria; não te perturbes no tempo da infelicidade.

Ou seja, no tempo difícil, não tenha pressa em sair dele. É o que a sabedoria sussurra em nosso espírito. Trata-se de outro ensinamento admirável.

Suportar a demora com heroísmo

Sofre as demoras de Deus; dedica-te a Deus, espera com paciência, a fim de que no derradeiro momento tua vida se enriqueça.

“Sofre” aqui significa aturar, suportar. Pelo que se depreende do texto, a vitória é concedida a quem sofreu com paciência. Paciência esta que não é indolência, mas a virtude forte por onde se aguenta a dor da espera. E ai do homem para o qual a demora não representa uma dor! Ai daquele, portanto, que não suporta pacientemente o sofrimento da espera!  Deve fazê-lo como um herói. Nisto se acha a beleza desse conselho do Eclesiástico, numa íntima conexão com aquele da humildade.

O homem reto poderia pensar: “Minha paciência me dá o direito de presenciar em vida a realização de tudo que desejo, o triunfo da Igreja no Reino de Maria”. É verdade… Porém, por humildade, devo compreender que Deus faz de mim o que quiser. Posso, inclusive, ser posto de lado em seus divinos planos. Resultado, essa provação me granjeará riquezas no fim de minha existência: “…no derradeiro momento tua vida se enriqueça”.

Aceita tudo o que te acontecer. Na dor, permanece firme; na humilhação, tem paciência.

Em outros termos, sinta a dor, sofra, porque é terrível o que te acontece. Não sejas um inerte e tolo que, à força de apanhar, não tens mais dor. Não. Suporta teu sofrimento, por amor a Deus. Adiante!”

Não se trata de uma atitude simples de ser tomada, mas é profundamente formativa.

Deus prova aquele a quem ama

Pois é pelo fogo que se experimentam o ouro e a prata, e os homens agradáveis a Deus, pelo cadinho da humilhação.

Quer dizer, a quem Deus ama, fá-lo passar pela humilhação. Como diz o Salmista, “de torrente in via bibet” (Sl 109, 7) — “beberei da torrente do caminho”, isto é, sofrerá grandes abatimentos, depois dos quais poderá chegar aos píncaros. Tais humilhações hão de estar no seu caminho nesta ou naquela ocasião, ou durante a vida inteira, conforme os desígnios do Altíssimo, que por isso aconselha: Sê paciente e caminha!

Põe tua confiança em Deus e ele te salvará; orienta bem o teu caminho e espera nele. Conserva o temor dele até na velhice.

Outra bela expressão do autor sagrado, indicando que devemos, até o fim dos nossos dias, cultivar não apenas nossa confiança no socorro divino, como também o temor filial e reverencial a Deus.

Considerai, meus filhos, as gerações humanas: sabei que nenhum daqueles que confiavam no Senhor foi confundido. Pois quem foi abandonado após ter perseverado em seus mandamentos? Quem é aquele cuja oração foi desprezada?

Pois Deus é cheio de bondade e de misericórdia, ele perdoa os pecados no dia da aflição. Ele é o protetor de todos os que verdadeiramente o procuram.

Para dizer tudo numa palavra, esses versículos se compaginam de modo maravilhoso com a tocante súplica dirigida por São Bernardo a Nossa Senhora, no Lembrai-Vos: “Lembrai-Vos, ó piíssima Virgem Maria, que nunca se ouviu dizer que algum daqueles que tenham recorrido à vossa proteção, implorado a vossa assistência, reclamado o vosso socorro, fosse por Vós desamparado…”

Guiados pela sabedoria, ao encontro da Santa Igreja

Para concluir esses comentários, recordo outra linda passagem da Escritura, desta feita do Livro da Sabedoria (6, 12-17):

Resplandecente é a Sabedoria, e sua beleza é inalterável: os que a amam, descobrem-na facilmente. Os que a procuram encontram-na. Ela antecipa-se aos que a desejam. Quem, para possuí-la, levanta-se de madrugada, não terá trabalho, porque a encontrará sentada à sua porta. Fazê-la objeto de seus pensamentos é a prudência perfeita, e quem por ela vigia, em breve não terá mais cuidado. Ela mesma vai à procura dos que são dignos dela; ela lhes aparece nos caminhos cheia de benevolência, e vai ao encontro deles em todos os seus pensamentos, porque, verdadeiramente, desde o começo, seu desejo é instruir, e desejar instruir-se é amá-la.

Desdobrando o luminoso pensamento contido nesse trecho, pode-se deduzir que se um homem, ao longo de sua existência, encontrou o que deveria procurar, no fim de seus dias poderá dizer: “Eu vivi!”. Do contrário, lamentar-se-á: “Andei pelas ruas como um cão sem dono, comi nas latas de lixo, bebi nas sarjetas, dormi na garoa, na chuva e ao sol, porém não vivi. Porque não encontrei a mão amiga que me agradasse, o dono que me afagasse. O cachorro foi criado para ser fiel e eu, para servir. Mas, não achei senhor. Tive uma via vazia e morro de modo desprezível”.

E se a pessoa, em qualquer etapa de sua existência — infância, juventude, idade madura, ancianidade — procura realmente o que deve, ela encontra, na proporção de seu entendimento em cada uma dessas etapas, a sabedoria. Esta se acha à nossa porta, esperando-nos despertar. Ao acordarmos, ela, com seu esplendor de rainha, suas carícias de mãe e iluminações incomparáveis, convida-nos a segui-la.

E, deixando-nos guiar pela sabedoria, encontraremos os esplendores ainda maiores da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 102 (Setembro de 2006)

 

Protetores e advogados do homem

Poucas pessoas têm noção de que os Anjos da Guarda nos foram dados sobretudo para aquilo que existe de mais importante: velar por nossa alma, lutar e agir conosco para vencermos nossas dificuldades espirituais. E, contudo, quanto conforto nos daria nas horas das tribulações, tentações, em que nos sentimos sozinhos, termos a certeza de que um Anjo da Guarda está junto de nós!

Embora não o sintamos nem o percebamos, ele não nos abandona um minuto sequer, e se acha à espera de nossas orações para agir por nós. Muitas vezes ele atua sem que o peçamos, mas fá-lo-á ainda mais se implorarmos sua assistência.

Enquanto tecemos essas considerações, o recinto em que nos encontramos está repleto de Anjos da Guarda que velam por nós. Compreendemos, assim, quanta alegria desfrutaríamos se  tivéssemos essa ideia sempre presente em nosso espírito!

Ao fazermos apostolado, ao passarmos por problemas interiores, por aborrecimentos e contrariedades de toda ordem, nos sentimos sós. Tal solidão é uma ilusão: junto a cada um está o seu Anjo da Guarda. Não obstante imaginarmos que entre nós e ele há uma distância como entre o céu e a terra, ele de fato está perto, rezando, vigiando, protegendo o homem cuja guarda lhe foi confiada por Deus.

Plinio Corrêa de Oliveira