Luta espiritual cheia de amor, amor cheio de doçura

O Arcanjo São Gabriel é aquele que mais conhece a Deus e comunica melhor este conhecimento. Daí o papel dele na Encarnação. Seu conhecimento não é meramente abstrativo, teórico, doutrinário, mas é evidentemente todo amoroso, com um amor que se manifesta na luta entendida assim: Luta espiritual cheia de amor, amor cheio de doçura. Há, portanto, uma espécie de “prœlio” no qual está, como ponto de origem e ponto terminal, o amor.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 5 e 12/12/1976)

Guerreiros implacáveis contra o demônio e seus sequazes

Pode-se afirmar que todas as grandes almas que combateram as diversas heresias, ao longo dos séculos, foram especialmente suscitadas por Nossa Senhora. É o que insinua de modo muito bonito o brasão dos claretianos, onde figura, além do Imaculado Coração de Maria, São Miguel Arcanjo e, no alto, a divisa: “Os seus filhos se levantaram e A proclamaram bem-aventurada”.

Essa presença de guerreiros que, como soldados de São Miguel Arcanjo, levantam-se para combater os inimigos de Deus, proclamando bem-aventurado o Coração de Maria, não é também uma forma de irrupção da Santíssima Virgem, como magnífica aurora, nas tramas da História? Portanto, os verdadeiros devotos de Nossa Senhora devem desejar e pedir a Ela a graça de serem esses guerreiros de ferro, indomáveis e implacáveis contra o demônio e seus sequazes que, em nossos dias, procuram conspurcar a glória da imortal Igreja de Cristo.

(Extraído de conferência de 8/9/1963)

São Jerônimo: Gládio vivo de Deus

São Jerônimo representa na Igreja, por excelência, o espírito da polêmica. Os seus escritos são de uma energia incomparável. Ele dava respostas de fogo e admiráveis, deixando todos tremendo diante dele.

Este é o zelo da Casa de Deus que devora o homem. É uma das formas mais características, santas e legítimas do zelo. Desde que isso seja feito por amor a Deus, e não por ressentimentos pessoais, é uma coisa santíssima: ser um gládio vivo de Deus.

Não conheço elogio maior do que dizer de alguém que ele é a espada viva de Deus, por toda parte cortando.

São Jerônimo pode ser considerado o padroeiro do espírito polêmico.

(Extraído de conferência de 30/9/1964)

São Jerônimo

Santos houve que se distinguiram em sustentar, com admirável firmeza, a ortodoxia da Igreja Católica contra seus adversários. Um desses foi São Jerônimo, esplendoroso e magnífico, cujo talento, santidade e agudeza de espírito, dir-se-ia incandescentes como um vulcão em erupção. Ele escrevia e discutia para demonstrar a verdade, e quando um de seus argumentos a fazia reluzir, dava com isso uma glória especial a Deus.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 8/12/1991)

Beato Carlos de Blois: Patrono dos guerreiros

A índole das instituições feudais, as quais eram hierárquicas, conduzia à santidade, enquanto as instituições que pressupõem uma igualdade completa levam ao contrário da santidade, que é o espírito da Revolução.

A respeito do Beato Carlos de Blois, o General Silveira de Mello, no livro “Os Santos Militares”, diz o seguinte:

Herda o Ducado da Bretanha

Carlos de Blois era filho do Conde de Blois, Guy I, e da Princesa Margarida, irmã de Filipe de Valois.
Recebeu educação esmerada e foi muito adestrado militarmente.

Casando-se com Joana, filha de Guy de Penthièvre e sobrinha de João III da Bretanha, por morte deste último, Carlos de Blois recebeu, com sua esposa, o ducado como herança, no ano de 1341. Assumiu o governo dessa província com grande entusiasmo dos nobres e dos seus vassalos mais humildes.

O povo do seu ducado da Bretanha, olhando para ele, pensando nele, admirando-o, venerando-o, tinha nele um reflexo de Deus na Terra.

Batalha de La Roche-Derrien
Biblioteca Nacional da França

Entretanto, o Conde de Montfort, irmão do Duque falecido, reclamou o direito à sucessão e pegou em armas para reivindicá-lo. Foi apoiado pelos ingleses, enquanto a França tomava o partido de Carlos.

O jovem Conde de Blois fez frente ao seu contendor. 23 anos durou essa luta que os ingleses sustentavam de fora.

Em 1346, no combate de La Roche-Derrien, Carlos sofreu um revés e caiu prisioneiro. Encerraram-no na Torre de Londres, onde permaneceu encarcerado durante nove anos. As orações que rezou neste cativeiro foram de molde a assegurar a continuidade do governo da Bretanha.

Nunca afrouxou seus exercícios de piedade

A Princesa Joana, sua enérgica esposa, assumiu a direção dos negócios públicos e da guerra e manteve atitude de energia pela libertação do marido.

Livre, Carlos prosseguiu com maior denodo as operações militares.

Sucederam-se reveses e vantagens de parte a parte, até que por fim, em 1364, aos 29 de setembro, festa do Arcanjo São Miguel, o santo e bravo duque caiu morto na Batalha de Auray. Esta jornada heroica, última de sua vida, iniciou-a Carlos com a recepção dos Sacramentos da Confissão e da Eucaristia.

Morreu como vivera, pois, em meio a todas as lutas que enfrentava, nunca afrouxou seus exercícios de piedade e austeridade, assim como nunca deixou de empreender obras de interesse para a Religião e para seus súditos.

Tão evidentes foram as suas virtudes, que logo após sua morte, em 1368, deram início ao processo de beatificação. São Pio X confirmou o seu culto em 14 de dezembro de 1904. É venerado no dia de sua morte, 29 de setembro.

Luta contra um vassalo infiel e revoltado

Trata-se de um Santo que é, de um modo especial, o patrono dos guerreiros. Há dois modos de ser patrono dos guerreiros: um, considerando o guerreiro enquanto guerreiro da Fé, lutador pela Doutrina e pela Igreja Católica. Mas neste caso é a função do guerreiro com um acréscimo que lhe é extrínseco e não necessário à condição do guerreiro. Quer dizer, o guerreiro realiza a maior sublimidade de sua vocação quando ele luta pela Fé, mas nem todo guerreiro luta necessariamente pela Fé.

O próprio do guerreiro é lutar, e o normal dele não é lutar apenas pela Fé. Mas o guerreiro pura e simplesmente, que não acrescenta a seu título essa auréola de cruzado, é aquele que luta na guerra justa pelo seu país, para defender o bem comum, ainda que seja o bem comum temporal daqueles que estão confiados à sua direção.

Temos aqui o exemplo do Bem-aventurado Carlos de Blois. Como vimos, ele era Duque da Bretanha, em virtude de uma herança recebida de sua esposa. Mas o tio desta, contestando a  legitimidade desse título, revoltou-se e moveu uma guerra contra ele. Ele era, portanto, a legítima autoridade em luta contra um vassalo infiel e revoltado.

Além disso, tratava-se da integridade do reino da França, porque o tio da Princesa de Blois era ligado aos ingleses, que queriam dominar a França. E ele lutava então pela integridade do território francês, batalhando pela independência da Bretanha em relação à Inglaterra.

Combate com um remoto significado religioso

Essa luta pela França, por sua vez, tinha um remoto significado religioso, mas que ele não podia prever, não estava nas suas intenções. A França era a nação predileta de Deus, a filha primogênita da Igreja. A Inglaterra era nesse tempo uma nação católica, mas futuramente haveria de tornar-se protestante. E se ela tivesse domínio numa parte do território francês, daí a alguns séculos isso seria muito nocivo para a causa católica.

Entretanto, esta consideração de ordem religiosa, que nos faz ver o caráter providencial da luta, não estava na mente desse Beato. Ele tinha em vista, como Duque, lutar pela integridade do  território de sua pátria próxima, que era a Bretanha, e de sua pátria mais genérica que era a França.

Ele levou nesta luta uma vida inteira. Foram perto de 30 anos de reveses, nove dos quais ele esteve preso. Mas o Beato soube comunicar o seu ardor guerreiro à sua esposa que, durante os nove anos em que ele ficou encarcerado na Torre de Londres, também lutou valentemente para conservar o ducado.

Ao beatificá-lo, a Igreja quis elevar à honra dos altares o senhor feudal perfeito, governador e patriarca de suas terras, aristocrata e, além disso, batalhador que sabia derramar o sangue pelos seus. Esta é a síntese do senhor feudal.

Para determinados revolucionários que vivem falando contra o feudalismo, e apresentam o cargo e a dignidade de senhor feudal como intrinsecamente má, o exemplo do Beato Carlos de Blois e o  gesto da Igreja beatificando-o constituem um desmentido rotundo, porque mostram bem que o cargo pode e deve ser exercido digna e santamente, e que através dele se pode chegar à honra dos altares.

Mostra-nos, com mais um exemplo, quantas pessoas de alta categoria da hierarquia feudal se tornaram santas.

Vemos também por este exemplo a índole das instituições. As instituições têm uma índole, uma psicologia, uma mentalidade como os indivíduos. A índole das instituições feudais levava à  santidade, enquanto que, de outro lado, as instituições que pressupõem uma igualdade completa levam ao contrário da santidade, que é o espírito da Revolução.

Acabando com as desigualdades, se elimina a ideia de Deus

Algum tempo atrás, tive a oportunidade de ler um livro de um dos chefes do Partido Comunista Francês, chamado Roger Garaudy, que sustentava a seguinte tese: É ridículo nós querermos fazer  suprimir no povo, por meio das perseguições, a ideia de Deus. A ideia de Deus, o povo a tem por causa das desigualdades. É considerando pessoas desiguais que o homem inferior pensa, concebe a  ideia de um Deus, o qual é a perfeição daquilo de que o seu superior lhe dá certa noção. Por causa disso — diz ele — nós não devemos primeiro exterminar a Religião, para depois acabar com a hierarquia política e social. Precisamos eliminar as desigualdades políticas, sociais e econômicas, para depois então exterminarmos a Religião. E afirma ele que, implantada por toda parte a igualdade, os símbolos de Deus desaparecem, e a ideia de Deus morre na alma dos povos.

O exemplo do Beato Carlos de Blois nos faz pensar nisto. O povo do seu ducado da Bretanha, olhando para ele, pensando nele, admirando-o, venerando-o, tinha nele um reflexo de Deus na Terra. A duplo título, porque o santo é um reflexo do Criador na Terra, e o general, o governador, o chefe, o mestre é um superior que representa a Deus. Assim, olhando para ele, a ideia de Deus se tornava mais clara na mente de seus súditos.

O gesto da Igreja beatificando Carlos de Blois mostra bem que o cargo pode e deve ser exercido digna e santamente, e que através dele se pode chegar à honra dos altares.

São Tomás abençoa a desigualdade, Garaudy blasfema contra ela

Aliás, é precisamente o que ensina São Tomás de Aquino quando trata da desigualdade. Ele diz que deve haver desiguais, para que os maiores façam às vezes de Deus em relação aos menores, e  guiem os menores para o Criador. É o pensamento do Garaudy, a mesma concepção a respeito da relação entre a desigualdade e a ideia de Deus. Entretanto, enquanto São Tomás de Aquino  abençoa essa desigualdade, porque ela conduz a Deus, Garaudy blasfema contra ela, por esta mesma razão.

Assim, nós vemos bem como a hierarquia feudal encaminhava as almas para Deus, e como este Santo brilhou como a luz colocada no lampadário, iluminando a França e a Europa do seu tempo com sua santidade.

Essas considerações conduzem a uma oração especial para ele.

Nós estamos numa profunda orfandade! Neste mundo de ateísmo, nesta época em que o igualitarismo fez por toda parte devastações tão tremendas, podemos olhar para o Bem-aventurado Carlos de Blois como verdadeiros órfãos que não têm o que ele representou para os homens do seu tempo.

Então, podemos pedir a ele que se apiede de nós nesta situação em que estamos, e que pelas suas orações faça suprir em nossas almas essa deficiência. Que o amor à desigualdade, à sacralidade, à  autoridade, o gosto de venerar, a necessidade de alma de obedecer, de se dar, de ser humilde brilhem em nossas almas de maneira tal que possamos dizer que verdadeiramente é a Contra-Revolução que vive em nós.

Beato Carlos de Blois, rogai por nós!

(Extraído de conferência de 28/9/1968)

Escudo e gládio da Santa Igreja

São Miguel comandou a luta contra os demônios e os precipitou no Inferno. Ele é, pois, o chefe dos Anjos da Guarda dos indivíduos e das instituições. E é ele mesmo o Anjo da Guarda da Instituição por excelência, a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Nele, portanto, duas missões se concatenam. Deus quis servir-Se dele como seu escudo contra o demônio, e quer que ele seja também o escudo dos homens e da Santa Igreja. Mas o Príncipe da Milícia Celeste não é meramente escudo, é também gládio. Não se limita a defender, mas ele derrota e precipita no Inferno. Eis a dupla missão de São Miguel Arcanjo.

Por causa disso ele era considerado, na Idade Média, o primeiro dos cavaleiros, o cavaleiro celeste, leal, forte, puro, vitorioso como deve ser o cavaleiro que põe toda a sua confiança em Deus e em Nossa Senhora.

Esta é a figura admirável de São Miguel, que nós devemos considerar nosso aliado nas lutas.

(Extraído de conferência de 28/9/1966)

3 Arcanjos

Numa hipotética analogia com aspectos da vida humana, seríamos levados a atribuir aos três arcanjos — Miguel, Gabriel e Rafael — predicados pelos quais eles reluzem na história sagrada. Assim, São Gabriel é o anjo da contemplação, do ideal, da chama que leva a alma a embevecer-se com o Espírito Santo, como o fez diante da Santíssima Virgem, ao representar junto a Ela o seu Divino Esposo. São Miguel, o anjo da justiça, paladino da supremacia de Deus sobre todas as criaturas, o anjo da luta vitoriosa pelo bem. E São Rafael, o anjo da caridade, da confiança, protetor dos desvalidos, dos Tobias da vida de todos os dias, amparando-os com requintes de bondade e misericórdia.

Plinio Corrêa de Oliveira

Intercessor celeste de alta categoria

Temos em São Rafael um intercessor celeste de alta categoria que leva nossas preces a Deus, porque é um dos sete espíritos mais elevados que assistem junto do Altíssimo e, portanto, são os canais naturais das graças que desejamos.

Houve uma mística que, ao lhe ser dado ver seu Anjo da Guarda, ajoelhou-se em adoração, pensando tratar-se do próprio Deus, tão elevada, nobre e excelsa era a natureza daquele ser. Ora, sabemos que os Anjos da Guarda pertencem à hierarquia menos alta do Céu. Em comparação com isso, é inimaginável um Anjo das mais altas hierarquias. De que alegria vamos estar inundados no Céu quando pudermos contemplar um Arcanjo como São Rafael, e tudo quanto nele veremos de Deus!

Peçamos a ele para termos essa contemplação, e que a consideração dessa ordem angélica ideal e realmente existente nos conforte para uma esperança do Céu e do reinado de Maria, dissipando toda a tristeza crescente destes dias em que os castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima vão se aproximando tão rapidamente de nós.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/10/1964)

São Vicente de Paulo

São Vicente de Paulo era um homem obstinado no amor de Deus. O zelo com que ele, como hábil diplomata, defendia os interesses da igreja nos altos círculos onde tinha contatos, transformava-se em uma santa sofridão ao tratar dos pobres e necessitados. Queria a grandeza da religião católica, como desejava remediar todos os infortúnios.

Em última análise, movia-o uma firme e extraordinária vontade de ver o bem acessível a todos, porque Deus é o bem. Daí ter-se tornado o mais conhecido vulto de toda a epopeia de caridade dos vinte séculos de civilização cristã.

Plinio Corrêa de Oliveira

Balduíno IV, o protótipo do católico – II

Balduíno, agonizante, foi de liteira enfrentar Saladino, que se retirou. Talvez essa vitória tenha sido, sob algum aspecto, mais bonita do que a alcançada pelo rei leproso quando rezou com o rosto na areia. Nesta ele comoveu o Céu, inclinando-se no deserto; naquela, impôs respeito ao Inferno, fazendo com que o famoso guerreiro maometano fugisse. É a glória de um homem na Terra, à espera da glória no Céu.

 

Imaginemo-nos na situação dos soldados de Balduíno IV que combateram na batalha de Montgisard(1), revestidos de armamentos, marchando ou cavalgando às ordens desse rei, e pensando o seguinte:

Epopeia comparável aos episódios sacratíssimos da vida de São Luís

“Do outro lado está o Sultão Saladino, muito famoso, riquíssimo, cercado de todo o fausto do Oriente – o nome dele retumbava por todas aquelas zonas como o de um grande guerreiro –, um homem válido, sadio. Nós não somos senão trezentos, e o nosso rei o que é? Um miserável leproso, um pobre super doente, desfeito em chagas e purulências. E a Providência nos chamou para combater, sob as ordens de um desprezível leproso, todo o exército de Saladino!”

Não é verdade que poderia dar insegurança monumental? O que deveria ter sido esse Balduíno para, sozinho, dar segurança aos trezentos homens! Que canal, que veículo do Espírito Santo! Mais bonito ainda do que pensar em trezentos guerreiros é cogitar em trezentos soldados pernibambos… E o rei, leproso, que se prostra no chão e pede a Nosso Senhor, por meio de Nossa Senhora, força para os seus pernibambos. Ali, de fato, nada é forte a não ser a alma dele; mas esta o era por inteiro! Mais sublime não pode ser.

Eu pergunto: na história das monarquias católicas, há um episódio mais bonito do que esse? Não há. Nem os episódios sacratíssimos da vida de São Luís excedem a esse em beleza. Igualam sim, mas não excedem. É uma verdadeira maravilha!

Eis a epopeia que a História da Idade Média, vista assim, nos apresenta. Continua o autor(2).

No ano seguinte, Balduíno edificou no Gué de Jacob a fortaleza destinada a defender a Galileia dos ataques de Damasco.

Gué é um vale por onde Jacó teria passado. Como é bonita a figura desse rei que vai se desagregando, mas constrói fortalezas. Ele, ao contrário de uma fortaleza que se edifica, é um esboroamento vivo, a cada instante. Mas ele ainda constrói fortaleza para lutar no futuro.

Guilherme de Tiro pretende que isso tenha sido feito pelas permanentes solicitações de Odon de Saint-Amand, Grão Mestre do Templo. Em todo caso, qualquer que tenha sido o inspirador da ideia, não há dúvida quanto à importância estratégica da fortaleza que Balduíno mandou construir.

Um senhor feudal revolta-se contra Balduíno IV

Em 1179, Saladino invadiu a Galileia. Balduíno foi a seu encontro, tentando surpreendê-lo, como tinha feito em Montgisard. Mas, como os muçulmanos não se deixaram surpreender, o jovem rei foi cercado. Muitos foram mortos e presos nesse dia.

Pouco tempo depois, Saladino tomou o Gué de Jacó e mandou executar todos os cavaleiros do Templo que a defendiam.

Sybilla, irmã do rei, acabava de se casar – contrariamente aos interesses do Estado – com Guy de Lusignan, homem de beleza discutível, sem fortuna e sem talento. Balduíno, pressionado pelos seus, minado pela doença, havia consentido nessa união e doado a Lusignan os condados de Jafa e Ascalon.

Tão logo se manifestou a insignificância do marido de Sybilla, atiçaram-se as esperanças dos senhores feudais. Contava-se que o irmão de Lusignan, comentando o casamento, disse: “Se Guy for rei, eu deveria ser deus”.

Nessa mesma ocasião, Isabel de Jerusalém desposava Humphrey de Toron, filho indigno de seu pai, o extinto Condestável de Jerusalém, morto em defesa do rei. O estado de Balduíno IV piorava dia a dia. Foi uma provação para sua mãe, que não tinha boa fama, e para a roda de seus cortesões, ambiciosos e amorais, ver a aproximação de Balduíno com Raimundo de Trípoli, único homem capaz de aconselhá-lo devidamente.

Nesse momento reapareceu, libertado dos cárceres muçulmanos, o antigo Príncipe de Antioquia, Renaud de Châtillon. Este logo começou suas aventuras, assaltando uma importante caravana de peregrinos com destino a Meca.

Tal ato rompia a trégua assinada por Balduíno IV e Saladino, ofendia as convicções religiosas dos muçulmanos, a cujos olhos o atentado afigurava-se monstruoso. Intimado pelo rei a devolver os prisioneiros e o produto da pilhagem, ele recusou-se com arrogância, tornando assim evidente a incapacidade do doente de se fazer obedecer.

Portanto, esse senhor feudal revoltou-se contra o rei. Balduíno deu-lhe ordem de restituir o que tinha tirado aos muçulmanos, e ele não quis. O estado de doença de Balduíno não lhe permitia, naquele momento, manter a autoridade necessária.

Dirigia-se às batalhas, carregado em liteira

Em agosto, o infatigável maometano Saladino tentou tomar Beirute por uma ação combinada por terra e mar. Uma vez mais, Balduíno afastou o perigo.

Então, caminhando para a morte, ele combateu e venceu.

Impediu Saladino de se apoderar de Alepo e conduziu uma expedição até os subúrbios de Damasco.

Que era a capital de Saladino.

Assim, por toda parte, graças à sua energia sobre-humana, e ainda que daí em diante ele se fizesse carregar em liteira para as batalhas, o heroico leproso levava vantagem sobre o genial muçulmano.

Considerem um rei que não pode mais cavalgar e é levado em liteira para as batalhas, mas que vai animando os seus. Vejam, mais uma vez, a força de alma que renasce, enquanto o corpo cada vez decai mais.

Ele começava, entretanto, a perder a vista, a não poder mais se servir de seus membros. Os que lhe eram mais chegados o pressionavam a abandonar seus afazeres do reinado, e ao mesmo tempo passar parte de suas responsabilidades a Guy de Lusignan.

Pode-se bem imaginar o drama interior desse rei, com apenas 22 anos, corroído por úlceras, semi paralisado e quase cego, cercado pelas sombras da desconfiança e dos maus pressentimentos, atormentado ante as insinuações e sugestões pérfidas dos seus, de um lado, e a alta ideia que fazia de sua missão de rei, de outro lado. Se a lepra o enfraquecia e ele não podia ter esperanças de se curar, sempre, entretanto, encontrava novas forças e resistia da melhor forma às ciladas da camarilha.

É o período de ascensão máxima dele: cada vez mais cercado, ele vai resistindo à camarilha, crescendo em energia.

Pedido de socorro ao Ocidente

Como a doença entrava numa fase evolutiva, ele devia lutar contra ela e, sobretudo, contra a tentação de abandonar tudo para morrer em paz.

Foi num desses períodos que ele consentiu, se bem que a contragosto, a investir Guy de Lusignan na regência do reino.

No primeiro encontro com Saladino, Lusignan deixou o exército franco ser massacrado. Recusou com altivez prestar contas a Balduíno, que o destituiu de seu cargo. E para evitar que, pela complacência de Sybilla, Lusignan se tornasse Rei de Jerusalém após sua morte, ele designou seu sucessor: o pequeno Balduíno V, filho de Guilherme Longue Épée.

Ele ainda teve, portanto, um gesto de suprema coragem e energia: vendo que o cunhado não prestava mesmo, destituiu-o da sucessão do reino.

Como a situação da Terra Santa estivesse desesperadora, Balduíno mandou uma embaixada ao Ocidente, composta pelo Patriarca de Jerusalém, pelo Mestre dos Hospitalários e pelo Mestre dos Templários, o velho Arnaud de Torrage.

Era um pedido de socorro ao Ocidente, para ver se mandavam gente limpa e boa para salvar a cidade de Jerusalém.

Agonizante, Balduíno enfrenta Saladino e o derrota

Renaud de Châtillon, que indiretamente tinha ajudado o rei a se desembaraçar de Lusignan, julgou-se autorizado a retomar suas pilhagens, mas agora então na mais alta escala.

Armou uma frota, que foi transportada ao Mar Vermelho em dorso de camelo. Essa frota, devastando portos, interceptando comboios, ameaçou por algum tempo o caminho para Meca.

Saladino, excitado até o cúmulo do furor, destruiu os navios de Renaud e depois sitiou-o em sua própria fortaleza, o Krak de Moab. Balduíno IV apareceu, agonizando em sua liteira, para lhe fazer frente. Saladino então retirou-se.

O Mar Vermelho era cheio de sultanatos e de pequenos Estados riquíssimos. Renaud de Châtillon fez transportar os seus navios, a dorso de camelo, pelo istmo de Suez – o canal naturalmente não existia, só foi aberto no século XIX –, entrou no Mar Vermelho e começou a saquear. Saladino ficou indignado. Balduíno, agonizante, foi de liteira enfrentá-lo. Saladino se retirou. Talvez tenha sido uma vitória, sob algum aspecto, mais bonita do que aquela quando ele rezou com o rosto no chão. Na primeira vitória, ele comoveu o Céu, inclinando-se no deserto; na segunda, impôs respeito ao Inferno, fazendo com que Saladino se retirasse. É a glória de um homem na Terra, à espera da glória no Céu.

O último ato de Balduíno IV foi o de reunir em São João d’Acre o Parlamento de seus barões. Guy de Lusignan, incapaz e rebelde, foi então oficialmente afastado do trono. E a regência foi confiada a Raimundo de Trípoli.

O que era de justiça e sabedoria, porque ele designou um menino para ser seu sucessor, e tinha o direito de nomear o regente. Balduíno chamou então seu conselheiro fiel e designou-o como regente. Vê-se o golpe pelo qual ele não nomeou Guilherme, o Longa Espada, para rei, mas sim o menino. Assim, Balduíno pôde chamar seu conselheiro fiel e passar-lhe o bastão de mando, antes de morrer.

Mais tarde, a 16 de março de 1185, o mártir rendeu sua alma a Deus, em presença de seus vassalos, dignatários e bons companheiros de guerra. Até os infiéis lhe tributaram homenagens.

Pedir a esse herói que nos obtenha a força de alma indomável

Entretanto, os católicos o esqueceram…  Em 1972, ele é lembrado num auditório cheio de pessoas de um continente naquele tempo habitado pelos guaranis, araucanos, tupis, etc. Aqui está um eco da glória de Balduíno IV, Rei de Jerusalém.

Esse é um fulgor da Idade Média. Não sei o que aconteceu, mas uma figura assim não foi dada mais à Cristandade. Esse exemplo impressionante do rei leproso e herói, diante de cujas feridas recuam, cheios de reverência, os filhos das trevas, não nos foi dado depois.

Alguém poderá objetar: “Dr. Plinio, o seu entusiasmo por Balduíno IV é como se ele tivesse sido santo. Mas o senhor não pode ter os olhos fechados para o fato de que esse homem teve fraquezas na vida, como o senhor mesmo observou nessa narração histórica. Como o senhor pode ter tanto entusiasmo por esse personagem?”

A vida tem me mostrado poder haver pessoas com algumas qualidades, mas que, sob o peso de provações muito grandes, embora com culpa, apresentam deflexões, mas a graça depois perdoa, reanima e leva de novo a altos cumes.

Essa foi a história, chagada e dolorosa, de Balduíno IV. Ele teve desfalecimentos, é verdade. Não como Nosso Senhor caiu debaixo da Cruz – perfeito, impecável, divino –, mas como um homem que teve fraquezas, e recebeu graças para não tê-las. Essas fraquezas devem ser julgadas com severidade. Mas os atos maravilhosos de sua vida também precisam ser, por isso mesmo, julgados com a mesma justiça. E esses impõem admiração, como as fraquezas exigem a severidade. Sobretudo, para que esse homem tivesse realizado o último lance de afugentar e impor respeito a Saladino naquelas condições, era preciso que a sua alma estivesse em muito belo estado.

Ele foi ocasião, como uma relíquia viva, para um dos mais bonitos episódios da História das Cruzadas. Como não admitir que a alma desse homem, num grau mais alto ou menos, esteja na presença de Deus? Nós não podemos canonizar ninguém, pois este é um privilégio único e exclusivo da hierarquia católica, mais especialmente do Papa. Porém, podemos pedir privadamente a esse herói que nos conquiste essa força de alma indomável. Que ele nos faça compreender algo desse espírito medieval, do qual ele era dotado em tão alto grau, e que é a luz que nos deve animar no caminho ao Reino de Maria.

Aqui está a grande recordação purulenta, fétida, chagada e maravilhosa de Balduíno IV. Mais do que isso, de Nosso Senhor Jesus Cristo no alto da Cruz, pensando em nós, em nossa meditação, abençoando-nos e nos perdoando por todos os defeitos que haja em nossas almas.

Nós nos compadecemos de Balduíno e, sobretudo, d’Ele. Que ambos tenham piedade de nós!

(Continua no próximo número)

 

Plinio  Corrêa de Oliveira  (Extraído de conferência de 21/10/1972)

 

1) Cf. Revista Dr. Plinio, n. 245, p. 18.

2) Cf. BORDONOVE, Georges. Les Templiers. Paris: Librairie Athème Fayard, 1977, p. 111-115.