Santa Teresinha do Menino Jesus

Eis que minha amargura transformou-se em paz. (Is 38,17)

“Ecce in pace amaritudo mea amarissima” (Is 38,17). Quem sabe vislumbrar através dos traços de uma fisionomia um estado de alma, não pode deixar de pensar que essas palavras mereceriam estar escritas ao pé desta fotografia, que nos mostra uma figura sorridente mas indizivelmente dolorosa.

O sorriso não procura esconder a dor, mas afirmar-se por um prodígio de virtude, de fidelidade à graça, apesar da dor. Os lábios sorriem só porque a vontade quer que eles sorriam, e a vontade o quer porque essa alma tem fé, e sabe que depois das provações e das trevas desta vida terá como prêmio Aquele que disse de Si: “Serei Eu mesmo vossa recompensa demasiadamente grande” (Gen. 15,1).

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de “Catolicismo”, n° 111, março de 1960)

Santa Teresinha: Vida de epopeia

A respeito da devoção a Santa Teresinha, houve muita incompreensão, pois foi entendida num sentido contrário ao da epopeia: fazer os pequenos sacrifícios para evitar os grandes. E transformar a existência numa vidinha que, levada sempre com um sorrisinho, resultava numa saída muito cômoda para o caminho da cruz do católico.

Sua espiritualidade é muito vasta, tendo  ela defendido duas teses: Uma pessoa pode levar uma existência de epopeia, mesmo quando as circunstâncias não lhe proporcionem gestos de audácia,  ou não  exponha diretamente sua vida.

E, mesmo para as almas fracas,  a realização da epopeia é possível. Isso explica o fato de que ela — uma mulher, carmelita reclusa, vivendo numa França na qual não havia circunstâncias para reproduzir o feito de  Santa Joana d’Arc — realizou tanto quanto esta última.

Por essa razão, embora sendo uma alma não destinada a enfrentar grandes lances, ela transformou, pelo auxílio da graça, em grandes, os pequenos fatos da vida cotidiana. Levou uma existência de tão contínuos sacrifícios que, em seu conjunto, sob esse ponto de vista, foi uma epopeia.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/7/72)

Santa Teresinha, modelo de seriedade no sacrifício

No calendário litúrgico antigo, a festa de Santa Teresinha caía em 3 de outubro, a mesma data em que Dr. Plinio partiu desta vida para receber seu prêmio pelo bom combate. Não é este o único nem o principal vínculo entre eles. Antes de tudo, esse varão devotava grande admiração pela figura e vocação daquela carmelita, conforme manifestou em muitas ocasiões, entre as quais a conferência transcrita nestas páginas.

 

Diversas passagens da Escritura desenvolvem o pensamento de que o eixo da História gira em torno dos justos, e tudo quanto acontece no mundo – desde os fenômenos de ordem natural até os mais altos fenômenos de ordem cultural, espiritual, política, etc. —  é ordenado pela Providência para a salvação daqueles que verdadeiramente querem se salvar. Noutros termos, é em benefício desses bons que tudo se passa. São eles os filhos bem-amados, os prediletos.

Nessas condições, não será difícil compreender como os católicos nada devem temer, se forem almas retas e íntegras como uma espada de aço, que tem ponta e gume para cortar qualquer coisa, retilínea, clara e brilhante. Nada a quebra e ela avança sobre qualquer adversário, a começar por si mesmo, porque os nossos piores inimigos estão dentro de nós.

Modelo de alma assim, justa e séria, foi Santa Teresinha do Menino Jesus, que, por essa razão, pode ser comparada a um gládio.

Desde a sua mais remota infância, a vida dela esteve voltada para as altas questões de caráter metafísico, vistas embora segundo a mente de uma menina, depois, de uma moça, e por fim, de uma religiosa carmelita. Quer dizer, não era uma especialista em metafísica, mas era um espírito repleto de elevadas considerações teológicas, sobrenaturais, etc., as quais constituíam o fogo que ardia continuamente na sua alma.

Vocação abraçada sem hesitações

Por outro lado, desde cedo ela conheceu a sua vocação, e conhecendo-a, adotou-a sem nenhuma espécie de irresolução, hesitação ou moleza. Sabe-se, por exemplo, o quanto ela amava seu pai e suas irmãs. Ora, no último jantar em família que precedia a partida dela para o convento, todos na mesa choravam, exceto a vítima que iria se imolar. Por quê? Por suma seriedade. Se resolveu, se é o caso de fazer, esteja contente, pois chegou a hora de re-alizar a vocação. Se o sacrifício tem de ser consumado, transponha de uma vez os umbrais da dor, sem delongas nem demoras que só prejudicam a decisão tomada.

Entrando na vida religiosa, ela encontrou um ambiente pouco favorável àquela seriedade que a distinguia. Fundamentalmente, encontrou um Carmelo não sério, entre outras coisas, com uma superiora que estimulava nas suas freiras um perigoso mundanismo, trazendo para dentro da comunidade as futricas e os fatos miúdos da pequena nobreza de Lisieux.

A vitória da seriedade

Nessas circunstâncias, Santa Teresinha podia ter pensado: “Este é um convento não sério e, portanto, a única atitude certa é tomá-lo como tal e imitá-lo. Serei também uma freira relaxada!”

Porém, não foi esta a postura que adotou. Pelo contrário, ela conquistou a vitória da seriedade: Neste convento com tantos defeitos, vou considerar que ele, de qualquer modo, é uma casa religiosa, e como tal é algo imensamente sério. De maneira que levarei a seriedade até as últimas consequências. Vou ser seriíssima, vou ser santa, vou oferecer a minha alma como vítima expiatória ao amor misericordioso de Nosso Senhor Jesus Cristo, aceitando tudo quanto Deus me mandar, sem pedir e sem recusar nada.

Um pequeno exemplo dessa seriedade. Certa vez, a freira que lhe ajustava aquela capa creme de carmelita errou na hora de fechar um alfinete de gancho, cravando-o na pele de Santa Teresinha. Esta, até o momento de tirar o hábito para dormir, aguentou o incômodo e a dor sem gemidos, porque tinha resolvido não recusar nenhum sacrifício que Deus lhe enviasse.

Imagine-se o que seja levar um alfinete cravado na carne o dia inteiro! Mas, é a seriedade de uma alma santa, uma alma-gládio: Eu não resolvi aceitar tudo? A palavra tudo comporta exceção? Não. Logo, isto faz parte do tudo. Logo, deixe aqui o alfinete!

Mortificando o anseio do sacrifício

Outra impressionante prova de seriedade, ela deu a propósito de seu oferecimento como vítima expiatória. Entregou a vida nas mãos da Providência e passou a desejar que fosse levada o mais rápido possível. Quantos fazem um oferecimento de vítima expiatória pelas nuvens, e se lhes sobrevém depois um resfriado ficam apavorados de morrer! Santa Teresinha, ao contrário, imolou-se por inteiro, a ponto de mortificar o próprio anseio com que esperava consumar seu sacrifício.

Com efeito, na noite em que teve a primeira hemoptise, ela sentiu que estava expelindo qualquer coisa que talvez fosse sangue. Resolveu não verificar na hora, mas deixar para o dia seguinte, refreando assim a vontade imensa de ver aceita sua imolação. Se fosse sangue, significaria morte próxima. Então, como um pequeno sacrifício a mais, decidiu não olhar naquele instante. Dormiu, e só foi se certificar na manhã seguinte.

Considero essa atitude como a última palavra da seriedade: Eu resolvi entregar minha vida, e chegou a hora. Desejo tanto fazer o que decidi, que a mortificação consiste em não tirar a limpo, e dormir em paz até raiarem as primeiras claridades da aurora, o sino da obediência me despertar, eu abrir os olhos e ver que o pano está vermelho. É o Esposo de minha alma que vem. Levantar-me-ei alegre, porque a morte bateu à minha porta!

De fato o Esposo vinha, a vítima estava próxima do altar, perto de sofrer as piores dores, e de caminhar para elas como Santa Teresinha caminhou até o fim.

Determinada e heroica, de encontro à morte

Estou seguro de não ter havido na História guerreiro que enfrentasse a morte de modo mais determinado e heroico do que Santa Teresinha do Menino Jesus. Na serenidade maravilhosa do olhar dela, existe a limpidez e a firmeza de todas as resoluções. É o calvário e a cruz: Eu planejei, eu resolvi, eu estou decidida. Nada abala essa determinação.

Como é belo, por exemplo, alguém fazer o papel de Santo Inácio de Antioquia, cujo martírio é uma das páginas inesquecíveis da hagiografia católica. Um ancião que se apresenta no meio do Coliseu romano, sob os apupos de uma multidão ululante, e vai de encontro aos leões com os braços abertos: Meu Deus, fazei com que as garras e os dentes destas feras me triturem como é triturado o trigo para formar uma hóstia, de maneira que eu possa ser para Vós, Senhor, uma hóstia, havia dito. E talvez tenha pensado: uma hóstia pura, santa, imaculada. Os leões vieram, ele não recuou, sentiu a dilaceração de todo o ser dele, dores incríveis, mas estava se “hostificando”, transformando-se numa hóstia, e ali morreu.

Mas, que quadro maravilhoso: o circo romano, possivelmente o imperador, os patrícios, a ordem dos cavaleiros, as vestais, é o maior público da maior cidade do mundo de então. É a maior infâmia e a maior glória morrer naquele lugar. Ele, o mártir, pensava em Nosso Senhor Jesus Cristo no alto Calvário, e se sentia como um herói, abrindo os braços para os leões e morrer a  se me fosse lícito empregar a palavra é  numa espécie de apoteose de si mesmo. Que magnífico!

Como magnífica haveria de ser a morte de um cruzado: a cavalo, revestido de couraça e elmos reluzentes, armado de escudo e espada, combatendo os inimigos da fé católica, até que em certo momento ele sente um ferro que lhe entra pela garganta, uma golfada de sangue, e ainda vá, nos últimos estertores da morte, um Arcanjo de cristal que desce do Céu para pegá-lo e levá-lo. Que maravilha!

Bem diferente a morte de Santa Teresinha. Nunca me esqueço do arrepio que tive quando vi fotografias dela em seus últimos dias de vida: um claustro pacífico, tranquilo, uma espécie de cama-de-vento, preparada de um modo muito confortável, colchões, travesseiros, e ela posta ali, bonita e risonha como uma boneca.

Entretanto, pelos escritos que nos deixou, sabemos o horror que ela estava sofrendo. Ser vítima no meio do acolchoado, do conforto, e morrer, não por um inimigo que se combate, mas de uma doença que a vai consumindo, sem permitir o heroísmo e o esplendor do contra-ataque; era ser devorada sem devorar, ser comida por uns bichinhos que não têm consciência de si mesmos e que vão roendo os seus pulmões… Que terrível!

Pior. Não bastassem as dores físicas, tinha ainda a provação moral. Chumbo dentro da alma, trevas, nenhuma consolação. A única voz que se fazia ouvir sensivelmente era a do demônio: Será que há Deus? Será que há outra vida? Tu estás te extinguindo de um modo tão horroroso e tão inglório… Renunciaste a tantas diversões e prazeres, e agora morres pelos micróbios da tuberculose. Depois virão os vermes, e tu não serás mais nada, irás para a sepultura, quando toda a natureza em torno de ti estará em flor… Ah, ah, ah! Uma gargalhada com todos os ecos do inferno.

Tudo isso Santa Teresinha enfrentava nos acolchoados, nos pequenos agrados, na aparência de compota, e ouvindo uma irmã dizendo para a outra, no quarto ao lado: Quando essa irmã Teresinha do Menino Jesus morrer, eu não sei o que nossa madre vai escrever nos anais do Convento, porque ela não fez nada. E assim ela ia se extinguindo, num fim que é pelo pelo menos tão heroico quanto o de Santo Inácio de Antioquia. A resolução estava tomada, com fé e seriedade inquebrantáveis, sem nenhuma concessão ao demônio.

Ela cantava em vida sua própria santidade

De maneira que ela sorveu o cálice até a penúltima gota. A última lhe foi poupada, pois no derradeiro instante, que devia ser o mais cruel, ela teve um êxtase, a tal ponto que se levantou no leito e parecia inundada de luz celeste: sua alma já contemplava a Deus, ela tinha morrido.

Santa Teresinha partiu, e, como ela havia prometido, começou a cair sobre a terra uma chuva de rosas (ou seja, de graças especiais) comprada por um dilúvio de sangue interior. Os mil sorrisos que a devoção dela abriu na terra foram fruto dos mil gemidos de alma e de corpo que ela soltou, porque quis e porque foi séria até o fim.

Tão séria que ela compreendeu não carecer do aparato bélico de um cruzado, nem de quaisquer outras exterioridades do heroísmo, para ser uma heroína. E morreu cônscia de seu heroísmo, de sua santidade. Ela percebia que era como uma árvore de resina preciosa, da qual toda gota que caía tinha um valor extraordinário aos olhos de Deus e dos homens, sendo portadora de insignes graças.

Não entrava nisso nenhum laivo de orgulho nem de vaidade. O fato é que se tratava de uma pessoa tão séria, e seu exame de consciência era tão retilíneo e profundo, que ela tinha confiança na limpidez de sua própria alma, e por isso cantava em vida sua própria santidade.

Para todo homem chega a hora do “consummatum est”

Essa é a seriedade levada até as últimas consequências. Ora, o exemplo de Santa Teresinha é de extrema importância para todos nós. A vida de todo homem na terra é destinada a ser uma grande batalha: ou será a batalha da fidelidade e, portanto, a batalha da cruz; ou será uma grande batalha torta, errada, inglória. Mas, da luta o homem não escapa. Ou se tem os mil tormentos para subir a montanha da santidade e do Céu, ou se tem o tormento da vergonha, da inutilidade, da podridão, quando se rola montanha abaixo.

Todos temos de passar pelos sofrimentos. E em determinado momento chega o sacrifício supremo, aquele em que damos a alma inteira, em que temos de repetir as palavras de Nosso Senhor no alto da Cruz: “Consumma-tum est” tudo está consumado! Tudo que na vida eu poderia dar, eu dei.

Pode parecer trágico, mas a questão é saber o que se entende por tragédia. Se é todo grande sofrimento que resulta em glória, então o Calvário é a tragédia da Cruz padecida com seriedade, que culmina na Ressurreição. Se for apenas a tragédia do sofrimento que deu errado e de nada adiantou, do caminho que não teve fim nem termo, então não é a tragédia da Cruz, mas a de árvores tortas.

Se, seguindo o modelo de Santa Teresinha, somos sérios no abraçar o sacrifício e a santidade, então nossa vida não será trágica, mas heroica e gloriosa, como a dela.

Tão pequena menina e já tão grande santa

Nesta fotografia aos oito anos de idade, Santa Teresinha está olhando para um ponto vago, indefinido, mas com uma espécie de contemplação enlevada, afetuosa, respeitosa. Em última análise, é o olhar próprio de um espírito possantemente contemplativo.

Santo Agostinho disse de si, nas “Confissões”, referindo-se à sua infância: “Tão pequeno menino eu era, e já tão grande pecador”. Dela poder-se-ia dizer: “Tão pequena menina era, e já tão grande santa”. Porque seu olhar tem qualquer coisa que me custa exprimir adequadamente, mas que é aquela impostação da alma em coisas que são inteiramente superiores. Foi uma infância profundamente consciente, meditada e raciocinada.

Aqui está Santa Teresinha do Menino Jesus com todo seu tesouro de meditação que pode existir numa alma de criança; ela viveu a infância fiel a si e continuou a ser ela mesma até o apogeu de sua maturidade. É uma coisa magnífica!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência provavelmente feita em janeiro de 1968)

Santa Teresa do Menino Jesus e a pequena via

Há dez anos Dr. Plinio entregava sua alma a Deus, no tríduo da festa de Santa Teresinha (outrora celebrada no dia do falecimento de Dr. Plinio, 3 de outubro).
Ele próprio fizera o oferecimento de si como vítima do amor misericordioso por aquelas almas e aqueles acontecimentos que esperara, baseado na leitura das obras da Santa de Lisieux (cfr. Editorial, página 4).
Transcrevemos a seguir, um dentre os diversos comentários tecidos por Dr. Plinio à edificante vida e missão de Santa Teresinha.

 

Em fins do século XIX a Divina Providência suscitou Santa Teresinha do Menino Jesus para despertar uma nova forma de espiritualidade própria a conduzir grande número de almas a Nosso Senhor. Foi uma resposta de Deus às manobras feitas para encharcar de Revolução a mentalidade do homem ocidental. Essa réplica consistiu na famosa pequena via a qual conforme afirmação profética da Santa, haveria de levar incontáveis almas ao Céu.

Um caminho para os menos fortes

A pequena via é própria aos espíritos mais débeis, sem meios naturais para realizar extraordinários atos de generosidade interior que marcaram tantos santos do passado os quais se flagelavam de maneira espantosa, faziam penitências terríveis, sofriam cruzes e provações pavorosas, porque eram assistidos pela graça e esta encontrava neles uma natureza capaz de grandes feitos.

Quando Santa Teresinha surgiu, as pessoas já estavam profundamente infiltradas de Revolução e, portanto, sem a coragem e disposição para lances heroicos de virtude. Por desígnio da Providência, ela abriu às “pequenas almas” (como as chamava) o caminho para o Céu.

Trata-se da via do reconhecimento da própria fraqueza e da ausência de coragem, de força de vontade para enfrentar imensos sacrifícios . E da convicção de que Nosso Senhor se compadece das almas fracas, diminutas em comparação com as do passado, e que assiste àquelas com bondade, afabilidade, abundância de graças que substituem nelas, vantajosamente, aquilo que a natureza não lhes proporcionou.

Santa Teresinha já como Carmelita professa

Desde muito jovem Santa Teresinha sentiu o chamado à perfeição, e dedicaria seus breves anos de vida a ensinar às “pequenas almas” o caminho para o Céu.

Quer dizer, para as pessoas dos séculos anteriores atingirem o pleno amor de Deus eram necessários — valendo-me de uma expressão inadequada — tantos quilowatts de sofrimentos. Porém, as do tempo de Santa Teresinha, e a fortiori as de nossa época, são incapazes de suportar tais graus de ascese. Então, a rogos de Maria Santíssima, a graça lhes concede vigor para carregar menores quantidades de cruzes. Porém, elas o fazem com tanta intensidade de amor que acabam suprindo a quota de sofrimentos pelos quais não suportariam passar. Pois aos olhos de Deus, o importante não é o quilowatt da dor, e sim a intensidade de amor com que é padecida.

Dessa sorte, o que as grandes almas conquistavam apenas no fim de sua existência, depois de muitos tormentos, as da  pequena via recebem gratuitamente logo no começo da vida espiritual, unindo-se a Nossa Senhora, à Santíssima Trindade, por uma particular bondade de Deus. Esta graça encurta o caminho e faz   amor nascer cedo, tão veemente que, com uma “quilowatagem” menor de sofrimento, brilha com uma luz fulgurante.

 

Admirável exemplo de Santa Teresinha

O modelo característico dessa via foi a própria Santa Teresinha do Menino Jesus, uma pequena alma típica, cônscia de sua incapacidade de suportar grandes sofrimentos. Entretanto, recebeu ela tal intensidade de amor a Deus que, desde menina, fidelíssima à sua vocação, fazia meditações e amava tanto as coisas do  Céu que sobrepujava em virtude a um número incontável de pessoas.

Levou uma existência de verdadeiro sofrimento no Carmelo de Lisieux, tendo sido acometida por uma provação  muito freqüente no claustro, embora no seu caso se apresentasse mais profunda: a aridez contínua, devido à qual ela não sentia consolações na piedade, nem no imenso amor a Deus que possuía.

“Santa Teresinha solicita autorização de seu pai para entrar no Carmelo” – Buissonnets, Lisieux (França)

Nessa situação, própria a afligir qualquer um, ela sempre manteve confiança cega na Providência, e reafirmava  a cada instante seu desejo de morrer como vítima do amor misericordioso de Nosso  Senhor para com aqueles que seguem a pequena via.

E, de fato, certa noite, quando já se achava deitada para dormir, Santa Teresinha sentiu o peito incomodado e expeliu uma golfada. Veio-lhe logo a idéia de que poderia ser sangue, indício da  fatídica doença daquela época, a tuberculose. Essa enfermidade tornou-se comum em fins do século XIX, e a medicina não lograva combatê-la eficazmente, pois não descobrira ainda os  medicamentos existentes hoje. Assim, grande era o número de vítimas dessa moléstia.

Ora, Santa Teresinha experimentou tal alegria diante da hipótese de estar tuberculosa, que ofereceu a Deus o sacrifício de não examinar de imediato o lenço sobre o qual golfara durante a noite, e fazê-lo apenas na manhã seguinte, à luz do dia. Verificando depois ser mesmo sangue, transportada de júbilo, ela compreendeu que sua derradeira paixão começava.

Manifestou-se desse modo a tuberculose, doença  lenta, trágica sob vários aspectos, sobretudo naquele tempo, quando tantos dela sofriam e morriam. Era, pois, uma via comum, na qual a noite escura e o abandono se tornaram cada vez maiores.

Santa Teresinha passou a ser provada com tentações contra a Fé (também assíduas na vida dos santos), e chegou a afirmar serem estas tão violentas que só acreditava porque queria crer, tanto as razões de fé se tinham obnubilado em seu espírito. Sentia que estava morrendo, e na Terra nada mais havia para ela. Porém, a morte vinha aos poucos, a conta-gotas, no meio do sofrimento e da Dor.

Relíquia de Santa Teresinha – Carmelo de Lisieux

De seu leito, ouviu um dia a conversa entre duas freiras sobre seu fim próximo, e este comentário: “Quando falecer nossa Irmã Teresa do Menino Jesus, e for preciso escrever uma circular às demais comunidades contando como transcorreu a vida dela no claustro, não sei realmente o que será narrado. Porque ela não fez nada. Ao longo dos anos passados aqui, realizou apenas coisas pequeninas…”

Vítima do amor misericordioso, Santa Teresinha ofereceu as dores  comuns do dia-a-dia, bem como as grandes provações durante a doença, com intensa caridade, salvando assim um incontável número de almas.

Nossa Santa sentiu-se consolada ao ouvir essas palavras, pois de fato ela oferecera somente sacrifícios menores a Nosso Senhor, que os recebia por meio de Nossa Senhora. Entretanto, devido ao amor com que eram aceitos, o Redentor os acolhia com sumo agrado. Assim, ela salvava um incontável número de almas. Ela abria dessa forma a pequena via.

Santa Teresinha em seu leito de dor

Então, uma característica da espiritualidade de Santa Teresinha é esse modo de oferecer as dores comuns do dia-a-dia, as quais Deus pede habitualmente a todo mundo. Porém, trata-se de  oferecê-las como o fez a vítima do amor misericordioso de Nosso Senhor.

Uma inundação de graças…

Santa Teresinha nunca se vira favorecida por graças místicas extraordinárias, como visões ou revelações. Até que no último momento de sua vida foi arrebatada num êxtase, ficou transportada de alegria, ergueu-se na cama e disse palavras de entusiasmo diante daquilo que via. Depois, reclinou-se e expirou. Seu corpo jazia nesta Terra, mas sua alma já ingressava na eterna bem-aventurança.

Dentro da extrema pobreza carmelitana, seus funerais foram esplêndidos, porque um quintessenciado aroma de violeta, procedente não se sabe de  onde, dominou literalmente o lugar em que o corpo dela se encontrava exposto à visitação pública. Como uma de suas primeiras intercessões junto à misericórdia divina, obteve a conversão da superiora de seu convento, que tanto a tinha amargurado.

De lá para cá, Santa Teresinha inundou o mundo com graças,sendo considerada a mais solícita em atender os pedidos feitos, inclusive os relativos aos bens terrenos. Nesse sentido, célebre é o caso  passado em um convento na cidade de Galípoli, na Turquia. Essa comunidade se achava em grandes apuros financeiros, sem nenhum dinheiro para pagar suas despesas. A superiora implorou então o auxílio de Santa Teresinha: no dia seguinte, ao abrir o cofre da casa, encontrou a quantia necessária e mais ainda.

Obtendo-lhes donativos materiais, Santa Teresinha atrai s almas para que peçam bens espirituais. E ela as atende.

Destinada a socorrer a Terra

Tinha ela certeza de que seria canonizada, e nos últimos  dias de sua vida recomendava conservassem fragmentos de suas unhas ou fios de suas sobrancelhas, dizendo: “Guardem-nos, porque após minha partida, haverá pessoas que ficarão felizes tendo isso”. Quer dizer, seriam distribuídos como relíquias após sua glorificação nos altares.

Em diversas ocasiões pronunciou ela essa linda frase: “Passarei meu Céu fazendo bem sobre a Terra”. E também afirmou: “Só estarei inteiramente livre das coisas da Terra depois que o número dos eleitos estiver completo”. Se pensamos que esse total dos escolhidos só será atingido no fim do mundo, esse dito significa que ela intervirá em nosso favor enquanto houver homens atuando na Terra.

“Passarei meu Céu fazendo o bem sobre a Terra”, costumava dizer Santa Teresinha, prometendo interceder pelos homens até o fim do mundo”.

Foi, portanto, uma Santa especialmente designada pela Providência para fazer grande bem à Terra. Muitos eleitos há cuja memória, por assim dizer, desaparece, perde-se, devido à versatilidade humana. Algum benefício eles fazem, porém menor se comparado com o realizado por uma Santa que vai para o Céu com o programa de continuar a agir intensamente nos acontecimentos terrenos, apenas repousando quando o número dos escolhidos estiver completo.

Alegria com a felicidade dos habitantes do Céu

Para Santa Teresinha, cada ano que passa é um período de ação, de vitória, de esplendor. Pois no dia de sua festa, a um título especial, comemora-se um aniversário que a torna intensamente feliz e aumenta sua glória no Céu. É verdade que esta, no Paraíso, não cresce após ter terminado o mundo. Mas, enquanto tal não suceder, é passível de aumento. Por exemplo, se um bem-aventurado escreve um livro, e 200 anos depois de sua morte essa obra é ocasião de instrumento para a salvação de alguém, a alegria e a glória dele se avolumam no Céu.

Alguém poderia objetar: “Dr. Plinio, sinto-me um pouco insultado pensando em meus sofrimentos aqui no mundo, nesse vale de lágrimas, e o senhor anuncia que Santa Teresinha, já muito feliz, recebeu uma felicidade a mais no Céu. Parece uma distribuição desigual dos dons divinos…”

Ora, os planos de Deus não são igualitários, e, sobretudo, os relativos aos que estão no Céu e na Terra. Permanecemos aqui para sofrer e expiar, e os santos no Paraíso para desfrutar a verdadeira felicidade. Se padecermos, lutarmos e expiarmos bem, seremos também daqueles que irão para o Céu, felizes por toda a eternidade.

Dessa maneira, há uma inteira proporção, não igualdade, entre a nossa desventura e a ventura de Santa Teresinha.

Mais. Devemos nos rejubilar com todos que se acham no Paraíso, pois nos precederam nesta Terra com o sinal da Fé. Viveram antes de nós com o signo da Cruz. São nossos irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo, em Nossa Senhora, e nos cabe desejar a alegria deles: a felicidade de um irmão interessa a outro irmão.

Por fim, cumpre considerarmos que, ao ver nosso contentamento pela felicidade dela, Santa Teresinha há de se tornar particularmente propensa a nos alcançar graças cada vez maiores. Do Céu, ela nos acompanha com afabilidade, com um sorriso todo dela, e dirige à Santíssima Virgem uma empenhada prece por nós: para que aumente nossa fé, nossa crença, nossa esperança e nosso gáudio com as glórias futuras que nos aguardam na venturosa eternidade, junto a ela e aos Sagrados Corações de Jesus e Maria.

Plinio Corrêa de Oliveira

(REVISTA DR. PLINIO 91, Outubro 2005)

Vítima expiatória

Santa Teresinha tinha uma certeza interior — baseada em indícios muito bem escolhidos, definidos e analisados de sua vida espiritual — de que ela seria uma vítima expiatória do Amor Misericordioso, e de que deveria realizar isto no Carmelo.

Diante dos maiores obstáculos, ela não teve nenhuma dúvida de que entraria para o Carmelo, e de que o Amor Misericordioso a chamaria, em determinado momento, para consumi-la como vítima.

Assim, ela teve ocasião de dizer, no meio de todas as amarguras pelas quais passou, que a taça dos seus desejos estava cheia até os bordos. Essas amarguras eram os desejos dela, os sofrimentos que ela queria ter.

Isto é a confiança! Santa Teresinha tinha uma sólida convicção de que era esta a finalidade dela, e a certeza de que a Providência faria todo o necessário para que se realizasse este objetivo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/8/1973)

São Jerônimo

Num período onde o patriciado e a nobreza romana ganharam novo brilho devido à influência monástica, São Jerônimo mostrou-se um zeloso apóstolo e um exímio lutador pela glória virginal de Maria. Dotado por Deus com o carisma da polêmica, ele apontou o mal que há na heresia para depois falar a respeito da verdade.

 

A respeito de São Jerônimo, Confessor e Doutor da Igreja, Dom Guéranger, no “L’Année Liturgique(1), diz o seguinte:

Estranho fenômeno para o historiador sem fé: eis que em torno deste dálmata, na hora onde a Roma dos Césares agoniza, se irradiam subitamente os mais belos nomes da Roma antiga. Crer-se-ia que eles estavam extintos, desde o dia onde se tornou obscura entre as mãos dos “parvenus” da glória a cidade rainha.

Nos tempos críticos em que, purificada pelas flamas que os bárbaros incendiaram, a capital que eles deram ao mundo vai retomar seus destinos e reaparece, como por seu direito de nascimento, para fundar novamente a cidade eterna. A luta se tornou outra, mas seu lugar continua à testa do exército que salvará o mundo. Raros são entre nós os sábios, os poderosos, os nobres, dizia o Apóstolo, quatro séculos antes. Numerosos eles são em nosso tempo, protesta Jerônimo, numerosos entre os monges.

O patriciado e a nobreza ganham novo brilho na Roma Eterna

O pensamento está expresso com uma complexidade um pouco século XIX e, portanto, creio que não muito clara para a geração atual. Mas, em duas palavras, quer dizer o seguinte:

Roma estava decaindo. As antigas famílias, às quais Roma devia a sua antiga glória política, não a estavam mais dirigindo devido ao seguinte fenômeno: o pessoal adventício, que dominara Roma, havia deixado numa certa penumbra as famílias antigas; mas essas famílias — que no começo do Cristianismo, quando elas dirigiam a sociedade civil, eram pouco numerosas entre os católicos —, na época de São Jerônimo, no fim do Império Romano, eram muito numerosas entre eles.

Quer dizer, a nobreza e o patriciado romanos tinham um papel de vanguarda na direção dessa segunda Roma, que não era mais a Roma dos Césares, que estava morrendo, mas a Roma dos Papas, que estava nascendo. E eles se encontravam na liderança da vida religiosa e da expansão católica no mundo.

A falange aristocrática constituiu o melhor do exército monástico.

Ou seja, o melhor das vocações para monges era de nobres.

Nesses tempos de sua origem no Ocidente…

Em que o monaquismo, que já existia no Oriente, começou a nascer no Ocidente.

… ela lhe deixará para sempre seu caráter de antiga grandeza.

O caráter da antiga grandeza nobiliárquica comunicou algo para a dignidade do monaquismo.

Mas nas suas fileiras, a título igual de seus pais e de seus irmãos, se veem a virgem e a viúva, ao mesmo tempo o esposo e a esposa. É Marcela, que será para ele o auxílio na tradução das Escrituras. E, como ela, Fabíola, Paula e outras que lembram os grandes ancestrais, os Camilii, os Fabii, os Scipiones.

Camilos, Fábios e Cipiões eram grandes famílias nobres. E, em linguagem mais simples, Dom Guéranger menciona nobres — como viúvas, virgens, ou esposo e esposa, sendo separado o casal — que iam viver no estado monástico, conferindo-lhe algo de sua antiga grandeza.

São Jerônimo, vingador da glória virginal de Maria

Nesta altura, a refutação de Elvidius, que ousava pôr em dúvida a perpétua virgindade da Mãe de Deus, revelou em Jerônimo o polemista incomparável, do qual Joviniano, Venâncio, Pelágio e outros ainda teriam que experimentar o vigor.

Eram hereges que São Jerônimo fustigou vigorosamente.

Como recompensa, entretanto, de sua honra vingada, Maria conduzia a ele todas essas almas nobres. Ele as dirigia no caminho da virtude e, pelo sal das Escrituras, as preservava da corrupção da qual morria o Império Romano.

Então, aqui se completa esse bonito pensamento que explica a tarefa de São Jerônimo.

Um apóstolo da alta aristocracia

Ele não era apenas o grande herói que lutava contra os hereges, mas também salvava da podridão o que Roma tinha de melhor, as antigas famílias aristocráticas, e as conduzia para a conquista do mundo, para a Roma dos Papas, e não mais para a Roma dos Césares. O santo realizava isto por meio de assistência espiritual à alta aristocracia romana, que já não tinha poder político, mas ainda era fabulosamente rica naqueles tempos.

Qual é a consideração que isto nos traz ao espírito?

São Jerônimo tinha em mente a importância das elites para a direção da sociedade. E ele soube compreender que um movimento católico que vise levar o mundo inteiro para a Igreja, a cristianização do mundo, deve contar com todas as classes sociais, levando cada uma a dar o contributo que lhe é específico. Portanto, a classe aristocrática deve prestigiar a expansão apostólica com o valor do nome, da fortuna, mas sobretudo com o valor de certo prestígio indefinido, que se ligava merecidamente às grandes famílias da aristocracia romana.

Quer dizer, ele compreendeu que, acionando as classes mais influentes, havia um meio para acionar toda a sociedade e para obter a cooperação dela para a luta pelo Reino de Cristo.

Austero, polemista e zeloso pela glória de Deus

No breviário antigo consta um elogio a São Jerônimo, que convém comentar:

Molestou os hereges com acérrimos escritos.

Existiram santos dotados de carismas extraordinários para a posição polêmica. Um deles foi São Jerônimo. De fato, ele representa, por excelência, na Igreja, o espírito da polêmica. Os seus escritos são de uma energia, para não dizer de uma violência, que pareceria desabotoada se não fosse ele um santo. E para as menores questões ele dava respostas de fogo tremendas, e deixava todo mundo tremendo diante dele.

Certa ocasião, Santo Agostinho chegou a escrever-lhe uma carta muito engraçada, dizendo que, com metade da energia empregada, já cederia diante de São Jerônimo. Li uma missiva de São Jerônimo a uma dirigida dele, uma santa, que lhe mandou, aliás, um lindo presente: pombinhos e cerejas; e ele respondeu perguntando se ela queria corromper a austeridade dele, e afirmou que imediatamente deu aquilo para os pobres, porque era um homem penitente.

Isto é o zelo da Casa de Deus, que devora o homem, uma das formas mais características, portanto, das mais santas, mais legítimas dessa virtude. Desde que seja feito por amor de Deus, e não por ressentimentos pessoais — porque com ressentimentos a coisa muda de aspecto —, isto é uma coisa santíssima, é ser um gládio vivo de Deus. Não conheço elogio maior do que dizer de alguém que ele é a espada viva de Deus.

A polêmica visa sobretudo influenciar os indecisos

Em matéria de polêmica, é preciso sempre prestar atenção no seguinte: os espíritos modernistas consideram a existência de duas figuras, uma que diz “A” e outra que diz “B”; eles não tomam em consideração um terceiro elemento, que é talvez o mais importante no caso: o público que assiste à discussão.

Toda polêmica, ainda que seja feita a portas fechadas, vai repercutir fora e atuar sobre pessoas que estão na dúvida, e que se trata de convencer.

Quando se discute, por exemplo, com um pastor protestante, o mais importante não é convertê-lo, mas evitar que os católicos fiquem protestantes. Em segundo lugar, converter os protestantes menos empedernidos que ali estão. E por fim converter o pastor.

Ao homem em risco fala-se usando a linguagem do medo

Imaginemos que um amigo nosso esteja se debruçando perigosamente sobre um parapeito pequeno que dá para um abismo. Nós não lhe diremos: “Fulano, venha para cá, porque o chão é de mármore!” Mas falaremos: “Cuidado! Caindo nesse abismo você arrebenta a cabeça!” Porque o modo de afastar um indivíduo imediatamente do perigo e da imprudência é mostrar-lhe o mal que lhe sucederá e não o bem.

Quem de nós haveria de dizer para uma pessoa que, por exemplo, está brincando com um revólver imprudentemente: “Fulano, você quer ir jogar xadrez?”, para ver se ele tira o dedo do gatilho e depois lhe tiramos o revólver. Seria de nossa parte uma atitude idiota. Poderíamos falar-lhe: “Fulano! Olhe esse revólver! Você pode se ferir gravemente ou me ferir!”

Quer dizer, normalmente, ao homem em risco, tentado, deve-se falar usando a linguagem do medo. Isto é, sobretudo, verdadeiro no que diz respeito à Doutrina Católica, porque os homens, pela sua maldade, são mais fáceis de se mover pelo medo do Inferno, do que pela apetência do Céu; pelo temor das más consequências, do que pelo bem que pode acontecer. E é preciso, portanto, como remédio de urgência, apontar o mal, a falsidade, que há no erro para depois falar a respeito da verdade.

Assim se compreende a posição polêmica de São Jerônimo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 30/9/1964 e 29/9/1966)

1) GUÉRANGER, Prosper. L’Année Liturgique. 14. ed. Tours: Alfred Mame et fils, 1922, v.V, p. 327-339.

Beleza perfeita, alegria do mundo inteiro

Uma das mais lindas relíquias da Idade Média francesa é, sem dúvida alguma, a Catedral de Notre-Dame de Paris. Dificilmente alguém olhará o esplendor religioso desse monumento gótico, sem sentir por ele verdadeira veneração. Quer nos seus aspectos externos, quer nos internos, é uma tal obra-prima de bom gosto, de ordem, de sobriedade, que sempre me leva a parafrasear em seu favor as palavras da Escritura: é a igreja de uma beleza perfeita, glória e alegria do mundo inteiro!

Perfeita em cada pormenor, em cada seqüência de suas colunatas e arcarias góticas, assim como nas suas galerias de imagens de reis ou de santos, dispostos em tamanhos, alturas e distâncias irretocáveis. Perfeita na grande rosácea central de sua fachada, que outra coisa http://p1.storage.canalblog.com/17/89/1178853/102576262.jpgnão é senão uma auréola magnífica para a mais magnífica de todas as criaturas, Maria Santíssima, cuja imagem ali se apresenta à devoção e contemplação do povo fiel.

Maravilhosa na profusão de grupos esculturais espalhados ao redor de todo o seu gigantesco corpo, talhados em pedra que, de longe, mais parece tingida de ouro, e tão cuidadosamente cinzelados que mereciam maior realce: cenas da vida de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, o Natal, a Apresentação no Templo, a matança dos inocentes, a fuga para o Egito, a Coroação da Rainha do  Universo…

Episódios do quotidiano medieval, fatos edificantes daquela época incomparável da Cristandade, como a história do Monge Teófilo, ludibriado pelo demônio e socorrido pela Mãe de Misericórdia, etc., etc. Bela, ainda, a nos tolher a palavra, na riqueza de seu interior recortado de colunas e ogivas, resplandecente na gloriosa policromia de seus vitrais, ou nos encantadores frisos de baixos relevos que ornam o coro, os quais, numa exuberante sinfonia de cores e detalhes, retratam os mais significativos momentos da vida de Jesus. Só por esse Evangelho esculpido em madeira já  valeria a pena viver em Notre-Dame!https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSFdxH5gJZe3I2fXOqtbGmAtK1nCFLbEoPuqBdXVgvv_Zx0vD1r

E o requinte da arte cristã, acentuado pelo “savoir-faire” único da alma francesa, transborda para os jardins que envolvem o maravilhoso templo, para os canteiros bem calculados e bem cuidados, para a vegetação que serve de moldura às enormes ogivas e à elegante, fabulosa agulha central que se lança para o céu. É a célebre flecha concebida por Viollet-le-Duc no século XIX, numa espécie de realização saudosa, nostálgica, do acabamento perfeito que não estava inteiramente na consciência dos medievais, mas foi explicitado pelos seus descendentes, homens de uma post-Idade Média baseada na História. E sempre me pareceu sublime a ideia de acrescentar essa flecha a Notre-Dame, coroando a silhueta de uma catedral  imortal.

No seu conjunto, a beleza de Notre-Dame refulge de uma luz excelente, completa, contínua e tranquila, que cativa nossa admiração e eleva nosso espírito à seguinte reflexão: o amor e o entusiasmo que temos pelos tesouros da Civilização Cristã seriam incompreensíveis, se não partissem da consideração de Nosso Senhor padecendo e morrendo por nós na Cruz.

Sim, na Paixão e nos acerbíssimos sofrimentos d’Ele, a cada lanho que os flagelos cruéis arrancavam de seu corpo sagrado, a cada gemido que Ele exalava, estava-se preparando todas as pulcritudes que a alma católica engendraria ao longo dos séculos. Sem o holocausto de Jesus, a Europa medieval não teria tido virtude nem elevação de espírito para realizar monumentos tão extraordinários como esse.

Lembremo-nos então disso: quando as carnes e o sangue preciosíssimos do Divino Redentor caíam e se derramavam pelos chãos de Jerusalém, Ele estava construindo a beleza do reino d’Ele na terra, como Profeta que realiza sua própria profecia, pensando num Carlos Magno, numa Sainte-Chapelle, numa Notre-Dame de Paris…

Plinio Corrêa de Oliveira

Espelhos da quintessência divina

Ao lado da bonomia e da doçura de viver que fazem dele um dos encantos desta terra de exílio, envolto por uma natureza risonha, bela e amiga, que parece cantar ao som das célebres melodias dos seus gênios musicais, o povo austríaco se caracteriza de modo muito particular pela grandeza de alma com que conserva os esplendores aristocráticos herdados de seu passado.

Como nostálgica dos gloriosos dias da monarquia dos Habsburgs, a pompa imperial ainda lateja em muitos monumentos, edifícios, costumes e instituições dessa Áustria que não nos cansamos de admirar.

Por exemplo, o Castelo do Belvedere ou o Palácio de Schoenbrunn, construções de linhas clássicas e majestosas, refletindo-se plácida e feericamente nos seus “bassins”, evocam a Viena das galas e requintes do “Ancien Régime”.

Mais recuado no tempo, o Paço Municipal da metrópole austríaca ostenta sua magnífica arquitetura gótica, podendo ser contemplado através de folhagens tingidas de um verde delicado e bonito, circundado por canteiros em que flores variegadas abrem suas lindas pétalas para receberem as gotas de água que respigam de elegantes chafarizes. No secular edifício nota-se toda a força e leveza do gótico: nas torres erguidas sem dificuldades para o céu, nas janelas e arcarias ogivais, na beleza do teto, na nobreza das pedras e em muitos outros de seus extraordinários aspectos.

O que há de velho e perene no prédio é harmonicamente completado pelo que há de novo e fresco em toda a vegetação e nos jorros de água ao redor dele. Enfim, poder-se-ia mesmo adorná-lo com este título: “Tradição sempre viva”…

Mencionemos também a Hofburg, contemporânea, no seu estilo, do Belvedere e de Schoenbrunn, marcada de maneira especial pela presença de dois soberanos que, jovens, mais pareciam personagens de um conto de Fadas. Apesar dos seus defeitos e frivolidades para os quais não se deve fechar os olhos, Francisco José e a Imperatriz Elizabeth — a legendária Sissi — eram entretanto símbolos vivos do que a Civilização Cristã havia engendrado de mais excelente. Daí terem escrito uma das páginas imorredouras da história austríaca.

Daí, igualmente, o aroma de suas personalidades arquetípicas ainda se fazer sentir naquele esplêndido edifício imperial, impregnando os salões que se sucedem de modo agradável e acolhedor, iluminados ora pela luz intensa que atravessa suas largas janelas, ora pela incidência tamisada dos raios de sol contidos por delicados voiles.

Vastos espaços ornamentados com móveis nas cores austríacas — vermelho, branco e dourado —, harmonizando-se belamente com o ouro das molduras, das “boiseries”, das pinturas que cobrem seus tetos.

Os assoalhos são verdadeiros mosaicos de madeira, engenhosamente traçados, formando lindo conjunto com a suntuosidade dos salões ou com a simplicidade e o bom gosto de muitas daquelas salas, apenas com suas mesas de tampo envernizado, uns poucos vasos, algumas cadeiras, castiçais dourados e, a um canto, o aquecedor revestido de porcelana branca com apliques folheados a ouro. Nada é excessivo, nada sobrecarregado nem empetecado. Nos salões mais frequentados pela Imperatriz domina qualquer coisa de graça feminina, distinta, suave, com ornamentos bem apropriados e lustres que dão quase a ideia de uma flor de cristal suspensa ao teto… Facilmente imaginamos ali a delicada soberana, num daqueles momentos informais em que ela recebia suas amigas para o chá da tarde ou para conversar na intimidade com seu esposo, o Imperador. Este também tinha seus salões reservados, com decorações mais adequadas ao gosto masculino, sóbrias, com molduras menos trabalhadas, lustres menos floridos e o dourado mais discreto.

Graça, aconchego, sobriedade e majestade que iam se reunir, todas, na sala dos grandes banquetes que o casal imperial oferecia a monarcas, dignitários e personalidades da Europa e do resto do mundo. Acomodados nas cadeiras de veludo vermelho, sentavam-se à mesa reis e rainhas, ministros e chefes de Estado, cardeais e bispos, diplomatas e altas patentes militares, nos seus trajes suntuosos realçados por alamares, jóias e condecorações. A refeição solene transcorria à luz das velas cintilando em candelabros de ouro e nos imponentes lustres de cristal, sob o olhar dos personagens estáticos nas telas imensas que dominam as paredes. Quadros de tonalidades profundas, contrastando com aquilo que a sala poderia ter de etéreo e ligeiro, e lhe conferindo, por isso mesmo, a gravidade mais condizente à majestade imperial.

Imagine-se uma orquestra tocando numa sala vizinha, de maneira que os seus sons harmônicos tornassem ainda mais agradável o banquete, enquanto os servidores enchiam as taças com um vinho capitoso do Reno e guarneciam os pratos com incomparáveis “pâtisseries” vienenses — e então nos é dado compreender que esplendor se reunia nesta sala!

* * *

Cumpre considerar como essas belezas nos falam de um poder régio, augusto, tão seguro de si que pode viver na alegria de ser o que é. Ao mesmo tempo, um poder que se encontra nas mãos de gente ultracivilizada, ultra quintessenciada, a quem fica bem a prática de todas a virtudes. Trata-se, pois, de uma forma de majestade que não é apenas o mando, mas o direito de governar por causa da posse de qualidades super-eminentes, entre as quais os predicados morais devem ter a primazia absoluta.

E nisso vemos um reflexo da própria majestade de Deus imersa na segurança eterna de sua felicidade perpétua, inteiramente garantida na despreocupação e na alegria perfeitas do Céu.

Em suma, a contemplação desses esplendores nos deve fazer pensar no tipo humano para o qual eles foram feitos. Esse tipo humano atrai a nossa atenção para a superioridade que foram chamados a representar. E esta superioridade, por sua vez, deve elevar nosso pensamento até Deus, criador e fonte de todas as majestades e belezas.

Vínculo entre Anjos e homens “angelizados”

Quando os medievais se referiam aos Anjos, falavam muitas vezes da Cavalaria Angélica. Diziam que os espíritos celestes foram os primeiros cavaleiros porque lutaram contra os primeiros maus: os anjos revoltosos.

Não nos é fácil compreender como foi o “prœlium magnum”, esse grande combate travado no Céu entre os Anjos e os demônios. Como um puro espírito luta contra outro? Quais são os recursos de um espírito para vencer o outro, a ponto de precipitá-lo no Inferno? Como se dá a expulsão de um espírito por outro, de um determinado lugar?

Por certo, esta guerra deu-se de um modo intrinsecamente muito mais nobre do que as Cruzadas. Aqueles espíritos angélicos, no momento em que se punham em luta contra os demônios, eram confirmados em graça e conquistavam para todo o sempre a coroa eterna.

O chefe dessa Cavalaria Celeste é o Arcanjo São Miguel que, constituído o patrono dos cavaleiros, resume em si todo o espírito das Cruzadas, da Cavalaria e, consequentemente, todo o espírito da Idade Média.

Nós achamos tão nobre alguém derramar seu sangue por uma grande causa. Mas a nobreza de um espírito como São Miguel, desdobrando toda a sua força contra o demônio, é inimaginável! É tal a beleza do Príncipe da Milícia Celeste que o intelecto humano não é capaz de captar, mas de algum modo pode suspeitar, entrever, conjecturar, à maneira de um degrau para imaginarmos a infinita perfeição de Deus.

Sem dúvida, também nessa guerra incruenta em que estamos engajados – guerra psicológica, de graças e carismas contra as tentações e insídias diabólicas; de um espírito de inocência contra o de cumplicidade e toda espécie de indecência, de crime e de fraude da Revolução – há muito maior nobreza do que na própria Cavalaria terrena.

Contudo, não poderemos contrarrestar a ofensiva revolucionária se não formos tais que os Anjos se reconheçam afins conosco e nossos naturais aliados; sem que estabeleçamos com a Cavalaria Angélica essa consonância por onde os celestiais guerreiros venham lutar conosco e dentro de nós com uma naturalidade como se o abismo que nos separa deles não existisse.

Este vínculo entre Anjos e homens, e de homens por assim dizer “angelizados” entre si, agindo sobre a opinião pública no sentido contrarrevolucionário, em continuidade com a Cavalaria Celeste, é isto que deve nos caracterizar(*).

* Cf. conferências de 16/10/1970, 12/2/1978 e 6/10/1981.