A incomparável e maravilhosa Sainte-Chapelle

Os vitrais da Sainte-Chapelle são lindos e famosíssimos pelo seu colorido delicado. Impressiona a suavidade das nervuras e das colunas que, embora pequenas, sustentam abóbadas enormes.  Nota-se uma suprema distinção, bom gosto, harmonia, nobreza e uma certa bondade que pairam sobre tudo isso.

Esta é a incomparável e maravilhosa Sainte-Chapelle. A forma peculiar da construção vem do fato de haver pouco espaço para se expandir. Ela foi construída para ser a capela do Palácio Real cujos antigos edifícios, que a comprimiam bem de perto, foram substituídos pelo atual Palácio de Justiça da França.

A capela dos pobres

São Luís IX a construiu para abrigar espinhos da coroa de Nosso Senhor Jesus Cristo.

A elevação dela é realçada por este pináculo que sobe à maneira de flecha que, tendo sido destruído na época da Revolução Francesa, foi reconstruído no século XIX. É uma imitação da flecha autêntica, verdadeira.

Essa parte interior é deslumbrante! É de pedra policromada, e o teto dá a impressão de um céu estrelado. As ogivas e as colunas todas são pintadas também.

Impressiona a delicadeza das nervuras e das colunas que, embora pequenas, sustentam abóbadas enormes. Dessas colunas partem longas hastes, lembrando a elegância dos ramos de uma palmeira. Recebem, por isso, o nome de colunas em forma de palmeira. Nos pontos onde essas hastes se encontram constituem-se pingentes belamente trabalhados. Esta parte corresponde, naturalmente, ao lugar destinado ao altar e forma uma espécie de capela-mor que se separa do resto.

A capela compõe-se de três naves, segundo um plano típico de igrejas medievais.

A parte baixa da Sainte-Chapelle é uma maravilha, e estava destinada para os empregados do Palácio assistirem à Missa. Esse dado contraria a famosa versão de que na Idade Média não se cogitava nos pobres. Ora, essa era a capela dos pobres! Oxalá os ricos tivessem, hoje em dia, capelas assim…

Os medievais gostavam muito da policromia

A policromia é muito bonita; vemos belos mosaicos e, nas colunas, sobre fundo azul- escuro, a flor de lis de ouro. Em certos pontos encontramos aplicados alternativamente, sobre um fundo vermelho, um castelo e um leão.

Nota-se o gosto do homem medieval pela policromia: colunas vermelhas, azuis, das quais partem os “ramos de palmeira” rumo ao ponto de encontro belamente ornado. É uma verdadeira harmonia!

O azul desse “céu” é profundíssimo, como o céu atmosférico não costuma apresentar. Mas parece indicar mais o Paraíso eterno do que o céu visível da Terra. Em determinado ponto da capela, esse azul profundo e nobre contrasta com o que há de alvo, de cândido nas cenas representadas nas pinturas ou nos mosaicos.

Os vitrais da Sainte-Chapelle são lindos e famosíssimos pelo seu colorido delicado. Entre eles, vê-se um representando Nossa Senhora com o Menino Jesus e, ao lado, outro com um rei vestido à oriental, como aliás, a Santíssima Virgem também.

Chama a atenção a beleza das cores com seus variados tons, todos muito bonitos e harmônicos. Na figura do rei, por exemplo, impressiona a beleza da cor da capa, do verde em certas partes do vitral e do escrínio que ele leva. A expressão de sua fisionomia é também muito bonita.

Em outro lugar, numa rosácea, vê-se um personagem tocando alaúde. Tudo de uma suprema distinção, bom gosto, harmonia, nobreza e um certo afeto, uma certa bondade que pairam sobre tudo isso.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1/7/1972)

Símbolos, fantasia e realidade

Sendo constituído de corpo e alma, o homem não se sente plenamente satisfeito enquanto seus sentidos não puderem captar aquilo que seu espírito concebeu. Essa necessidade se torna ainda mais intensa e primordial quando se trata d’Aquele que nos criou: mais do que tudo, temos o desejo de ver a Deus com os olhos da carne, depois de o termos percebido através dos olhos da alma.

Acontece, porém, que Deus não pode se manifestar visivelmente ao homem, pois este se desconjuntaria inteiro diante da sua infinita e sobrenatural magnificência. Para remediar essa impossibilidade, o Senhor dispôs de sentidos tivessem de alguma forma o conhecimento d’Ele. Essa percepção nos é dada através dos símbolos. O que é, pois, o símbolo? É aquilo  que nos faz  conhecer as perfeições do Criador, as realidades sobrenaturais ou as meramente espirituais, de maneira tal que nos tocam no corpo, dão movimento à nossa sensibilidade e satisfazem os nossos anseios de distinguir fisicamente o que compreendemos pelo intelecto.

Por exemplo, o heroísmo é um elemento da virtude da fortaleza. Podemos ter todas as noções teóricas sobre o heroísmo, mas “sentiremos” o que ele é se analisarmos um leão. Deus incutiu neste animal certos movimentos, “élans”, vais-e-vens, que são aná- lagos, à maneira de bicho, aos gestos e atitudes de um herói. O rei das selvas é, portanto, um símbolo que tem em si uma misteriosa  semelhança com coisas da alma, e que nos faz conhecer o espírito de um homem leonino, como terá sido Carlos Magnos e tantos outros personagens históricos que se distinguiram por seu  heroísmo e sua fortaleza. Como nos faz conhecer um pouco mais Aquele que é a Coragem, a Fortaleza e o Heroísmo, Deus Nosso Senhor.

O que se disse do leão, pode-se aplicar a uma águia. Contemplando esta ave que começa a levantar voo, teremos ideia do que é a ousadia soberana, que não duvida, que não toma precauções pequenas e mesquinhas.

O alçar da águia rumo ao sol é semelhante a determinadas atitudes da alma também audaciosa, e tal analogia faz com que entendamos pelos sentidos aquilo que já compreendemos pela inteligência.

Essas simbologias permitem que o homem não julgue monstruoso, mas compreenda e goste de algumas figuras da heráldica que são imagens de altos valores morais e espirituais. Por exemplo, poucos símbolos heráldicos são mais bonitos do que a águia bicéfala. Criatura que, se existisse, seria tomada como uma aberração da natureza, adorna entretanto o escudo e as coroas dos mais  elevados soberanos do mundo. Pintada, ela faz sentir uma universalidade de poder: tantas são as coroas que é preciso mais de uma fronte para sustentá-las. Transmite uma impressão de nobreza, na qual o elemento pensante — a cabeça — é tão mais valioso que o elemento corpo, que existem duas, imperando sobre o resto da matéria física.

Outro belo símbolo de heráldica é o leão alado de Veneza. Olha-se para ele e não se o julga um monstro. É a força conjugada com a leveza, o arrojo com a graça e a distinção, é a superioridade de quem pode se impor pela robustez temperada pela elegância de quem pode voar.

Conta-se um episódio célebre, passado na Veneza sob dependência austríaca, nos velhos e bons tempos da diplomacia cavalheiresca. Um nobre veneziano e um representante da Áustria conversavam num daqueles encantadores balcões da cidade das águas, e os olhares de ambos se detiveram na imagem do leão alado. O austríaco virou-se para o veneziano e disse num tom de pouco caso, como quem graceja: — Curioso este país onde os leões têm asas… O outro respondeu ato contínuo, na mesma toada: — Mais curioso o país onde as águias têm duas cabeças…

Na verdade, estavam fazendo uma brincadeira quase que de salão, porque, de si, nem uma coisa nem outra é ridícula. Tratam-se de símbolos, aos quais se permite uma ousadia que não se concede aos seres vivos. Com efeito, o universo dos símbolos, embora exprima uma realidade, é até certo ponto o mundo da fantasia. Ele se situa entre a fantasia e a realidade: não podendo ser inteiramente fantasia, não será —senão mais raramente — uma mera realidade. De fato, o símbolo será tanto mais artístico quanto mais exprima o fundo da realidade, distanciando-se ao mesmo tempo das aparências desta.

Qual é o papel do leão alado ou da águia bicéfala? É, novamente, fazer repercutir na nossa sensibilidade algo que a mente já compreendeu, tornando essa compreensão ainda mais completa. Por  isso o símbolo é tão conveniente para o conhecimento humano. E, a meu ver, talvez a mais alta expressão da arte, sobretudo a arte inspirada pela Igreja, seja a de proporcionar ao homem a  manifestação dos símbolos que tanto enriquecem sua inteligência e seu espírito.

Havia uma escola de pintura do século XIX que costumava apresentar a realidade sempre envolta numa espécie de névoa. Na verdade, esta missão da arte tinha em vista apresentar um certo caráter simbólico que a névoa confere aos ambientes e aos objetos por ela abarcados.

Imagine-se, por exemplo, um castelo gótico no alto de um monte ou na encosta de uma colina, meio agasalhado na bruma. Assim ele diz mais o que deseja expressar do que se estivesse sem a bruma. Por quê? Porque esta apresenta o lado irreal, que é preciso a fantasia juntar ao real, para a sensibilidade ser inteiramente tocada. Numa palavra, o símbolo ajuda a sensibilidade a se elevar às alturas, onde o intelecto do homem foi conduzido pela razão, e, sobretudo, pela fé.

Para concluir, lembremos que Deus outorga a certos homens e mulheres a missão de simbolizar. E, curioso, nem sempre são pessoas de muito valor. Porém, possuem uma estampa, um modo de ser, que, se corresponderem à graça, externam e tornam particularmente atraentes determinadas virtudes. Por causa disso, são chamados a praticá-las eximiamente, transformando-se em  anúncios luminosos da perfeição moral. Estes são os Santos. E um Santo nunca se apagará da história.

Plinio Corrêa de Oliveira

Como um magnífico nascer da lua…

O nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo representou uma honra incomparável para toda humanidade. Guardadas as proporções, também a vinda de Nossa Senhora ao mundo conferiu particular nobreza ao gênero humano. Foi Ela a criatura mais perfeita nascida até então, concebida sem pecado original, a quem foi dada, desde o primeiro instante de seu ser, uma superabundância de graças.

Compreende-se pois, a afirmação de que Maria Santíssima está para Nosso Senhor, assim como a lua para o sol: Ela representa a suave e amena luminosidade da lua, e Ele, a onipotente e deslumbrante claridade do sol.

Há, sem dúvida, imensa beleza no despontar do fulgurante astro. Contudo, em certas ocasiões, o aparecimento da lua tem também seu encanto, sua poesia e sua grandeza. A natividade de Nossa Senhora foi, pois, para toda a humanidade, como magnífico nascer da lua: sol das sombras, sol do repouso, sol das longas meditações e das extensas digressões do espírito…

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Prece à Rainha dos Anjos

Ó Maria, Mãe minha e Rainha dos Anjos, ordenai ao santo anjo de minha guarda que atue continuamente no íntimo de minha alma. Fazei com que, mesmo em meio às solicitações mundanas que arrastam para cogitações e interesses que não são os vossos, tenha eu sempre em mente os vossos interesses e as vossas cogitações. Por esta forma, deixarei de sofrer as influências da Revolução e passarei a influenciar, com a vossa presença, o mundo que se encontra ao meu redor.

Serei, assim, uma espécie de porta-estandarte vosso a proclamar vosso Reino e a antecipá-lo na Terra. Serei eu próprio como um anjo vitorioso a abrir o caminho para o momento bendito, profetizado por Vós em Fátima: “Por fim, meu Imaculado Coração triunfará!”.

Para isto, dai-me firmeza de propósito, fidelidade inquebrantável, e um entusiasmo que nenhum menosprezo, nenhuma perseguição, nenhum risco possam abater. Amém.

Plinio Corrêa de Oliveira (Oração composta por Dr. Plinio em 15/11/1976)

Santa Teresinha: Vítima Expiatória

Dr. Plinio fechou seus olhos para esta terra em 3 de outubro. Pelo antigo calendário litúrgico, nessa data caía também a festa de Santa Teresinha (atualmente comemorada no dia 1º do mesmo mês). Desde a sua mocidade Dr. Plinio foi grande devoto dessa insigne carmelita francesa. O presente artigo para o “Legionário”, em 1947, deu-lhe ocasião de expressar sua profunda veneração por ela.

 

Santa Teresinha do Menino Jesus é, a bem dizer,  de nossos dias: daqui a pouco celebraremos o cinquentenário de sua morte, e muitas das pessoas que ainda temos a ventura de possuir entre nós, são absolutamente contemporâneas da jovem carmelita que expirou aos 24 anos. Felizmente, a fotografia já estava inventada em dias dela, pelo que conservamos o retrato autêntico da grande Santinha: singularmente bela, de traços regulares, olhar luminoso e vasto,  porte firme, semblante resoluto, sua fisionomia deixa transparecer qualidades que parecem opostas entre si — ao menos segundo a mentalidade liberal —, como a bondade e a firmeza, a distinção e a simplicidade, o perfeito e absoluto domínio de si, e a mais atraente naturalidade.

Fisionomia e biografia deformadas

Se não possuíssemos fotografias da santa rosa do carmelo, que ideia teríamos dela? A que nos apresentam muitas de suas imagens: doce de uma doçura sentimental e quase romântica, boa de uma bondade puramente humana e sem o menor sopro de sobrenatural, enfim, uma jovem de boas inclinações, se bem que exageradamente sensível… nunca uma santa, uma autêntica e genuína santa, um luzeiro cintilante no firmamento espiritual da Igreja de Deus Verdadeiro. Se não toda a iconografia, pelo menos certa iconografia, sem alterar os traços da Santa, lhe alterou contudo a fisionomia.

O mesmo se dá com sua biografia. Certa literatura sentimental-religiosa, sem adulterar propriamente os dados biográficos de Santa Teresinha, encontrou meios de interpretar tão unilateral e superficialmente certos episódios de sua vida, que chegou a desfigurar de algum modo seu significado. As deformações iconográficas e biográficas se fizeram todas em uma mesma direção: ocultar  o sentido profundo, admirável, heroico e imortal da vida da imortal Santinha.

Os tesouros da Redenção

No 50º aniversário de sua morte, alguém que muito e muito lhe deve procura saldar com respeitoso amor esta dívida, fazendo como que um comentário doutrinário à sua vida.

O pecado original cometido por Adão, e os pecados posteriormente praticados pela humanidade, constituem ofensas a Deus. Para resgatar essas ofensas, e aplacar a ira divina, era preciso que a  humanidade expiasse.

Esta expiação era como que o pagamento que compensasse a falta cometida. Há nisto de certo modo uma restituição. Pelo pecado, o homem como que se apropriou indebitamente de prazeres, vantagens, deleites a que não tinha direito. Para reparar a justiça, era preciso que ele abandonasse, imolasse tudo isto. O sacrifício reparador toma, assim, o aspecto de um preço de resgate pelo qual se repara a falta cometida. Para resgatar estes pecados, a Santa Igreja dispõe de um tesouro. Vejamos de que natureza ele é.

Evidentemente, não se trata de um tesouro de riquezas materiais. É um tesouro moral e espiritual, como exige a natureza moral das faltas que se trata de resgatar. Este tesouro se compõe antes de tudo, e essencialmente, dos méritos infinitamente preciosos de Nosso Senhor Jesus Cristo, que no momento da Santa Morte do Salvador foram aceitos por Deus, e produziram a Redenção da  humanidade. Os sofrimentos, as virtudes, as expiações dos homens pecadores seriam totalmente incapazes de aplacar a cólera divina. O Santo Sacrifício do Homem-Deus bastaria plenamente para tal. Mais ainda: uma simples gota do precioso sangue bastaria para redimir a humanidade inteira. Contudo, por desígnios insondáveis da Providência Divina, de fato a Redenção não se operou no  momento em que se verteu para nós o primeiro sangue do Redentor, mas só quando Ele expirou por nós na Cruz, depois de um dilúvio de tormentos. Por uma disposição igualmente misteriosa de Deus, Ele não se contenta com o sacrifício super-abundantemente suficiente do Redentor.

A humanidade está redimida, e em si mesma a obra da Redenção está concluída. Mas, para salvar os pecadores, para expiar seus pecados atuais, para que as almas transviadas aproveitem o  Sacrifício do Homem-Deus, é necessário que também nós alcancemos méritos.

O tesouro da Igreja se compõe, pois, de duas parcelas. Uma infinitamente preciosa e super-abundantemente eficaz: é a dos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Outra pequeníssima, desvaliosíssima, insignificante: é a dos méritos dos homens, adquiridos ao longo da vida multissecular da Igreja. A parte pequena só vale em união com a parte infinita. Mas — mistério de Deus — em si mesma perfeitamente dispensável, esta parte é indispensável, porque Deus o quis: “Quem te criou sem ti, não te salvará sem ti”, diz Santo Agostinho. Deus nos criou sem nossa cooperação, mas, para nos salvar, Ele quer nossa cooperação. Cooperação de apostolado, sim, mas também cooperação na prece e no sacrifício.

Sem os méritos dos homens, o tesouro da Igreja não estará completo, e a humanidade não aproveitará inteiramente os frutos da salvação.

A necessidade do auxílio da graça divina Visto o assunto de outro ângulo, devemos lembrar o  papel da graça para a salvação. Nenhum homem é capaz do menor ato de virtude cristã sem que seja chamado a isto pela graça de Deus, e pela graça de Deus ajudado.

Em outros termos, a primeira ideia, o primeiro impulso, toda a realização do ato de virtude sobrenatural se faz com o auxílio da graça. E isto de tal maneira que ninguém poderia praticar o menor ato de virtude cristã — nem sequer pronunciar com piedade os Santíssimos Nomes de Jesus e Maria — sem o auxílio sobrenatural da graça. Tudo isto é de Fé, e quem o negasse seria herege. Nossa  vontade coopera com a graça, e sem o concurso de nossa vontade não há virtude possível. Mas por si só, sem a graça, ela é absolutamente incapaz de praticar a virtude sobrenatural.

Ora, como sem virtude ninguém agrada a Deus nem se salva, sendo a graça necessária para a virtude, é fácil perceber que ela é necessária para a salvação. Todos os homens recebem graças suficientes para se salvar. Também isto é de Fé. Mas, de fato, pela maldade humana, que é imensa, muito poucos se salvariam só com a graça suficiente. É preciso que a graça seja abundante para vencer a maldade do livre arbítrio humano.

A abundância dessa graça, como obtê-la de Deus, justamente irado pelos pecados dos homens? Evidentemente com o tesouro da Igreja. Mas, como vimos, esse tesouro se compõe de duas parcelas, uma das quais perfeita e imutável — a de Deus — e outra mutável e imperfeita, a dos homens. Quanto mais a parte humana do tesouro da Igreja for deficiente, tanto menos abundantes serão as graças.

Quanto menos abundantes forem as graças, tanto menos numerosas serão as almas que se salvam. De onde decorre que um elemento capital para que as almas se salvem é que esteja sempre cheio, de méritos produzidos pelos homens, o tesouro da Igreja. Os grandes pecadores são os filhos doentes para cuja cura se prodigalizam os tesouros da Igreja. Os grandes Santos são os filhos sadios e operosos, que repõem a todo momento, no tesouro da Igreja, riquezas novas que substituam as que se empregam pelos pecadores.

As admiráveis vítimas expiatórias

Tudo isto nos permite estabelecer uma correlação: para grandes pecadores, grandes gastos no tesouro da Igreja. Ou estes grandes gastos são supridos por novos lances de generosidade de Deus e
das almas santas, ou as graças se vão tornando menos abundantes, e o número de pecadores aumenta.

Daí se deduz que nada mais necessário, para a dilatação da Igreja, do que enriquecer sempre e sempre seu tesouro sobrenatural com novos méritos. Evidentemente, podem-se adquirir méritos praticando a virtude por toda parte. Mas há, no jardim da Igreja, almas que Deus destina especialmente a este fim. São as que Ele chama à vida contemplativa, em conventos reclusos, onde certas almas de escol se dedicam especialmente em amar a Deus, e a expiar pelos pecados dos homens. Estas almas corajosamente pedem a Deus que lhes mande todas as provações que quiser, desde que com isso se salvem numerosos pecadores. Deus as flagela sem cessar, de um modo ou de outro, colhendo delas a flor da piedade e do sofrimento, para com estes méritos salvar novas almas.

Consagrar-se à vocação de vítima expiatória pelos pecadores: nada há de mais admirável. E isto tanto mais quanto muitos há que trabalham, muitos que rezam: mas quem tem a coragem de expiar?

Heroica missão de Santa Teresinha

Este é o sentido mais profundo da vocação dos Trapistas, das Franciscanas, Dominicanas e Carmelitas entre as quais floriu a suave e heroica Teresinha. Seu método foi especial. Praticando a conformidade plena com a vontade de Deus, ela não pediu sofrimentos, nem os recusou. Deus fizesse dela o que entendesse. Jamais pediu a Deus ou a suas superioras que dela afastassem qualquer dor. Jamais pediu a Deus ou a suas superioras qualquer mortificação. Submissão plena era o seu caminho. E, em matéria de vida espiritual, plena submissão equivale a plena santificação.

Seu método se caracteriza ainda por outra nota importante. Santa Teresinha não praticou grandes mortificações físicas. Ela se limitou apenas simplesmente às prescrições de sua Regra. Mas esmerou-se em outro tipo de mortificação: fazer a toda hora, a todo instante, mil pequenos sacrifícios. Jamais a vontade própria. Jamais o cômodo, o deleitável. Sempre o contrário do que os sentidos pediam. E cada um destes pequenos sacrifícios era uma pequena moeda no tesouro da Igreja. Moeda pequena, sim, mas de ouro de lei: cada pequeno ato consistia no amor de Deus com  que era feito.

E que amor meritoso! Santa Teresinha não tinha visões, nem mesmo os movimentos sensíveis e naturais que tornam por vezes tão amena a piedade. Aridez interior absoluta, amor árido, mas admiravelmente ardente, da vontade dirigida pela Fé, aderindo firme e heroicamente a Deus, na atonia involuntária e irremediável da sensibilidade. Amor árido e eficaz, sinônimo, em vida de piedade, de amor perfeito…

Grande caminho, caminho simples. Não é simples fazer pequenos sacrifícios? Não é mais simples não ter visões, do que as ter? Não é mais simples aceitar os sacrifícios em lugar de os pedir? Caminho simples, caminho para todos. A missão de Santa Teresinha foi de nos mostrar uma via que pudéssemos todos trilhar. Oxalá ela nos auxilie a percorrer esta estrada real, que levará aos altares não apenas uma ou outra alma, mas legiões inteiras.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do“Legionário”, nº 790, de 28/9/47. Os subtítulos são nossos.)

Santos Anjos Custódios

O anjo custódio nos foi dado não apenas para as horas de perigo e provação, como também para rezar e interceder por nós a todo instante. Ele é nosso mediador e advogado junto ao trono do Altíssimo e roga continuamente em favor do seu protegido. Portanto, aconselha-nos Dr. Plinio, é de todo congruente implorarmos sempre esse patrocínio do nosso anjo da guarda.

No dia 2 de outubro celebra-se a festa dos santos anjos da guarda, a respeito dos quais poderíamos tecer alguns comentários.

Para nos socorrer nos perigos e lutas da vida.

Enquanto o otimismo moderno, devido à mentalidade obsessiva do “happy end” (“final feliz”), é muito propenso a achar que em nada existe luta, dificuldades e perigos, a Igreja, pelo contrário, nos  ensina que esta vida é um combate semeado de riscos materiais e espirituais. Por isso, a Providência Divina dispôs um anjo para velar sobre cada um de nós. E o fez com tanta munificência que há também um anjo para cada cidade e nação, além daquele que tutela a própria Santa Igreja Católica, o Arcanjo São Miguel. Não será descabido pensar que, provavelmente, para grupos, famílias de  almas, sociedades, etc., existem  igualmente anjos da guarda, de tal forma que todos os seres são amparados por um espírito angélico.

Destas considerações decorre uma primeira lição, de caráter sobrenatural, que nos leva a compreender como é errada a posição condenada por Dom Chautard, daqueles que dizem: “Sou muito capaz, inteligente, jeitoso,esperto; por causa disso, desde que não me sobrevenham obstáculos muito grandes, não preciso nem na minha vida espiritual, nem na material, do auxílio de Deus. Dou conta por mim mesmo daquilo que preciso fazer”.

Ora, se o Altíssimo delegou um ente celeste para acompanhar e proteger cada um de nós, é porque a todo momento e para tudo o que fazemos, necessitamos do auxílio d’Ele.

Distorções de uma falsa piedade

Por outro lado, em conseqüência das concepções de uma piedade errônea, em muitas pinturas que representam o anjo da guarda em ação, há sempre uma criancinha, insinuando vagamente que tal amparo se destina apenas às crianças. Portanto, apenas estas últimas acreditam em anjo, e um espírito “emancipado”, mais “evoluído”, nele não crê nem precisa de ajuda.

Lembro-me de ter visto uma estampa onde aparecia um bonito riacho, tendo à margem graciosas plantinhas, e uma criança rechonchuda, tez rosada, com ar de quem recente mente saíra da cama e fora lavada, frisada e enfeitada. Ela passa sobre uma ponte onde existe uma tábua quebrada na qual poria o pé, mas o anjo da guarda, atrás dela, a protege.

A todo momento necessitamos do auxílio do nosso anjo da guarda, destinado por Deus para nos amparar e favorecer.

Tem-se a impressão de que aquilo é o mundo das imaginações da criancinha, e indica o estado de espírito com que ela atravessa a ponte. Com muito favor, poder-se-ia pensar que o anjo da guarda faz o mesmo com adultos. Então, para evitar desastre de automóvel, doenças, pequenos acidentes, etc., é bom recorrer ao anjo da guarda. Em suma, este serve para as necessidades materiais; quanto às espirituais, não se fala da proteção angélica. Razão pela qual muitos pedem a cura de alguma enfermidade, outros, que favoreça uma reconciliação e coisas do gênero. Poucos têm noção de que os anjos da guarda nos foram dados sobretudo para aquilo que existe de mais importante: velar por nossa alma, lutar e agir conosco para vencermos nossas dificuldades espirituais.

Nunca estamos sós

E contudo, quanto conforto nos daria nas horas das tribulações, tentações, em que nos sentimos sozinhos, termos a certeza de que um anjo da guarda está junto de nós! Embora não o sintamos nem o percebamos, ele não nos abandona um minuto sequer, e se acha à espera de nossas orações para agir por nós. Muitas vezes ele atua sem que o peçamos, mas fa-lo-á ainda mais se implorarmos sua assistência.

Enquanto tecemos essas considerações, o recinto em que nos encontramos está repleto de anjos da guarda que velam por nós, além do anjo destinado a amparar o conjunto do nosso movimento, ver a verdade o que acima cogitamos a respeito das famílias de almas, sociedades, etc.

Compreendemos, assim, quanta alegria desfrutaríamos se tivéssemos essa ideia sempre presente em nosso espírito! Ao fazermos apostolado, ao passarmos por problemas interiores, por aborrecimentos e contrariedades de toda ordem, nos sentimos sós. Tal solidão é uma ilusão: junto a cada um está o seu anjo da guarda. Não obstante imaginarmos que entre nós e ele há uma distância como entre o céu e a terra, ele de fato está perto, rezando, vigiando, protegendo o homem cuja guarda lhe foi confiada por Deus.

Devido a uma errônea noção do papel do anjo da guarda, poucos consideram que ele nos foi dado, sobretudo, para velar por nossa alma e nos socorrer em nossas dificuldades espirituais

Nosso intercessor particular

A compenetração dessa verdade proporciona alento à vida espiritual, pois sentimos a mão de Deus nos  acompanhando a cada passo. E ilustra as afirmações de Nosso Senhor no Evangelho: não cai um fio de cabelo de nossa cabeça nem uma folha de árvore, não morre um passarinho sem a permissão do Criador. Quer dizer, a conexão entre a missão do anjo da guarda e a doutrina católica sobre a Divina Providência é admirável, própria a estimular em nós a virtude da confiança, pois nesta crescemos ao termos sempre presente que o anjo custódio nos foi dado não apenas para as horas de perigo e provação, como também para rezar e interceder por nós a todo instante.

O anjo da guarda é nosso mediador e advogado junto ao trono do Altíssimo e roga continuamente por nós. Portanto, é de todo congruente pedirmos a ele que nos obtenha graças e afaste de nós os perigos.

Estímulo e conforto para nossas almas

Os antigos, aliás, possuíam profunda noção da presença e da intercessão dos anjos custódios, e por isso construíam igrejas em seu louvor, e alguns lugares onde eles apareciam se tornavam objeto de peregrinação. Por exemplo, a Abadia do Monte Saint-Michel, na Normandia. São Miguel Arcanjo é o padroeiro da nação francesa, e também o de Roma, depois que se fez presente no alto do outrora mausoléu do Imperador Adriano, e onde hoje se vê o castelo chamado Sant’Angelo. Em outras ocasiões, viam-se anjos secundando os católicos em seus confrontos contra hereges e  adversários da ortodoxia cristã.

Haveria mil coisas a se considerar a respeito do papel dos anjos, baseando-se na Bíblia e na história da Cristandade. Infelizmente, tudo isso é pouco ou nada recordado. Razão pela qual é extremamente belo rememorarmos essas verdades e tê-las sempre em vista para o estímulo e conforto de nossas almas.

Modelo de santidade para o protegido

Restar-me-ia apresentar uma última reflexão, a qual submeto ao juízo da Igreja por se tratar de uma opinião pessoal, que me parece conveniente e razoável.

Deus tudo faz com conta, peso e medida, de modo ordenado, e não é provável que a designação de um anjo da guarda para atender uma pessoa se produza de maneira automática. De fato, não é possível imaginar uma espécie de ponto de táxi de anjos no Céu, à espera de que nasça um homem e, a um aceno de Deus, o anjo A ou o X se dirige à Terra e começa a proteger aquele novo ser humano… Essa forma de agir em Deus não nos soa como própria de sua infinita sabedoria.

Mais inclinado sou a pensar que Deus delega a cada pessoa um anjo da guarda cuja santidade tem relação com a luz primordial daquela alma. De maneira que o anjo é um celeste modelo das virtudes que ela deve praticar o longo da vida terrena. Se pudéssemos ver nosso anjo da guarda, contemplaríamos provavelmente a personificação de nossa luz primordial, ou seja, algo que seria de certo modo parecido conosco, mas num grau de beleza ontológica e sobrenatural inconcebível.

O “alter ego” de cada homem

Compreendemos, então, a simpatia, a afinidade e o desejo de servir que teríamos para com ele e, reciprocamente, o vínculo especial do anjo da guarda conosco. Quer dizer, o anjo custódio é o celeste alter ego, o outro “eu mesmo” de cada protegido. Esta é uma razão particular para que, antropomorficamente falando, tenhamos ainda mais facilidade de compreender como o anjo da guarda nos ampara. Imaginemos que encontrássemos alguém necessitado de ajuda, sumamente parecido conosco: não é verdade que nos apressaríamos em socorrê-lo, impelidos por essa semelhança?

O outro “eu mesmo” de cada protegido, o anjo da guarda foi sempre objeto da veneração popular Ora, é o que sucede entre o anjo da guarda e cada um de nós.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 2/10/1964).

Coliseu – Magnífico Palácio Espiritual

Não é raro visitarmos algum ambiente, monumento ou lugar histórico, e termos a impressão de ali estarem presentes algumas pessoas que muito o marcaram. Além de dar uma dimensão mais pro- funda à nossa visita, essa experiência nos leva a compreender melhor o espírito dessas personagens do que se houvéssemos diariamente convivido com elas.

Esta reflexão me vem à mente, de modo especial, quando me lembro das ruínas do Coliseu romano. Ao penetrarmos nelas, sentimos, por uma ação da graça divina, a presença dos mártires que ali padeceram e verteram seu sangue, para se tornarem – no inspirado dizer de Tertuliano – sementes de novos cristãos. Heróis da Fé, admirados por todo o mundo, em todos os séculos, desde os tempos da Igreja catacumbal até o dia de hoje! E mesmo homens que se vangloriam de seu ateísmo, quando vão a Roma, não deixam de passar pelo Coliseu, para ver de perto o lugar onde aqueles valentes enfrentaram as feras para se manterem fiéis à religião católica apostólica romana.

Que palácio espiritual magnífico! Imenso e faustoso, é uma das matrizes de maravilha nesta terra.

Sua maior beleza aparece à noite, quando as sombras e trevas atenuam o prosaísmo das coisas modernas que o circundam, e o silêncio das altas horas envolve os ruídos cacofônicos da cidade que adormece. Em certo mo- mento, enquanto uma lua graciosa e amiga esparge suas aveludadas cintilações, ouve-se o demorado silvo de uma ave noturna, aninhada sob um dos arcos do Coliseu. Aquela espécie de brado nos faz lembrar o gemido dilacerante de um mártir, a derradeira prece lançada aos céus por uma alma a caminho da suprema imolação…

Contemplar aquele anfiteatro de tragédias e de heroísmos leva nossa imaginação a reproduzir um dos mais belos episódios de martírio que registra a hagiografia católica.

É noite na Roma dos Césares. Aqui e ali, as tochas que a iluminam vão se apagando. Pouco a pouco, esmorecem os barulhos das festas, extinguem-se conversas e risos. Na soberana metrópole do mundo, tudo é calma e tudo repouso. Despertos, em meio a densas trevas, ficam apenas os mártires do Coliseu, orando e se encorajando mutua- mente. Por vezes a noite é borrascosa, o tempo inóspito, tornando ainda mais horrorosa e dorida aquela vigília para a morte.

De súbito, ouve-se o bramido de uma fera ecoando pelos lúgubres porões do grande circo. Rugido de animal faminto, há dias privado de ali- mento para que mais encarniçado se atire sobre sua vítima, na hora do fatídico encontro. E o urro do tigre, do leão, da pantera ou da hiena repercute como um estremecimento de terror nos corpos dos católicos. Alguns choram, com medo de lhes faltar a coragem no momento decisivo. Suplicam a Deus, com toda a alma, forças superabundantes para não cometerem a pior das infidelidades, para não apostatarem da verdadeira religião de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Sereno em meio a tanta apreensão, um dos cativos, já entrado na ancianidade, percorre as fileiras de prisioneiros, dirigindo a cada um palavras de ânimo e esperança. Certamente re- corda-se ele, nesse extremo de vida, daquela voz suave e paternal que – conforme reza a tradição – um dia, em sua remota infância, penetrou no mais íntimo de seu ser: “Deixai vir a Mim as criancinhas, pois delas é o Reino dos Céus”. Agora, imitando o Divino Redentor, promete àqueles ir- mãos de Fé a mesma bem-aventurança eterna.

Aos poucos vão se atenuando as trevas, e a claridade da manhã traz consigo o ponteiro que marca a hora do sangrento suplício. Os rugidos das feras tornam-se mais intensos e aterradores; as súplicas, mais prementes e fervorosas. Soam os clarins, anunciando a chegada do César. Abrem-se as prisões, e os mártires são conduzidos ao local da imolação. Ao vê-los, trôpegos e maltratados, o povo pagão que lota as arquibancadas do Coliseu explode em vaias e apupos.

Libertas de suas jaulas, as feras esfomeadas se precipitam sobre as carnes dos católicos. Exceto uma. Dando provas da autenticidade da Fé que professa, aquele velho cativo detém miraculosamente o leão que cresce para ele. Abre seus grandes braços e eleva aos céus uma extraordinária prece: “Senhor, assim como o trigo é esma- gado para se transformar na Sagrada Eucaristia, assim esta fera triture o meu corpo, por Vós, ó meu Deus!”

Só então, desvencilhado da misteriosa força que o retinha, o animal se atira sobre o mártir, despedaçando-o. O herói foi Santo Inácio de Antioquia, aquele que, quando menino, fora acariciado pelo Mestre Divino, recebendo d’Ele a pro- messa do Reino dos Céus.

E a noite recai uma vez mais sobre a grandiosa mole do Coliseu. As areias do circo pagão, embebidas de sangue católico, transformam-se de novo em campo arado e fértil, de onde germinarão muitos outros filhos da Esposa Mística de Cristo.

O menino e o mar

Na primeira narração auto-biográfica de Dr. Plinio sobre sua meninice, publicada no número passado, deixamo-lo numa praia de Santos, contemplando o mar. Dr. Plinio continua aqui suas  lembranças de como foi discernindo e optando pelo bem, perante as coisas que observava na infância. E como daí surgia o combate ao mal que via em si.

 

Visitando o mar de Santos — a praia do José Menino ou o Boqueirão — lembro-me da impressão que me causavam as ondas quando eu as olhava quebrarem-se a certa altura. Vinham aquelas toalhas de água que se estendiam sobre superfícies mais ou menos amplas, e depois, como por uma força misteriosa, eram atraídas de volta e refluíam, refluíam, refluíam.

Em meu espírito elas evocavam dois outros movimentos que afetavam a sociedade em que eu vivia: o da onda enorme da influência e dos estilos de vida hollywoodianos da década de 30 que avançavam, e o da onda da influência européia que retrocedia. Era a velha Europa da qual eu conservava na retina, na imaginação e no coração alguns aspectos fugazes do tempo em que, com quatro anos, eu a visitara.

Era a velha Europa da qual ouvia falar sempre, nas conversas caseiras; a velha Europa que eu admirava num livro que papai trouxe da Alemanha, quando lá estivemos em 1913. Esplendores da Alemanha militar Esse livro intitulava-se “L’Alemagne Moderne”. Obra de um autor francês que escrevia sobre a Alemanha do tempo do Kaiser Guilherme II, fartamente ilustrado com cenas da  Alemanha daquele tempo. Havia fotografias das regiões industriais e da vida econômica e capitalista da Alemanha que não me interessavam. Mas havia também fotografias dos panoramas alemães e da Alemanha artística — que maravilha! Também da Alemanha de corte — que esplendores!

Eu folheava o livro longamente, embevecidamente, dez vezes, vinte vezes… Depois vinha a Alemanha militar. Eu não posso me esquecer de uma fotografia, colorida com os recursos gráficos do empo, mas que me encantava. Retratava uma parada militar na Berlim kaiseriana, no campo chamado “Tempelhof” (o “Pátio do Templo”), nos arredores de Berlim.

Era uma grande planície à maneira de tabuleiro onde as tropas do Kaiser evoluíam. O Kaiser montava um bonito cavalo, portava um capacete de aço com a águia imperial e passava o bastão de  comando a um general, porque ele devia partir.

Os exércitos do tempo tinham cavalarias magníficas. Não posso me esquecer de uma fotografia um pouco menor, que retratava o “hurrah” da cavalaria: o momento em que todos gritam “hurrah” e os  cavalos avançam contra o adversário de parada, o adversário imaginário. Sabia-se bem que, na mente dos alemães, eram os franceses que estavam do lado oposto.

Mas, com certeza, na tribuna dos diplomatas o embaixador francês assistia aquilo imprevidente, impávido, cético, fingindo achar que esse desfile nada tinha a ver com ele. “Un hurrah de chevalerie”,  lia-se na legenda da foto, na qual a gente via avançar a cavalaria com todos os soldados empunhando espadas. Quanto eu me entusiasmava com essas perspectivas! Alemanha tradicional X Alemanha industrial. Havia no livro fotografias da indústria alemã que tinha aquele quê de metálico, de mecânico, de material, de inanimado no sentido próprio da palavra, isto é, sem alma, inerente a todo ambiente industrial, ainda em nossos dias, e talvez principalmente em nossos dias.

E eu analisava o contraste daquelas fotografias com as cenas de Corte e os retratos do “Kaiser”. Lembro-me de uma fotografia muito bonita: o “Kaiser” e a “Kaiserin” (a Imperatriz) recebendo as  homenagens de seus pajens, numa sala esplendidamente iluminada.

A “Kaiserin” era uma dama simpática, cheia de bondade e distinção. Os dois estavam em pé e os pajens belamente vestidos, em trajes de “Ancien Régime”, formando um quadrilátero diante do Kaiser. Olhava aquilo e achava lindo. Mas havia alguma coisa de que eu não gostava; “algo que já cheirava a indústria ”: de repente, viro uma página e vejo uma fotografia do Kaiser, não mais vestido de  uniforme, como se vestiam os reis daquele tempo, mas em civil, com ar galante e com uma flor no peito. Pouco depois, uma outra fotografia, da célebre, famosa, histórica catedral de Colônia, uma  das mais bonitas do mundo, que foi terminada no tempo do Kaiser e que trazia, do lado de fora, entre as estátuas próprias ao edifício gótico, o Kaiser esculpido como profeta do Antigo  Testamento.

Ficava completamente ridículo! Era indústria de um lado, ridículo de outro, tradição no meio, formando um conjunto objetável. Quando um pouco depois disso assisti, no cinema, a cena do enterro do Imperador Francisco José, da Áustria- Hungria, fiquei deslumbrado. Tudo era como devia ser, exceto num ponto: faltava a força e o empenho que eu admirava no estilo prussiano. Eu me perguntava: “Não há jeito de juntar essas duas coisas? Quão belas, quão nobres são as coisas austríacas! Aqueles uniformes, que coisa esplêndida! Francisco José, que coisa magnífica! Mas essa gente toda, colocada em cima de cavalos, em seu “hurrah ” de cavalaria não é capaz de enfrentar o “hurrah” do Kaiser.

Ora, essas coisas bonitas só são verdadeiramente bonitas quando vitoriosas; e só são vitoriosas quando heroicas; e só são heroicas quando profundamente sérias. Eu percebia que era preciso filtrar, era preciso tamisar o que me vinha dessas nações. Eu não podia aceitar aquilo como um bloco.

De outro lado, que critério usar para filtrar? Que critério para tamisar?

As outras nações da Europa

Extasiava-me também com as outras nações da Europa, cujos produtos me chegavam em abundância, porque ainda não havia as grossas travas de alfândega que depois vieram. Por todo lado  éramos penetrados pela substância européia, enquanto soprava o vento norte-americano.

Nessa contradição, tomando contato com ares franceses, ao mesmo tempo que eu me maravilhava, dizia de mim para comigo: “mas falta seriedade nisso! Em todo esse mimo, em toda essa graça, falta algo”. Eu vejo que essa nação descende de cruzados, mas eu não vejo que cruzados descenderiam dessa nação. Santa Joana d’Arc, que admirável! Godofredo de Bouillon, nem sei o que dizer!

Olhava Versailles cujas carruagens  me tinham entusiasmado tanto; olhava o Trianon, olhava o Petit Trianon, Fontainebleau, as florestas… Como tudo ria e sorria de modo encantador! Mas eu pensava: “isto é o sorriso. Eu quero ver agora a carranca, eu quero ver a força!”

Um trabalho de seleção, com base no critério católico

Era preciso selecionar, era preciso tamisar; não bastava dizer “não” à influência hollywoodiana, mas era preciso rejeitar também a frivolidade francesa e recolher da Europa a pura seiva da Civilização Cristã com base no critério católico. Eu não via que as pessoas de minha época fizessem isso. Notava que, mesmo pessoas de posição na Igreja, pactuavam indolentemente com a influência “yankee” que entrava e olhavam sem saudades para a influência européia que recuava.

Mas quando eu estava sozinho, ao lado da reflexão sobre qualquer coisa — uma concha, um caramujo… —, vinham de modo natural à tona essas considerações que eram longamente analisadas por mim. Eu pesava, comparava, admirava, censurava, e a cada passo que via algo admirável, fazia uma comparação com a Revolução anticristã que entrava e compreendia melhor como esta era rejeitável.

Lembro-me que me sentava sozinho naquelas amuradas de canais que entram pelo mar de Santos. Meu pretexto, para poder me isolar, era pescar siri. Arrumava uma pedra, atava-a de um lado a um pedaço de carne crua que me davam na cozinha da casa de meus tios, e de outro lado a um barbante, e partia com um baldezinho. Era o pretexto para ficar sozinho, pensando. Voltava depois  para casa com três, quatro, cinco siris, que eram jogados fora.

Naquela amurada de pedras que invadia o mar, eu ficava cercado de ondas que vinham e voltavam. Às vezes andava pela praia vazia, ao longo da qual havia casas de família ainda dignas e antigas, e que me pareciam bonitos palacetes agradáveis de serem vistos de longe. E as reflexões começavam a me subir ao espírito. Contemplava o mar de Santos, que a meus olhos parecia grandioso.

Naquela época, o mar conservava algo de ameaçador; os que navegavam pelo oceano ainda tinham medo de alguma coisa. E o medo do mar dava- lhe prestígio…

A alguma distância de mim, do lado do Guarujá, havia uma ilha com uma nota de tragédia, quase colada ao continente. Uma ilha de um granito vagamente rosado, não especialmente bonita, mas agradável de se olhar. Era a ilha das Palmas, onde se dizia que havia um hospital de doenças contagiosas. Eu pensava no infortúnio daqueles que eram colocados fora do convívio humano: “fiquem longe, não queremos contato!” No extremo da terra, isolados, somente ouvindo as ondas do mar…

Esse infortúnio naquele ambiente se me afigurava impressionante. Eu tinha muito medo do contágio, mas considerava fascinantes as meditações que ali se pudessem fazer.

As grandezas do mar, os sorrisos do mar, o rumor do mar… O mar brilhando à luz das quatro horas da tarde, no crepúsculo das cinco ou das seis horas da tarde, e por fim, no ponto último onde no horizonte se encontrava com o céu: olhar aquilo me deixava como que intrigado.

Tudo isso me parecia muito belo. E eu refletia: como isso é diferente  da coisa americana! Como isso convida a pensar! Como, debaixo de vários pontos de vista, pode-se dizer que isso é profundo,  é grandioso, é infatigável, é incessante, é carinhoso, é jeitoso, é discreto. Mas, também, como é solene! Oh, o mar!

Como minha alma que comporta tudo isso é diferente da alma comprimida, achatada, passada na plaina pela Revolução, tão rasa, tão lisa, tão banal, tão corriqueira de tantos daqueles que eu conheço de minha idade! Que mundo está sendo preparado?! Que banalidade!

Combate à tendência para o romantismo

Essa constatação levava-me a deter o olhar não mais na formosura do mar e nas transcendentes belezas a que o mar conduzia, mas a me perguntar: “mas então, como sou eu?

Vou me descrever para mim mesmo

E na hora de me descrever para mim mesmo, o próprio enlevo pela tradição que eu amava, e pela Igreja que eu quase diria adorava, levava-me a perceber o reflexo dessas coisas na minha alma e a ser tentado de enlevar-me comigo. Era a hora exata em que os estampidos sonoros de Wagner, ou melodias ultra-melosas de Chopin me passavam pela memória.

Eu tinha tendência a identificar minha pessoa com a tradição — não por minhas próprias qualidades, mas porque em mim se refletia aquela tradição que eu amava. Ora, nessa identificação, havia o convite para uma posição admirativa e lânguida a respeito de mim mesmo. Era a tentação para o romantismo: a ilusão de ótica por onde a pessoa se põe no centro de tudo, põe-se como foco da  tradição, põe-se como o modelo da Contra-Revolução e já não tem interesse em olhar para o mar a não ser na medida em que o mar se reflete nela. Já não tem interesse em olhar para a História, a não ser na medida em que se sente encaixado  ou relacionado, ao menos pela fantasia, com a História. Pelo peso do pecado original, a pessoa acaba considerando secundário o que antes admirava  e tornando principal aquilo que o pecado original vulnerou, que é o próprio homem.

O mau efeito dessa tentação era como algo lânguido que eu sentia dentro de mim, e pensava: “Não posso consentir nesses pensamentos porque neles há alguma coisa de mau. O que seja, eu saberei depois. Mas o fruto é ruim. Eu preciso ter a serviço dos meus ideais o ímpeto dos ‘hurrah ’ de cavalaria. E tudo o que me afastar desse ímpeto é mau. Tais pensamentos podem ter coisas boas  misturadas, mas fundamentalmente têm algo ruim dentro. Não e não!” Nunca mais ouvi as músicas que eram conexas com esse estado de espírito: nunca mais Chopin, Wagner, Liszt, para não falar de Mendelsohn e Brahms.

Essa introspecção langorosa e derretida de si próprio é a substância do romantismo. Schumann tem uma música chamada “Revêrie”. “Revêrie” quer dizer sonho. A gente vai ver, o tema do sonho é ele,  nquanto se admirando e tendo entusiasmo consigo. O romantismo desnorteou as melhores almas O homem reto nunca se admira a si mesmo, nunca se contempla, nunca se compara, porque  sabe que isso é um poço envenenado, do qual uma gota de água que beba o intoxica. A perfeição nessa matéria, quando se contempla o mar, consiste em evitar ver o reflexos do mar em si, mas pelo contrário procurar vê-lo como simbolizando Deus Nosso Senhor, a Igreja Católica e todas as grandezas.

Ah, se isso tivesse sido feito pelos românticos, quantas almas se teriam salvo e teriam dado resultados esplendorosos! Como teriam sido outras as gerações!

O romantismo tomava as melhores almas daquele tempo, isto é, as que estavam ainda sujeitas à influência européia decadente, e as enleava nessas malhas da auto-contemplação. Enquanto que o dito americanismo hollywoodiano perdia os que eram menos bons. Diante de meus passos, exagerando algum tanto, eu poderia dizer que os caminhos que se abriam eram sendas de perdição.

As frivolidades dos pseudo-tradicionalistas românticos

Nossa Senhora me ajudou a fazer a escolha de tal maneira que do romantismo não ficasse nada e, espero eu, que algo tenha ficado do “hurrah” da cavalaria, da fidelidade à tradição. Aqui se tem, portanto, o que era essa batalha interna, e cada um pode fazer a si mesmo uma aplicação. Eu conheci pessoas bem apreciáveis apaixonadas pela tradição. Com elas acontecia por exemplo que  começavam a estudar história e de repente um inventava que era conde, começava a se vestir de conde, com roupinhas, gravatinhas, colarinhos, anéis — dois, três, quatro ou mesmo cinco anéis diferentes para serem usados conforme o dia — , e adotava modos de falar em que procurava representar um papel histórico. No fundo, tratava-se do egocentrismo. Eram pessoas das quais se ria e que ninguém tomava a sério, que não atraíam ninguém, que não impressionavam ninguém, não arrastavam ninguém. Porque não era a História, não era um ideal, não era um absoluto, não era Deus que estava presente nelas.

Quantas e quantas coisas desse gênero torciam os melhores. Ia-se conversar às vezes com um que tinha o ar mais tradicional, e ouvia-se só bobagens. Eu procurava em vão descobrir a que doutrina, a que pensamento, a que princípio queriam chegar. Nada: o interesse era o anelzinho. Ora, anelzinho não convence!

Havia uma deformação análoga a essa, que era o efeito do romantismo na esfera religiosa.

O que era o romantismo religioso?

Era uma sentimentalidade religiosa que desvirilizava, que afrouxava e debilitava a vontade, que não formava fiéis combativos, mas propunha um ideal de caridade mal concebido, que dava no tipo humano do carola, do beato ou da beata, tão caricatos. Voltemos à praia de Santos. Em meio às reflexões naturais de um menino que se retira sob o pretexto de pescar siri, intervém a Providência.

O Santuário do Embaré começava a ser construído. Uma igreja de um gótico muito provinciano, mas ainda gótico. Da praia, eu olhava para aquela construção e dizia: “Oh, Santa Igreja Católica que não mudas! Tu és fiel ao gótico, que é a morada de minha alma! Tudo muda em torno de ti. Mas tu aqui, diante do mar, em meio à tempestade hollywoodiana, tu ergues as tuas torres góticas aos olhos de Deus e do sol que vai nascer”.

Contemplá-la ajudava-me a discernir entre o bem e o mal, e me enchia de entusiasmo.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 66 (setembro de 2003)

Expressão da alma humana e símbolo de Deus

Se me fosse dado passar uma tarde diante do Mont Saint Michel, ditosos e abençoados seriam para mim esses momentos. Ali me agradaria estar, ora contemplando e analisando o mosteiro, ora pensando em temas elevados que teriam com ele uma certa afinidade, sentindo sempre o calor de sua presença como ponto de referência para o voo variegado da cogitação de alguém que descansa. Por onde enveredariam essas análises e reflexões?

* * *

O Mont Saint Michel é um conjunto de aspectos, uma unidade na variedade, que simboliza de modo muito eloquente determinados valores sobrenaturais, bem como certos movimentos e qualidades da alma humana. Esse simbolismo é mais bem compreendido se considerada a relação entre os diversos elementos que compõem o cenário.

Primeiro, o mar e a elevação rochosa. Para se medir a importância do mar nesse panorama, basta imaginarmos que, depois da praia, não houvesse mais o oceano, mas começasse a se alastrar ali uma megalópole contem porânea. Como tudo mudaria e perderia sua beleza tão singular!

Pelo contrário, como esse conjunto lucra e se enriquece com a presença do mar e seus diversos movimentos! Ora ele vem meio caprichoso, “boudeur”, fazendo um pouco de fronda, inunda a praia,  enche todos os espaços em volta do monte e acaba por se chocar contra os rochedos que ele mesmo talhou, e com os quais construiu uma espécie de muralha natural para conter seu próprio ímpeto. Ora ele se aproxima manso e se retira, deixando seu cartão de visitas nas franjas da areia. Ora são ondas que vêm e vão, lambendo a praia em todas as direções, como se o mar inteiro estivesse se espreguiçando  e  olhando para o mosteiro que, sobranceiro, do alto o observa.

E nisso temos a expressão de um estado de alma. Pois uma das formas de admirar o Mont Saint Michel seria a de alguém que, morando em frente a ele, ao acordar de manhã, e enquanto se  espreguiça, de sua janela o contempla.

A admiração comporta essa atitude de espírito. Considerando o mar, poderíamos ainda ver seus diferentes movimentos se acercando ou não do mosteiro, admirá-lo a distâncias diversas, como um  símbolo dos movimentos — legitimamente vários — da apetência humana.

* * *

Há, depois, a extensa faixa de solo arenoso que aparece junto ao monte, quando as águas refluem e dele se afastam. A pergunta que nos vem à mente é esta: seria mais bonito que o mar tocasse continuamente no mosteiro, e nunca deixasse à vista esse pedaço de terreno?

Certamente, não. Porque, nesse conjunto, a grande praia tem seu papel. Em determinados momentos, ela permite ao mosteiro conter o mar à distância, e como que dominar em torno de si uma periferia, tendo a seus pés areias submissas e rasas.

E nesse aspecto do Mont Saint Michel encontramos também analogia com outro estado de alma do homem, quando este exerce alguma função de mando e senhorio.

Por sua vez, o rochedo lucra bastante em ser único dentro de uma praia lisa e imensa. Parece-me inegável que sua beleza ficaria diminuída se houvesse quinze morros como ele, encostados uns nos outros, formando uma espécie de cordilheira que avançaria para o mar. O fato de ser único quase nos faz esquecer de sua altura. Pois quem está cercado de areia por todos os lados, tem todas as alturas. Ele, nessa planície, não é um anônimo: é supremo.

Ele é ele, envolto por elementos rasos, dominando-os só por si. Muito mais do que sua altura, vale sua unicidade. A esta característica do Mont Saint Michel correspondem também algumas disposições da alma humana.

De fato, há coisas que ela admira quando são únicas e não vêm acompanhadas de outras igualmente belas. Por exemplo, uma joia constituída apenas de uma fina corrente de platina, da qual pende um brilhante grande e claríssimo, posta sobre um fundo de veludo negro, pode ser mais esplêndida do que uma outra emoldurada por cem pedras preciosas. Às vezes é mais bonito ostentar essa valiosa companhia, outras vezes é apresentando-se como único. São estados do belo, que equivalem a estados do espírito humano: ora cada um de nós lucra sendo visto no seu contexto, ora  considerado na sua unicidade.

E para alçarmos logo o supremo voo dessas comparações, digamos que esse aspecto do Mont Saint Michel é uma pequena imagem do por onde o próprio Deus é único. Essa é uma rocha firme e alta, no meio de areias e praias movediças, como Deus é eterno e supremo no meio do movediço das coisas que Ele criou.

* * *

O rochedo e a vegetação. Destruamos esta e veremos como a aparência daquele fica prejudicada. Porque é agradável vislumbrar algum aspecto do mosteiro a perder-se na mata cerrada, a qual imaginamos fresca, coberta de sombras, e talvez umedecida por duas ou três fontes que, nascidas do alto, por ela correm num suave e apaziguante murmúrio…

Sem dúvida, é interessante ver o edifício como que se desfazendo em sombras e mistérios. Tanto ou mais bonito é vê-lo claro, altivo, agarrando-se ao rochedo que lhe serve de alicerce e dominando-o; é contemplá-lo na elegância de suas linhas que avançam para o céu, e na solidez de suas pedras que resistem e se afirmam diante dos elementos adversos.

É bela a alma humana quando, com franqueza, proclama sua personalidade, se exprime e se define. É igualmente bela quando, com discrição, conserva alguma coisa consigo, exclusivamente sua. Ter seus mistérios e suas explicações, ter suas proclamações mas também suas intimidades, constitui um jogo de aspectos muito nobre para o espírito humano. Então, não será algo em nós que  aprecia sua própria penumbra, e se deleita em olhar para o Mont Saint Michel? E não será algo em nós, sedento de proclamar-se, de afirmar-se e de ser uma fortaleza, que se identifica com esse monte que assim se declara à luz do sol?

Sim, em todo homem se encontram essas várias disposições. Temos, em nossa alma, facetas que gostariam de se mostrar inteiras, sem véus; temos zonas delicadas que confiamos a poucos; e outras que, embora façam parte de nossa  riqueza, nem nós conhecemos e tão-só as pressentimos, pois são vistas apenas por Deus.

Resultado, a alma humana encontra na variedade do Mont Saint Michel uma expressão de si mesma, uma semelhança e uma alegria.

* * *

O mosteiro, mais bem um conglomerado de prédios distintos, tem algo de fortaleza, algo de residência e algo de igreja. Ombreando-se por entre as irregularidades do morro, as casas de uma pequena aldeia se eclipsam à sombra do grande e proeminente edifício religioso. No interior deste, um claustro que exprime ordenação e sabedoria extraordinárias, nascidas da piedade medieval, filha ela mesma da ordem e da sapiência da Igreja Católica. Imaginemos a vida entre essas paredes sagradas: monges estudando em magníficas bibliotecas ou cantando o Ofício na igreja; um que se acha recolhido em sua cela, desenhando lindas iluminuras num pergaminho, enquanto outro na oficina entalha um bonito capitel para uma coluna ainda desprovida de ornatos.

Depois, na periferia das construções, há espaços para a luta e a guerra. Confundindo-se com as rochas, erguem-se como que muralhas nas quais podemos figurar monges-cruzados resistindo e expulsando, passo a passo, os invasores que debalde intentam conquistar a fortaleza inexpugnável.

Como tudo se encaixa bem no Mont Saint Michel! Síntese de oração, de estudo, de recolhimento, de arte e de luta. Unicidade que encontra sua máxima expressão na torre do campanário, forte, desafiante, inamovível, como se fora um pesa-papéis colocado sobre papéis diferentes, como quem diz: “O vento não os faz esvoaçar nem os tira daqui!” No alto dessa torre, uma flecha.

No cimo da flecha, a estátua do Arcanjo, que parece proclamar: “A síntese, a correlação de todos esses aspectos é tão vária e tão imensa que se perde nas nuvens, abisma-se no céu!”

E então poderíamos dizer que, no seu conjunto, o Mont Saint Michel é um magnífico símbolo do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria, Rainha dos Doutores, Rainha dos Profetas, Rainha dos  Mártires e dos Guerreiros, Rainha de todos os Santos.

Mais. Símbolo d’Aquele que veremos face a face na bem-aventurança eterna, no seu vulto inteiro, embora não na totalidade de cada uma das suas perfeições: Deus Nosso Senhor, infinitamente claro e infinitamente misterioso, pelos séculos dos séculos. Amém!

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 18 (Setembro de 1999)

Confiança na misericórdia de Nossa Senhora

Nas graves circunstâncias de nossa vida, o que a Santíssima Virgem deseja de nós, acima de tudo, é um imenso ato de confiança. Por isso, genuflexo, peço a Ela nos tornar cada vez mais os que —  na tormenta, na aparente desordem, na aflição, na quebra aparente de tudo o que poderia representar para nós a vitória —, sempre confiaram na misericórdia d’Ela.

(Palavras de Dr. Plinio em uma de suas últimas conferências, em agosto de 1995)

Plinio Corrêa de Oliveira