São Francisco de Assis: Personalidade Rica e Marcante

Santo de uma personalidade tão rica e marcante, São Francisco de Assis parece vivo ainda hoje, resplendendo sua presença diante dos homens. Deixou-nos um dos maiores exemplos da verdadeira contemplação das perfeições divinas e do profundo amor a Deus. Ao considerar os peixes num simples regato, sabia colher desta cena uma aplicação concreta para a vida espiritual.

Dirigia-se ao “irmão sol” e à “irmã lua”, tecendo orações que elevam a alma à mais subida meditação das excelências de Deus, como quem afirma: “Ó Senhor, este universo criado, do qual faço parte, é grande e belo demais; porém, há algo infinitamente superior, que sois Vós!”

Daí a fabulosa densidade da religiosidade franciscana, que devemos imitar. Diria mais: sem esse espírito contemplativo, nenhuma religiosidade atinge sua plenitude.

Plinio Corrêa de Oliveira

Arco-íris da esperança

Neste vale de lágrimas em que somos peregrinos, tentações, sofrimentos e perplexidades são inerentes a toda vida espiritual. Contudo, em meio ás nossas dores e aflições morais, sempre vislumbramos a esperançosa figura de um arco-íris: Maria Santíssima!

Ela nos acompanha em nossa peregrinação rumo á Pátria Celestial, ajudando-nos em todas as vicissitudes, envolvendo-nos com seu maternal, constante e infatigável amor, que nenhuma infidelidade poderá esmorecer, e que os reiterados atos de bondade dele emanados não lograrão exaurir.

Lugar onde a Providência quis reunir suas maravilhas – II

Em Veneza há beleza, elevação e grandeza, o contrário do que ostenta o mundo de hoje. Em nossas almas existe o desejo de uma desforra da feiura, da hediondez, da trivialidade contemporâneas. Esse desejo faz de nós os iniciadores do Reino de Maria.

 

Numa fotografia de um aspecto de Veneza, na  qual o fotógrafo foi especialmente feliz, considerem a pomba, o mar, os campanários, as igrejas e os palácios.

Bolha de beleza pairando pelo ar

A impressão é de que todas essas belezas como que saturam o ar e nos remetem para uma certa irrealidade, a qual está na maravilha dos crepúsculos venezianos; e que a pomba tem algo à maneira  e uma noção disso, e voa deliciada no meio de todas essas coisas. Não é apenas do ar que a pomba gosta, mas dir-se-ia que ela forma um todo só com essa beleza. Nós sabemos tratar-se  de um ser irracional, orientado apenas por seus instintos. Mas não é verdade que se tem a impressão de que ela goza de um bem-estar aumentado por essa formosura? Uma pomba como essa, no Largo do Arouche, em São Paulo, não teria esse bem-estar.

Qual a razão disso? É pelo fato de ela concorrer, como uma obra-prima de desenho, para essas maravilhas. Ela mesma, como está aqui, é linda. Notem como as asas ficam bonitas, como o voo torna-se elegante. Ela é um sonho!

Dir-se-ia que a pomba é uma bolha de beleza que se desprende e fica pairando pelo ar. Estas considerações nos levam a nos perguntar como será aquela perfeição alta e magnífica, para a qual a  humanidade foi feita e tende a possuir antes que a História do mundo acabe, e onde Nossa Senhora será a Rainha. Quando, então, não forem apenas as pombas a voarem pelo ar, mas algo de marial habitando tudo – tomando em consideração que Maria Santíssima é a obra-prima de Deus no Céu e na Terra –, como serão essas coisas? É verdadeiramente indizível.

Uma das maravilhas do universo: o Palácio dos Doges

Aqui encontramos, no primeiro plano, a dois passos do mar – e o encanto está nisso, pois quanto mais próximo do mar mais arrebatador –, sem vedar o trânsito, o Palácio dos Doges.

A meu ver, esse palácio é de uma cor difícil de definir e que varia um pouco de acordo com a luz do dia. Mas nesta fotografia se me apresenta de um róseo muito delicado, mas não homogêneo; percebe-se a presença variada do róseo e do branco nas ogivas góticas, formando uma espécie de contraste.

De si, o bonito seria, de acordo com a lei da gravidade, vermos o elemento mais pesado carregar o mais leve. Então, seria explicável que esse palácio fosse construído de tal maneira que essa espécie de caixotão – é um ultraje chamá-lo assim – deliciosamente róseo, ornado por três ogivas agradavelmente simétricas, pensativas, calmas, tranquilas e nobres, que parecem estar, elas  mesmas, olhando o mar, contemplando-o com a familiaridade  com a qual as grandes pessoas contemplam o lindo; pareceria normal, enfim, que esse caixotão estivesse na terra, e a parte mais  leve, ou seja, as colunas desse andar imediatamente inferior, bem como a colunata que toca no chão, estivessem em cima.

Dir-se-ia que esse edifício, construído assim como está, daria uma sensação de peso medonho, e que esse caixotão vai esmagar e quebrar, a qualquer momento, a colunata. Mas está calculada com tanta inteligência a distribuição dos corpos e dos volumes, que não se tem essa impressão. Pelo contrário, sente-se que essa colunata  carrega sem esforço o caixotão, o qual, recusando-se de ficar na terra, é suportado por essas colunas magníficas, de maneira a permitir a circulação do ar por debaixo dele. A arte orna isso com essa primeira linha ogival muito bonita, e embaixo com aqueles outros arcos, ficando o palácio, por assim dizer, suspenso no ar.

Chamo a atenção para o que há de bem pensado em cada detalhe dessa fachada. Ela ficaria monótona se não houvesse, bem no meio, aquela porta dando para um terraço. Mas se existisse ali mais uma ogiva o palácio se tornaria insuportável. Para aquela porta, aquele terraço tem exatamente o tamanho que deve ter para completar bem e levemente uma das maravilhas do universo, o Palácio dos Doges.

Viagem que conduz ao Céu ou ao Inferno

Imaginem-se sentados em gôndolas e seguindo na direção dessa praça que se abre mais para o fundo e tem uma torre. Percebe-se, pelas cúpulas, que para essa praça dá também uma igreja, e existe depois outro palácio. Mas há uma parte da praça que dá diretamente para o mar. É o desembarcadouro para as pessoas que descem, um cais. Há cais ao longo de toda essa colunata, a fim de facilitar ao máximo o deslocamento da população.

Notem como existem ali duas colunas. Em uma delas há uma estátua de São Teodoro esmagando o dragão; na outra, o leão alado, emblema de Veneza. No intervalo entre as duas colunas havia um outro “cais” de um gênero muito diverso. Nele alguns homens empreendiam uma viagem perto da qual as nossas viagens contemporâneas são zero, e até mesmo os homens que foram à Lua não são nada em comparação com os que fazem essa viagem, porque é a viagem que conduz ao Céu ou ao Inferno… Ali eram executados, em troncos especialmente levados para a cerimônia, os condenados à morte.

Lugar lindo, encantador, mas é um dos traços de Veneza. Ela é festiva, mas tem qualquer coisa no fundo de muito grave e até de um tanto melancólico, sem o qual Veneza seria uma banalidade.

Uma renda de pedra

Ali vemos se levantar o campanário, os sinos que servem à catedral. Uma construção originalíssima que destoa do branco de tudo quanto está edificado ao redor. Entretanto, possui também a parte alta toda branca,  com um cone muito bonito em cima, do qual cada triângulo é emoldurado por uma lista branca. Esta torre é do século XX. A original, por questões geológicas, de repente ruiu. Era então Papa São Pio X, que fora Patriarca de Veneza, e impulsionou a construção de uma torre absolutamente idêntica àquela que havia. De maneira que se toma essa como a torre antiga.

Examinem a cor desse mar. Quem a define? É verde, azul? Entra aí outro colorido além do verde e do azul? Também não se sabe. Essa multidão de gôndolas dá um ar festivo, de alegria e de vida, que completa o panorama.

Numa outra fotografia vê-se de perto um pouco daquela verdadeira renda de pedra. No terraço de pedra branca, cada coluna dá a impressão de uma chave, dentro da qual há uma espécie de trevo, cujas folhas têm o desenho esquemático e imaginário de um trevo de quatro, dentro de círculos. Isso seria a orelha da chave; e, embaixo, um pedaço de balcão seria a lingueta da chave. Mas tudo é feito de tal maneira que, encostada uma chave na outra, se têm ogivas. E o ogival aparece aí numa das suas mais belas manifestações.

Um teto que parece levantar voo

Notem a simplicidade de linhas com que a fachada da Catedral de São Marcos é construída. São cinco arcos: dois de cada lado e, no meio, um arco um tanto maior, que interrompe um pouco o curso do balaústre, do corrimão de um terraço que está em cima. De maneira que aquilo serve de teto para o átrio da igreja e também de terraço para se passear em cima. Mais para cima encontram-se ogivas muito abertas, que conservam seu parentesco com a ogiva gótica comum, pelo fato de terminarem naquela ponta reunindo harmonicamente dois extremos, num movimento que tem um resto de ogival. E cada ogiva, feita de uma pedra branca linda, serve de proteção, de teto para uma bela cena em mosaico, com fundo dourado, representando fatos da vida de Nosso Senhor.

Faço notar essas pontas entre arcada e arcada. Dão um caráter de leveza enorme ao teto. Tem-se a impressão de que o teto está para levantar voo. Vemos aí, mais uma vez, traduzir-se aquele anseio do homem para voar. Considerem como cada ponta dessas é bem trabalhada, e como a moldura que circunda cada arco da arcada superior é, também ela, toda eriçada de pequenas pontas.

Parecem, assim, as asas de inúmeras pombas que estão se abrindo para voarem levando consigo, pelos ares, a catedral mil vezes famosa. É uma verdadeira maravilha!

O charme é o aliado natural da grandeza

Chamo a atenção também para um detalhe que, analisado depois de ser percebido, chega a desconcertar um pouco. Mas, enfim, isso é assim e me agrada enormemente. Em cada arco desses há uma portinha, mas nenhuma delas está bem no centro em relação ao arco inferior. Com a mania do igualitário e do decimal que se espalhou pelo mundo no século XIX, os arquitetos, em sua maioria, se fossem construir um monumento como esse, não teriam talento para isso nem de longe. Poriam essa portinha bem no centro de cada arco.

Imaginem que um dedo malfazejo empurrasse essas portinhas bem para o centro. Que monotonia! Foi empregada uma forma de talento por onde a dessimetria dessas portinhas talvez passe despercebidas a muitos. Isso se chama propriamente gênio. Tem algo em comum com o charme, do qual diz o francês: “le charme, plus beau que la beauté” – o charme, mais belo que a própria beleza.

A Catedral de São Marcos está cheia de charmes assim.

O charme está também nessas portinhas… Mas o que não é charme aqui? Só não é charme o que é grandeza. Entretanto, o charme é o aliado natural da grandeza; porque a grandeza sem charme fica pesadona, e o charme sem grandeza torna-se frívolo.

Referi-me à grandeza. Procurem ver na cúpula, atrás, a grandeza, a magnificência. É espantosa! Ela seria muito pesada se não fosse tudo isso descrito anteriormente. Daria a impressão de um panelão colocado ali. Mas olhem a forma da cúpula, a cruz no alto, o jogo de várias pequenas cúpulas, e terão propriamente o charme. É a incomparável Catedral de São Marcos.

Desforra da feiura, da hediondez e da trivialidade contemporâneas

Os venezianos do tempo das palafitas(1) não percebiam o que ia sair do que eles faziam. Mas pode-se supor que já tivessem uma certa propensão para isso, à qual o Batismo deu a realidade, o “élan”, de maneira que saísse o que nós estamos contemplando aqui.

A julgar pela afirmação de São Luís Maria Grignion de Montfort de que os Santos do Reino de Maria vão ser tais que, comparados aos do passado, serão como cedros do Líbano em relação a arbustos(2), a medida de beleza, de verdade e de bem que toda civilização alcança é dada pela medida dos Santos que nela florescem.

Esse princípio, por exemplo, o encontramos subjacente em todas as reflexões que fiz sobre a gruta de Subiaco e São Bento(3).

Mas creio que em nossas almas há um desejo de uma desforra da feiura, da hediondez, da trivialidade contemporâneas. E esse desejo faz de nós os “palafíticos” do Reino de Maria. Contudo, enquanto não se der o Grand Retour(4), não vierem os castigos previstos em Fátima, e tudo isso não for varrido e limpo, quase não conseguimos entrever as belezas vindouras. Entretanto, no fundo de nossas almas existe esse anseio que nos faz discernir a potencialidade para o maravilhoso de cem coisas que conhecemos, mas que ainda não são maravilhosas.

Para isso, cuidemos de ser santos e de ir vivendo. Pelo curso natural do tempo e da idade, muitos assistirão ainda a todas essas maravilhas sobre a face da Terra. Outros as verão antecipadamente – coisa muito melhor –, pois serão chamados por Deus a contemplá-Lo face a face, no Céu.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/12/1988)

1) Cf. Revista Dr. Plinio n. 246, p. 33.
2) Cf. Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. Cap.
I, art. 2, n. 47.
3) Cf. Revista Dr. Plinio n. 244, p. 27.
4) No início da década de 1940, houve na França extraordinário
incremento do espírito religioso, quando das peregrinações
de quatro imagens de Nossa Senhora de Boulogne. Tal movimento
espiritual foi denominado de “grand retour”, para indicar
o imenso retorno daquele país a seu antigo e autêntico
fervor, então esmaecido. Ao tomar conhecimento desses fatos,
Dr. Plinio começou a empregar a expressão não apenas
no sentido de “grande retorno”, mas de uma torrente avassaladora
de graças que, através da Virgem Santíssima, Deus
concederá ao mundo para a implantação do Reino de Maria.

Oração que move montanhas

Há uma confiança heroica pela qual não desistimos de esperar, apesar de tudo. Por vezes, essa confiança faz a alma “sangrar”, mas ela continua a confiar, e diz: “A promessa interior, inefável, que Nossa Senhora me fez não falhará. Confiarei e cumprirei a minha missão. Eu confio na palavra d’Ela!”

Qual é a palavra da Santíssima Virgem? É uma voz da graça, uma apetência que sentimos e que nos leva a todas as virtudes, ao amor de Deus. A isso nos devemos dar, e com base nessa palavra devemos estruturar a nossa confiança.

A alma assim vence a batalha, pois a oração dela move as montanhas.

Eis por que Nossa Senhora só revelou a São Pio V a vitória dos cristãos, na Batalha de Lepanto, depois de ele ter rezado um terço: Ela quis mostrar que esta oração Lhe é tão grata, e que agrada tanto a Ela pedirmos aquilo de que precisamos, por meio da recitação do Rosário, que Maria Santíssima esperou aquela oração do Santo Pontífice para conceder esse enorme galardão.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/10/1975)

À nossa espera…

Meu filho, aqui estou Eu, sozinha, no canto a que teu desprezo me relegou, repleta daquele amor materno que tua rejeição comprime em Mim e impede que se expanda; daquele afeto que se conserva intacto em sua abundância e intensidade, palpitando de compaixão, à espera de que retornes para te purificar, te envolver e cumular com sua misericórdia inesgotável…

A Santa Igreja

Em sua essência, a Santa Igreja é totalmente imutável e incontaminada. Em meio às confusões, Ela é como uma coluna de brilhantes envolta pelas chamas de um incêndio. Podem as labaredas se elevar a qualquer altura,  podem se expandir e se intensificar: pouco importa, a Igreja permanece de pé.

As chamas não fazem senão iluminá-la…

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Uma devoção de luta!

Nossa Senhora do Rosário: a invocação é lindíssima!

O Rosário faz de Maria Santíssima a grande fonte de inspiração de nossa meditação e o alvo imediato de nossa oração durante a meditação.

Por causa dessa focalização muito especial de Nossa Senhora, o Rosário é a devoção marial por excelência.

Foi revelada pela Santíssima Virgem a São Domingos de Gusmão, que estava lutando contra uma “lepra” que infectava o Sul da França, com penetrações no litoral mediterrâneo da Espanha: a heresia albigense.

Para vencer esta heresia, Nossa Senhora revelou o Rosário que ficou, assim, o símbolo da alma ortodoxa e devota d’Ela.

Aquilo que matou o prenúncio da Revolução, adiando durante alguns séculos a eclosão da Revolução protestante, é indicado pela Mãe de Deus para o adiamento do fim do mundo e para obtermos a nossa própria fidelidade.

O Santo Rosário é, pois, uma devoção de luta!

Estamos numa época de luta. Peçamos a Nossa Senhora que faça de nós lutadores inteiramente d’Ela.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 6/10/1966 e 12/4/1985)

A prece dos fortes

No dia 7 de outubro celebra-se a festa de Nossa Senhora do Rosário, estabelecida pelo Papa São Pio V a fim de manifestar a jubilosa gratidão da Igreja para com a Santíssima Virgem, cuja solícita intercessão determinou a vitória da causa católica na batalha de Lepanto.

Ardoroso devoto do santo Rosário, por ele rezado diariamente, Dr. Plinio não perdia oportunidade de enaltecer as excelências dessa prática mariana, sendo-lhe — como afirmava — “motivo de sumo agrado” recomendá-la e incentivá-la entre seus filhos espirituais. Nesse intuito, fazia-lhes compreender como o Rosário “ocupa privilegiadíssimo papel na história da piedade católica. Em primeiro lugar, porque une o fiel a Nossa Senhora, e atrai para ele toda sorte de graças celestiais. Em segundo lugar, porque afugenta o demônio. Alguém que se sinta tentado, tome fervorosamente o Terço em suas mãos, e ver‑se‑á forte contra a investida do inimigo de nossas almas.

“Excelente meio de venerar a Mãe de Deus, é incalculável a torrente de bênçãos que a recitação do Rosário efundiu sobre a Cristandade. Por isso, Papas e autoridades eclesiásticas não se cansam de elogiá‑lo. Se tal não bastasse, a Santíssima Virgem, querendo Ela mesma incentivar essa inestimável devoção, mais de uma vez apareceu trazendo em suas mãos virginais o piedoso instrumento. De modo particular, nas aparições de Fátima, em Portugal, quando recomendou aos homens, com tocante insistência, a recitação diária do Terço. Além disso, a Igreja enriqueceu o Rosário com muitos privilégios e indulgências, inclusive plenárias, de maneira a fazer dele um verdadeiro tesouros de bênçãos inapreciáveis.

“A recitação do Rosário se dilatou de tal maneira que, durante muito tempo, identificou-se com a piedade católica: uma e outro eram a mesma coisa. Fosse nos atos cotidianos da vida espiritual, fosse nas festas e celebrações de maior significado, o Rosário — ou o Terço — sempre esteve presente como expressão do fervor das almas devotas.

“São Domingos recebeu da Rainha do Céu este mesmo Rosário cuja forma hoje conhecemos: começando pelo Crucifixo, que devemos oscular pedindo à Mãe de Deus que seja nossa intermediária e apresente a seu Filho nossas orações; em seguida, três Ave-marias, um Glória, e depois as cinco dezenas em que meditamos nos principais Mistérios da vida de Jesus e de Maria Santíssima — Gozosos, (Luminosos[1]), Dolorosos e Gloriosos.

“Ainda que rezado por almas mais frágeis, o Rosário é a prece dos fortes, é a súplica dos batalhadores, porque é um conjunto de orações de tal eficácia que faz avançar o bem e recuar o mal. A par das riquezas espirituais que encerra, temos a pluralidade dos feitios e coloridos com os quais é utilizado: rosários pequenos, graciosos, delicados, para crianças de trato; modestos e rústicos, mas fortes, dedilhados por mãos vigorosas que passam sobre aquelas contas; sério, varonil; rosários de princesas, de rainhas, lavorados como verdadeiras jóias, preciosos como esses que pendem das mãos das imagens de Nossa Senhora. Todos nos fazem ver algo da suavidade e da bondade régias de Maria, protetora dos débeis, amparo dos fortes, como foi o próprio São Domingos, enfrentando e vencendo com o Rosário a heresia albigense.”

E após recomendar com incansável empenho a recitação do santo Rosário, necessária aos fiéis de todos os tempos, Dr. Plinio ainda oferecia este tocante conselho:

“Nunca nos separemos do Terço. Que ele esteja sempre junto a nós, em todos os momentos: quando dormimos, quando descansamos, quando estivermos lendo ou fazendo toda e qualquer coisa. Jamais o larguemos. E quando nossas mãos não puderem mais nem se abrir nem se fechar, mas forem fechadas por outros para a nossa última atitude de oração, que o Rosário esteja entrelaçado em nossos dedos. De sorte que, chegado o momento da grandiosa Ressurreição dos mortos e nosso corpo recobrar vida, nosso primeiro gesto possa ser o de oscular o Terço que encontraremos cingidos às nossas mãos…”

[1]) Dr. Plinio faleceu em 1995, antes de o Papa João Paulo II enriquecer o Rosário com os Mistérios de Luz, na sua Carta “Rosarium Virginis Mariae”. Motivo pelo qual acrescentamos os mesmos entre colchetes, para o presente comentário adquirir ainda mais atualidade.

 

Guerreiros na grande luta que se aproxima

Meu Santo Anjo da Guarda, sei que dentro dos planos divinos deveis, pelos desígnios de Nossa Senhora, exercer especial papel na realização de minha vocação. Vós, com todos os espíritos celestes, possuís uma missão altíssima na luta contra a Revolução. Dirijo-me a todos vós tendo presente a vinculação que estas circunstâncias estabelecem honrosamente de mim para convosco.

Em nome desse vínculo eu vos peço: Obtende da Rainha do Céu que vossa ação se intensifique e tome toda a magnitude proporcionada com minhas debilidades, infidelidades, fraquezas, com meu desejo de servir inteiramente a Causa da Igreja Católica e da Civilização Cristã.

Eu vos peço, portanto, que intervenhais quanto antes sobre as pessoas e os acontecimentos de maneira que, libertos da ação do demônio, a qual hoje atingiu um auge, possamos pertencer-vos inteiramente e ser vossos guerreiros na grande luta que se aproxima.

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 4/12/1980)

O convívio dos Anjos

A iconografia de Anjos da Renascença e do barroco, bem como certas imagens muito difundidas no século passado não representam autenticamente os espíritos angélicos; os da Idade Média e os de Fra Angélico exprimem a realidade. Os Anjos estão dispostos numa hierarquia, em que os superiores transmitem aos inferiores “jornais falados” a respeito do que viram em Deus.

 

Ao tratar sobre os Anjos, devemos antes estabelecer alguns princípios que nos ajudarão a nos aprofundarmos no assunto.

Mosteiro de Saint-Michel

O primeiro princípio que convém lembrar é o seguinte: a Providência está permitindo ao demônio ter um arrojo e uma extensão de ação como jamais se viu ao longo da História. Nós podemos ter as mais variadas impressões a respeito do passado, a História narra as ações mais estranhas, mais censuráveis, mais condenáveis. Entretanto, quando comparamos essas ações a algumas que se dão no mundo contemporâneo, vemos que o passado era simplesmente diáfano e encantador, mesmo em seus aspectos mais censuráveis, em comparação com os lados reprováveis do presente.

Há dois mil anos a Igreja cultua os santos Anjos e, de quando em quando, eles aparecem e dão de si alguma manifestação. Recordemos o Mosteiro de Saint-Michel, na França, o qual, visto no seu total, é como que a fotografia, em pedra, de um espírito angélico.

Aquela ponta que se ergue e depois a abadia com suas várias construções, junto àquele mar variado, ora mais mar do que terra, ora mais terra do que mar, às vezes restos de poça de mar no meio de braços de terra que vão secando e emergindo no meio daquilo tudo; e depois se percebe um vento uivando e silvando na parte do mar que é sempre mar. No meio de tudo isto o Mosteiro de Saint-Michel de pé, solene, tranquilo e firme, agarrado e dominando a rocha, mostrando aos mares a inanidade de seus movimentos e com a flecha apontada para o céu.

Como o espírito humano conhece bem por meio do contraste, vamos tomar certas noções comuns, correntes, pouco precisas e infelizmente um tanto infantis a respeito dos Anjos presentes na mentalidade de todo mundo — oriundas de uma apresentação muito sumária do tema — e transpô-las para o que imaginamos de um Anjo.

Com isso trataremos de ter alguma ideia daqueles Anjos cuja vinda e intervenção nós esperamos. Fica assim indicada a nossa meta, e nossas almas, ao menos por uns instantes, apontarão para essa hora da vinda deles como a torre do sino do Monte Saint-Michel.

Anjo gorducho e despreocupado…

Quais são as ideias que há a respeito dos Anjos? A criança forma a noção de que as figuras de Anjo que ela recebe correspondem às ideias que os pais — e também o vigário — têm do Anjo. Tanto mais que a criança sabe de um modo instintivo e confuso que, em última análise, o pai e a mãe conferem com o vigário as ideias da Religião. De maneira que toda estampa, todo medalhão, toda figura que representa um Anjo, a criança julga mais ou menos subconscientemente que significa o ensinamento da Igreja Católica sobre o Anjo.

Então devemos nos reportar à estatuária, às estampas, às coisas habituais a respeito dos Anjos — e que não são muitas. Podemos cogitar um pouquinho também nos magníficos Anjos da Idade Média, passando muito rapidamente pelos Anjos do barroco. Consideremos, em primeiro lugar, como os Anjos eram apresentados na nossa infância.

Havia duas casas em São Paulo, ainda do centro velho, que vendiam relógios, algumas joias e objetos religiosos de luxo: a Joalheria Michel e a Casa Bento Loeb. Aquela imagem do Coração de Jesus que há em minha residência, por exemplo, foi comprada numa dessas lojas. Eu me lembro de que o fornecimento de artigos religiosos para crianças do meu tempo era encaminhado por essas duas casas. E eram, em geral, fábricas francesas que enviavam esses objetos para São Paulo.

Então, eu me recordo de um medalhão que representava um Anjo e me chamou muito a atenção. Era circular, bom para presentear a uma senhora que acabava de ter um filho, a fim de amarrar o medalhão na cúpula do berço; para conceder a uma criancinha de três, quatro, cinco anos que faz aniversário; próprio também para dar a uma criança um pouco mais velha que recebe a Primeira Comunhão. Nem me lembro mais se esse medalhão era meu ou de minha irmã ou de algum de meus primos. Sei que esse medalhão conviveu comigo. E no promíscuo da infância entre parentes, em que a propriedade individual existe confusamente e os objetos são trocados, passam da gaveta de um para a mão do outro, nesse turbilhão tenho a impressão de que isso acabou sendo meu, mas não estou certo.

Era um Anjo tipo, ainda, “Belle Époque”(1): gorducho, com a face cheia, cabelos ligeiramente ondeados, braços bem roliços, trançados, e uma cara de inteira tranquilidade, debruçado sobre algo que era como que a base do medalhão, tendendo um pouco para o tédio, incapaz e não desejoso de qualquer esforço. Como quem olha de um terraço para um ponto vago, mas que não está muito interessado na cena que se passa embaixo e diz: “A minha batalha eu já travei e agora estou aqui gozando; você se arranje como puder!”

Lembro-me de que eu olhava para o Anjo e me vinha uma ligeira perturbação ao espírito, no seguinte sentido: “Se um Anjo é assim e conhecesse bem o interior de sua alma, ele discordaria de você; porque você tem a respeito do Anjo umas ideias que esta imagem não simboliza. Logo, ou essas ideias são contra a realidade do que é um Anjo e você está errado, ou elas são a favor dessa realidade; mas então o Anjo está errado e, portanto, alguma coisa não acerta bem nisto.” A saída era, naturalmente: “Eu vou procurar”. E olhava, olhava, olhava para ver se encontrava no Anjo alguma coisa que tivesse relação com isso.

…ou sentado sobre uma nuvem e tocando harpa

Então, uma primeira ideia a respeito dos Anjos: vida realizada, sem futuro, numa eternidade sem grandes atrativos, um certo fundo de tédio. Esforço, não! Mas outros quadros, outras coisas de uma arte religiosa que já caminhava a passos largos para sua decadência, afirmavam isso.

Por exemplo, quadro clássico, tantas vezes comentado entre nós: Anjos sentados em cima de nuvens, sobre um céu azul, tocando harpa. Quando acaba de tocar a harpa? Como é que essa nuvem não afunda?

E, no total, tem-se a impressão de que eles eram pintados com uma cara animada, mas à maneira de pessoas muito bem educadas que estavam atravessando uma fase de tédio, com ar distraído, mas que no fundo eles estavam se aborrecendo…

Por outro lado, há a ideia reta, insinuada, de que eles são de uma natureza inteiramente superior à nossa, apresentados em carne e osso apenas porque a arte não pode pintar o puro espírito, mas gozam da presença de Deus e da familiaridade nos inefáveis do Altíssimo e são muito bem intencionados, muito bem dispostos em relação aos homens. Prontos a ajudar, a socorrer.

Tornei-me adulto e as imagens de Anjos foram se repetindo no mesmo gênero. Eu me lembro de uma estampa impressa, bastante popular colocada no parlatório de um convento que frequentei muito, representando uma criancinha atravessando uma ponte, e o Anjo da Guarda, por detrás, tomando atitudes para ela não cair da ponte, com uma solicitude, um desvelo extraordinário.

Eu olhava e pensava: “Essa imagem insinua, sem afirmar explicitamente, que o Anjo se preocupa muito com que a criança não quebre a perna, mas para que ela não peque e ame de fato a Deus, não estou vendo preocupação. É um pouco securitário. Onde está o zelo do Anjo pela causa de Deus?” Não formulava isto à maneira de censura, mas de perplexidade. Era algo que eu não encontrava. Então, suspendia o meu juízo e dizia: “Não, depois veremos”.

Os Anjos de Fra Angélico

Foi algo em minha vida meu encontro com os Anjos da Idade Média e, sobretudo, com os de Fra Angélico. E refleti: “Aqui há algo com outro pensamento, outra altura, outra classe, diferente daqueles Anjos que eu vira, de uma iconografia decadente. Ora, como Fra Angélico é beato, ele fez tudo direito”.

Mas aí vinha outra perplexidade: os Anjos de Fra Angélico, os de que eu me lembro, estão sempre na bem-aventurança eterna, expressa, é verdade, de um modo perfeitamente delicado, nobre, sobrenatural, de tocar a alma. E foi esse o aspecto dos Anjos que ele procurou e nos apresentou. Eu pus em uma de nossas salas mais nobres quatro cópias de Anjos pintados por ele, e me regozijo em estarem lá. Aquilo corresponde à imagem que eu teria a respeito de um Anjo.

Mas só naquela postura? Não há outras? Não reluzem nos Anjos também outras perfeições que a minha alma procura há tanto tempo? Como são essas perfeições?

Apenas uma ideia me ficou no espírito: Por que Fra Angélico os pinta assim? Ele mesmo viveu num período em que a Idade Média já ia caminhando para seu declínio, e o heroísmo dos guerreiros medievais tinha qualquer resto ainda da ferocidade selvagem. A Europa ia afundar, dentro em breve, no que se chama anarquia feudal, quer dizer, a explosão da revolta dos senhores contra seus reis, dos senhores menores contra os senhores maiores e um mata-mata fenomenal de uns contra os outros, em parte fermento de ferocidade revolucionária que começava a crepitar, e de outro lado uma disposição de alma para a luta que tinha sido levada além do meridiano comum.

Naturalmente se compreende que Fra Angélico não poderia, a uma humanidade assim, apontar Anjos em plena ação de batalha, pois acabaria por incitar aquilo que não era para estimular. Naquele tempo, os Anjos deveriam inspirar mansidão, ser distensivos, convidando à doçura. Assim como o violino de São Francisco Solano tocado para os índios do Peru os tranquilizava, e se compreende que o Santo não lhes ensinasse marchas guerreiras, pois eles já tinham aquele borbulhar em excesso. Entende-se, assim, que Fra Angélico tenha pintado os admirabilíssimos Anjos dele.

Anjos da Renascença

Às vezes olhamos pinturas, esculturas de Anjos da Renascença — e do Barroco, continuador em alguns sentidos da Renascença — e não sabemos se representam cupidos pagãos… Lembro-me do caso de um grande pintor da Renascença, a quem um romano famoso encomendou um São João Batista increpando os fariseus. O artista disse que possuía um quase concluído e poderia entregá-lo em breve, digamos em dez dias. De fato, passado esse prazo, o quadro estava terminado.

Como se explica que um quadro, que leva muito tempo para pintar ­— não devido às pinceladas, mas para ir excogitando cada traço, pois é uma verdadeira composição —, estava pronto em dez dias?

Ele tinha pintado um Baco, o deus indigno do vinho e da bebedeira. Como não encontrou comprador, ele pintou por cima uma pele de camelo para cobrir um pouquinho o Baco e, com a mesma expressão de fisionomia do deus da bebedeira, ele o apresentou como sendo São João Batista.

Compreende-se que Anjos concebidos nessa escola de arte muito facilmente não tenham nada de católico. E são uma deformação do conceito de Anjo.

Então, devemos pôr de lado essas noções, conservar na retina os Anjos de Fra Angélico e perguntar: Se um desses Anjos se zangasse, que expressão de fisionomia tomaria? Colocado em presença do mal, da Revolução, que aspecto teria?

Isso nos poderia dar alguma ideia de como seria um Anjo, caso nós o víssemos. Assim preparamos nosso espírito para a cogitação sobre como deve ser um Anjo.

O corpo impõe limitações ao homem

O que nos diz a Doutrina Católica sobre os Anjos?

O homem tem misérias de toda ordem e, quando vigia muito sobre si, ele as mantém acorrentadas e presas; mas só se livrará delas na ressurreição dos mortos quando, tendo ido para o Céu, estiver com a sua integridade perfeitamente em ordem e os efeitos do pecado original sobre ele tiverem desaparecido completamente, e o homem só se inclinar para o bem. Então não estará mais dividido. Realmente o homem é dividido e, por causa disso, hesita, duvida. Ora é propenso a querer uma coisa, ora a desejar outra; ele precisa, quase, de coisas contrárias para encontrar seu equilíbrio.

Eu estou numa cadeira com dois braços e um encosto. O que isto representa de limitação humana! Preciso ora me apoiar sobre a direita, ora sobre a esquerda, ora nas costas; necessito apoio variado o tempo inteiro. É uma necessidade do corpo que simboliza as hesitações, as limitações e as misérias da alma humana.

Pior. Se o homem apenas hesitasse… Às vezes ele hesita e erra, duvida e peca. E às vezes nem duvida, mas delibera e peca! Até lá chegam as coisas!

Diante dessa situação podemos fazer a comparação com o Anjo. Este, por não estar ligado à matéria, não tem as limitações que a matéria nos impõe. Quanto a carne limita e condiciona o homem: bons e maus humores, nervos, etc.!

Evidentemente, a carne não é má; ela é boa, sendo uma criatura de Deus. “O Verbo Se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14). Está tudo dito! Qualquer crítica que se faça da carne expira na entrada, ao pé do monte desta afirmação. Portanto, estou longe de falar contra a carne, eu a respeito.

“Não desprezes a tua própria carne”

Vem-me à memória o seguinte fato. Havia antigamente na região central de São Paulo muitos salões de engraxate, e fui a um localizado na Rua da Quitanda. Enquanto o rapaz engraxava meus sapatos, eu estava distraído, pensando em outras coisas. Não sei se eu não punha o pé no lugar adequado, mas em certo momento notei as duas mãozonas do engraxate que pegavam o meu pé e o colocavam sobre sua perna, para ele engraxar o sapato ali, sob seu controle. Quando percebi que meu pé pousava sobre a perna do engraxate, tive um sobressalto e pensei: “Não se faz isso com a carne humana! Trata-se de um simples engraxate, mas é um homem! E o respeito à natureza humana deve levar-me a tirar o pé de cima da perna dele”.

Olhei para o engraxate e percebi que seria um duelo, porque ele queria terminar o serviço e não estava pensando em sua perna, mas nos sapatos que precisava engraxar. Era uma luta que eu não venceria, pois ele agarrava meu pé. Então refleti: “Bem, é por conta dele; se o engraxate me obriga, ele está me desrespeitando e não sou eu que estou pisando nele. Ele quer ser pisado”.

Mas fiquei com esta pergunta no espírito: Qual é o princípio em virtude do qual essa minha reação foi reta? Algum tempo depois me chegou às mãos, por circunstâncias fortuitas, uma citação da Escritura: “Não desprezes a tua própria carne” (Is 58,7). Eu disse: “Olha lá! Está aí justificada minha reação no caso do engraxate!”

Eu não poderia desprezar a carne humana; não era minha, mas carne da qual também eu sou feito. Não posso desprezar a minha própria carne. Por isso não tenho o direito de pisar noutro homem, de tal maneira nós devemos respeito à carne.

A graça prepara a alma para ser o reflexo de Deus

Além da carne, há um outro fator que condiciona o espírito humano: é a graça. Quer dizer, é uma participação criada na vida divina que dá a cada um de nós lampejos, pensamentos, reflexões, volições que Deus sopra em nossa alma e por onde Ele, com muita delicadeza, prepara a alma humana para ser o reflexo d’Ele mesmo.

Assim, a graça respeita a nossa fragilidade, as nossas limitações, ama essa natureza humana composta de alma e corpo que seria a natureza humana de Nosso Senhor e a de Nossa Senhora, Rainha do Céu e da Terra. Deus, por meio da graça, de um lado, e do corpo, de outro lado, faz com que a alma, se ela se deixa conduzir, se eleve a considerações altas, pense coisas nobres, sua vontade tome força; o homem pode tornar-se um santo, ainda que muito pouco inteligente.

Houve um santo famoso por sua carência de inteligência, São José de Cupertino, que viveu na Itália. Ele era muito pouco inteligente, mas dava conselhos tão acertados que havia peregrinação para o local onde ele morava. E milagres ele praticava a jorro contínuo. É a graça superando ou compensando o que a carne não dava e fazendo dele esta maravilha de Deus: um homem de grandes horizontes, mas burro!

Era preciso que isto existisse na ordem do criado, e assim compreendêssemos bem o que é a limitação, a fragilidade e o esplendor do homem.

Alguém dirá: “Limitação, fragilidade, Dr. Plinio, eu vejo; esplendor não estou vendo…”

Encarnando-Se, Deus quis honrar toda a Criação, e por isso Ele tomou a condição daquele tipo de seres que reúne as duas pontas da Criação. O homem, enquanto ser espiritual, toca no Anjo, e enquanto ser material tange no animal, na planta e na pedra. Ele é um resumo de tudo quanto Deus fez.

Quem é capaz de ver o mar sem se enlevar especialmente com aquela fímbria onde ele parece tocar no céu? Ora, este é o homem! É um horizonte composto.

Não deixa de ser verdade que todas as coisas brilham por causa do Sol, e se o homem é o conjunto, o que há neste de mais nobre, de mais luminoso, de mais belo é a alma humana, elemento espiritual que nos assemelha aos Anjos. Entretanto, estes são de tal maneira que cada Anjo é, por natureza, distinto de outro. Puros espíritos e tão desiguais entre si que são como espécies ou gêneros diferentes.

Jornal falado dos Anjos superiores aos inferiores

Os Anjos estão dispostos perpendicularmente em hierarquia. Cada superior vê mais, quer com mais força, ama com mais ardor, combate com mais eficácia, seu louvor tem mais ressonância, sua presença mais calor, sua missão mais glória do que o inferior.

O gráfico verdadeiro dos Anjos não seria uma pirâmide que encosta sua base noutra pirâmide e assim por diante. A perspectiva seria um fio de linha luminoso de puros espíritos que chegariam até o lugar aonde ninguém chega, nem eles mesmos: o trono de Deus.

E no ápice — mas tão mais no ápice que nem sei o que dizer! — está Nossa Senhora. Nosso Senhor Jesus Cristo é a segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnada. Sua natureza humana está ligada à divina pela união hipostática. Nossa Senhora é mera criatura. Ela está num píncaro em relação aos Anjos, os quais cantam enlevados sem poder entender inteiramente.

Mas eles, ao longo deste fio esplendoroso, têm secções. Uma é a dos Serafins, outra dos Querubins, depois dos Tronos, das Dominações, das Potestades, das Virtudes, dos Principados, dos Arcanjos e dos Anjos. Estes são denominadores comuns entre os quais há hierarquia. Cada Anjo vê Deus face a face, entretanto os mais elevados contam aos inferiores o jornal falado sobre o Onipotente que não foi possível eles verem. Então o mais alto diz ao inferior, com amor e solicitude: “Príncipe, meu irmão, vi tal coisa e tal outra”. E o que recebe a notícia conta ao colocado abaixo: “A ti, Príncipe, meu irmão…”, e lá vai a mensagem, a informação celeste. Cada um que fala com o mais baixo conta o que os Anjos mais elevados lhe disseram e o que ele próprio viu de Deus.

De maneira que quando chega à base — quanto acima de nós! —, esta recebe uma caudal de comunicações, de incitamentos, de estímulos, de nobilitações, e canta a glória das hierarquias superiores como modo de cantar a Deus. E todo afeto, todo respeito que desce, sobe à maneira de ação de graças e louvor.

É o eterno convívio entre os Anjos em que, apesar de ver Deus face a face, cada Anjo é razão de uma alegria enorme para outro, e a corte angélica nada nas suas alegrias eternas.

Viver é sentir saudades dos píncaros

Devemos lembrar de passagem que existem vagas nessa corte, e serão almas de criaturas humanas que preencherão esses lugares. E há, por exemplo, a tese indizivelmente simpática de que São José faz parte do coro dos Serafins. Ele está no mais alto, mais alto, mais alto que possa existir, pois é o esposo da Santíssima Virgem!

Assim, esses vagos são preenchidos por gente da plebe da Criação enobrecida pelos planos de Deus, pela Igreja Católica e pela graça. E na Terra, ao longo do tempo, aqueles para isso designados, talvez todos os homens, não se sabe bem como é essa distribuição, estão sendo promovidos para obterem o trono que os espera no Céu, segundo os planos de Deus.

Nunca percebi em concreto nada que me desse a impressão mais especial de um Anjo me ajudando, mas sei que eles auxiliam e lhes agradeço com todas as profundidades que em minha alma haver possa. Tenho a certeza de que os nossos Anjos da Guarda têm por especial preocupação elevar nossas almas para o desejo das coisas celestes. Não é o mero anseio de levar boa vida no Céu, mas um desejo de conhecer as coisas celestes até mesmo independentes da felicidade que o Paraíso concede. De maneira que Santa Teresa — bem espanhola na sua santidade — dizia a Deus: “Ainda que não houvesse o Céu eu Te amaria, e ainda que não houvesse o Inferno eu Te temeria!” É assim que devemos conceber o Paraíso.

Para considerarmos bem as coisas do Céu, precisamos observar as coisas da Terra, criadas por Deus à maneira do Céu. Antes de tudo a Igreja Católica e depois os vários seres materiais.

É mister termos um feitio de alma pelo qual, por um seletivo bem realizado, conhecemos o que devemos conhecer olhando sempre para o que de mais alto aquilo conduz. Este é o movimento de nossa alma para o Céu.

Tenho certeza de que o Anjo da Guarda de cada um nos ajuda especialmente nisso.

Uma alma “angeliforme”, consoante com seu Anjo da Guarda, é aquela que em cada circunstância procura o que há de mais elevado, e vive à procura do mais elevado.

Assim, devemos entender que nossos Anjos da Guarda querem isso de nós, e que só formamos um com eles se toda nossa vida for orientada ao mais alto. Para a alma ser assim é evidentemente necessária a ajuda dos Anjos. E eu agradeço do fundo da alma ao meu Anjo da Guarda, a Nossa Senhora e a Deus Nosso Senhor, de Quem parte todo o bem que a Santíssima Virgem distribui. Viver não é comer, beber e dormir, passear, vegetar. Viver é sentir essas saudades dos píncaros.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/12/1980)

 

1) Do francês: Bela Época. Período entre 1871 e 1914, durante o qual a Europa experimentou profundas transformações culturais, dentro de um clima de alegria e brilho social. Ver Dr. Plinio n. 172, p. 29-31.