A beleza do santíssimo nome de Maria

No dia 12 de setembro a Igreja celebra o Santo Nome de Maria, verdadeiro escrínio de significados e simbolismos, superiormente interpretados por grandes autores ao longo dos séculos. Fazendo eco a esses ensinamentos, Dr. Plinio deita um olhar sobre a beleza de tal Nome e as altíssimas qualidades da Mãe de Deus.

A fim de tecermos algumas considerações sobre o nome de Maria Santíssima, creio que devemos analisar, inicialmente, o significado do nome de uma pessoa .

Pela descrição da Sagrada Escritura (Gn 2, 18-20) sabemos que Deus fez desfilar diante de Adão todos os animais criados, e o primeiro homem, após observar cada um, determinou como eles haviam de ser chamados. Deu-lhes, portanto, um nome que era a definição daquela criatura, uma palavra que correspondia ao sentido mais profundo da natureza de cada animal.

Imagens da perfeição de Deus

Ora, perguntar-se-ia,  qual é o sentido de um animal? Este, por menor que seja, é um ser extremamente rico porque vivo, com um grau de vida pelo qual não só existe, mas se move por si mesmo. Além disso, refletem aspectos da perfeição infinita de Deus.

Tomemos, por exemplo, a águia.  Ave esplêndida, da qual é próprio ostentar suas garras, suas grandes asas, sua força e seu ímpeto . Porém, mais do que esses atributos, ela simboliza uma certa qualidade de Deus, e tudo quanto há de físico na águia, sua anatomia e fisiologia, concorre para expressar essa característica divina.

Adão, conhecendo e interpretando essa expressão, resumiu no nome que pôs à águia o simbolismo daquela perfeição do Criador. Donde, o nome de cada animal representar, na verdade, a sua essência, o sentido mais profundo desse reflexo de um aspecto de Deus.

Exaltando o nome de Maria damos glória a Deus

Se o nome de um animal possui semelhante expressão, é de se admitir que expressão ainda maior entrou na composição do nome da Virgem Santíssima. Nossa Senhora foi chamada Maria, porque concebida sem pecado original; n’Ela tudo se harmonizava no grau superexcelente próprio àquela que estava destinada a ser a Mãe do Verbo de Deus encarnado. Assim, o nome de Maria, de um modo meio misterioso, significa não apenas um, mas o conjunto dos aspectos infinitamente perfeitos de Deus que Ela representa tão especialmente.

Daí decorre essa verdade: quando glorificamos  o nome de Maria, glorificamos esse sentido mais profundo da pessoa d’Ela. E, portanto, glorificamos o próprio Deus de uma forma magnífica, louvando-O na figura de sua Mãe amadíssima.

 

Se o nome de cada animal exprime a perfeição divina que ele reflete, expressão ainda maior terá entrado na composição do santo nome de Maria Nossa Senhora Menina

Nomes perfeitos para Jesus e Maria

Creio ser interessante ressaltar também a relação maravilhosa e insondável entre o nome e a pessoa, no que diz respeito a Nosso Senhor e Nossa Senhora .

Com efeito, de todos os nomes existentes na Terra, haveria um que pudesse ser dado a Nosso Senhor Jesus Cristo igual ao nome Jesus?

Como disse, é uma questão um tanto insondável, mas para nossa ótica Ele só poderia chamar-se Jesus . Imaginemos que Lhe fosse dado um dos nomes consagrados por grandes santos, como Francisco, Antônio, João . . . Não. Jesus é o nome d’Ele!

O mesmo se pode dizer do santíssimo nome de Maria. Procure-se para Nossa Senhora um nome que pudesse substituir o seu e não se achará. Só podia ser Maria.

Tratam-se de nomes, portanto, ligados meio misteriosamente ao sentido profundo da natureza humana de Nosso Senhor Jesus Cristo e de sua Mãe, de tal maneira que constituem um lindo conjunto. Quando, no fim de uma carta, assinamos “in Jesu et Maria” — “em Jesus e Maria”, percebe-se uma tal afinidade entre os dois nomes que se diria a harmonia entre duas maravilhosas notas musicais.

Razão de ser da festa do nome de Maria

Por tudo isso se compreende que a Igreja tenha instituído uma festa litúrgica para o sacratíssimo nome de Jesus, celebrada em janeiro, e outra para o santíssimo nome de Maria, no dia 12 de setembro. Ou seja, uma comemoração particular para o nome, pois este é uma espécie de símbolo e de definição de quem o possui.

Quando o Verbo Encarnado considera em si a união das duas naturezas numa só pessoa, ou quando o Padre Eterno ou o Divino Espírito Santo consideram no Filho essa união, ocorre-Lhes o nome Jesus. E quando contemplam Nossa Senhora, vem-Lhes o nome Maria.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 12/9/1988)

 

Martírio do Beato Inácio de Azevedo e seus companheiros

Com as aventuras além-mar empreendidas pelos portugueses e espanhóis, a Fé Católica expandia-se dia a dia. Entusiasmado pela conquista de novas almas, Inácio de Azevedo empenhou-se na conversão dos indígenas brasileiros.

Baseando no livro “Inácio de Azevedo, o homem e sua época”, de Gonçalves Costa, faremos comentários sobre alguns aspectos puramente sociológicos, e outros hagiográficos, que dizem respeito ao Bem-aventurado Inácio de Azevedo.

Nome tão belo quanto a prataria portuguesa

Ele era membro de uma família muito distinta. E, em todos os lugares onde há certa estratificação social, os nomes das famílias mais tradicionais acabam tomando uma certa sonoridade, em que se tem a impressão de ver a pessoa portadora de um desses nomes, com o estilo da nação a que pertence.

Este é o caso do Bem-aventurado Inácio. Ele se chamava Inácio de Azevedo de Atayde de Abreu e Malafaia. É um nome tradicional, bonito e muito português; sua sonoridade é linda, e dá a impressão da prataria portuguesa, cujos objetos são tendentes ao nobremente bojudo e seguro de si. De fato, esse nome é um pouco de prataria.

Sociedade impregnada pela Igreja

Ingressou na Companhia de Jesus em 1548, sendo anotado a seu respeito no livro da Ordem os seguintes dizeres: “Tem pais vivos. O pai possui benefícios eclesiásticos e suficiência de bens. A mãe é freira num convento do Porto.”

Estamos no século XVI; a Renascença já arrebentou, a Revolução está em curso. Mas como a Igreja ainda estava entranhada na sociedade! É uma família nobre, não de grande nobreza: o pai vivia de rendas eclesiásticas e tinha dado licença à sua esposa para ser freira, e o filho fez-se membro da Companhia de Jesus, a qual, naquele tempo, era a ponta de lança da Contra-Revolução; e tornou-se Bem-aventurado, hoje um dos padroeiros do Brasil.

Como é bonito ver a impregnação da vida eclesiástica na sociedade dessa época.

Desejo de ser herói

O Bem-aventurado Inácio de Azevedo havia sido pajem do Rei D. João III; e, pelo lado materno, descendia de Santa Isabel, Rainha de Portugal.

É bonito haver nele a descendência de Santa Isabel, Rainha de Portugal. Sendo pajem do Rei, ele frequentou o que a corte tinha de melhor.

Em carta ao Padre Geral, Inácio pediu para ser enviado a pontos remotos, pois não queria ficar no mesmo ambiente onde viviam seus pais.

Esse homem foi mandado da corte do Rei de Portugal – naquele tempo marcadamente um potentado, pelo tamanho do império colonial português – para o Brasil, onde havia índios com argolas atravessadas no nariz, canibais, com hálito cheirando a álcool mascado de cana fermentada, uma coisa horrorosa. Podemos imaginar a diferença! Era o que ele queria. Vemos o heroísmo que está presente em seu pedido.

Zelo da Companhia de Jesus pelos novos missionários

Do Brasil chegavam cartas dos Padres Nóbrega e Anchieta, relatando as esperanças e as dificuldades das missões. Dois noviços jesuítas haviam sido repatriados para Portugal, por não se adaptarem às novas terras.

Vê-se como era duro aguentar…

São Francisco de Borja, recém-eleito Geral da Companhia, conhecia as especiais virtudes do Padre Inácio e o indicou para visitador apostólico nas terras do Brasil.

Quão cuidadosa era a Companhia de Jesus. Mesmo sendo poucos os jesuítas no Brasil, mandava-se um visitador apostólico incumbido de visitar a nascente Igreja daquelas terras. Percebemos o rigor da ortodoxia, da disciplina e do método.

Por outro lado, vemos como os santos se encontram nessa história: São Francisco de Borja – Geral da Companhia de Jesus, portanto, o homem que tem nas mãos o leme da Contra-Revolução – escolhe um futuro mártir para vir ao Brasil, o qual, por sua vez, descende da Rainha Santa Isabel. Que beleza!

Ao percorrer o litoral do País, acompanhou a expulsão dos calvinistas do Rio de Janeiro

Em julho de 1566, o colégio jesuíta de Salvador na Bahia, tendo à frente o Padre José de Anchieta e o Padre Manoel da Nóbrega, recebeu festivamente o emissário de São Francisco de Borja, numa visita que se estenderia por dois anos, e ao longo da qual o Bem-aventurado Inácio de Azevedo percorreria as principais vilas nascentes do litoral brasileiro.

Dois anos visitando o Brasil! É preciso dizer que as distâncias enormes se percorriam devagar. Em 1567, acompanhou no Rio de Janeiro a expulsão dos calvinistas.

Que bonita nota deveria ser acrescentada nas narrações dessas nossas Histórias do Brasil, nesses manuaizinhos, quando tratam da expulsão dos franceses: Nesta verdadeira vitória de Cruzada, esteve presente, com seu ardor, um futuro mártir, o Bem-aventurado Inácio de Azevedo. Daria outro conteúdo à narração.

Pelas mãos dos jesuítas o Brasil vai sendo modelado

Em carta que dirigiu de Salvador ao Geral da Companhia, ele pondera: “Também servirão, além dos padres solicitados, os irmãos oficiais, como pedreiros e todos os demais, porque há na terra muita falta deles, e custa muito fazer as coisas. Por esse motivo, em todas as partes onde residem os homens, ouço dizer que há falta de edifícios e abundância de materiais com que se pode construí-los”.

É dessas frases do Português antigo que tem um especial sabor: “há falta de edifícios, mas abundância de material”. Quase dá para ver as pequeninas cidades implorando que as florestas e as pedras sejam utilizadas para serem transformadas em edifícios. É uma coisa épica.

“Muito me consolo nestas partes, e consolar-me-ia nelas toda a minha vida, ainda que importasse ir a Portugal para ajudá-la mais, trazendo gente e oficiais”. Ir a Portugal buscar gente e oficiais, eis o plano do Padre Inácio de Azevedo.

Quer dizer, ele esteve no Brasil e viu que era preciso trazer para cá padres, irmãos coadjutores, pedreiros, carpinteiros, etc.

É muito bonito ver a Igreja Católica, por mãos dos jesuítas, tomando a primeira argamassa da sociedade temporal e modelando-a. Quase como Deus que fez primeiro o boneco de barro, para depois criar o homem.

Assim, para poder fundar aqui uma realidade eclesiástica grande, a Igreja ia modelando a realidade civil na qual ela deveria ser insuflada. Ou seja, cuidando das construções e do progresso temporal, a Igreja empreenderia também o progresso espiritual. O Bem-aventurado Inácio de Azevedo não sabia disso, mas trabalhava com ânimo.

A fim de recrutar novos missionários, o Bem-aventurado Inácio de Azevedo volta a Portugal

Ele então viajou para Portugal a fim de pedir, pessoalmente, que fossem mandados jesuítas para o Brasil. Compreende-se bem sua atitude. Certamente todos tinham medo de vir ao Brasil, tão distante, remoto, vago e ameaçador. Afinal, deixar o aconchegado, bonito e saboroso Portugal, a duras penas conquistado aos árabes, e vir para o Brasil misterioso… Que diferença!

Ademais, sabe-se como o temperamento português é cauto. Ele é capaz de dar passos arriscados, mas depois de saber bem como são as coisas. Por isso eles queriam conversar com a pessoa que vinha do lugar, para depois resolver se viajariam ou não.

Então se entende o passo do Padre Inácio de Azevedo, chegando a Portugal e procurando pessoas a fim de convidá-las para vir ao Brasil.

O encontro com o Rei

De volta a Portugal, em 1568, Padre Inácio dirigiu-se para Almeirim, a fim de encontrar-se com o Rei D. Sebastião. Este ouviu com interesse as notícias que o missionário trazia do Brasil, dando todo o apoio à campanha de recrutamento proposta. Vemos que ele ia direto ao ponto fundamental. Foi falar com o Rei porque de um impulso do monarca dependia o andamento das coisas.

Por sua vez, os reis eram muito desejosos de receberem notícias diretas das pessoas que tinham estado nas terras recém-descobertas, porque não havia os meios de comunicação que existem hoje. O Padre Inácio deu logo início à empresa, através de sermões e visitas, exímio como era na arte de conversar.

Aqui fica consignado um traço curioso. Eu o imagino procurando as pessoas e dizendo:

– Homem, fui eu que estive lá, é assim…

– Mas deveras, estivestes lá? Contai-me…

Padre Inácio fazia a narração e pegava a ganchos os que deveriam vir. Parece-me que tudo isso faz sentir a respiração da antiga História do Brasil, de um modo pitoresco e muito honroso para a Igreja.

Dois personagens tecem a grandeza de Portugal

Seu contemporâneo, Padre Maurício Cerpe, contou a esse respeito: “Tanto que chegou a este reino, foi coisa para dar graças a Deus ver quanta gente se mover para ir ao Brasil. Não falo já de nós da Companhia, porque esses todos queriam ir com ele, mas os de fora. Onde quer que chegasse, logo se moviam de maneira que se alvoroçava a terra e uns se moviam a ir com ele, outros falavam isso como grande novidade muito para ser desejada.”

Quer dizer, ele produzia um alvoroço geral. Vejamos o que custa a grandeza de um povo. Dom Sebastião e o Bem-aventurado Inácio de Azevedo conversam; o futuro de um era morrer no mistério e na tragédia da África, e do outro, morrer na tragédia e no martírio em pleno mar. Conversando, os dois estão tecendo a grandeza de Portugal.

Mas com que homens essa grandeza se tece! Eles tinham conhecimento dos riscos que a vida quotidiana traz. Eram membros de uma nação que estava no seu apogeu.

São Pio V abençoa o apostolado no Brasil

De Portugal seguiu para Roma, a fim de pedir ao Papa São Pio V sua bênção para a empresa do Brasil. O Pontífice quis ouvir uma descrição minuciosa desse novo mundo, onde a Fé cristã começava a iluminar a noite indefinida do paganismo. E, além dos privilégios pontifícios para o Brasil, e mão livre para arregimentar pessoal seleto, o santo Pontífice concedeu indulgência plenária a todos os que acompanhassem, e muitas relíquias, terços, Agnus Dei, e outros objetos devotos.

Não consta que ele tenha ido visitar banqueiros; visitou o Pontífice e o Rei. Não consta que tenha trazido dinheiro; trouxe Agnus Dei, bênçãos, relíquias, e com isso esperava fazer o seu caminho.

Trajetória de preparativos para a viagem

São Francisco de Borja, entrementes, desejava agradecer a Dona Catarina, Rainha de Portugal, a valiosa ajuda que ela concedera ao Colégio Romano, e quis enviar-lhe uma reprodução da célebre imagem de Nossa Senhora, conhecida como pintada por São Lucas, venerada na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma, e incumbiu o Padre Inácio de ser o portador do quadro.

Como Geral da Companhia, São Francisco de Borja morava em Roma. Sabendo que o Bem-aventurado Inácio ia para Portugal, quis que este fosse portador do quadro. A partir de então, a devoção ao quadro de Nossa Senhora, de São Lucas, ficaria intimamente associada ao missionário.

Em julho de 1569, o Padre Inácio partiu para Portugal, passando por Madri. Em Madri, João de Mayorca foi um dos primeiros espanhóis a aderir. E, como era pintor, esse novo missionário aproveitou para fazer várias reproduções do quadro da Virgem, destinando um deles ao Colégio da Bahia.

Quer dizer, esse pintor tirou várias cópias do quadro que era para a Rainha. E uma dessas cópias vai ter importante papel na vida do Bem-aventurado Inácio de Azevedo.

Afonso Fernandes Cançado associou-se à empresa em Portugal, e fez questão de substituir o sobrenome, pois, segundo explicava, para tal tarefa o nome Cançado não lhe caía bem.

Francisco Perez de Godói, canonista formado em Salamanca, também se juntou ao Padre Inácio. Perez de Godói era primo de Santa Teresa de Jesus que, ao tomar conhecimento de sua adesão, ficou muito alegre.

Santa Teresa, a Grande, soube, portanto, que havia um Brasil! E que um primo dela vinha para esse país, tendo ficado muito alegre com isso. Veremos daqui a pouco o papel de Santa Teresa nessa história.

Ferreiros, marceneiros, pedreiros e tecelões também acertavam detalhes para sua viagem ao Brasil. No total, entre religiosos e artesãos, haviam sido reunidos noventa elementos, que foram conduzidos para uma chácara da Companhia no Vale do Rosal a fim de aguardar a partida dos navios para a América. Porém, foram cinco meses de espera.

É preciso recordar que não havia ainda companhia de navegação regular para o Brasil. Isso apareceu apenas no século XIX. De vez em quando havia um navio que vinha para o Brasil: o Rei, a Companhia das Índias mandavam levar alguma coisa; mas era raro. Por isso transcorreram cinco meses de espera.

Durante esse período, é claro que foi feito um vasto simpósio, à la Companhia de Jesus, preparando a ida para o Brasil: direção espiritual, trabalhos, enfim, uma adaptação completa, muito bem feita!

Tendo sido o navio assaltado por calvinistas, o Bem-aventurado Inácio cai no mar agarrado ao quadro de Nossa Senhora

Em maio de 1570, partiram os religiosos na esquadra do Governador Geral, D. Luiz de Vasconcelos. O Bem-aventurado Inácio de Azevedo, com mais 39 companheiros, viajava na nau Santiago. Fizeram escala na Ilha da Madeira, onde o Governador, muito vagaroso, quis prolongar a estadia, enquanto o Comandante da nau Santiago trazia a bordo mercadorias, cuja entrega nas ilhas de Las Palmas era urgente.

Esse homem tem responsabilidade no martírio que se seguiu, porque foi por causa desse atraso que eles cruzaram no caminho com a nau calvinista francesa, que agrediu o navio português e causou as mortes.

Sujeitando-se ao risco de ficar à mercê dos ataques dos piratas, esta nau poderia partir sozinha até Las Palmas, aguardando ali o restante da esquadra. A proposta foi levada a D. Luiz, tendo a ela dado seu assentimento o Padre Inácio de Azevedo.

A nau Santiago seguia avante. Em 15 de julho, já próxima da ilha de Las Palmas, defrontou-se com navio dos terríveis calvinistas franceses.

Efetivamente, esses abalroaram a nau Santiago com forte impacto. Os atacantes atingem a corveia, há tinir de espadas, brados de fidelidade a Cristo e à Igreja, mesclados aos berros e blasfêmias dos hereges; as primeiras gotas de sangue começam a tingir o chão.

O Bem-aventurado Inácio de Azevedo, que se encontrava junto ao mastro central, segurando nas mãos o quadro da Virgem de São Lucas, recebeu na cabeça o primeiro golpe, sendo jogado no mar, agonizante e segurando o quadro que ninguém lhe conseguira tirar das mãos.

Por isso ele é representado, habitualmente, flutuando já meio agonizante nas águas, mas segurando o quadro. É muito digno de nota que, estando agonizante e com a gesticulação de quem naufraga e procura mover os braços para não afundar, já não tendo provavelmente consciência de si, apesar disso ele segurasse o quadro. É claro que a quem de tal maneira segura uma imagem de Maria Santíssima, Nossa Senhora, do Céu, está segurando a alma dele.

O sangue dos mártires foi derramado para que o Brasil viesse a ser católico

O olhar marcado dos tripulantes portugueses continuava a fixar-se nos vultos, e eles foram em seguida jogados também ao mar, entre os quais, sobressaía a figura imóvel de Azevedo. Na Espanha, Santa Teresa de Jesus teve revelação do fato, e afirmou que vira os quarenta mártires, de coroas na cabeça, subindo triunfantes ao Céu.

Vemos que lindo fato da História do Brasil. É evidente que esse sangue foi derramado para que o Brasil fosse católico; era a razão pela qual eles estavam dando as suas vidas.

Somente o irmão João Sanchez não foi morto pelos piratas. Era cozinheiro, e esses resolveram tirar proveito de seus serviços. Foi ele que, retornando depois à Espanha, contou com pormenores todo o ocorrido. Infelizmente, abandonou a Companhia de Jesus. Essa é a criatura humana! Esse homem tinha obrigação de ser bem-aventurado também. Depois se desligou da Companhia de Jesus e voltou ao estado original.

O culto dos quarenta mártires foi autorizado em 1854, pelo Papa Pio IX. Na atual Catedral de Salvador, na Bahia, conserva-se um quadro pintado, que se diz ter sido do Beato Inácio.

Não há nenhuma prova de que o quadro tenha escapado das mãos do Bem-aventurado Inácio de Azevedo e chegado à Bahia.

Na previsão do muito batalhar a favor da ortodoxia, que haveria numa nação a qual, em certo momento da História da Igreja, seria a de maior população católica do mundo, logo no início, para irrigar isso, a Providência dispôs que houvesse quarenta mártires que nem conseguiram chegar até o Brasil – Inácio de Azevedo esteve durante dois anos aqui. O sangue deles não foi vertido no Brasil, o mar dispersou; mas foi derramado com a intenção de servir à causa católica no Brasil.

Esse sangue subiu ao Céu como suave odor, e eles rezam continuamente por nós. No Brasil ficava o Bem-aventurado Anchieta, esperando, rezando e realizando seus feitos para que algum dia o Brasil fosse uma grande nação católica.

Plinio Correa de Oliveira

(Extraído de uma conferência realizada em 3/4/1981)

Nossa Senhora Aparecida

Pode-se dizer que o Brasil é um feudo de Nossa Senhora enquanto concebida sem pecado original, ou seja, da Imaculada Conceição.

O fato dessa imagem ter sido encontrada no Rio Paraíba, no século XVIII, é de grande significado para o Brasil. Naquela época, embora francamente admitido pela maioria dos católicos, o dogma da Imaculada Conceição ainda não estava definido. E fazer uma profissão de Fé nesse augusto privilégio de Nossa Senhora constituía um distintivo de requintada ortodoxia.

Ora, exatamente a partir do aparecimento dessa imagem, mais de um século antes da definição dogmática, foi o Brasil colocado sobre o patrocínio da Imaculada Conceição. Isto indica um chamado especial da Mãe de Deus para nossa Pátria, e é motivo de imenso júbilo para todos os brasileiros devotos da Santíssima Virgem.

(Extraído de conferência de 12/10/1970 )

Nossa Senhora, Rainha do universo

Muito se tem comentado sobre o trecho do Gênesis que descreve a Criação do universo. Nele observamos que, descansando no sétimo dia e apreciando ser boa cada criatura individualmente, Deus considerou que o conjunto era ótimo.  Qual será, entretanto, o papel da Santíssima Virgem nesse primeiro momento da Criação?

Quando a Terra era ainda “inanis et vacua”(1), podemos imaginar, com base nas descrições de astrônomos a respeito das estrelas, os estágios pelos quais teria ela passado antes de tomar seu aspecto atual.

Por exemplo, na etapa em que o globo terrestre não fosse senão uma matéria incandescente com coloridos diversos, estes constituiriam uma pirotecnia celeste, um divino fogo de artifício, o qual só Deus podia contemplar. Seria, de certa forma, um jato de fogo saído das mãos d’Ele para formar a Terra, com todo o “verum, o bonum, o pluchrum”.

Tem-se a impressão de que a Terra, a natureza, ainda em seus primórdios, tinha uma pujança extraordinária. Com o passar do tempo tudo ia se concatenando, se ordenando, e belezas incontáveis se estabelecendo.

Nessas eras primitivas não houve um aspecto dessas transformações que não significasse certa profecia a respeito do Divino Salvador e de Maria Santíssima.

Tudo isso são meras hipóteses, e seria bonito que um astrônomo ou geólogo, repleto de espírito de Fé, estudasse as fases pelas quais passou a Terra, relacionando os aspectos que deveriam simbolizar movimentos de alma de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Virgem Maria.

A Terra em formação

Consideremos que, após a Terra ter passado por fases assustadoras e aparentemente desordenadas por sua violência, Deus a foi temperando, fez com que ela se resfriasse e fosse mudando de aspecto.

Já não havia aquelas imensas labaredas, aqueles ruídos estrondosos, aquelas crateras que se abriam. Dir-se-ia que a Terra perdera a grandeza pré-apocalíptica daqueles primeiros tempos. Talvez um anjo, diante daquela transformação, tenha perguntado: “Senhor, por que deixais que isto fique assim? O que aconteceu para que as coisas revelassem menos a vossa magnificência?” E Deus simplesmente disse: “Vereis!”

E, ao verem tudo em ordem, os anjos compreenderam ser essa ordem mais bela do que a magnificência de uma só coisa; o equilíbrio de uma situação global, abrangendo todas as pulcritudes anteriores ordenadas, tinha uma beleza superior, que não tocava tanto os sentidos, porém era mais apreciável pela mente, por isso mais digna dos anjos.

Possivelmente, algum anjo ou todos eles tivessem cantado: “Graças Vos damos, Senhor, porque nós compreendemos agora o dom da inteligência que nos destes para inteligir aquilo que ficou menos chamejante e tonitruante, porém mais compreensível e belo do que tudo quanto Vós fizestes. A ordem global é mais bela do que a dos mais belos elementos, quando não cabem dentro dela”.

E se isso acontecesse, Deus sorriria e responderia: “Vós não vistes nada!”

Então, estando a Terra em ordem, Ele começa a criar vegetais, com exuberância colossal, árvores gigantes etc. Depois, ordena tudo: bosques, flores delicadas, frutos. Estabelecida a ordem entre os vegetais, Deus cria os animais enormes — talvez nessa etapa surgiram os dinossauros. Depois disso começa a pôr em ordem todos eles: os animais vão ficando menos terríveis, tudo vai se ordenando.

Um novo Adão, uma nova Eva…

Suponhamos que um profeta tivesse a revelação de quem seria Carlos Magno, e muito tempo antes mandasse preparar sua coroa, seu castelo, uma esplêndida sala com um imponente trono. Certo dia nascia Carlos Magno.

Foi o que se deu com a Criação: quando a sala do trono estava pronta para receber o rei, Deus cria Adão, para reinar; de certa forma, tudo tinha sido criado em função dele, mas faltava ainda um aspecto do Criador a ser representado, e este não cabia a Adão; então, Deus cria da costela do homem a primeira mulher, Eva.

Estavam criados o homem dos homens e a mulher das mulheres, ambos com dons extraordinários, capacidades incomparáveis. Quem seria capaz de imaginar como seria o homem antes do pecado?

Vemos assim a vastidão de horizontes de Deus no planejar, e a amplitude de poderes ao executar, tudo feito na plenitude da perfeição.

Porém, o primeiro casal deveria ser como a base de uma enorme montanha, que teria no ápice um novo Adão e uma nova Eva. No cimo deste monte estava uma Virgem, que deveria ser a Mãe perfeita e seria Esposa do próprio Deus, na qual Ele geraria o Homem-Deus. Este deveria ser o instante mais belo, mais nobre e mais elevado da Criação.

Quão grandioso não terá sido o momento em que Deus fez do barro um boneco e, soprando em suas narinas, lhe deu vida, criando assim o homem! Muitíssimo mais grandioso foi o instante no qual o Altíssimo tomou uma Virgem, pousou sobre Ela sua virtude, fazendo vir ao mundo o Homem-Deus.

Tudo isso Nossa Senhora conheceu. Porque Maria Santíssima compreendia o que se passava dentro d’Ela, admirava e amava. E sua correspondência à graça dava mais glória a Deus do que tudo o que houve no passado e haverá no futuro. O que dizer diante de tal grandeza?

Pois esse ato mais nobre do que a Criação do universo — a Encarnação do Verbo — se passou n’Ela, com a colaboração d’Ela. Sua alma santíssima e seu Sapiencial e Imaculado Coração tiveram alguma proporção com a Encarnação, enquanto que o Céu não tem proporção. “Hic tacet omnis língua” — Aqui se cala toda língua.

Maria Santíssima e o “Consummatum est”

Um estudo aprofundado desta temática nos ajudaria a compreender certas coisas inconcebíveis pelo espírito humano, como, por exemplo, o que se deu na alma de Nossa Senhora e na humanidade santíssima de Jesus no momento do “Consummatum est”.

Pois a morte é algo sumamente doloroso: o corpo fica em estado cadavérico — creio que a alma tenha consciência disso. Essa consciência deve coincidir com um pináculo de desdita, de infelicidade e de mal-estar no corpo, até a hora em que a alma o deixa e a pessoa morre.

Para se ter ideia do significado dessa separação, imaginemos que arrancassem de nossos dedos as primeiras falanges, depois as segundas e por fim as terceiras. Que dor sentiríamos? No entanto, esta dor seria muito menor do que a causada pela morte!

“Stabat Mater Dolorosa”

Somados aos sofrimentos próprios da morte, teve Nosso Senhor que padecer toda espécie de torturas e atrocidades. E, por não ter as fraquezas do subconsciente, Ele sentiu até a profundidade última de sua alma essa dissociação e ruptura.

Nossa Senhora, por sua vez, conhecendo-O como ninguém e possuindo uma sabedoria superior à de qualquer outra criatura, via todas aquelas dores, o sangue correndo, a respiração arfando, a vida bruxuleando, e percebia inteiramente o tamanho daquele sofrimento.

E em meio a tantas dores Ela nem sequer se sentou, e nem desmaiou. Mas, para o esmagamento do demônio, a redenção do gênero humano e pela glória de Deus, desejou que aquilo se desse, apesar dos sofrimentos causados a seu Divino Filho e a Ela. Que dores Maria Santíssima terá suportado! Que extraordinária força de vontade Ela possuía, para passar por cima dos sentimentos mais pungentes e fazer aquilo que a Fé e a razão indicavam! Isto tudo deveria formar um tumultuar harmônico na alma d’Ela, à semelhança do som de um órgão com todos seus registros ativados. Os fenômenos mais extraordinários da pré-história da Terra dão apenas uma ideia do que foi a força de alma de Nossa Senhora naquele momento.

Quando as águas saíam das entranhas da Terra — assim imagino, pois não estou dando uma aula de Ciência, mas fazendo uma digressão —, precipitando-se e esguichando de todos os lados nos mares, deveria haver um barulho, um burburinho do elemento líquido, fenomenal e cheio de grandeza. Era uma imagem pálida da resolução que brotava do fundo do ser de Maria, ao dizer: “Ele precisa morrer, porque a glória de Deus pede! Se é a vontade do Pai que meu Filho morra, Eu O ofereço!”

Dor pela Morte; indizível alegria pela Ressurreição

Mas há ainda outro momento de incomensurável grandeza: a Ressurreição de Nosso Senhor. O corpo d’Ele trancado, uma pedra, dois guardas romanos boçais, colocados ali com lanças, couraças, para enfrentar qualquer pessoa; uma noite e um silêncio profundos dentro da sepultura, uma escuridão tão completa como igual só havia num outro lugar do mundo: a alma de Maria.

O Filho d’Ela estava morto! Não definitivamente morto, a Santíssima Virgem bem o sabia, mas Ela, que tinha assistido à Encarnação do Verbo, agora presenciava o estraçalhamento! Podemos imaginar o que Nossa Senhora sentiu na hora da Morte de seu Divino Filho. A dor daquele pecado cometido e daquela separação consumada! E o que nunca deveria estar dissociado, ali estava separado, no escuro, abandonado pelos homens.

Nossa Senhora, entretanto, quando chegou a hora decretada pela sabedoria e bondade de Deus, viu uma luz sobrenatural entrando naquelas profundidades do sepulcro, os anjos afluindo às miríades e, de repente, o Corpo de Jesus estremecer…

Não é verdade que isto se parece com a Criação? E que entre o cadáver d’Ele e o corpo de Adão, feito para receber a alma, há analogias celestes?

Podemos imaginar o frêmito, o sobressalto de Maria Santíssima. Creio que nesse momento Ela se tenha levantado alguns passos acima do chão, ficado estática e talvez brilhado com uma luz extraordinária. É perfeitamente possível que tenha cantado o Magnificat!

Nossa Senhora, Rainha do universo

Este é o verdadeiro método para se ter ideia de quem é Maria Santíssima. Ela está no Céu, em corpo e alma, se digna conhecer o que estamos dizendo neste momento e de estar agindo, por meio da graça, na alma de cada um de nós, para inteligir, querer e sentir o que deve.

E Ela conhece incomparavelmente melhor o que está se passando, por exemplo, em mim ou em qualquer um dos presentes neste auditório, do que nos conhecemos uns aos outros, ou até mesmo o que ocorre em cada um.

Através do método de se fazer uma relação entre as coisas estupendas do universo e a Virgem Maria, pode-se, por exemplo, ao ver um rio que calmamente muda de direção, pensar em Nossa Senhora, Rainha do universo, a qual dá o rumo do rio da História e, de vez em quando, de modo sereno altera sua direção para sair uma maravilha maior.

Quando observamos uma cascata, cujas águas se precipitam e assim se purificam, reportamo-nos a Maria Santíssima intervindo nos acontecimentos e fazendo com que o curso da História seja purificado.

Falei do gáudio que teríamos ao ver as combustões do céu; podemos também imaginar nossa alegria se contemplássemos as chamas do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria. Enfim, contemplando as criaturas, podemos fazer mil analogias com Nossa Senhora.

Maria e as vitórias da Santa Igreja ao longo da História

E considerar uma operação de Deus sobre as coisas, comparando com a ação da alma d’Ela, nas grandes ocasiões da História.

São Gregório VII excomungando o Imperador Henrique IV. Um a um os liames feudais no Sacro Império Romano Alemão iam se desfazendo. Ninguém empurra o Imperador, aos pontapés, para fora de seu palácio, mas sucede algo muito pior: o palácio se esvazia, de maneira que não havia mais criados para servi-lo. Todo o mundo o abandonou, no meio da sua pompa inútil. E o seu império cessou pela excomunhão do Vigário de Cristo!

Que é o poder das armas? Dois mil, cinco mil, dez mil — os exércitos naquele tempo eram pequenos — cinquenta mil homens em armas… Um ancião — colocado no castelo de Canossa, pertencente à Condessa Matilde, da Toscana — excomunga e declara dissolvidos os vínculos feudais; um império inteiro para de funcionar, porque esse ancião é sucessor daquele a quem foi dito: “Tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra Ela.”

Então o Imperador consegue convencer alguns para o seguirem, porque explica que vai pedir perdão e precisa de ajuda para poder atravessar os Alpes. Coisa dificílima! Hoje se sobrevoam os Alpes… Ele sai num trenó, durante o inverno, talvez acompanhado de três ou quatro servidores, que têm horror do homem a quem servem, e o conduzem quase como a um leproso com o qual ninguém quer se contagiar. Sobem e descem montes, passam por precipícios, correm riscos de vida e Henrique IV não tem certeza de sua própria contrição; sabe, entretanto, que se ele morrer sem contrição, mas por mera atrição, pode ir para o inferno! E pede Àquela a quem ele ofendeu que o proteja e perdoe, de maneira a poder chegar à fonte de todo o perdão: o ancião venerável a quem ele insultou.

Por fim, Henrique IV chega a Canossa, mas encontra fechadas as portas do castelo. Oh! A grandeza dessas portas fechadas! Oh! A magnificência desta decisão de São Gregório VII: “Não perdoo, não te restaurarei no império! Absolverei a tua pobre alma, quiçá para uma vida de penitente. O diadema imperial, não o terás mais na fronte. Esta fronte pecou e sobre ela a glória máxima da ordem temporal não pousará!”

Durante quatro dias e quatro noites, ele fica ajoelhado na neve e pedindo! Afinal, as portas se abrem e se faz a reconciliação. Entoam-se hinos, há grande alegria e se restabelece a ordem normal das coisas: a vitória da Religião sobre a ordem temporal, a vitória do sobrenatural sobre o natural, a vitória do espírito sobre a matéria. Quantas vitórias mil vezes mais gloriosas do que a de um país sobre outro! Vitórias ordenativas de todo o conjunto humano.

À medida que eu falava, vi os corações de vários de meus ouvintes se encherem de entusiasmo, e Nossa Senhora gostou disso. Como se terá entusiasmado o Coração d’Ela, quando se passou esse fato?

Como seriam as labaredas do Coração dulcíssimo de Nossa Senhora, quando Godofredo de Bouillon e os dele saltaram por cima das muralhas de Jerusalém e entraram?

E vendo os missionários chegando num país onde não há Fé e que começam a pregar a Religião católica e ela começa a nascer?

Anchieta e Nóbrega vêm ao Brasil e iniciam a pregação — estou falando do Brasil, mas poderia apresentar outros exemplos —; o País começa a nascer e a se mover. Mais bela do que a natureza mineral, a vegetal, a animal e do que o próprio homem, era a graça que vinha pelas mãos dos missionários e conduzia as pessoas para a vida sobrenatural.

Maria Santíssima percebeu que isto era mais pulcro do que tudo quanto se tinha passado anteriormente. Anchieta, ameaçado pelos índios, canta as glórias d’Ela, escrevendo em latim um poema e decorando-o. O mar não ousa tocar nas areias sobre as quais o texto estava redigido. Nossa Senhora sorri, vendo o filho bem-amado do qual nasceria a evangelização deste País.

Que labareda, talvez áurea ou azulada, sairia do Coração de Maria!

E gotas de graças caindo! Já não é o dramático, o espetacular e o apocalíptico, mas outra forma de manifestação: o gracioso, o materno, o afável, o leitoso de certas pedras, o suave de alguns cristais, a brisa de auroras que havia no Coração d’Ela. Todas as modalidades possíveis de brisas que sopraram na Terra não têm o encanto de um só sorriso de Maria!

Quantos sorrisos Nossa Senhora dirigiu a Anchieta, que evangelizava este País!

A maternalidade de Maria Santíssima! O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. O Homem-Deus é Filho d’Ela, e Nossa Senhora nos ama por causa disso. Quando sofremos, Ela tem pena de nós. Quanto isto é magnífico! Sobretudo quando pecamos, Ela tem compaixão de nós. E é mais magnífico ainda.

Porque, quando sofremos, o sofrimento não nos torna inimigos de Maria Santíssima. Até, pelo contrário, quebra em nossa alma certa autossuficiência e tendência ao orgulho. Mas, quando pecamos, nós rompemos com Ela de um modo criminoso.

Nossa Senhora previu tudo isso quando estava na Terra e teve dor, porque Ela pensou: “Essa alma, maravilha criada por Deus, que meu Filho resgatou com aquelas gotas de Sangue incomparáveis que Eu vi florescerem n’Ele aos borbotões, agora vai se perder?” De modo semelhante ao gemido de Nosso Senhor: “Quae utilitas in sanguine meo? – Que utilidade tem o meu Sangue?”, Maria Santíssima diz: “Qual a utilidade do Sangue de meu Filho?”

Então Nossa Senhora pede a Jesus, pelo amor d’Ele ao pecador — o Redentor ama aquele que não O ama mais —, que lhe consiga a graça de atender ao que esta diz em sua alma: “Meu filho, converta-se! Meu filho, abra os olhos! Meu filho, tenha juízo! Meu filho, volte a ser meu!” E às vezes com insistências tão prementes que se diria que a alma está literalmente sitiada. Quantas doçuras cabem nisso! Quanto saber fazer! Quanta misericórdia e compreensão! Quanto esgueirar-se pelas anfractuosidades de uma alma, para se adaptar a tudo!

A participação d’Ela na Igreja Militante e na Igreja Penitente

Todas essas operações o Sapiencial e Imaculado Coração de Maria está fazendo no Céu e na Terra. Porque Nossa Senhora conhece, mais do que qualquer bem-aventurado, o que se passa em Deus, e Ela reage no suprassumo da elevação e da perfeição. E preside, dirige, rege tudo quanto sucede no Céu! Sabe o que se passa em todas as criaturas da Terra. Conhece a vida da Igreja Militante e, com esta intensidade, participa de tudo o que acontece.

Mais ainda, Ela conhece a Igreja Penitente e vê todas as dores no Purgatório.

Em tudo isto Nossa Senhora está continuamente presente, à maneira de uma brisa, um vulcão, um céu, um sol, um diamante, uma águia, uma pomba, um cordeiro, um leão. Ela é tudo! Muito mais do que tudo, Ela é a Virgem Maria, Mãe de Deus!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/11/1979)

1) Informe e vazia. Cf. Gen 1,2.

A Igreja, mãe da formosura

Perante um mundo penetrado pela feiura, Dr. Plinio comenta o papel da beleza e da formosura na vida do homem e mostra como a Igreja elevou a arte ao seu píncaro de esplendor.

 

Há um “ídolo” que começa a ser adorado na atual era histórica. Trata-se da funcionalidade, segundo a qual é necessário que todas as coisas existam em razão de sua função prática.

O que quer dizer funcionalidade? É a acomodação de todas as formas de existência, costumes e mentalidades à preocupação dominante de que tudo deve ser fácil, simples, direto, sem gastos desnecessários nem esforços para manter a formosura na vida.

Opta-se assim pelo hediondo sob o pretexto da funcionalidade, como se as coisas não pudessem ser ao mesmo tempo belas e funcionais. Então, a era da funcionalidade eliminará a era da formosura.

Forma-se assim um mundo fabricado pelo homem com a intenção de fazer abstração do seguinte princípio: Deus quer que as coisas sejam funcionais e formosas; se não o são, a alma humana fica exilada.

Ora, a alma humana foi feita para a beleza que leva a Deus, e não para um mundo sem formosura, de inexorável feiura, inexpressivo, onde qualquer coisa poderia servir para qualquer destino, qualquer povo e em qualquer lugar. E quando o mundo em que tudo o que existe é tão sem expressão, esse mundo é um horrível nada, um cárcere para o espírito humano.

As criaturas são imagens e semelhança de Deus Nosso Senhor. Tudo que há de belo na vida é um reflexo do Criador. Todas as instituições, todas as almas segundo Deus são geradoras de formosura. Em sentido oposto, as contrárias a Ele são, a prazo maior ou menor, causadoras de hediondez.

Um exemplo característico é a Santa Igreja de Deus, na qual existe ordem e formosura. Ela é o esplendor da ordem. Pelo contrário, a desordem é feia, hedionda, porque resulta das deformações da alma pelo pecado.

A Igreja Católica, que é uma obra-prima de Deus, imediatamente depois de nascer começou a se adornar, se embelezar com a arte. Vêem-se formosas manifestações de arte nos primeiríssimos templos, inclusive nas catacumbas. Nestas, os católicos – entre o drama da manhã quando amigos foram devorados pelas feras, e o do dia seguinte em que outros amigos ou eles mesmos serão trucidados – pensavam em termos de religião. E por isso colocavam obras de arte, muitas de bom gosto, nas mesmas catacumbas tão obscuras e feias.

Cada etapa da vida da Esposa de Cristo é marcada por um estilo artístico próprio, o qual reflete à sua maneira o espírito da Igreja, que é o Espírito Santo. Houve grandes Papas, bispos, fundadores de ordens religiosas, imperadores e reis, nobres, aristocratas, e até pessoas de condição humilde, que modelaram coisas formosíssimas sob o influxo do espírito católico.

Nota-se isso, por exemplo, no Brasil e em quase toda a América do Sul. O Aleijadinho, grande artista católico brasileiro, era um homem do povo que nunca fizera estudos de caráter escolar, mas no terreno da escultura e da pintura produziu obras mestras, hoje notáveis no mundo inteiro.

Ele só tratou de temas religiosos; sua alma cheia de Fé lhe inspirou o sentido da formosura.

Tenho visto um álbum com fotografias de quadros feitos por pintores populares bolivianos, quase todos versando sobre assuntos religiosos. Que piedade, recolhimento, elevação de alma, arte, bom gosto!

De onde vem isto?

Não só de sua natureza, porque enquanto não eram católicos não haviam produzido tais coisas. O influxo da Religião Católica sobre suas aptidões, suas capacidades naturais, inspirou a tendência, a possibilidade de fazer aquelas obras de arte. Nota-se assim que por toda parte a Igreja, por uma propriedade que lhe é intrínseca, gera a arte e a formosura. 

 

(Extraído de conferência de 14/1/1974)

 

Esplendor áureo

Transportemo-nos com a imaginação até as primeiras eras da humanidade. Indivíduos e comunidades vagueiam pela Terra, ainda despoluída, embelezada por uma natureza virginal, pouco tisnada e desfigurada pelos nossos pecados. Pensemos numa tribo em cujo seio já se nota, em gérmen, a grandeza e a bondade de um povo que deve surgir. Essa tribo cruza as vastidões dos territórios livres, conduzindo seus rebanhos, suas tendas, caminha enfrentando as intempéries e outros perigos, recolhendo‑se em grutas, galgando e descendo montanhas, rezando e cantando.

De súbito, depara-se com novo panorama. Digamos, o mar, estendendo-se à frente daqueles homens numa paisagem maravilhosa. Eles se detêm e aguardam a chegada do chefe, do patriarca. Este se aproxima: ancião robusto, barba e cabelos brancos, trajando túnica igualmente branca. Enquanto ele considera aquele cenário, seus seguidores procuram o reflexo do mar no olhar do patriarca… Até os animais cessam de mugir e de se agitar. Faz-se profundo silêncio. O sol está se pondo sobre o oceano e cobrindo as águas de jóias e cintilações.

A vista daquele espetáculo cumula de encanto quase paradisíaco a alma de todos.

O patriarca se levanta com dignidade, majestoso, imponente, sublime, e sem mais comentários entoa um improvisado hino de louvor a Deus. Cântico que os vários segmentos de sua tribo vão parafraseando e desdobrando em melodias e poesias mais simples, enquanto montam o acampamento e se dispõem ao repouso noturno.

No dia seguinte, eles sairão da poesia e do sono para ingressar novamente na luta e no trabalho cotidianos, sob a venerável orientação do seu líder. Como é bela a condição de patriarca!

Entretanto, essa beleza, tão alta e grandiosa, é insignificante se comparada com o esplendor do patriarcado dos patriarcados: o papado.

Pois a instituição pontifícia se desenvolve inteira numa atmosfera áurea, ela vive numa esfera do dourado. De dentro desse áureo, ele impulsiona e se debruça sobre todas as coisas, sejam as mais complexas, sejam as mais triviais e terrenas, sem deixar de ser ele, sem receio de se deteriorar, de quebrar-se ou de perder a sua própria lógica. Age e existe com uma “aisance” que lhe vem, não de uma virtude acima do comum, mas de um elevadíssimo grau de sobrenatural. É de uma perfeição e excelência que só têm paralelo com o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, seu Fundador. O Papa no seu dia-a-dia é o Divino Mestre andando na banalidade da Judeia daquele tempo, detendo-se junto a esse mendigo, àquele cego ou àquele leproso, conversando com um servo, dirigindo a palavra ao homem mais insignificante, afagando e ensinando às criancinhas…

Imaginamos um patriarca. Imaginemos um Papa santo no Vaticano.

A noite vai cedendo lugar às incipientes luzes da aurora. Toda a Roma dorme. Os 400 sinos das suas igrejas ainda não começaram a tocar. O Sumo Pontífice desperta, consulta o relógio. Dentro em pouco o sol estará raiando e a cidade emergirá do repouso. Ele sabe que a dois passos de seus aposentos se acha a capela com o Santíssimo Sacramento. Nosso Senhor, que o constituiu seu pastor e representante, o espera para uma primeira adoração.

O Papa se apronta e se dirige à capela, onde se preparará para o augusto sacrifício da Missa. Enquanto caminha em direção ao Senhor, renascem na sua alma as preocupações da véspera, os pesados fardos do governo da Igreja, assim como animam seu espírito a imagem de muitas almas boas que a Providência tem suscitado pelo mundo, nas quais se depositam as esperanças e a glória da Esposa Mística de Cristo.

Antes de entrar no oratório, ele pára e deita a vista através de uma das grandes janelas do Vaticano. À frente, os primeiros fulgores de sol osculam a imponente cúpula da Basílica de São Pedro. Na praça vazia, ergue-se o famoso obelisco que sempre nos faz lembrar do lema dos cartuxos: “a cruz está de pé, enquanto o orbe todo gira”.

Das duas grandes fontes que ladeiam o obelisco, eleva-se o ruído harmonioso das águas a jorrarem e caírem nas suas bacias. A luz do dia começa a se refletir mais intensamente na cúpula. E o Pontífice pensa: “A Santa Igreja Católica Apostólica Romana! O Papado!” E o seu Anjo da Guarda lhe sopra na alma: “Tu es Petrus!”

De um modo particularmente vivo e tocante, ele se sente identificado com seu papel, com sua missão.

O Vigário de Cristo compreende que suas meditações atingiram o auge, e ele deve  se entregar aos seus afazeres. O mundo inteiro o espera. Porém, não começará lendo relatórios nem assinando decretos ou tomando conhecimento dos jornais. Ele iniciará seu dia rezando, pedindo por todos os homens, pela Igreja universal.

Entra na capela devagar, caminha até seu genuflexório e se ajoelha. A lamparina do Santíssimo corusca e tremeluz, lançando fulgores avermelhados sobre o tabernáculo. E de dentro do sacrário, o amor do Homem‑Deus pelo pontífice Santo se irradia plenamente. E ele começa a rezar, rezar, rezar…

Como essa situação é mais esplendorosa do que a do patriarca pastor, no começo da humanidade, muito embora algo do patriarcado primeiro esteja contido nesse patriarcado espiritual e supremo. O Papado: como é belo, como é maravilhoso!

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 91 (Outubro de 2005)

 

Súplica pela intervenção do Anjo da Guarda

Meu Santo Anjo da Guarda, sei que dentro dos planos divinos deveis, pelos desígnios de Nossa Senhora, ter especial papel no tocante à realização de minha missão. Também vós, Anjos, tendes uma missão altíssima no referente à luta contra a Revolução.

Em nome do vínculo que essas circunstâncias estabelecem honrosamente de mim para convosco, eu vos peço: obtende da Rainha do Céu que vossa ação tome toda a intensidade proporcionada com minhas debilidades, infidelidades, mas também com meu desejo de servir inteiramente a Causa da Santa Igreja Católica e da Civilização Cristã.

Suplico-vos, portanto: intervinde o quanto antes em mim de maneira que, liberto da ação do demônio, a qual hoje atingiu um auge, eu possa vos pertencer inteiramente e ser vosso guerreiro na luta que se aproxima.

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 4/12/1980)
Revista Dr Plinio 259 (Outubro de 2019)

As escadas e a dignidade humana

Com aquela penetração de olhar que lhe era característica, Dr. Plinio costumava contemplar tanto as coisas elevadas quanto as corriqueiras. Quem teria pensado em analisar o que as escadas significam ou ocultam, como se as sobe com elegância ou deselegância, e como elas devem respeitar a psicologia do homem? Acompanhemos a primeira parte de um saboroso comentário.

 

O  homem contemporâneo, ao contrário do antigo, quase não tem ideia do verdadeiro significado de uma escada. Esta pode ser assim definida: uma série de degraus que nos permitem passar de um andar para outro, por via não mecânica. Através do elevador(1) tal acesso é feito de modo mecanizado, enquanto o realizamos de forma natural pela escada, como pitorescamente se diz em latim: “calcantibus pedibus” — calcando os pés.

Duas concepções de escadas

Por não se compreender seu autêntico sentido, na arquitetura moderna as escadas raramente são postas em relevo. A tendência é até ocultá-las o quanto possível, eliminando seu papel ornamental.

Consideremos uma bela escadaria, como a existente na sede principal do nosso movimento(2). Trata-se do prédio residencial mais antigo do Bairro de Higienópolis. O arquiteto, segundo a concepção artística de outrora, procurou dar ao giro da escada uma certa nobreza, e a revestiu de bonitos lambris, mais graciosos que a colunata do corrimão o qual possui pelo menos este aspecto interessante: faz parte da coleção dos objetos que, com suas formas e cores, ilustraram a moda de fins do século XIX.

Numa concepção diversa, não é difícil nos lembrarmos dos exemplos de escadas sem tradição, servindo puramente como acesso entre níveis diferentes. Muitas se apresentam como cascatas de degraus em linha reta, tendo em ambos os lados uma espécie de corrimão fixado nas paredes, sem beleza alguma, apenas o essencial para ser utilizado como apoio a quem sobe ou desce. Correspondem à noção moderna de escada.

Idéias distintas sobre o próprio homem

Por detrás dessas duas concepções há duas idéias a respeito do agir humano e do próprio homem.

De acordo com o reto conceito, a escada — tanto quanto possível e sensato — deve ser algo ornamental, decorativo. Pois tudo aquilo que serve para o homem agir, precisa dissimular ou fazer olvidar alguma coisa da miséria de sua condição decaída e, de outro lado, realçar algo de sua personalidade.

Ora, a mais elementar ideia de escada é a de um meio empregado pelo homem para subir ou descer. Porém, essas duas operações acabam por patentear algo de nossas debilidades, assim como evidenciam nossa grandeza. Tudo quanto cerca o homem — mesmo mais modesto — deve respeitá-lo. O respeito é um dos maiores bens da vida, e ser acatado pode valer mais do que ser querido. Não existe genuína benquerença sem respeito. A escada, portanto, deve ser construída para honrar o homem, realçando algumas qualidades, excelências de sua natureza e disfarçando debilidades de sua condição.

Vitória sobre o princípio da gravidade

Ao subir uma escada, o homem se depara com alguns problemas que eu chamaria de teatrais, quase de encenação, pois ele luta contra a lei de Newton: quanto mais se afasta do solo, menor é a força da gravidade e maior o cansaço de seus músculos. Se bem que possa ganhar alguma coisa distanciando-se do chão, ele perde algo de sua elasticidade, e no topo de uma alta escada aparece o sinal — embora às vezes discreto — da miséria: a fadiga.

Antes do pecado original, o homem se exercitava sem cansaço, o trabalho lhe era indolor, agradável, interessante. Porém, depois da queda de nossos primeiros pais, tornou-se difícil. A força da gravidade começou a agir contra ele, o chão o atraindo para deitar-se, e ele se esforçando para se firmar e pisá-lo.

De passagem, apesar de nada ter lido acerca do assunto, pergunto-me se um modo de interpretar o sapateado espanhol não seria a vitória do homem sobre o princípio da gravidade. Tomado pela ideia da supremacia do espírito em relação à matéria, ele sapateia, e como que não sente a ação da gravidade. Seus músculos vencem a lei de Newton.

Cada nação tem seu esplendor, gênio e modo de ser. Outra manifestação da vitória sobre a força da gravidade é o minueto francês, com aquela maneira de se movimentar delicada, em que o cavalheiro e a dama pisam o solo como se fossem plumas, conferindo ao chão a honra de ser tocado por eles. E para ostentar sua indiferença ao princípio da gravidade, executam longas reverências diante de pessoas às quais respeitam, depois se aprumam com altanaria e continuam a dançar com destreza, sem demonstrar cansaço. É uma linda expressão da “douceur de vivre” [doçura de viver] francesa, e um exemplo do papel do princípio da gravidade na conduta humana, dando-nos a oportunidade e o gosto de refletir.

Aliás, para mim, raciocinar de modo agradável — compreendo que haja preferências diferentes — não consiste meramente em compulsar um tratado de teoria e pensar, mas passar da prática para a doutrina, galgando-a até o ponto mais alto. E depois fazer uma imersão até o fundo mais miúdo da experiência, procurando ali a confirmação ou ilustração das elevadas cogitações doutrinárias. Esse “subir e descer escadas” mental tem a leveza de um minueto.

Tal exercício não é simplesmente deleitável, mas faz bem à alma. O homem se sente assim mais espírito, acentua-se nele o por onde é mais semelhante a Deus. E parecer-se com Deus é a honra suprema, o bem extremo, o fim último.

Tributo pago ao pecado original

Retornando ao nosso tema principal, cumpre considerar o seguinte: num homem ou numa dama, de qualquer idade ou condição social, ao terminar de subir uma escada, devido ao esforço, aparece alguma coisa que os diminui, algo do viço deles murcha.

Alguém poderá dizer: “Dr. Plinio, o senhor não me conhece. Subo escadas de dois em dois degraus…”

Não devemos nos iludir. Ainda que seja no arfar ou na pisada final, nota-se algo do tributo pago pela natureza, mesmo na flor da juventude. Além disso, visto do topo da escada, quem a sobe parece muito pequeno, e não é grato ao homem ser observado de cima para baixo. Os personagens que respeitamos, agrada-nos vê-los no alto. E assim, muitas outras considerações poderíamos fazer a respeito do “subir”.

Analisemos, porém, o “descer”. Também nesta operação, como em tudo que o homem faz por si próprio, aparece a nossa miséria, a qual devemos saber disfarçar.

Tal sucede nas mínimas coisas. Por exemplo, no momento em que lhes dirijo a palavra, apoio de modo ligeiro meu queixo sobre minha mão, enquanto faço um pequeno esforço de espírito para ordenar as idéias a serem expostas. Esse gesto é discretamente interrogativo, indicando que estou “emparafusando” um pensamento. Ou o faço com instintiva leveza, ou me degrado, porque a sensação de peso da queixada cansada é feia.

Alguns espíritos talvez julguem inútil, uma bagatela, a observação desses aspectos do nosso cotidiano. Para mim, isso é saber tirar todo o proveito da vida. É viver. O contrário é vegetar.

Então, se uma pessoa não descer uma escada com dignidade, dará a impressão de que está decaindo, degringolando. Pois a descida significa diminuição. Por exemplo, descer na saúde, na agilidade de inteligência, na arte de conversar, na virtude, no amor de Deus, etc.

Razão pela qual não devemos julgar que seja fácil descer uma escada de maneira a nobilitar-se. Trata-se antes de uma arte, sobre a qual falaremos em outra oportunidade.

Plinio Corrêa de Oliveira

1) Entende-se que, para os efeitos dessa exposição, a chamada “escada-rolante” se equipara ao elevador.

2) Situada em São Paulo, na Rua Maranhão, 341.

Importância do olhar

O homem não se exprime apenas pela palavra pronunciada, mas também pelo tom de voz, pela posição do pescoço e do tronco, pelo movimento das mãos. Entretanto, o mais importante é o olhar. Eis um dos elementos da verdadeira educação que deverá nascer no Reino de Maria, pela ação do Espírito Santo.

 

A  palavra dá o exprimível daquilo que a pessoa possa estar desejando dizer, enquanto o olhar proporciona o inefável, o inexprimível do que se está querendo dizer. Assim, há uma porção de coisas que o olhar diz e que daquele modo a palavra não conseguiria dizer.

Obra-prima de retórica

Por exemplo, um homem está precisando de pão; entra numa padaria e fala para o padeiro: “Quer me dar um pão?” A palavra diz: “Estou precisando de um pão, não tenho dinheiro para pagar, você quer me dar?” Mas o olhar diz uma série de coisas a respeito do próprio sujeito; o que ele está sentindo, como está sofrendo, como quem afirma: “Olhe para minha alma, veja a necessidade pela qual estou passando, olhe a minha tristeza a esse respeito, a humildade com que estou lhe pedindo, e que dureza de sua parte haveria em me recusar. Queira-me bem, porque estou necessitado!” É o que diz o olhar.

Então o olhar traz uma porção de conhecimentos por conaturalidade que acompanha aquele simples pedido de pão, e é uma justificação desse pedido, e nem adiantaria a palavra, por exemplo, se esta fosse dita por detrás de um biombo.

É curioso que toda atitude da pessoa constitui uma espécie de obra-prima de retórica, da qual ela não se dá conta. É uma coisa confusa, mas uma obra-prima: o pouco que o indivíduo pode dar de retórica, ele apresenta assim, porque também a voz modula, um pouco cantando, o que os olhos dizem olhando. E há inflexões de voz que dizem mais do que as meras palavras. Por exemplo: “O senhor queria me dar um pouco de pão?” Há mil modos de modular este pedido de maneira a, sem que o sujeito perceba, ser dito de tal forma que o tom de voz completa o que o olhar disse, e que está na linguagem da conaturalidade, não na linguagem do sentido lógico da palavra.

Elementos complementares dentro disso são a posição do pescoço sobre o tronco e a do tronco sobre as pernas. E a ponta do poder convincente está na atitude das mãos. Se pedir com a mão colada às costas, ele encaminha para uma recusa, é quase insolente.

A curvatura: quem pede, raramente entesa o tronco para pedir. Não entesa a cabeça, nem o corpo; é preciso ser um alto jogador para entesar as duas coisas e pedir. Tem um certo sentido quando o sujeito sabe dizer: “Veja o que está na miséria; veja o clamor desta injustiça que eu esteja sem pão: dê-me!” E isso pode ter seu valor cogente, conforme a circunstância.

O mais interessante são as riquezas da conaturalidade, por onde o homem não percebe isto e faz esse jogo com maior ou menor êxito.

O regionalismo europeu

E aqui entra uma questão complexa: como formar as pessoas para isso? Qual a medida, o ponto para tratar as coisas a partir das quais se consegue formar sem tirar a autenticidade do formando? Portanto, civilizar sem extrair a autenticidade do povo a ser civilizado, educar sem fazer do indivíduo um autômato. Há algo que estimula a aseitas(1) e a orienta, mas segundo um movimento que é dela; o ideal é extrínseco a ela, mas o tropismo por onde ela se volta para o ideal é dela.

Utilizando um exemplo do reino vegetal, tratar-se-ia de estimular a planta a tonificar seu tropismo mais do que torcê-la ou esticá-la numa determinada direção. É um problema muito delicado que se aplica até aos povos.

Dou um exemplo. Antes da Primeira Guerra Mundial, o que teria sido possível ou conveniente dizer para o mundo europeu a respeito da questão do regionalismo?

Se prestarmos atenção em como era o mundo europeu daquela época, em função do centripetismo nacional que vinha tomando aqueles Estados cada vez mais centralizados, e o centrifugismo regionalista de todas aquelas velhas regiões da Europa que estavam sendo trituradas, o que seria possível dizer para dar um golpe nesse centralismo e indicar o ponto de equilíbrio entre uma coisa e outra?

Consideremos um bretão. Segundo minha ideia, um bretão é um francês, mas de um tipo tal como nenhum outro é, e que deve ir engendrando notas características cada vez mais. Qual o ponto ideal onde o bretão é suficientemente francês para haver uma França verdadeira, mas suficientemente bretão para ser inteiramente um cidadão da Bretanha?

Que divagação agradável e interessante daria se pudéssemos lançar naquele tempo um mapa com todos os regionalismos, que são incontáveis! Na Espanha, por exemplo, pegue-se o país Basco; eu garanto que no país Basco existem particularidades, singularidades, etc., só falta ter de bairro a bairro na mesma cidade. E entre um granadino e um bilbaíno quantas diferenças há! Isso se ocultou, não se falou, a literatura não tratou disso; essas diferenças eram tidas como deformidades que  deveriam ser rapadas e liquidadas, e seria preciso tornar Castela o “monstro” que engoliu a Espanha inteira.

Assim foi Lisboa e toda a Europa que estava passando por esse processo. Com a guerra, naturalmente, isso se precipitou muito mais. E que coisa magnífica seria indicar o ponto de equilíbrio para que fosse a verdadeira Europa; que isso que nasce da base continuasse a florescer, a vicejar, segundo modelos locais, mas tendo algo de comum entre si que, isto sim, competiria ao país destilar. E isso mesmo que estou dizendo é mais didático do que real, porque é um pouco bonitinho, arranjadinho demais para a sociedade orgânica. A sociedade orgânica é menos simples do que isso; é mais emaranhada, mais mesclada do que essa realidade que estou pintando. E ali está a vida.

Então, como seria preciso tomar cada um desses povos como um maestro, toca ali, lá, acolá, para a sinfonia dos regionalismos autênticos se desprender de uma Europa verdadeira? É um muito bonito problema.

Eu estava imaginando, então, um arquiduque da Áustria que escrevesse um livro para justificar a monarquia dual, e jogasse na cara da Europa o seguinte: “A nossa monarquia é mais diferenciada do que os países de vocês. Vocês dizem que somos uns tiranos porque esmagamos os países, não permitindo que se separem os que estão sob nossa hegemonia. Vocês impediram os nascimentos; são necrópoles de crianças! Coordenar adultos que nós soubemos conservar livres é muito mais difícil do que ser administrador de um cemitério de crianças”.

A essência da amizade é metafísica e sobrenatural

No tocante ao olhar, aos gestos, o homem deve ser educado como essas nações, nessa correlação entre um tema e outro. E se um menino tiver, por exemplo, uma governanta que afirme — a minha me disse várias vezes —: “Um homem educado não gesticula com as mãos e, portanto, você não é educado, mas não diga, pelo menos, que não lhe avisei.” Pensei com meus botões. “Eu não sou eu se não gesticular. Então prefiro ser um mal-educado do que um bem-educado que não sou inteiramente eu mesmo. Depois, ela mesma quando se deixa tomar por determinado tema gesticula também, porque todo mundo gesticula. E, portanto, essa ‘boa educação’ não serve, saberei mexer com minhas mãos como eu quero”. Enquanto estou dizendo isso, eu as movimento.

Eu temeria muito escolas assim: “Três bolos na mão porque gesticulou”. Então eu passo o tempo inteiro sem gesticular, mas sinto que, irremediavelmente, sou um piano no qual uma nota ficou quebrada. Vê-se, portanto, a dificuldade de educar.

Tudo isso no Reino de Maria tem que nascer pelo efeito do Espírito Santo. Saber educar debaixo desse ponto de vista é muito delicado.

Portanto, o olhar não pode ser considerado isoladamente das outras formas de expressão, pois o corpo inteiro, às vezes sem percebermos, completa a sua retórica. Contudo, as outras expressões sublinham o olhar, mas este é o dado-mestre por onde todas as coisas falam. Quer dizer, todo o resto se ordena ao olhar.

Agora, qual é a relação do olhar com a palavra expressa? Um homem que canta, sua laringe é um instrumento musical, mas o olhar é propriamente a partitura daquilo que é cantado. O olhar acrescenta à palavra o que a partitura adiciona à escrita; não é só o olhar, mas é preponderantemente o olhar.

O que tem de curioso é o seguinte: os homens foram feitos — eu encontro dificuldade em convencer os outros a respeito disso, mas é uma verdade que está no fundo da cabeça de todo mundo — para se quererem, amarem uns aos outros, porém de um amor metafísico e sobrenatural, que é o único verdadeiro, por onde as almas se conhecendo profundamente umas às outras, notando consonância e harmonia, se querem porque desejam a coisa em torno da qual são consonantes. Quer dizer, o fundo da amizade é metafísico e sobrenatural.

Pode haver amizade natural, mas quando ela existe verdadeiramente é construída em torno de princípios metafísicos inexpressos. E a amizade entre dois indivíduos que foram educados juntos, por exemplo, de fato tem um sentido principalmente porque houve consonância entre ambos.

E, involuntariamente, dois mercadores que estão tratando no mercado, ou um homem num banco que apresenta um cheque e outro lhe entrega o dinheiro, portanto, operação puramente mercantil, sem se darem conta, quando eles se olham, um procura no olhar do outro o que se encontra em todo mundo.

Diafragma da máquina fotográfica

O ponto de partida de toda a nossa sociologia está nisso: quando olhamos assim, cada um de nós tem um ponto que é metafísico. O sujeito não sabe que é metafísico; apresenta-se a ele como um sentimento de alma. E, realmente, esse ponto metafísico produz um certo sentimento de alma, mas atrás deste há uma coisa metafísica em que se sente um certo isolamento, porque toda alma padece de viver isolada neste ponto profundo, e passa a existência olhando para os outros e perguntando: “Você é assim? Você é quem eu procurava”?

É uma coisa muito interessante observar duas pessoas que se veem pela primeira vez. A vida, para quem sabe observá-la, é interessantíssima.

Será alguém que está fazendo plantão numa sede nossa e toca a campainha um membro do Movimento residente em outro país; os dois nunca se viram. No primeiro olhar, o que se passa? É sempre uma procura.

Às vezes também a hostilidade nasce logo porque houve uma recusa. A hostilidade vem do fato de encontrar o contrário e, às vezes, acontece o seguinte: o sujeito está particularmente desprevenido e com uma esperança subconsciente de que no próximo toque de campainha ele vai encontrar uma coisa mais afável. Aparece um dinossauro, isso pode traduzir-se num… “Logo você?”

Mas essa procura é assim: há uma abertura análoga a um diafragma de máquina de fotografia que fecha e abre, conforme o sujeito puxa uma peça. No olho, a procura é o diafragma que se abre.

Imaginemos um indivíduo que, ao receber a visita de outro, pensa: “Esse faz parte do mundo do anonimato para mim”, e pergunta:

— O senhor o que deseja?

O outro responde;

— Vim cobrar uma conta.

— Sei. O senhor tem o recibo?

Está acabado. A conversa começou com os dois diafragmas abertos, como todas as conversas iniciam, e terminam tantas vezes com os diafragmas fechados.

No fundo, tudo aquilo de que eu falava há pouco, a sinfonia toda dos gestos, do tom das palavras, da inclinação, etc., visa esse ponto metafísico.

Assim, para aqueles que desejamos que tenham conosco o diafragma fechado, porque não há comércio possível, em toda a nossa atitude tomamos oposição. E para aqueles em que nós procuramos alguma coisa, assumimos uma atitude diferente.

Os restos da inocência

E eu não acredito, por mais incrível que seja em pleno século XX, no puro interesse. As pessoas podem de fato tratar-se segundo um objetivo, mas essa procura, no fundo, condiciona — embora nem sempre de um modo decisivo — o trato humano de ponta a ponta.

Mesmo um egoísta não visa o mero interesse. Ele resolveu entregar sua vida a um interesse, mas no fundo de sua alma tem embolada, sofrida como uma zona da alma que levou uma pancada e está começando a ficar infeccionada, gangrenada, a dor daquilo que ele queria ter sido e não foi, que desejava ter feito e não fez, e uma certa procura de alguém que seja consonante com ele, com o que ele quereria ter sido.

O sujeito pode, pelo mais vil dos movimentos, pegar uma pessoa com quem ele é inteiramente consonante, meter-lhe um pontapé e dizer: “Se eu ficar seu amigo, deixarei de ser um homem de interesse como quero. Você, para mim, é uma tentação, vou te desprezar.” Ele não dá esse pontapé à toa, em vão, porque acaba doendo nele.

E um indivíduo que pauta toda a sua vida de acordo com seus interesses, e pode chegar a ser um banqueiro ideal, de repente ele faz uma loucura; é a explosão daquela zona maltratada, colonizada e enxovalhada da alma, que muitas vezes não é o lado ruim que se revolta, mas é o lado bom que sofre; são os restos da inocência.     v

(Extraído de conferência de 5/6/1986)

 

1) Do latim: asseidade. Termo usado pela Filosofia escolástica significando o atributo divino fundamental que consiste em existir por Si próprio. Dr. Plinio o utiliza aqui em sentido analógico. Ver Dr. Plinio n. 140, p. 16 e n. 141, p. 20.

 

Carlos Magno: Fundador da Europa católica

Carlos Magno difundiu a cultura, favorecendo a formação de mosteiros onde se formava a Literatura. Foi coroado Imperador pelo Papa, em Roma. Ele aparece na História como um gigante que, ao mesmo tempo, liquida todos os elementos de deterioração e de agressão, e começa a implantar o que hoje é a Europa.

 

A certa altura da História do Ocidente, Carlos Magno aparece como evangelizador dos povos habitantes das regiões que constituíam, então, o centro histórico ocidental, ou seja, toda a orla do Mediterrâneo, compreendendo a Europa, Ásia Menor e África.

Bárbaros pedem licença para se fixarem dentro do Império Romano

O equilíbrio das situações e das forças era completamente diferente. A Ásia era o continente cultivado, florescente, com as grandes tradições, a grande cultura, a grande arte, os grandes impérios,  etc. A Grécia, que ainda era um foco de civilização nos primeiros séculos de nossa era, havia entrado em decadência, tinha sido invadida por outras populações, já não era mais o que fora. A Itália e toda a Europa aquém do Reno e do Danúbio estavam invadidas por bárbaros. Esses bárbaros eram germanos, depois normandos – de uma origem germânica também –, hunos que deram origem  aos atuais húngaros magiares, invadiram a Europa por vários lados.

O Império Romano do Ocidente, que cobria a Europa Ocidental, resistiu durante muito tempo. Mas com o luxo, a degradação dos costumes, etc., o desejo de batalha dos romanos do Ocidente foi  caindo. Eles foram pondo uma resistência cada vez menor aos bárbaros que queriam invadir. Em determinado momento, os bárbaros, situados para além do Reno e do Danúbio, mandaram  comunicar aos chefes militares romanos, colocados ao longo do Reno e do Danúbio, que eles estavam fugindo por sua vez de um invasor mais bárbaro, o qual vinha por detrás. Não sabiam quem  era – tratava-se dos hunos –, mas estava vencendo e acossando a eles. Então, a fim de poderem fazer uma resistência eficaz, pediam licença aos romanos para atravessarem o Reno e o Danúbio e  se fixarem dentro do Império Romano. Assim, eles ficariam protegidos pelos rios e poderiam lutar contra os hunos mais facilmente.

Os bárbaros invadem o Império Romano…

Os romanos acharam que isso era muito inteligente, porque os bárbaros, os germanos, lutariam contra os hunos. Uns aniquilariam outros, e os romanos ficariam sem combater uns e outros.

Estas são as falsas espertezas dos civilizados apodrecidos, muito parecidas com as falsas espertezas dos burgueses de hoje, diante da investida do socialismo, do comunismo. É a mesma  mentalidade. A mentalidade do podre, do decadente, é assim. Eles não só consentiram, mas os soldados romanos ajudaram a estabelecer pontes de madeira para que os bárbaros, os quais tinham sido, durante séculos, mantidos para além dos rios, os atravessassem.

Eles então invadiram o Império, e os hunos, em vez de entrarem pelo Reno, vieram pela Hungria e invadiram o Norte da Itália, o território que seria hoje a Áustria, e foram até Roma. Átila ia  destruir Roma, e o Papa foi de encontro a ele e lhe pediu, como Vigário de Cristo – o chefe dos hunos não era católico, nem mesmo cristão –, que poupasse a cidade de Roma. E Átila contou que  viu no ar uma figura majestosa, venerável, poderosa – era São Pedro –, a qual com espada o ameaçava se fosse por cima de Roma.

Então ele teve medo e voltou atrás. Foi o único fator que conseguiu fazer com que Átila recuasse. O Papa regressou a Roma e a cidade foi poupada.

Vejam, então, a podridão do Império Romano. Os romanos não conseguiram reter os bárbaros, São Pedro conseguiu. E a aparição do primeiro Papa, no ar, fez com que Átila gradualmente se  retirasse da Itália e voltasse para a Panônia – a antiga Hungria –, e se afundou naquelas terras.

…e não queriam que seus filhos estudassem, pois ficariam moles como os romanos

Portanto era a hora de os bárbaros irem embora também. Mas nem se falou disso, pois eles estavam estabelecidos e abancados lá. Então o que fazer? Os governadores e os soldados romanos  tiveram medo dos bárbaros e todos fugiram. Mas da Santa Sé veio uma ordem para todos os bispos e padres não abandonarem seus postos.

Deveriam permanecer nos cargos e continuar a exercer seu ofício, tentando converter os bárbaros. É uma coisa extraordinária realmente. Resultou daí uma situação assim: muitos bárbaros eram  tão bárbaros que eles não conseguiam dormir nas cidades romanas, porque diziam que sentiam falta de ar devido às casas que havia em volta. Aquelas casas tiravam o ar deles. Então iam para o  mato ou o campo, durante a noite, para dormir; e pela manhã voltavam para fuxicar na cidade, o que eles achavam naturalmente interessante, agradável. De um lado.

De outro lado, não queriam que os filhos deles estudassem, porque diziam que se o fizessem ficariam moles como os romanos. E que para ter meninos guerreiros, a fim de tocar a eterna guerra  deles, o único jeito possível era que não estudassem. Eles queriam conservar a barbárie porque tinham horror à civilização; confundiam civilização com podridão. Não eram católicos, mas pagãos.

Para terem ideia de como se foram espalhando pelo Império, eles entraram na França, cobriram essa nação, invadiram a Espanha, Portugal, transpuseram o Mediterrâneo, entraram pela África e  cobriram quase todo o Norte desse continente.

Foi, portanto, uma população imensa que se transmudou, mas que destruiu tudo na sua passagem. A administração romana se retirando, os bárbaros ficaram governando.

Constantinopla e  Alexandria

Podem imaginar o que era governo de bárbaros. As estradas romanas eram as melhores do mundo. Começaram a cair, porque de estrada é preciso cuidar. Se não tem quem cuide,  começa a nascer vegetação na estrada, acontece de tudo. Como esses bárbaros nem tinham ideia de como organizar a proteção de uma estrada, isso tudo ia se deteriorando. As pontes caiam, eles  não consertavam. Ficavam aqueles  abismos, não se podia transitar. Grupos de bandidos circulavam de um lado para outro, não havia polícia. Era o caos mais completo que pode haver.

Para abreviar a narração, os  romanos começaram a se casar com as bárbaras, os bárbaros com as romanas, e foi se formando uma sociedade composta de civilizados podres e bárbaros insuportáveis. Pairava sobre esse caos a  bênção da Igreja, ensinando, batizando, distribuindo os sacramentos quanto podia, dando exemplos de virtude, suscitando Santos que, vivendo no meio deles, iam gradualmente amansando a barbárie e corrigindo a podridão.

De toda esta história apareceu uma população mista, semibárbara, incomparavelmente mais atrasada do que o mundo oriental que tinha sua grande capital em Constantinopla – depois Bizâncio  –, que era a sede do Império Romano do Oriente. Não confundir com o Império Romano do Ocidente, que tinha sede em Roma, às vezes em Milão, enfim, na península itálica. Constantinopla,  lindíssima cidade do Estreito de Bósforo, com uma parte construída na Europa e outra na Ásia.

 E depois os povos da Ásia Menor, dos quais muitos eram ricos e altamente civilizados. Isto ia até o Egito. E a outra grande cidade oriental, não europeia, com civilização, portanto, oriental,  influência grega muito forte, era Alexandria, no Egito. Eram as duas grandes cidades famosas no mundo inteiro. Para esse pessoal dos Bálcãs e do Sul do Mediterrâneo, prevalecia a ideia de que a Europa era uma caipirada. Tinham razão. Uns bárbaros, uns cafajestes, com os quais não havia grande coisa a fazer.

Invasões dos maometanos e dos vikings

No meio de tudo isso, com acontecimentos históricos que seria muito longo narrar, foi gradualmente aparecendo a nação que é a primeira da Europa contemporânea a nascer das mãos da Igreja, a  rança. Depois as outras nações foram se convertendo, a ação dos Santos, da Hierarquia, foi apaziguando esses povos, e se podia supor que as coisas relativamente começassem a melhorar, quando outras circunstâncias imprevistas vieram perturbar tudo isso. As circunstâncias foram tríplices.

Em primeiro lugar, uma invasão maometana. Maomé – também é outra coisa interminável para se contar – fundou uma religião nova, segundo a qual Jesus Cristo era apenas um profeta. Dizia  Maomé que existia um só Deus, Alá, e Jesus Cristo, mero profeta de Alá, não era Homem- -Deus unido hipostaticamente à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Maomé estava animado por  um ódio terrível aos católicos.

Essa religião começou a atuar no Oriente Próximo, mas depois se estendeu pelo Egito e todo o Norte da África. Os maometanos destroçaram o que restava de romano católico e de bárbaro católico.  Invadiram a Espanha e, de invasão em invasão, chegaram até o coração da França, em Poitiers.

Mais ou menos ao mesmo tempo, uma parte dos bárbaros, que não tinha atravessado o Reno e o Danúbio, começaram a invadir de novo as terras católicas, a França, a Alemanha, etc. E o que agravava mais a situação era que um povo muito estranho, como até então não tinha aparecido na História, principiou a agredir a Europa.

Era um povo pagão, de origem germânica, cuja característica principal estava no seguinte fato: o povo inteiro – os famosos vikings – migrou em barquinhos pequenos com proas lindas, e os vikings eram navegadores excelentes. Puseram-se a atacar o litoral europeu e descer pelos rios franceses até o coração da França.

De maneira que tudo era novamente um caos. Primeiro ocorreu a invasão dos árabes, depois a dos germanos. Mas houve também uma ação gloriosa: os convertidos germano-romanos, animados por missionários, sobretudo irlandeses, empreenderam a penetração pacífica, mas muito mais perigosa que todas as outras, no território germânico para converter os germanos.

Surge Carlos Magno

Aquilo que era um renascer do mundo católico se encontrava exposto a terríveis perigos. Foi então que apareceu a figura famosa de Carlos Magno. O que fez Carlos Magno? Ele impôs sua  autoridade a todos que eram descendentes de gauleses, romanos e germanos, essa mistura. Levou sua autoridade até a ponta da Espanha.

No Norte da Espanha, em Santiago de Compostela, visitando a catedral, me falaram de uma capelinha construída por ordem de Carlos Magno, em estilo românico, que fica encaixada na
escadaria da catedral. Eu fiz questão de visitá-la, porque queria prestar homenagem a essa reminiscência do Imperador Carlos e o meu culto a Deus Nosso Senhor, que assim foi glorificado por esse grande homem.

De outro lado, Carlos Magno entrou na Itália e apaziguou a ferro os bárbaros que lá havia. Ele apoiava os missionários e, segundo notícias que desconfio serem falsas – não tive tempo de estudar a  fundo –, punha para os bárbaros germanos esta alternativa: quem se converte está bom; quem não se converte vai morrer. E assim organizou matanças que, notem bem, a Igreja não aprovou. Ele  empregava processos drásticos.

Um desses processos era o seguinte: os germanos, que estavam além do Reno, acreditavam estupidamente na divindade de um carvalho que havia ali, chamado Irmensul, o qual eles diziam que  deitava raízes até o centro da Terra.

Carlos Magno disse: “Vou mostrar a vocês o que é esse carvalho ‘divino.’” Mandou arrasar a árvore. “Olhem o deus de vocês.” Arrasado o carvalho, os germanos não tinham nada que fazer, estava  liquidado o caso.

Um protetor ardorosíssimo da Igreja Católica

Por sua valentia, sua personalidade extraordinária, seu heroísmo, Carlos Magno de tal maneira adquiriu prestígio sobre aquela gente, que foi reconhecido como o soberano aquelas regiões.

Numa noite de Natal, rezando na Basílica de São João de Latrão, que é a Catedral dos Papas em Roma, o Pontífice o coroou como Imperador do Ocidente, fundando assim o Sacro Império Romano que durou exatamente mil anos.

No começo, Carlos Magno não queria, mas afinal de contas, vendo ser vontade do Papa, aceitou. Terminada a Missa, foi aclamado por todo o povo como Imperador do Ocidente, do império que só  terminou no século XIX, quando Napoleão o declarou extinto. Carlos Magno foi um protetor ardorosíssimo da Igreja Católica. Defendeu-a contra os invasores maometanos e bárbaros. Nos últimos
anos de sua vida, os germanos estavam começando a invadir o seu império, e ele ainda lutou contra eles.

Pouco depois ele morreu, tendo levado uma vida carregada de méritos. Esse homem extraordinário difundiu  a cultura, favorecendo a formação de mosteiros onde se estudava e se formava a  Literatura. Ele tinha por conselheiro um monge, Alcuíno, homem muito capaz que começou a fundar a cultura europeia. Então Carlos Magno aparece na História como um gigante, que ao mesmo  tempo liquida todos os elementos de deterioração e de agressão, e começa a implantar o que hoje é a Europa. É o Pai da Europa católica, apostólica, romana, que limpou de invasores grande parte da Europa. Por exemplo, Espanha e Portugal ele defendeu muito contra os árabes, mas em todo caso não bastou; somente no século XV os árabes foram expulsos da Espanha. Seja como for, a luta  foi-se efetuando e o núcleo da Europa de hoje foi ele quem fez.

Por causa disso ele é o Fundador da Europa, mas da Europa católica, que defendeu a população necessária para que a Europa fosse Europa. Ao mesmo tempo, Carlos Magno sobretudo defendeu e expandiu a Fé Católica.

E começou um movimento missionário que foi, ao longo dos séculos, até o Norte da Rússia, convertendo os povos do Mar Báltico. Por esta forma se constituiu a maior semente de cultura existente  o mundo, que foi, na História cristã, o continente europeu.

Ele foi Santo?

Uma vez que ele tinha tais méritos, pode-se perguntar qual foi seu papel diante da Igreja. Ele foi um Santo? A resposta que me parece melhor para dar a essa pergunta é: se um Santo tivesse feito  isto, ter-se-ia dito que é uma obra típica de um Santo, e de um grande Santo. De um dos maiores Santos da História da Igreja.

De outro lado, se ele tivesse sido um homem pecador – não que vive em estado de pecado mortal, mas que de vez em quando peca mortalmente –, dir-se-ia que não poderia realizar esta obra.  Porque é uma obra de apostolado insigne. E segundo Dom Chautard, no famosíssimo livro A alma de todo apostolado – que explica a doutrina da Igreja –, quem não possui vida de piedade intensa, não tem Fé, Esperança e Caridade intensas – são as virtudes teologais –, depois as virtudes cardeais, este não pode fazer uma obra de apostolado fecunda. Então, como Carlos Magno pôde fazer uma das maiores obras de apostolado de todos os séculos se não fosse muito virtuoso? Evidentemente é muito difícil explicar isso.

É verdade que há pontos nebulosos na história de Carlos Magno. Ele se casou com uma princesa da Lombardia – onde havia um povo bárbaro, que tinha ocupado o Norte da Itália –, depois se  separou dela e casou com uma outra. Houve uma anulação de casamento regular? Havia nulidade mesmo de casamento, ou isto foi uma transgressão do princípio através do qual o casamento é  indissolúvel?

Certas matanças feitas por ele a Igreja censura. Realmente não é fácil justificá-las. Dizer a um indivíduo “ou tu crês ou te mato” não se pode fazer. Nem obrigar uma pessoa a crer, ou a dizer que  crê, quando ela não acredita. E Carlos Magno, agindo desta forma, fez mal. Mas qual era o grau de conhecimento que ele tinha de que isto era ruim? Há uma porção de problemas a este respeito.

Católico, guerreiro e monarca por excelência

O fato é que a figura de Carlos Magno se projetou sobre toda a Idade Média. Ele foi o grande pró-homem da Idade Média, quer dizer, homem por excelência, católico por excelência, guerreiro por  excelência, monarca por excelência, Carlos Magno. “Magno” é a palavra latina que quer dizer “grande”: Carlos o Grande. Mas o adjetivo “magno” ficou de tal maneira colado ao nome dele que, mesmo nas nações onde o termo “magno” quase não se usa ou desapareceu de todo, ainda ninguém diz dele “Carlos o Grande”, mas “Carlos Magno”. Há uma magnitude que está inerente a ele.

 Em Aix-la-Chapelle, ele ia tomar águas. Devido a um incômodo qualquer de natureza gástrica, bebia essas águas que lhe faziam muito bem. E até hoje, em Aix-la-Chapelle, há uma fonte de água  mineral, chamada Fonte de Carlos Magno, onde as pessoas doentes da cidade a tomam gratuitamente.

Essa fonte jorra água noite e dia. As pessoas vão com garrafões e os enchem com aquela água. Bebem, faz bem para muita gente pelas suas propriedades químicas, não é uma água milagrosa. Foi  feita a análise química. Essa água fazia bem no tempo de Carlos Magno, e faz bem até hoje em dia. Na cidade de Aix-la-Chapelle ele tinha um palácio, do qual restam lindos vestígios. E mandou  construir a catedral onde assistia ao Ofício num trono, o qual se conserva até hoje e que nós tivemos a felicidade de oscular.

Nesse povo se manteve a ideia de Carlos Magno como um Santo. Desde os primeiros tempos do Imperador até nossos dias, em algumas cidades da zona, se celebra Missa em louvor do que eles  chamam o Bem-aventurado Carlos Magno, com permissão da Igreja. Comemora-se uma festa oficial naquela região, da qual toma parte todo o povo.

“Chanson de Roland”: uma das mais bonitas obras poéticas de todos os tempos

É extremamente improvável admitir a hipótese de que Carlos Magno não esteja no Céu. Porque, embora não tenha sido canonizado, a Igreja autoriza um culto a ele; é impossível imaginar que  esteja no Inferno. Entretanto, a Igreja ainda não se pronunciou a respeito da heroicidade de suas virtudes.

Só mediante um pronunciamento da Igreja infalível é que se pode generalizar o culto dele a todo o orbe católico.  Mas o modo como são tratadas as relíquias dele nessa catedral é como se tratam as relíquias de um Santo.

A vida de Carlos Magno inspirou uma das mais bonitas obras poéticas de todos os tempos, que é a “Chanson de Roland”. Roland, o sobrinho dele, seu principal guerreiro e braço direito, formava,  com outros onze guerreiros, os doze pares de Carlos Magno. Eram seus doze grandes guerreiros, seus grandes sustentáculos, que o ajudaram a fazer essa obra extraordinária de defesa e de  conquista.

Episódios da luta deles foram cantados na canção de gesta de Roland, que é uma verdadeira maravilha. Essa canção de gesta projeta a beleza da figura de Carlos Magno de modo extraordinário, e  contribuiu para formar uma atmosfera de respeito verdadeiramente religioso, por vezes tributado até por pessoas laicas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/12/1988)