Uma devoção de luta

O Rosário confere à meditação da vida de Nosso Senhor a nota marial por excelência, tendo por detrás a grande verdade de Fé a qual devemos anelar, do fundo de nossa alma, que se torne um dogma: a Mediação Universal de Maria.

 

Dada a grandeza da festa do Santo Rosário, é importante dizermos uma palavra sobre esta devoção que consiste na meditação dos mistérios gaudiosos, dolorosos e gloriosos da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo feita em três terços, cada qual com cinco mistérios.

A pessoa verdadeiramente piedosa reza pelo menos um terço por dia

Sem dúvida, é magnífico meditar a respeito dos mistérios da vida de Nosso Senhor. Ademais, os mistérios ali apontados, naquela enumeração, embora não sejam os únicos, estão muito bem concatenados e expostos, e podemos facilmente compreender o proveito que as almas têm com essa meditação.

Entretanto, devemos reconhecer que outros métodos de meditação dos mistérios da vida de Nosso Senhor existem na Igreja. Nós temos, por exemplo, a meditação feita segundo os Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Essa técnica inaciana pode aplicar-se a cada um dos mistérios do Rosário. Existe outra devoção que medita os mistérios dolorosos magnificamente: a Via-Sacra.

Portanto, embora seja o Rosário uma devoção muito importante, considerado na sua última coerência ele não é senão uma outra apresentação de estilos de meditação e atos de piedade que a Santa Igreja, no seu empenho materno, multiplica de várias formas.

E, por causa disso, fica sem uma explicação muito clara a seguinte questão: Por que todos os inimigos da Igreja detestam tanto o Rosário? Detestam-no e combatem-no mais do que todas as devoções congêneres. Por que também, de outro lado, o Rosário é objeto de uma predileção especial dos verdadeiros filhos de Nossa Senhora e da Igreja, de maneira que tenham eles um grande apreço, não só ao método, mas a alguns imponderáveis ligados ao próprio objeto de piedade usado continuamente como uma espécie de garantia de bênção, de favor de Nossa Senhora, a ponto de, por exemplo, não se conceber uma pessoa verdadeiramente piedosa que não tenha sempre consigo seu terço e que não reze pelo menos um terço por dia? E não se concebe um membro do nosso Movimento que não reze o Santo Rosário, isto é, os três terços todos os dias; ou que, não o podendo fazer por justas razões, não tenha por isso um grande pesar e uma viva esperança de retornar a rezar o Rosário.

Uma das belezas da Igreja Católica

São numerosas as Ordens Religiosas que usam o Rosário como elemento integrante de seu hábito. É generalizado o costume de enterrar os defuntos com um Rosário entrelaçado nas mãos. Ou seja, para esperar a ressurreição dos mortos, o verdadeiro católico não se contenta em ir para a sepultura com um crucifixo, mas vai também com o Santo Rosário. As indulgências com as quais os Papas cobriram o Rosário são sem-número. A invocação de Nossa Senhora do Rosário é generalizadíssima: catedrais, dioceses, famílias religiosas, pessoas usando o nome “Rosário” em várias nações.

De todos os lados o Rosário goza de uma influência, de uma aceitação da parte dos bons comparável apenas ao ódio que experimenta da parte dos maus. Há vários fatos que narram como o demônio, procurando atormentar esta ou aquela alma, recua quando a pessoa atormentada acena para ele com o Rosário. Todo mundo que tem mau espírito odeia o Rosário, subestima-o ou diretamente o combate. Por exemplo, os jansenistas o odiavam, os protestantes o odeiam.

Poderíamos, então, nos perguntar a razão dessa glória tão especial do Rosário para a qual, afinal de contas, não encontramos um fundamento quando analisamos a última substância do Rosário, que é a meditação dos mistérios da vida e Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Parece-me que, de início, devemos reconhecer ser esta uma das belezas da Igreja Católica. Sendo ela enormemente precisa no seu pensamento teológico, é, entretanto, cheia de imponderáveis, os quais, por alguns aspectos, constituem o suco da devoção.

Mediação Universal de Maria Santíssima

Tomemos como exemplo a devoção admirável da Via-Sacra. Nela se encontra algo da ternura de São Francisco de Assis, e seus imponderáveis convidam a uma meditação enternecida, comovida da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo e de sua morte sacratíssima, de um modo especial. Há um espírito que flutua em torno da Via-Sacra que constitui, talvez, o melhor de sua eficácia. É uma graça específica ligada a essa forma de devoção.

Também os Exercícios Espirituais de Santo Inácio são um modo não propriamente de devoção, mas de meditação que traz consigo uma graça especial de lógica, de energia, de honestidade de consciência e de generosidade ao pôr-se o fiel diante dos problemas relacionados com sua salvação eterna.

No Rosário, a grande fonte de inspiração de nossa meditação e o alvo imediato de nossa oração é a Santíssima Virgem. A meu ver, é por causa dessa focalização muito especial de Nossa Senhora que o Rosário constitui a devoção marial por excelência, tendo por detrás a grande verdade de Fé que devemos anelar do fundo de nossa alma que se torne um dogma: a Mediação Universal de Maria.

O sistema de rezar o Rosário apelando para Nossa Senhora em tudo, rezando Ave-Marias enquanto se considera algum episódio, ora relacionando a oração com aquele fato, ora concentrando o principal da atenção no mistério, ora na Ave-Maria, em todo caso, sempre numa união contínua com Nossa Senhora, eis o caráter marial que, a meu ver, constitui o suco do Rosário, pois esta devoção não teria sentido se a Mediação Universal de Maria não fosse verdadeira.

Por representar um prelúdio de toda a teologia de São Luís Maria Grignion de Montfort, da verdade de Fé referente à Mediação Universal, o Rosário é tão odiado pelo demônio. E é por causa desse imponderável que nós nos devemos agarrar muito ao Rosário.

Em suma, por causa da nota marial que o Rosário confere à meditação da vida de Nosso Senhor, é um sinal de predileção de Nossa Senhora o fato de alguém ter uma devoção especial ao Santo Rosário. Também é um sinal de que Ela ama alguém o fato de, através do Rosário, levar a alma a amar uma posição que só se justifica em face da Mediação Universal. Portanto, o Rosário é o verdadeiro símbolo da devoção do fiel a Nossa Senhora, daquele que quer pertencer a Ela plenamente.

Que Nossa Senhora faça de nós lutadores inteiramente d’Ela

Isso se confirma pelo ódio do demônio e dos maus a essa devoção. Por vezes eles são mais perspicazes do que os bons; e quando odeiam muito algo, nós já podemos ter a certeza de que aquilo é muito bom.

A razão pela qual, ao decorarmos nossa sede principal, colocamos na porta da capela um Rosário pendente de uma espada, é para chamar a atenção para duas verdades ou dois pensamentos que devem marcar quem ali entra: antes de tudo, a fidelidade ao Rosário e, através dele, a essa devoção omnímoda a Nossa Senhora, que é, afinal de contas, a da Mediação Universal. Depois, a espada que nos lembra o espírito de luta.

Não é por mero enfeite que aquilo está lá, mas foi colocado de propósito, daquele jeito, para chamar a atenção daqueles que entram e marcar como um prefácio, preparando por uma espécie de golpe na mentalidade de quem entra o espírito com o qual deve-se estar dentro daquela capela. Esse simbolismo é um estímulo contínuo que nós quereríamos dar para que, cada vez mais, praticássemos a devoção ao Santo Rosário.

Fica, então, este pensamento para nos lembrar de que o Rosário é uma devoção de luta e nós estamos numa época de batalhas. Peçamos, pois, a Nossa Senhora que faça de nós autênticos lutadores inteiramente d’Ela. Não conheço melhor pedido para ser feito através do Santo Rosário. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/10/1966)
Revista Dr Plinio 259 (Outubro de 2019)

Razão de nossa serenidade

Mãe incomparavelmente perfeita entre todas as mães, Nossa Senhora nos conhece, ama e quer bem com discernimento, bondade, paciência e carinho de uma intensidade extraordinária. Alcança-nos tudo o que nos convém e lhe pedimos confiantemente. Está disposta a nos obter o perdão de seu Divino Filho, mesmo para nossas piores faltas; alcança-nos as graças necessárias para nossa emenda, nossa salvação e, assim, brilharmos diante d’Ela por toda a eternidade. É a misericórdia dessa Mãe de perfeição incalculável.

Por isso mesmo, é Ela a razão de nossa serenidade. Não temos motivo para estarmos perturbados nem agitados, posto termos uma Mãe celeste que se compadece de nós e nos acompanha a todo instante com sua insondável solicitude. Devemos permanecer sempre tranquilos: nossa Mãe vela por nós.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Prece à Padroeira do Brasil

Ó Senhora Aparecida, a hora é de aflição! Melhor do que qualquer  brasileiro, o sabeis Vós, que sois Mãe de todos eles. Crise sócio-econômica, crise moral, mais grave que tudo, crise religiosa! O que num país fica fora da crise, quando ela se instalou em todos esses domínios?

Sem embargo de toda essa crise, vamos transpondo gloriosamente um marco histórico. Pois estamos entrando no rol das nações que, por sua importância, determinam o rumo dos acontecimentos presentes e têm em suas mãos os fios com que se tece o futuro dos povos.

Neste momento de apreensões e esperanças de glória, ó Senhora, vimos agradecer-Vos os benefícios que, Medianeira sempre ouvida, nos obtivestes de Deus onipotente. Agradecemo-Vos o território de dimensões continentais, e as riquezas que nele pusestes.

Agradecemo-Vos a unidade do povo, cuja variegada composição racial tão bem se fundiu no grande caudal étnico de origem lusa — e cujo ambiente cultural, inspirado pelo gênio latino, tão bem assimilou as contribuições trazidas por habitantes de todas as latitudes.

Agradecemo-Vos a Fé católica, com a qual fomos galardoados desde o momento bendito da Primeira Missa. Agradecemo-Vos nossa História, serena e harmoniosa, tão mais cheia de cultura, de preces e de trabalho, do que de desavenças e de guerras. Agradecemo-Vos nossas guerras justas, iluminadas sempre pela auréola da vitória. Agradecemo-Vos nosso presente, tão cheio de esperanças, sem embargo das crises que nos assolam.

Agradecemo-Vos as nações deste Continente, que nos destes por vizinhas e que, irmanadas conosco na Fé e na raça, na tradição e nas esperanças do porvir, percorrem ao nosso lado, numa convivência sempre mais íntima, o mesmo caminho de apreensões e de ascensão.

Agradecemo-Vos nossa índole pacífica e desinteressada, que nos inclina a compreender que a primeira missão dos grandes é servir, e que nossa grandeza, que desponta, nos foi dada não só para nosso bem, mas para o de todos. Agradecemo-Vos o nos terdes feito chegar a este estágio de nossa História, no momento em que pelo mundo sopram tempestades, se acumulam problemas, terríveis opções espreitam, a cada passo, os indivíduos e os povos. Pois esta é, para nós, a hora de servir ao mundo, realizando a missão cristã das nações jovens deste hemisfério, chamadas a fazer  brilhar, aos olhos do mundo, a verdadeira luz que as trevas jamais conseguirão apagar.

* * *

Nossa oração, Senhora, não é, entretanto, a do fariseu orgulhoso e desleal, lembrado de suas qualidades, mas esquecido de suas faltas.

Pecamos. Em muitos aspectos, nosso Brasil de hoje não é o País profundamente cristão com que sonharam Nóbrega e Anchieta. Na vida pública como na dos indivíduos, terríveis germes de deterioração se fazem notar, que mantêm em sobressalto todos os espíritos lúcidos e vigilantes.

Plinio Corrêa de Oliveira

A luta, uma das glórias de Maria

Concebida sem pecado original, Nossa Senhora esmagou e esmagará para todo o sempre a cabeça da maldita serpente. Agindo assim, Ela acrescenta às suas extraordinárias e singulares prerrogativas a glória da luta. Ela combateu, opôs um esforço a outro, despendeu todas as energias necessárias para aniquilar o adversário, derrotou-o e o tem a seus pés.

Esse combate aumenta a glória da Filha do Padre Eterno, da Mãe do Verbo Encarnado, da Esposa do Divino Espírito Santo!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/12/1991)

Feudo da Rainha do Céu

É um fato curioso e edificante na vida da Igreja que, sendo esta depositária das verdades teológicas as mais altas e complexas, a massa dos fiéis, entretanto, servida por uma especial acuidade de visão, penetra e vive essas verdades ainda mesmo quando seu nível cultural pareceria vedar-lhe o acesso a qualquer atividade intelectual de ordem superior. Em tudo que se relaciona com a devoção a Nossa Senhora, esta observação se comprova com toda a clareza.

Com efeito, a doutrina marial e a devoção à Virgem Maria têm crescido constantemente, desenvolvendo-se, porém, não à moda de hipérboles afetivas e meramente literárias, mas como uma torre de raciocínios, firme como o granito, à qual cada geração de teólogos acrescenta mais alguns andares solidamente esteados no esforço diligente desenvolvido pela razão a fim de descobrir todo o alcance e extensão das verdades reveladas.

Entretanto, é tocante observar como a piedade popular, ignorando muitas vezes os argumentos da Teologia sagrada e deixando-se guiar em grande parte pela finura de sua sensibilidade, desce até  o âmago profundo das verdades teológicas ensinadas pela Igreja e sabe vivê-las com uma autenticidade de convicções e sentimentos que não se poderia explicar sem a ação do Espírito Santo.

Não há um povo que não tenha ao menos um grande Santuário nacional erigido em honra de Maria Santíssima, no qual a Rainha do Céu faça chover sobre os homens, com abundância, as graças  espirituais e temporais.

A Igreja nunca mandou que cada povo erigisse um Santuário nacional particularmente dedicado à Santíssima Virgem, mas se limitou a definir as verdades mariais. Na maioria dos casos, a piedade entusiástica dos fiéis tem seguido seu curso, a ponto de se poder sustentar que quase todas as festas de Nossa Senhora e as formas de piedade com que Ela é honrada nasceram na massa dos fiéis espontaneamente ou por meio de revelações particulares, sendo posteriormente sancionadas pela Igreja.

Isto porque a piedade popular sente viva e profundamente que Nossa Senhora é, na realidade, a Mãe de todos os homens, e especialmente dos que vivem no aprisco da Igreja de Deus. E sente, ainda, que a mediação d’Ela é a porta segura para se ter acesso junto ao trono do Criador.

Fazendo estas reflexões, lembro-me de Aparecida do Norte e das impressões profundas que tenho colhido sempre que ali vou rezar aos pés da Padroeira.

Onde, no Brasil inteiro, um lugar para o qual, com tanta e tão invencível constância, se voltam os olhos de todos os brasileiros?

Quem, ao ouvir falar em Nossa Senhora Aparecida, pode não se lembrar das súplicas abrasadoras de mães que rezam por seus filhos doentes; de famílias que choram, no desamparo e na miséria, o bem-estar perdido e se voltam para o trono da Rainha da clemência; de lares trincados pela infidelidade; de corações ulcerados pelo abandono e pela incompreensão; de almas que vagueiam pelo reino do erro à procura do esplendor meridiano da  Verdade; de espíritos transviados pelas veredas do vício que procuram, entre prantos, o Caminho; de almas mortas para a vida da graça e que querem encontrar, nas trevas de seu desamparo, as fontes de uma nova Vida?

Onde se pode sentir de modo mais vivo o calor ardente das súplicas lancinantes e a alegria magnífica das ações de graças triunfais?

Onde, com mais precisão, se pode auscultar o coração brasileiro que chora, que sofre, que implora, que vence pela prece, que se rejubila e que agradece, do que na Aparecida?

E sobretudo, onde é mais visível a ação de Deus na constante distribuição das graças, do que na vila feliz, que a Providência constituiu feudo da Rainha do Céu?

Plinio Corrêa de Oliveira

(“Pro Maria fiant maxima”, Legionário, N.º 379, 17 de dezembro de 1939)

 

O Rosário

Se algum apóstolo quiser saber como será julgada sua vida no tribunal do Eterno Juiz, não indague tanto dos caminhos que palmilhou, ou das gotas de suor que de sua fronte gotejaram. Indague, sim, das horas passadas de rosário em punho aos pés do Tabernáculo.

Plinio Corrêa de Oliveira

Finura no trato e santidade

A civilização cristã, nascida do Preciosíssimo Sangue de Cristo, produziu frutos em abundância. Um deles foi o trato cavalheiresco.

 

Para se entender as relações entre finura no trato e santidade, deve-se compreender bem o que significam trato e finura.

O trato é um conjunto de fórmulas por onde expressamos para com os outros a nossa atitude de espírito, interior. Quer dizer, o trato envolve de fato duas coisas: em primeiro lugar uma conduta e depois maneiras.

Há um modo de tratar que não é apenas feito de maneiras, mas de elevação de espírito. Por exemplo, tratar os outros com benignidade, força, fidelidade, nobreza; isso não é exatamente igual à maneira.

Imaginemos um homem que deve dinheiro a seu amigo. O modo pelo qual esta relação de crédito e débito se desenvolve diz respeito ao trato. O lidar de um com outro em torno de uma situação naturalmente tensiva pode ser mais elevado ou menos, mais generoso ou menos, independente das maneiras de cortesia que nesse trato se empregam.

Os modos de cortesia são as fórmulas, a linguagem, as expressões do rosto, os gestos das mãos, a atitude de toda a pessoa; isso constitui um elemento secundário e extrínseco do trato.

A santidade necessariamente conduz a um trato muito elevado, no sentido fundamental da palavra, ou seja, no seu aspecto profundo. Uma pessoa que é santa — a santidade é a raiz de todo procedimento perfeito — tem em relação aos outros uma conduta e um trato exemplares. Ela trata os outros com toda a distinção, com todo o esmero, respeito, afeto, ou com toda a força e energia que as circunstâncias exigem. Sob esse aspecto, a santidade é co-idêntica com a perfeição no trato.

Onde foi tirado o verdadeiro amor a Deus, não pode haver autêntico amor aos homens

No sentido profano, pode haver pessoas não santas que tratam os outros eximiamente.

Isso ocorre quando há uma grande tradição de civilização católica, a qual não morre de um momento para outro. Embora a moralidade possa cair muito rapidamente, a tradição do trato ainda continua. Usando uma imagem de São Pio X, que ele aplicava a outra coisa, não podemos pôr rosas num jarro sem que este se impregne do perfume e continue perfumado, mesmo depois de serem retiradas as flores.

Assim também, certo cavalheirismo e certa fidalguia de trato, no sentido mais profundo da palavra, podem subsistir como uma tradição católica num ambiente que é pouco católico, ou deixou de ser católico. Por exemplo, alguma coisa da nobreza de trato de certos lordes ainda é uma remota tradição da Inglaterra, proveniente do tempo em que era católica.

Mas essas boas tradições vão morrendo. Um homem pode ser muito elegante no trato, em matéria de negócios comerciais, porém deselegante quanto ao modo de adquirir dinheiro, ou em assunto de adultério, ou qualquer outra matéria. Ele, por exemplo, julgará que é um defeito de trato ir à casa de um amigo e roubar uma colherinha, mas rouba a esposa do amigo.

Quer dizer, são tradições que ficam meio hirtas e têm uma vida artificial. Aos poucos vão minguando e acabam desaparecendo.

Tendo cessado o estado de graça, a finura do trato é como uma trepadeira da qual se corta a raiz. Durante algum tempo algumas flores, que tinham começado a desabrochar, se desabrocham inteiramente. Pode haver, portanto, uma ilusão de vida naquela trepadeira. Mas é uma pós-vida, porque ela morrerá mesmo. Onde foi tirado o verdadeiro amor a Deus, não pode haver autêntico amor aos homens. Não havendo amor a Deus nem amor aos homens, o trato, neste sentido elevado da palavra, evidentemente tem que desaparecer.

Na natureza há símbolos magníficos dessas situações. Contaram-me que em certos cadáveres a barba ainda cresce um pouquinho. É um resto do desenvolvimento vital num corpo que está morto. Assim também pode haver aparente florescimento de maneiras numa civilização já sem vida. Sob certo ponto de vista, podemos dizer que o trato continuou esplêndido, cristão, aristocrático e acidental na Europa até há pouco. Mas era uma coisa defectiva, tendente a cair, o resto de algo magnífico que tinha existido.

A perfeição no trato gera maneiras esplêndidas

Qual a diferença entre trato e maneiras?

As maneiras são fórmulas, gestos, atitudes, que têm muito de natural, mas também alguma coisa de arbitrário, convencional, pelas quais os povos chegam a exprimir, por um consentimento geral, os seus estados de espírito e o seu bom trato.

Os povos podem ser muito virtuosos antes de terem maneiras perfeitas. Têm um trato muito elevado e maneiras apenas corretas, suficientes, às vezes até com um resto de barbárie, não com selvageria; mas algo de trivialidade, banalidade, falta de elegância, pode ser que exista.

Um santo pode, portanto, ter menos boas maneiras do que uma pessoa não santa. As maneiras são elaboradas lentamente pelas civilizações; constituem o produto de toda uma sociedade. E existe sempre a seguinte relação: a perfeição no trato acaba gerando ao longo do tempo maneiras esplêndidas. Estas são uma espécie de fruto remoto do trato. E, portanto, um fruto um pouco mais remoto ainda, da virtude. E vivem necessariamente só da virtude. De maneira que se virtude não houvesse, as maneiras seriam também muitíssimo inferiores. E quando a virtude morre, o trato vai se deformando; as maneiras ainda continuam, porque é uma coisa externa, material, cujo desaparecimento choca mais.

Na França, nas vésperas da Revolução, havia maneiras requintadíssimas, mas já indicando que iriam desaparecer.

O trato decorre, então, necessária e imediatamente das virtudes. As maneiras provêm necessariamente das virtudes porque decorrem do trato, mas não imediatamente quanto às maneiras requintadas, esplêndidas, que são fruto de uma civilização.

É claro que uma pessoa sem virtude pode ter bom trato em alguns pontos, e a “fortiori”(1) boas maneiras. Porém, com o tempo isso desaparecerá.

Como são as maneiras de uma civilização sem Deus?

Para terminar, eu gostaria de dizer apenas o seguinte. O histórico das civilizações, se fosse bem feito, mostraria que as maneiras perfeitas só existiram como fruto da civilização católica; mas não antes. Havia povos cujas aristocracias, sob alguns aspectos, tinham maneiras excelentes e de certa forma até insuperáveis. O povo chinês, por exemplo, e mesmo romanos, gregos etc., debaixo de alguns pontos de vista tinham um direito bom, uma arte, uma cultura, uma literatura boas. Mas nunca com a elevação que as coisas atingiram com a civilização católica.

Fala-se de civilização clássica, romana. Vejamos, porém, como era um banquete em Roma. Os convivas, deitados naqueles triclínios, comiam e bebiam desbragadamente, de um modo indecente, com uma glutonice sem igual, e se embriagavam de tal modo que eram levados para fora da sala. Quando alguém se sentia — a expressão é muito prosaica, mas afinal temos que empregá-la — cheio demais, levantava-se e ia para as salas contíguas, onde havia escravos com a habilidade de provocar, por meio de penas de aves, cócegas no palato; ele, então, restituía tudo o que havia comido e bebido. Depois vinha outro escravo trazendo vasilhas com água; a pessoa lavava as mãos e, se quisesse, secava-as nos cabelos do próprio escravo, que serviam de toalha. O escravo ficava, portanto, todo emporcalhado.

Imaginemos a cena nos seus pormenores. O glutão ou a glutona de bocarra aberta e o escravo fazendo cócegas na garganta: surge a ânsia e, afinal, a explosão gástrica. A pessoa anda de um lado para outro, cambaleia, para com disparos de coração etc. Por fim, equilibra-se o monturo, oscila mais um pouco e volta para comer. E tudo recomeça.

Isto é o horror em matéria de maneiras. Eu poderia citar cem outras coisas em cem espécies de civilizações.

Hoje em dia, quando uma pessoa recebe outra em sua casa, a fórmula polida, o dito elegante, interessante, a atitude rasgada e gentil são substituídos por uma acolhida parda; há uma frieza recíproca, indicando a completa decadência em matéria de trato. Isso tudo é efeito de um desbotamento de alma, o qual tem uma raiz moral; e esta última possui uma causa religiosa.

Em suma, o trato e as maneiras “pocas”(2) são consequências da tibieza.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/12/1965)

 

1)   Com maior razão.

2)  Dr. Plinio assim denominava as pessoas ou as coisas inexpressivas, medíocres.

São Francisco de Borja – flexibilidade para adaptar-se a todas as almas

Vendo no caixão o cadáver da Primeira Dama da Cristandade, a qual possuía imensa majestade, Francisco recebeu insigne graça: abandonou todas as suas glórias terrenas para se tornar um jesuíta.

A respeito de São Francisco de Borja – Presbí­tero, Duque de Gândia e Geral da Companhia de Jesus, no século XVI -, há uma ficha biográfica que assim resume a sua vida:

Piedoso e fiel cumpridor dos seus deveres

No dia 30 de setembro de 1572, São Francisco de Borja, terceiro Geral da Companhia de Jesus, entregava sua alma a Deus com a serenidade confiante do homem que sempre cumpriu seu dever. Esse dever tinha sido muito variado na sua existência movimentada. Filho de João de Borja e Joana de Aragão, neta de Fernando, o Católico, ele foi numa primeira fase um elegante e hábil cavalheiro, confidente do Imperador Carlos V, que o nomeou Vice Rei da Catalunha. Depois ele se tornou jesuíta, Vigário Geral da Companhia para a Espanha. Posteriormente foi sucessor de Santo Inácio e, enfim, legado da Santa Sé. São Francisco de Borja esteve sempre atento em pertencer ao Rei do Céu e de militar sob seu estandarte, de preferência a se comprometer com os poderes da Terra.

Francisco nasceu no dia 28 de outubro de 1510. Sua infância e sua juventude passaram-se numa piedade e numa inocência que foram uma lição para seus pais e seus amigos, mas o exemplo foi maior ainda pela vida cristã e austeridade que ele soube ter na corte do Imperador Carlos V, e depois como Vice Rei da Catalunha.
Em termos lhanos e diretos, e mais ao nosso gosto, isso tudo quer dizer que ele foi uma criança exemplar, mas que, quando se tornou moço e depois homem maduro e ocupou altos cargos públicos, a sua piedade ainda chamava mais a atenção.

A graça da visão da morte

A morte da Imperatriz e depois a de sua própria esposa lhe mostraram o vazio de todas as coisas da Terra. Ele resolveu, então, abandonar o mundo e entrar na Companhia de Jesus em 1551, ano em que foi ordenado padre.

Esse é um dos episódios célebres da vida de São Francisco de Borja. Ele era cortesão e muito próximo a Carlos V, Imperador do Sacro Império Romano Alemão e Rei de Espanha. Temos várias vezes tratado de Carlos V, por causa do grande papel que ele ocupa na História do Ocidente. Ele era tão poderoso que o Sol jamais se deitava em seu império. As suas terras iam desde os confins da Rússia até a América do Sul e parte do México até Oceano Pacífico. Era, portanto, um Império imenso que compreendia não só a Espanha e suas possessões na América, mas também possessões que a Coroa da Espanha tinha na Itália, as quais eram de uma grande importância no mundo. O Sul da Itália pertencia a Carlos V; por outro lado, na Lombardia, que tem como capital, Milão, Carlos V também tinha domínios.

São Francisco de Borja, sendo íntimo do Imperador, tinha conhecido muito bem a Imperatriz — que possuía imensa majestade e era a primeira dama da Cristandade no seu tempo — e teve ocasião de ver o corpo dela estendido no caixão. Ao contemplá-la assim aniquilada pela morte, ele recebeu uma graça.

O próprio de certas graças é de darem uma vida extraordinária às verdades que, para nós, são correntes, comuns, sabemos até o que querem dizer, mas impressionam pouco o nosso espírito. Assim é a graça da visão da morte. Uma pessoa pode passar uma noite inteira numa capela, velando um cadáver, sem que isso lhe toque muito especialmente; mas, de repente, por uma graça de Deus, tudo quanto a aniquilação da morte significa vêm ao espírito dela e lhe fala na alma com uma força particular, especialmente a sabedoria. E foi o que se deu com São Francisco de Borja. Ao ver a Imperatriz morta, ele percebeu bem o vácuo de certas grandezas, porque elas passam: a grandeza da Imperatriz, a grandeza do Império, a grandeza dele, que não era senão um adorno do Império; ele, então, se colocou diante da ideia de renunciar a todas as suas grandezas e de se tornar jesuíta.

Nomeado como diretor da Companhia de Jesus na Espanha

Para que compreendamos bem, é preciso notar que, além de ser ViceRei da Catalunha, o título de Duque de Gândia lhe dava poder sobre uma certa parte do território espanhol; uma jurisdição feudal, à maneira de um pequeno reino, a qual nem dependia do Imperador, pois ele a possuía por direito próprio. Tudo isso ele abandonou para entrar na Companhia de Jesus, que era naquele tempo uma Ordem religiosa nova, que não tinha nem um pouco a força, a tradição, a base que as outras grandes Ordens possuíam, ou aquela pobreza ilustre da Ordem de São Francisco. Quer dizer, de fato ele entrava para uma obra nova, o que, debaixo de certo ponto de vista, lhe poderia ser uma aventura. Ali ele foi encerrar-se até o fim de seus dias para procurar os bens do Céu, muito certo da vacuidade das coisas da Terra.

Ele ali foi ordenado sacerdote, e Santo Inácio de Loiola, percebendo suas virtudes, deu-lhe a direção da Companhia de Jesus na Espanha. É preciso compreender também o que significa isso, da parte de Santo Inácio.

A Espanha, como vimos, era naquele tempo uma potência imensa. Dentro dos Estados de Carlos V, a Espanha e a Áustria eram os dois países mais importantes, mas para a Religião a Espanha tinha mais importância do que a Áustria. Porque, embora a Áustria fosse muito católica, a Espanha era a nação mais católica da Terra. E era da Espanha que sopravam os ventos da Contra-Reforma, da luta contra o protestantismo, de maneira que agir na Espanha significava atiçar as melhores brasas contra a heresia, movimentar as melhores forças da Igreja contra a Reforma, contra o Humanismo, contra a Renascença. Compreendemos sem esforço a importância que tinha o cargo de chefe dos jesuítas na Espanha. Quer dizer, chefe da Ordem religiosa suscitada especialmente por Nossa Senhora para lutar contra o protestantismo, no país escolhido para combater essa heresia. Ou seja, foi-lhe dada a alavanca fundamental dessa luta.

Sorrir com quem ri, chorar com quem chora

Em 1566 foi eleito Geral da Companhia de Jesus, sendo o segundo a ocupar este cargo, após Santo Inácio de Loiola. Ele aumentou muito o número de missionários da Companhia de Jesus, enviando-os à Polônia, ao México, ao Peru e à Índia. Suas ocupações numerosas não o impediam de consagrar longas horas à oração. Sua caridade o adaptava a todas as almas. Sua humildade fazia com que ele procurasse os ofícios mais insignificantes e recusasse as honras que lhe quisessem prestar.

Essas palavras são bonitas, mas parecem uns enfeites aos quais se está habituado. Elas comportam, entretanto, uma especificação.

Em primeiro lugar, ele foi Geral da Companhia de Jesus. Tal foi o poder dessa Ordem no passado, que o Geral dos jesuítas era chamado de “O Papa negro”.

Não sei se os presentes neste auditório se dão bem conta do que significa se adaptar a todos.

No tempo em que eu era moço, havia uma cançãozinha que se cantava nas igrejas com muita compostura, quando acabavam os ofícios litúrgicos e o povo ia saindo: “Saudemos a Jesus, saudemos a Maria, a Fé se reanima, nobilita e dá energia”. E a horas tantas, os fiéis cantavam o seguinte a Nossa Senhora: “Vem sorrir com quem ri, chorar com quem chora; sê amparo e sê força, sê guia e sê luz”. Isso sempre me impressionou muito em Nossa Senhora: sorrir com quem ri e chorar com quem chora. Maria Santíssima se afaz a todos estados de espírito do homem: Ela é a quietude dos que descansam, a exaltação dos que lutam, o sorriso dos que estão distendidos, Ela chora com os que choram, e assim por diante.

Há uma qualidade excelente da alma, por onde um santo pode adquirir esta flexibilidade em que ele sabe, com cada um, estar no estado de alma daquele. Mas que elasticidade provavelmente isso significa, que força de adaptação isso deve custar! Porque ninguém quer estar no estado de espírito do outro. Cada pessoa quer estar no estado de espírito próprio e deseja que o outro se adapte a ela. O indivíduo entra alegre numa sala e quer que todo mundo faça cara alegre. Razão? Ele está alegre! E quando está triste, ele tem raiva dos outros que estão alegres. É ou não é verdade que esse indivíduo se julga o centro do mundo? Compreendemos, assim, toda a destreza que está representada nessa virtude de saber afazer-se à alma dos outros.

Santa Teresa, que recorreu aos seus conselhos, chamou-o de santo. Em 30 de setembro de 1572 ele morreu. Numerosos milagres assinalaram sua santidade. Clemente X o canonizou em 1671.

Ele foi conselheiro de Santa Teresa de Jesus. Imaginemos uma sala de um convento e Santa Teresa conversando com São Francisco de Borja! Nós não seríamos dignos de olhar pelo buraco da fechadura… E Santa Teresa conheceu de perto as grandes virtudes dele, e reconhecia nele um verdadeiro santo.

Vimos assim alguns traços da vida de São Francisco de Borja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/10/1969)

 

 

A felicidade de fazer o bem

Cortesia, polidez, gentileza, amizade… são conceitos muito afins com Dr. Plinio.

Quando menino, eu possuía colegas com os quais, de vez em quando, estabelecia amizade. No primeiro período da amizade havia simpatia mútua, interesse, agrado. Mas, em determinado momento, parecia-me perceber o fundo da mentalidade de meu companheiro, e com isso sua companhia ficava sem graça, perdia a atração.

Vinha-me, então, uma sensação frustrante: “À distância, as pessoas dão-nos uma boa impressão, mas quando as conhecemos de perto, percebemos algo que repele”.

Isto, naturalmente, quando não dava em ruptura, gerava pelo menos um trato tenso.

Qual seria, entretanto, o fundo deste desapontamento? O que faltaria para a continuidade dessa amizade? O próprio Dr. Plinio responde:

Lendo fatos relativos ao “Ancien Régime”— onde a cortesia estava presente no trato, e correspondia a um hábito social —, eu percebia como as pessoas daqueles tempos viam-se numa perspectiva completamente diferente: elas possuíam alegria por causar alegria, satisfação por causar satisfação. O convívio era outro, a “douceur de vivre” estava implantada entre os homens…

Esta ideia levou‑me à seguinte pergunta: No tempo pagão, isto era assim?

A resposta era clara, bastava olhar para a História. Tomemos, por exemplo, um romano que manda chamar o escravo, e lhe diz: “Quero matar um inimigo, e para isso preciso testar este veneno. Você vai, então, tomá-lo para que eu possa ver se ele é forte o suficiente”. E o escravo morria em meio a contorções terríveis, diante de seu dono.

Quer dizer, os pagãos importavam-se apenas com suas vantagens próprias; a felicidade dos outros não lhes interessava.

Ora, em comparação com os antigos tempos, nas pessoas de minha geração, por mais que o trato não fosse igual ao dos romanos, a cortesia era meio cinematográfica. Pode‑se dizer que ela estava morrendo para dar lugar ao trato correto, mas que não possuía mais as doçuras de outrora.

Eu pensava: “Se eu conhecesse alguém capaz daquela dedicação, daquela solidariedade, eu começaria a achar sua companhia interessante e teria alegria em me dedicar também a ele”.

***

Quatro palavras explicam a história da doçura entre os homens: Nosso Senhor Jesus Cristo!

Ele veio à Terra quando o mundo estava imerso na noite das mais densas trevas. Então a alegria de ser bom, de fazer o bem começou a fulgir entre os homens.

“Pertransivit benefaciendo” — passou pela vida fazendo o bem. O tempo inteiro, desde o começo até o fim, Nosso Senhor fez o bem. E com o transbordamento, com a abundância que conhecemos: por mais que os discípulos tivessem dormido no Horto das Oliveiras, quando Ele foi preso deu ordem aos carrascos: “A estes, deixai‑os ir em paz”.

Para termos a verdadeira alegria na alma, para termos a luz de Nosso Senhor Jesus Cristo diante dos olhos, saibamos nos sacrificar pelos outros sem esperar retribuição. Quando nos dermos conta, o aroma do convívio entre nós estará embalsamado, perfumado e agradável. É Cristo Nosso Senhor que estará presente.

 

Plinio Corrêa de Oliveira  (Extraído de conferência de 1/6/1985)

Santa Hildegarda de Bingen, um “milagre contínuo”

Como dádiva do próprio Deus, todas as épocas históricas viram surgir almas suscitadas pela Providência, chamadas a uma especial união com o Criador e à missão de indicar os rumos para a humanidade. É o que Dr. Plinio nos faz compreender, ao analisar a vida de Santa Hildegarda, mística e religiosa beneditina do século XII, contemporânea de São Bernardo de Claraval

Alguns dados biográficos sobre Santa Hildegarda de Bingen me impressionaram, não só por externarem a beleza de uma vida consagrada à virtude, como também pelos ensinamentos doutrinários que encerram.

Veremos que Santa Hildegarda, cuja existência transcorreu no século XII, tornou-se uma espécie de milagre contínuo e palpável. Tudo nela nos causa admiração, tendo sido incumbida, de modo particular, de transmitir uma profecia concernente a certa manifestação da Revolução que começava, e de outros aspectos desta até o fim dos séculos. Não seria, aliás, descabido afirmar que ditas revelações constituem mesmo uma elevada prova do que escrevemos em nosso ensaio “Revolução e Contra-Revolução”.

Simplicidade diante das visões sobrenaturais

As referidas notas biográficas são extraídas da famosa obra do Pe. Ro­hrbacher, “Vida dos Santos”:

Santa Hildegarda nasceu no condado de Spannheim, diocese de Mainz, no ano de 1098, de pais nobres e virtuosos. Com a idade de 8 anos, foi levada ao mosteiro de Diesenberg, ou do monte São Disodobe, e colocada sob a direção da bem-aventurada Jutta, ou Judite, irmã do conde de Spannheim.

Ela teve, portanto, uma bem-aventurada para formá-la, desde os 8 anos de idade.

Hoje, muitos se opõem à existência de seminários para menores e também ao fato de se admitir crianças, embora sem votos, nas ordens religiosas. Santa Hildegarda, porém, floresceu maravilhosamente junto às beneditinas, instituição na qual ingressou em tão tenra idade.

Dos 8 aos 15 anos, teve muitas visões sobrenaturais, delas falando com simplicidade às companheiras, que ficavam maravilhadas, assim como todos os que disso tinham conhecimento. Certa de que as outras pessoas eram favorecidas pelas mesmas visões, comentava-as com naturalidade e simplicidade, o que já é uma prova da autenticidade desses fenômenos místicos. Indagavam qual poderia ser a origem de tais visões.

A própria Hildegarda observou, surpresa, que, enquanto via interiormente sua alma, ao mesmo tempo enxergava as coisas exteriores com os olhos do corpo, como de costume, o que jamais ouvira dizer houvesse acontecido a qualquer pessoa.

Ou seja, ela se achava por exemplo numa sala, em conversa com alguns conhecidos e, enquanto falava com eles, tinha visões extraordinárias. Era, portanto, uma grande mística. Desde, então, atemorizada, não ousou mais entreter-se com pessoa alguma sobre sua luz interior. Contudo, muitas vezes em suas conversas se referia a coisas ainda por acontecer e que pareciam estranhas aos ouvidos dos circunstantes. (…) Este estado de intuição sobrenatural perdurou durante toda sua vida

Ela previa o futuro, e os fatos posteriores confirmavam os seus vaticínios.

Escreve as revelações e é curada miraculosamente

Tinha 40 anos, quando ouviu uma voz do céu ordenar-lhe que escrevesse tudo quanto visse. Resistiu durante muito tempo, não por obstinação, mas por humildade e desconfiança. Aos 42 anos e 6 meses, viu o céu se abrir e uma chama muito luminosa penetrou-lhe na cabeça, no coração e em todo o seu peito, sem queimá-la, mas aquecendo-a suavemente. Trata-se, evidentemente, de uma manifestação do Espírito Santo.

Nesse momento, ela recebeu o dom de compreender os Salmos, os Evangelhos e os outros livros do Antigo e do Novo Testamento, de maneira a poder elucidar o sentido das palavras, embora não conseguisse explicá-las gramaticalmente, pois não conhecia o latim nem a gramática.

Sabe-se que, naquele tempo, a Bíblia era quase sempre divulgada em latim. Embora não entendesse o significado das palavras, Santa Hildegarda conseguia explicar o conteúdo dos textos sagrados. Fato que constitui um milagre dos mais assinalados, e também contínuo, palpável. Era um fenômeno manifestado exteriormente, e qualquer um podia constatá-lo.

Como perseverasse em recusar-se a escrever, mais por temor do que desobediência, caiu doente. Enfim, confiou sua preocupação a uma religiosa, sua diretora e, por intermédio dela, ao prior da congregação. Depois de aconselhar-se com os membros mais sábios da comunidade e interrogar Hildegarda, o prior ordenou-lhe que escrevesse, o que ela fez pela primeira vez. Imediatamente se viu curada e levantou-se da cama. É, portanto, outro fato extraordinário.

Aprovação e louvores do Papa Eugênio III

Passamos, agora, da história dela para a das revelações que escreveu. Estas eram garantidas por milagres, dos quais o mais recente havia sido o restabelecimento de sua saúde. Doravante, veremos que as revelações terão uma vida própria, diferente da existência dela. E essa história é realmente admirável.

Tal cura pareceu tão milagrosa ao prior, que este foi a Mainz relatar o que sabia ao Arcebispo e às mais altas figuras do clero, mostrando-lhes os escritos de Hildegarda.

Isso deu motivo a que o Arcebispo consultasse o Papa.

Desejando Eugênio III estar ao par daquele prodígio, enviou ao mosteiro de Hildegarda o Bispo de Verdun, Alberon. Hildegarda respondeu com muita singeleza às perguntas que lhe foram feitas. Tendo o Bispo apresentado seu relatório ao Papa, este mandou que lhe trouxessem os escritos de Hildegarda e, tomando-os nas mãos, leu-os em voz alta…

Percebe-se que o relatório foi favorável e por isso o Pontífice julgou oportuno tomar conhecimento direto dos escritos. Em seguida, uma cena que merecia ser representada numa iluminura ou pintada sobre esmalte:

Leu-os em voz alta na presença do Arcebispo de Mainz, dos cardeais e de todo o clero.

Pode-se imaginar uma sala da Idade Média, com aqueles tronos e assentos feitos de alvenaria, ligados às paredes, nos quais se instalavam esses dignitários eclesiásticos, todos eretos. Nesse ambiente repassado de elevação e seriedade, o Papa começa então a dar leitura das revelações de Santa Hildegarda. É uma cena de um colorido e um pitoresco especiais.

Também contou tudo o que lhe fora relatado pelos emissários por ele enviados, e todos os assistentes renderam graças a Deus.

Imagine-se a beleza do episódio, os presentes exclamando: “Oh! Graças a Deus! Bem haja nosso Redentor! Louvada seja Maria Santíssima! De fato, é tudo magnífico!”, etc. Um coro de louvores.

“Vigilância!” — o conselho de São Bernardo

E havia melhor: São Bernardo lá se encontrava. O que mais acrescentar? Nessa assembleia se ergue a voz possante, sagrada e melíflua do grande Abade de Claraval. É m fato tão impressionante que até nos causa arrepio. Estando ele ali, tudo se ilumina e se transfigura.

São Bernardo estava presente e também deu testemunho do que sabia sobre a santa mulher, porque a visitara quando viajara para Frankfurt.

Como veremos adiante, o Papa Eugênio III escreveu uma carta a Santa Hildegarda, devido à boa impressão que São Bernardo dela tivera na mencionada visita. O que continha essa missiva? Poder-se-ia conjeturar que o Pontífice apenas lhe teceu louvores… Mas, como era orientado por São Bernardo, o Papa, além de felicitá-la pela graça recebida, exortou-a a permanecer fiel a esse dom divino.

Quer dizer, diante de uma grande santa, tem-se primeiro um movimento de admiração. Mas, depois, de temor, considerando que esta Terra é um vale de lágrimas e o risco do pecado não abandona nenhum homem, exceto se confirmado em graça. Daí as perguntas: “Isto durará? Uma maravilha dessas não pode cair?”

O insigne lutador que foi São Bernardo, ele próprio um Santo magnífico e modelo da virtude da vigilância, compreendia os abismos que há potencialmente — embora de modo não consentido — na alma de qualquer um, até na dos que alcançaram alto grau de santidade. Donde a preocupação dele, e do Papa, em dirigir essas palavras a Santa Hildegarda.

São Bernardo pediu pois ao Papa, no que foi secundado por todos os presentes, que divulgasse tão grande graça concedida por Deus à Igreja durante o seu pontificado, e a confirmasse com sua autoridade.

O Papa seguiu o conselho e escreveu a Hildegarda, recomendando-lhe que conservasse, por humildade, a graça por ela recebida…

Ou seja, o Sumo Pontífice diz a Santa Hildegarda: “Olhe, você está indo muito bem, mas não derrape. Depois trataremos de outras questões”. Desta forma foi objetivo e direto, como corresponde à ordem real das coisas nesta terra de exílio.

…e relatasse com prudência tudo quanto lhe fosse revelado por intermédio do Espírito Santo.

Em outros termos: “Conte as revelações que recebeu, mas tenha medo de tanta grandeza, porque ela pode precipitá-la no inferno”.

Prevendo o início e os desdobramentos da Revolução

A santa relatou ao papa Eugênio, em carta bastante longa, tudo quanto ouvira da voz celeste, relativamente ao pontífice. Anunciava uma época difícil, cujos primeiros sinais já se manifestavam. Como se verá, essa época difícil que ela previa e cujos primeiros sinais já se manifestavam, era o início da Revolução.

“Os vales se queixam das montanhas, as montanhas tombam sobre os vales…”

Os vales são a parte inferior da sociedade

“…porque os súditos não mais sentem temor de Deus. Estão um tanto impacientes por subir como que ao cume das montanhas para incriminar os prelados, em vez de acusarem os próprios pecados.”

Deve-se notar que o termo “prelado”, na linguagem medieval, refere-se aos primeiros, não só na ordem eclesiástica, mas também na temporal. São Tomás de Aquino mais de uma vez fala de prelados espirituais e temporais, como sendo os principais da Igreja e do Estado. Então, os inferiores tinham inveja dos que ocupavam posição mais alta, e acusavam os pecados destes, sem se corrigirem das suas próprias faltas. Quando a pessoa não se emenda, torna-se fácil para ela dizer que o outro é um sem-vergonha, enquanto ela mesma é apenas “sem-vergonhote”…
“Os vales dizem: ‘Sou mais adequado do que eles para superior’. Denigrem, por inveja, tudo quanto os superiores fazem”.

Convém lembrar aqui o que afirmamos em “Revolução e Contra-Revolução”, a respeito do orgulho, aplicável igualmente ao vício da inveja: o orgulhoso odeia seu superior, e pode chegar ao ódio à superioridade enquanto tal. Para ele, o bem é a igualdade completa.

“Assemelham-se os vales a um insensato que, em vez de limpar suas roupas sujas, nada mais faz senão observar de que cor é o traje do próximo.”

Quer dizer, o invejoso proclama, por exemplo, que o conde ou o cônego são ruins, mas a sua alma está em pecado mortal. De que adianta essa censura ao defeito alheio?

“As próprias montanhas, isto é, os prelados…”

Portanto, os nobres, os clérigos e, em rigor, também a alta burguesia.

“…em lugar de se elevarem continuamente às comunicações íntimas com Deus, a fim de cada vez mais se transformarem na luz do mundo, descuidam-se e se obscurecem.”

Nessa passagem aparece uma linda noção sobre o papel da nobreza e do clero: ter comunicações contínuas com Deus para se iluminarem cada vez mais com o esplendor divino, para efeito, quer espiritual, quer temporal. Dessa forma, serão como a luz posta no alto da montanha, a iluminar o mundo inteiro. Como eles não seguiram esse chamado, mas relaxaram no trato com Deus, foram se obscurecendo. Não espargiram mais a luz que deveriam, causando assim a sombra e a perturbação que reinava nas ordens inferiores.

Então, setores da plebe não prestavam, mas o ponto de partida dessa decadência foi a atitude de membros da nobreza e do clero que se deixaram tomar pela tibieza. Num justo e majestoso castigo, as partes mais baixas da sociedade, cheias de inveja, investem para derrubar aqueles superiores.

Como essa disposição das coisas nos parece lógica, grandiosa, e como demonstra toda a economia da Providência através da História!

Por outro lado, vamos assim compreendendo quem era Santa Hildegarda, objeto dessas visões e profecias.

Avisos para o próprio Papa

Ela continua, dirigindo-se ao Pontífice:

“E porque vós, grande pastor e Vigário de Cristo, deveis buscar a luz para as montanhas e conter os vales…”

Note-se a tarefa curiosa do Papa. Quanto às montanhas, buscar a luz; em relação aos vales, conter. Dizer aos revoltados que precisam obedecer, e às autoridades, que têm de se voltar para a luz.
“Dai preceitos aos senhores e disciplina aos súditos. O soberano Juiz vos recomenda que condeneis e afasteis de junto de vós os tiranos importunos e ímpios, no temor de que, para vossa confusão, eles se imiscuam na vossa sociedade”.

Provavelmente, o Papa podia assim acabar favorecendo algumas pessoas que tiranizavam o povo. Ora, ele havia sido monge cisterciense, como São Bernardo, e este então lhe escreveu a obra “De Consideratione”, na qual traçava o perfil de virtude que um autêntico Sucessor de Pedro deveria ter. Eugênio III seguiu os conselhos do Santo, levando uma vida tão exemplar que a Igreja o proclamou bem-aventurado.

“Sede compassivo para com as desgraças públicas e particulares, pois Deus não desdenha as chagas e as dores daqueles que O temem.”

A santa, [que se tornara] abadessa, fazia predições e dava apropriados conselhos aos bispos e aos barões, que de toda parte lhe escreviam e a consultavam. Ela foi entre as mulheres o que São Bernardo fora entre os homens. Teve inúmeras revelações sobre as obras de Deus desde a criação do mundo até a derrota do Anticristo.

Morreu em 17 de setembro de 1179, na noite de domingo para segunda-feira, com a idade de 80 anos. A Igreja festeja a santa no dia de sua morte.

Por esses breves traços biográficos nos é dado ver, portanto, que Santa Hildegarda, nimbada de contínuos e indiscutíveis milagres, foi também uma figura profética, tendo apontado o começo, o âmago e os desdobramentos da Revolução ao longo dos séculos. E como todos os heróis da Fé elevados à honra dos altares, é digna de nossa admiração e devoção.

Plinio Corrêa de Oliveira