Silêncios e implicitudes

Em minhas mãos, emprestado por um amigo, tive um disco cuja ilustração da capa me pareceu extremamente sugestiva: era um clássico jardim francês, provavelmente de Versailles, iluminado por um brilho de luar mirífico, um luar não apenas prateado, mas lilás, como os mais entusiastas das refulgências da lua não saberiam pintar.

O dono do disco levou-o consigo. Na minha má memória procurei conservar particularidades daquela gravura que tanto me impressionara, pois sentia em mim que, na recordação daqueles detalhes, qualquer coisa se moveria e cresceria no meu espírito. Era a implicitude de algo que estava em silêncio há muito tempo em minha alma e que em certo momento eu conseguiria explicitar, talvez de modo ainda incompleto.

O que seria? O que me dizia aquele jardim, agora melancólico, e entretanto mais belo do que belo fora na época áurea de Versailles? Dir-se-ia que o Rei Luís XVI há pouco o deixou para nunca mais retornar, sendo levado preso a Paris. Como estaria o palácio no seu interior, quando seus jardins se achavam naquele estado?

De cogitações dessas, que não são diretamente lógicas, nasceu em meu espírito uma espécie de parábola, que não pretendo de nenhum modo ter qualquer valor literário. Mas, seria algo assim…

Imaginemos a primeira noite de Versailles após a saída de Luís XVI, da Rainha Maria Antonieta e do resto da corte. O palácio está fechado, alguns de seus salões ainda em ordem, outros desarrumados, revelando as marcas de uma depredação levada a cabo pelos agitadores da Revolução Francesa. A desolação reina ali dentro, enquanto lá fora os raios de um lindo luar deitam suas cintilações sobre os arvoredos e flores de um parque extraordinário, ainda intacto.

De vez em quando, num ponto qualquer do castelo se ouve o bater de portas e janelas tocadas pelo vento, para em seguida tudo imergir num silêncio como nunca houvera em Versailles, desde a sua construção até aquele momento.

Imaginemos que, nesse cenário de melancolia e abandono, ainda transitava um casal de pequenos nobres que prestavam serviços ao rei. Por razões de ofício, ali permaneceram, recompondo o que fosse possível naquela grande desordem. Terminado o que podiam fazer, eles se retiram e atravessam a célebre “Galerie des Glaces” — a Galeria dos Espelhos —  de Versailles onde, para a surpresa deles, encontram outra pessoa. É um dos músicos do palácio que, já nostálgico, antes de se retirar para sempre dali, toca num cravo uma última melodia, digamos um último minueto.

O casal se detém diante daquela cena, na galeria iluminada apenas pelo luar que atravessa as amplas janelas. Emocionados, esposo e esposa começam a dançar aos acentos da música. Eles dançam o último minueto, o músico fecha o cravo e os últimos sons de Versailles, nos seus dias de glória, se extinguem.

Na consideração desse último minueto dançado em Versailles, disto que não é senão uma parábola — pois não há notícia de que esse fato tenha jamais acontecido —, pergunto eu: é verdade ou não que se pode sentir mais diretamente o que desapareceu com o fim do “Ancien Régime”, do que no-lo diz uma narração histórica inventariando e descrevendo todos os fatos como na realidade se passaram?

Ao contrário do que talvez pensassem certos espíritos muito doutos, cuido eu que o homem capaz de imaginar uma parábola como essa não é um fantasioso. Antes, compreendeu ele um aspecto da realidade muito difícil de explicitar, de exprimir e de avaliar razoável e retamente, mas que tem seu papel na descrição, no estudo e na ponderação da realidade total.

Essa parábola nasceu depois de longos silêncios e de implicitudes fecundas as quais, tomadas de dentro de minha alma como o mel de dentro do favo, veio à luz do dia e se tornou descrição: o último minueto em Versailles. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 23/12/1990)
Revista Dr Plinio 127 (Outubro de 2008)

A sede de admiração

Conforme o pensamento de Dr. Plinio, quando o homem dirige seus anelos para uma ordem de coisas superior à terrena, onde tudo lhe fala da perfeição absoluta do Criador, caminha ele pelas vias da admiração, ao longo da qual tornar-se-á uma grande alma.

 

A partir de qualquer ser possível, podemos imaginar um ser parecido, naquela linha, mas de uma perfeição maior.

Suponhamos um ser dos mais modestos, uma formiga, a propósito da qual nos é dado pensar na formiga perfeita, descartando o que ela tem de feio e analisando apenas os seus aspectos bons e até bonitos. Seria então a arqui-formiga, a formiga obra-de-arte, a formiga-tesouro, que poderia ser representada num diadema ou numa coroa.

Na verdade, a perfeição pode ser considerada em dois níveis: no primeiro, o ser, mesmo com seus defeitos, é levado ao pináculo do que ele pode atingir; no segundo, ele é despido de suas imperfeições e galgado a um superior grau de maravilhamento.

O homem tende a conceber a perfeição absoluta

Por detrás dessa noção se percebe a tendência do homem para o Paraíso, para o Céu, que o leva a conceber o mais perfeito de cada ser e, em última análise, a ideia de perfeição absoluta, que é Deus.

Esta inclinação, por outro lado, faz com que o homem procure também conceber nesta Terra uma série de coisas “paradisáveis”, não com a perfeição absoluta de Deus, mas toda a perfeição de que são capazes. Portanto, quando possui certa elevação de espírito e amor ao Criador, o homem se põe a conceber as coisas com esses vários graus de pulcritude, perfeição e excelência, e estas produzem nele o que em francês se diria um “chatouillement”, uma impressão deleitosa.

Creio que todo homem tem essa tendência, que no período da infância se traduz por um maravilhamento diante das coisas mais diversas. Digamos, quando a criança está numa fazenda e observa o panorama campestre à sua frente, com um rio cujas águas produzem um espelhamento do céu e emitem cores muito bonitas, ela se encanta de modo superlativo com aquilo.

Aspectos maravilhosos da Ásia

É interessante notar que, de certa forma, esse mundo maravilhoso se apresenta em muitos aspectos da Ásia, considerada quer como obra de Deus, quer dos homens. Percebe-se ter havido ali almas que, em determinado momento, pararam, pensaram e admiraram algo da infinita perfeição de Deus e, em seguida, cantaram, musicaram e esculpiram essas admirações, expressando-as em ritos religiosos, danças, palácios, tecidos, porcelanas e outras obras do gênero.

Voôs da pulcritude na Civilização Cristã

E teríamos, assim também, a ideia que orientou as almas a realizarem os esplendores da Civilização Cristã. De fato, na Cristandade ocidental e européia, ao lado de belezas como o castelo feudal, surgiram pequenas populações modestas mas encantadoras, cujas casas eram adornadas com bom gosto e alegria, os vasos de flores colorindo os beirais das janelas, terreiros bem cuidados onde criavam ovelhas e outros animais domésticos, junto com a pocilga dos leitões e, portanto, admitindo um convívio com o prosaico e menos encantador.

Como não nos lembrarmos das aldeias alemãs, com suas características habitações no estilo germânico, no interior das quais havia sempre um forno aceso onde se coziam pães deliciosos, e a lareira fumegante, junto à qual a família reunida entoava festivas canções.

Ou seja, ombreando com monumentos magníficos, havia uma arte popular muito bonita, constituindo com aqueles um mundo contínuo, sem monstruosidades, que ia desde o prosaico do terra-a-terra, até o alto das torres do velho castelo medieval.

E a Civilização Cristã produziu isso de próprio: o castelão e seus convivas eram como as estrelas do céu para o camponês que vivia em torno do castelo. Existia um tal relacionamento entre eles que algo do brilho da vida dos primeiros fazia permear o maravilhoso para o ambiente do aldeão. Essa não é uma afirmação gratuita. Os dados relativos a esse tema são tão abundantes que se poderia fazer, não um álbum, mas uma biblioteca de fotografias sobre as condições do povo na tradição medieval, apenas para se compreender as torrentes de maravilhas que a vida dos superiores proporcionava à existência dos inferiores.

Almas especialmente sedentas de arquetipias

Aliás, tenho a impressão — e o digo como opinião pessoal — de que nos séculos de Civilização Cristã, mais ou menos em todos os ambientes, Deus suscitou almas especialmente sedentas de perfeição, nos vários patamares sobre os quais acima falamos. E, talvez sem perceberem, impulsionaram esse desejo para frente, transmitiram-no às gerações seguintes, não só formando pessoas, mas criando costumes cuja importância, nesse campo, é tal que não se pode aquilitá-la em toda a sua medida.

Ousaria dizer mais. Creio que o primeiro homem a cantar uma bela canção popular, fazendo com que fosse entoada pelos demais habitantes e se tornasse um emblema daquela região; ou o primeiro homem que resolveu colocar um pote de gerânios na frente de sua casa para enfeitá-la, com o desejo de oferecer a quem o admirasse, a carícia desse convite para elevar suas vistas a uma esfera mais alta — esses pioneiros desempenharam, na ordem natural, um papel semelhante ao de um profeta na ordem sobrenatural. Nesse sentido de que apontaram aos outros o caminho da perfeição e da pulcritude que conduz à beleza absoluta, que é Deus.

Um perigo a se evitar

O escolho a se evitar nessa tendência para o maravilhoso perfeito é de se deixar atrair e dominar pelos deleites que a admiração pode produzir em nós. Pois, não raro, o admirável é delicioso. O indivíduo sente-se agradado no exercício de seu intelecto admirando algo, mas também pode sentir uma delícia física, como, por exemplo, quando ouve uma bela música. É possível que, na convergência dessas duas formas de sensação prazeirosa ele seja tentado a preferir apenas o gosto físico. Cedendo a essa tentação, começa a decadência, e ele passará a procurar somente as delícias palpáveis, desprezando as delícias “alpinísticas” do pensamento.

Chegará o dia em que esse indivíduo será dominado pela preguiça de empreender qualquer voo de espírito, e deixará o tempo se esvair como a areia escorre na ampulheta. Seu único trabalho será o de inverter a posição dela e deixar o pó cair novamente. Pior. Ao cabo de alguns anos, o homem que morou no palácio e nos parques da admiração, começa a olhá-la como inimiga. Porque se ele quiser voltar ao palácios e aos parques, terá de se esforçar. E tudo quanto dele exige força é seu inimigo. Assim ele naufraga na vida de delícia.

Alcançando o ponto máximo da admiração

Pelo contrário, à medida que o homem progride na admiração autêntica, no fundo de seu horizonte vai tomando corpo algo novo que é o ponto máximo do que ele admira e com o qual nunca sonhou. À força de se encantar com as coisas intermediárias, começa a se delinear para ele o objeto supremo da sua admiração. Assim, vai criando uma série de pontos de atração pinacular, os quais constituem para ele como que um Céu nesta Terra.

Se ele souber vencer os apelos do delicioso e viver para a admiração, encontrará o caminho a seguir para se tornar uma grande alma. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 4/6/1994)
Revista Dr Plinio 127 (Outubro de 2008)

 

A prece dos fortes

No dia 7 de outubro celebra-se a festa de Nossa Senhora do Rosário, estabelecida pelo Papa São Pio V a fim de manifestar a jubilosa gratidão da Igreja para com a Santíssima Virgem, cuja solícita  intercessão determinou a vitória da causa católica na batalha de Lepanto.

Ardoroso devoto do santo Rosário, por ele rezado diariamente, Dr. Plinio não perdia oportunidade de enaltecer as excelências dessa prática mariana, sendo-lhe — como afirmava — “motivo de sumo agrado” recomendá-la e incentivá-la entre seus filhos espirituais. Nesse intuito, fazia-lhes compreender como o Rosário “ocupa privilegiadíssimo papel na história da piedade católica. Em primeiro lugar, porque une o fiel a Nossa Senhora, e atrai para ele toda sorte de graças celestiais. Em segundo lugar, porque afugenta o demônio. Alguém que se sinta tentado, tome fervorosamente o Terço em suas mãos, e ver-se-á forte contra a investida do inimigo de nossas almas.

“Excelente meio de venerar a Mãe de Deus, é incalculável a torrente de bênçãos que a recitação do Rosário efundiu sobre a Cristandade. Por isso, Papas e autoridades eclesiásticas não se cansam de elogiá-lo. Se tal não bastasse, a Santíssima Virgem, querendo Ela mesma incentivar essa inestimável devoção, mais de uma vez apareceu trazendo em suas mãos virginais o piedoso instrumento. De modo particular, nas aparições de Fátima, em Portugal, quando recomendou aos homens, com tocante insistência, a recitação diária do Terço. Além disso, a Igreja enriqueceu o Rosário com muitos privilégios e indulgências, inclusive plenárias, de maneira a fazer dele um verdadeiro tesouros de bênçãos inapreciáveis.

“A recitação do Rosário se dilatou de tal maneira que, durante muito tempo, identificou-se com a piedade católica: uma e outro eram a mesma coisa. Fosse nos atos cotidianos da vida espiritual, fosse nas festas e celebrações de maior significado, o Rosário — ou o Terço — sempre esteve presente como expressão do fervor das almas devotas.

“São Domingos recebeu da Rainha do Céu este mesmo Rosário cuja forma hoje conhecemos: começando pelo Crucifixo, que devemos oscular pedindo à Mãe de Deus que seja nossa intermediária e apresente a seu Filho nossas orações; em seguida, três Ave-marias, um Glória, e depois as cinco dezenas em que meditamos nos principais Mistérios da vida de Jesus e de Maria Santíssima — Gozosos, [Luminosos(1)], Dolorosos e Gloriosos.

“Ainda que rezado por almas mais frágeis, o Rosário é a prece dos fortes, é a súplica dos batalhadores, porque é um conjunto de orações de tal eficácia que faz avançar o bem e recuar o mal. A par das riquezas espirituais que encerra, temos a pluralidade dos feitios e coloridos com os quais é utilizado: rosários pequenos, graciosos, delicados, para crianças de trato; modestos e rústicos, mas fortes, dedilhados por mãos vigorosas que passam sobre aquelas contas;sério, varonil;rosários de princesas, de rainhas, lavorados como verdadeiras jóias, preciosos como esses que pendem das mãos das imagens de Nossa Senhora. Todos nos fazem ver algo da suavidade e da bondade régias de Maria, protetora dos débeis, amparo dos fortes, como foi o próprio São Domingos, enfrentando e vencendo com o Rosário a heresia albigense.”

E após recomendar com incansável empenho a recitação do santo Rosário, necessária aos fiéis de todos os tempos, Dr. Plinio ainda oferecia este tocante conselho: “Nunca nos separemos do Terço. Que ele esteja sempre junto a nós, em todos os momentos: quando dormimos, quando descansamos, quando estivermos lendo ou fazendo toda e qualquer coisa. Jamais o larguemos. E quando nossas mãos não puderem mais nem se abrir nem se fechar, mas forem fechadas por outros para a nossa última atitude de oração, que o Rosário esteja entrelaçado em nossos dedos. De sorte que, chegado o momento da grandiosa Ressurreição dos mortos e nosso corpo recobrar vida, nosso primeiro gesto possa ser o de oscular o Terço que encontraremos cingidos às nossas mãos…”

 

Plinio Corrêa de Oliveria

1) Dr. Plinio faleceu em 1995, antes de o Papa João Paulo II enriquecer o Rosário com os Mistérios de Luz, na sua Carta Rosarium Virginis Mariae. Motivo pelo qual acrescentamos os mesmos entre colchetes, para o presente comentário adquirir ainda mais atualidade.

Idealismo ou fruição da vida?

“Se alguém quer vir após Mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar sua vida, a perderá; e quem perder sua vida por causa de Mim, a encontrará” (Mt 16,24-25).
Dr. Plinio sempre teve vincado em sua alma este ensinamento do Divino Mestre, e continuamente admoestava seus discípulos a serem fiéis no cumprimento deste sublime conselho evangélico.

 

Muitas pessoas têm a ideia de que suas vidas lhes foram dadas para elas mesmas, a fim de viverem confinadas dentro de seus próprios interesses e sem noção alguma do que seja viver em função de uma causa.

O fato de a pessoa se contentar inteiramente em viver sem dedicar-se a uma causa, e nem mesmo ter ideia do que seja uma causa, cria a impossibilidade de ela possuir uma alta ideia de causa. Porque não tem ideia de algo quem não compreende nem sequer o que esse algo possa ser. Por exemplo, um cego de nascença não pode ter ideia do valor de uma cor.

Choque contra o primeiro Mandamento

O indivíduo faz este raciocínio: “Eu existo. Deus de um modo ou de outro me criou, estou aqui. Para a vida ter razão de ser, é preciso que ela me proporcione as fruições que são próprias a uma vida. Se essas fruições não me forem concedidas, eu não vivi”.

A razão da vida dele é fruir. Essa ideia se choca evidentemente com o primeiro Mandamento da Lei de Deus, que é amá-Lo sobre todas as coisas.

Mas há um equívoco, um erro, dentro disso, que funciona da seguinte maneira: “Eu sirvo a Deus não fazendo o que Ele proibiu. Dos Mandamentos, três são referentes a Deus, um manda honrar pai e mãe e os outros são negativos: não pode isso, não pode aquilo… uma obrigação e seis recusas. Se eu me abstiver desses seis atos, implicitamente terei praticado os três primeiros. Portanto, o campo de batalha é esse. Posso praticar todos os Mandamentos sem pensar nos três que se referem a Deus. Então posso reduzir ao seguinte: se eu for bom para os outros, não cometer pecado contra eles, terei dado a Deus aquilo que Ele mandou. Fora disso, o próprio Deus já dispôs as coisas para que houvesse a fruição. De maneira que eu fruo, porque tudo que não seja fruição não faz parte da finalidade da vida”.

E aqui está o erro e a falta de noção do que é “causa”.

Tese, ideal e causa

Vejamos o que significa causa. Causa não é apenas um ideal, mas um ideal posto em luta, em choque, a favor do qual trata-se de dedicar e que pode trazer consequências gravíssimas, dependendo das atitudes tomadas. Há diferenças entre tese, ideal e causa.

Tese é uma certeza que se tem e se demonstra, mas, tomada em abstrato, não traz nenhum engajamento de dever. Por exemplo, alguém sustenta que se deve dormir cedo, pois isso faz muito bem à saúde, e alega diversas razões benéficas, com base na Medicina, para provar sua tese. Enfim, cientificamente compreendo que isso possa ser assim, mas isso é uma tese.

Ideal já é uma tese que desperta na pessoa uma série de atitudes, de entusiasmos, de enlevos etc., e convida para uma dedicação.

Causa é o ideal que convida não só para a dedicação, mas para o sacrifício, para o esforço.

Por exemplo, a Doutrina Católica tem veracidade; é uma tese, ou seja, isso pode ser demonstrado. Ela não é apenas um ideal, mas o ideal. Mas ela é uma causa. Quer dizer, nós devemos vê-la como sendo hoje continuamente negada, contestada, conspurcada etc., ou em perigo de o ser. Por causa disso, nossa posição deve ser de defendê-la, dedicarmo-nos a ela. E isso é um dos aspectos distintivos da Igreja: ser militante.

Portanto, isso supõe as seguintes conclusões: a pessoa nasceu não para fruir, exceto no conhecimento dessa causa. Porque o resto é um fruir completamente secundário, não vale nada.

E nenhum ideal é digno desse nome enquanto não tenha uma relação, não encontre seu mais alto significado no ideal católico.

Colocar o centro de gravidade na causa

Explico melhor o que estava dizendo anteriormente.

A atitude privatista: “Tal coisa não é pecado, é um direito meu que posso eventualmente arguir até contra Deus — porque, no fundo, chega até lá! —, ou, pelo menos, Ele pode desejar muito que eu renuncie a tal coisa, mas não deu ordem. Logo, eu me salvo não dando essa coisa para Ele”. Essa posição torna impossível compreender inteiramente o significado do ideal católico.

Poder-se-ia perguntar se o homem que cuida demais de seu interesse privado não acaba arruinado. E a resposta é: Se está entregue às coisas do mundo, não; se ele se dedica a Deus, sim! Para um homem mundano, que cuida de seu próprio interesse de modo frenético, a vida pode lhe trazer desastres, por disposições da Providência. Mas alguém que serve a Deus e se põe muito a cuidar de seu interesse particular, está selado de antemão para a ruína.

Toda a questão é de “centro de gravidade”. A pessoa deve ter a coragem de colocar o seu “centro de gravidade” na causa. Esse é o problema. Enquanto não fizer isso, à medida que o indivíduo vai fazendo renúncias, ele vai se agarrando a fórmulas cada vez mais tênues e veladas de coisas em que ele possa continuar a ser o “centro de gravidade” do que ele executa. E o grande problema é deslocar de dentro de si o seu “centro de gravidade”. No fundo, é o gosto de sentir-se a si próprio. Por causa disso, acabam surgindo nos religiosos e em outras pessoas que se dedicam a Deus, manifestações as mais desconcertantes.

Portanto, trata-se de pedir a Nossa Senhora que  o nosso “centro de gravidade” seja posto em Deus e que o apego a si próprio deixe de ser o centro da vida.

Um religioso é uma pessoa que se deu a Deus nesse “centro de gravidade”, e ficou religioso para conseguir, a rogos de Maria, que o torne completamente d’Ele. Então todo o resto — consagrar‑se só às coisas divinas, obedecer ao superior etc. — são circunstâncias favoráveis para isso, mas não são o “clou”(1) da questão.

O verdadeiro ideal é como a luz que ilumina as trevas da vida

E quando a pessoa é chamada a dedicar-se a um ideal, ela foi destacada por Deus da condição de uma pessoa privada, destacada do “privatum” para o “publicum”. Ela se deu à causa, passa a ser uma pessoa pública, a ter estatuto público nesta ordem de coisas.

Deus faz a essa pessoa uma promessa implícita na vocação: “Se tu aceitares isso, eu falarei contigo como falava com Adão no Paraíso”. É uma analogia desse gênero. Deus se comunica com a alma, dando-lhe paz, alegria etc. Entretanto, fazemos isso não meramente para conseguir a paz, a alegria, mas para estar unidos a Nossa Senhora, e por meio d’Ela unirmo-nos a Ele.

Mas pode acontecer que o indivíduo restrinja o domínio do “privatum” a uma minúscula “ilha”. Isso tem seu mérito, é verdade. Mas naquela “ilha” ele é um Robinson Crusoé sem Sexta‑Feira, e acaba tendo um apego enorme. E há mais distância entre o homem que renuncia à “ilha do apego” e o que mora na “ilha” apegado, do que entre o homem que renuncia ao mundo para ir à “ilha”.

Vamos imaginar o seguinte processo: Um homem tem o mundo inteiro, renuncia a ele e vai para a “ilha” de uma vida religiosa. Depois, renuncia à sua própria “ilha” e se dá inteiramente a Deus. O segundo lance é maior do que o primeiro!

Não pode haver situação mais cheia de ânimo, de maior “lumen”, do que a de uma pessoa que resolve levar seu ideal até às últimas consequências, ainda que tenha de sofrer muito sacrifício para a realização do seu ideal. Porque o ideal em si, a presença dele, torna tudo leve, é a luz que ilumina todas as coisas do mundo.

Pode-se tomar o início do Evangelho de São João(2) e aplicá-lo ao ideal. Ele se aplica ao pé da letra, de tal maneira que Nosso Senhor Jesus Cristo é a personificação de todos os ideais santos, e todo ideal santo é um reflexo do Divino Salvador. Pode-se dizer que o ideal verdadeiro é a luz que brilha nas trevas da vida humana, e as trevas não conseguem abarcar esse ideal enquanto a pessoa o tem, enquanto está unido a ele.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências  de 29/3/1974 e 22/3/1980)

 

1) Do francês: prego; o ponto alto. Neste segundo sentido, indica o ponto central, o aspecto mais importante de algo.

2) “A luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram dominá-la.” (Jo 1,5)

Santa Margarida Maria – A hora da misericórdia voltará

A festa de Santa Margarida Maria Alacoque, que a Igreja Universal celebra hoje, trouxe-me à memória um fato antigo, que não é sem interesse para os dias que correm.

Quando viveu na França a humilde visitandina à qual o Sagrado Coração de Jesus fez suas tão suaves confidências, reinava Luís XIV, que a admiração universal consagrou com o título de “Roi-Soleil”.

Este epíteto correspondia à realidade. Dizia Mazzarino, que vivera na sua mais absoluta intimidade, que havia nele estofo para cinco reis. Tanto do ponto de vista físico como moral, representava Luís XIV o tipo clássico daqueles reis de fantasia, com que certos contos costumam deslumbrar as imaginações infantis.

De uma formosura viril e majestosa, acentuada por uma perfeita nobreza de porte e de gestos, e por uma indumentária admiravelmente escolhida, foi ele o modelo supremo dos gentis-homens de seu tempo. As qualidades de inteligência e caráter estavam à altura desse físico magnífico. Sua inteligência era clara, vasta, metódica e idealmente equilibrada. Sua vontade dotada de tal força imperativa, que dobrava quaisquer obstáculos. De um soberano domínio sobre si, não se permitia ele em manifestações extremadas de cólera, de prazer ou de dor. Pelo contrário, todos os acontecimentos o encontravam sempre igualmente sereno, igualmente grande, igualmente sobranceiro. De tal maneira sua índole se havia conformado com as obrigações de “métier” de Rei, que o protocolo era, nele, como que conatural, e até mesmo as suas ações as mais triviais denotavam a alta noção que ele tinha de sua dignidade e de seus deveres.

* * *

Quando Deus dá a alguém qualidades naturais singularíssimas, de qualquer natureza que sejam, impõe-lhe implicitamente responsabilidades onerosas.

Conta-se que os PP. Jesuítas, que foram educadores de Voltaire, impressionados com a inteligência do menino, costumavam dizer que ele seria ou um Santo, ou um demônio.

Luís XIV era uma dessas almas privilegiadas que Deus chama a grandes realizações, e que, por isso mesmo, estão na eminência de descambar pelos mais profundos abismos, caso não correspondam à própria vocação. Se ele tivesse querido ser um novo São Luís, é provável que a Revolução Francesa não tivesse explodido, que a pseudo-reforma protestante tivesse sofrido desastres irreparáveis, e que o curso da História, em lugar de correr pelos precipícios por onde vai, tivesse assumido orientação inteiramente diversa.

Mas Luís XIV não quis ser um novo São Luís. Sensual, ávido de prazeres, ambicioso e vaidoso em extremo, sacrificou à sua lascívia e ao que ele supunha ser sua glória, tempo, recursos e prestígio que Deus lhe havia dado para fim inteiramente diverso. Depravando o Reino por seu mau exemplo, provocando guerras com o único intuito de dilatar seus Estados, desunindo entre si as potências católicas então ameaçadas pelo alastramento do protestantismo, e aliando-se com os próprios muçulmanos contra o Santo Império, faltou ele a seus mais elementares deveres de Rei, e mereceu a censura, em seu tempo, de todos os franceses verdadeiramente católicos mesmo entre aqueles que lhe eram mais fielmente devotados.

Manda, entretanto, a justiça que se acrescente que a vida do grande Rei teve altos e baixos, e que, se em certo sentido ele faltou gravemente a seus deveres para com a Igreja, em outro sentido, lhe prestou assinalados serviços, entre os quais figura com destaque a sapientíssima revogação do Edito de Nantes.

Não obstante tudo isto, o certo é que o Rei não desempenhava aquela missão providencial à qual, evidentemente, fora chamado por Deus.

* * *

Santa Margarida Maria Alacoque 

Intervém aí a humilde Visitandina. Em revelação, o Divino Redentor mandou-lhe dizer ao Rei que se consagrasse, e bem como o Reino, ao Sagrado Coração. A comunicação foi feita em tom imperativo, e deixava ver claramente que a recusa do monarca acarretaria para ele e para a França os mais severos sofrimentos.

Evidentemente, o Sagrado Coração de Jesus não desejava de Luís XIV apenas uma consagração “pro forma”, mas uma consagração real, que implicasse na renúncia a todos os pecados e todos os erros do Rei.

Por meio de uma pessoa da nobreza, com quem tinha relações, Santa Margarida Maria fez chegar a comunicação a Luís XIV, que, entretanto, não lhe deu importância, e a consagração não foi efetuada.

Recusada assim essa providencial fonte de graças, o Reino foi descambando cada vez mais pelos abismos da impiedade e da libertinagem, até que o extravasamento destes males, isto é a Revolução Francesa, veio lançar por terra o trono dos Bourbons, e atear pelo mundo inteiro o facho diabólico e incendiário do espírito de rebeldia.

Entretanto, não se sabe se a recordação do recado de Santa Margarida Maria perdurou na família de Bourbon, ou se o fato que passamos a narrar foi devido a um mero movimento de piedade espontânea de Luís XVI. O que, de qualquer modo, é certo, é que, entre os papéis do Rei, encontrados em sua miserável prisão do Templo, se achou uma nota em que o desditoso soberano prometia a Deus que se consagraria, e a toda a França, solenemente, ao Coração de Jesus, o que desde logo, em forma privada, ele fazia no cárcere. Assim, dizia ele, seria de esperar que o Coração de Jesus arrancasse a França aos horrores da Revolução.

O piedoso e infeliz monarca fez, pois, no cárcere, o ato de piedade que seu poderoso antecessor se recusara a fazer nos esplendores de Versailles. Mas ao que parece a hora da misericórdia já tinha passado, e já era tarde para deter o curso da justiça divina.

Luiz XVI, pessoalmente, teve sua recompensa com a graça de morrer de modo edificante, chegando alguns a afirmar que foi mártir. Conta-se que, ao subir ao patíbulo, o carrasco quis amarrar suas mãos com cordas, ao que o Rei se recusou terminantemente, originando-se daí um ligeiro início de luta física entre ambos. O Rei voltou-se, então, para seu confessor, perguntando-lhe o que dizia a isto. A resposta do sacerdote foi pronta: “Se Vossa Majestade se deixar amarrar, sua morte terá mais um traço de analogia com a do Salvador”. Imediatamente, a resistência da vítima cessou. Daí a pouco, sua cabeça tombava sob a lâmina da guilhotina, e o Sacerdote que o acompanhava exclamava: “Filho de São Luiz, subi ao Céu”.

* * *

É possível, realmente, que a hora da misericórdia tivesse passado. Não porém, de modo definitivo. A França tem tido por demais Santos, de lá para cá, para que se afirme que a hora da misericórdia de Deus passou para ela. Hoje mesmo, quando a França está imersa em luto profundo, e uma metade de seus filhos já não reconhece a outra, na desolação do panorama contemporâneo, se pode afirmar entretanto que há Santos. Santos verdadeiros. Santos autênticos, vivendo na penumbra em território francês, e preparando por suas penitências, por suas orações, por seu trabalho, a grande França de amanhã, que não será nem a França liberal de ontem, nem a França totalitária de Vichy, mas a França católica, de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Enquanto na Europa os legisladores reformam  as instituições, os banqueiros reformam a economia ao sabor das heresias de hoje, na penumbra os Santos reformam as almas e, pela reforma autêntica da almas, destruirão a falsa reforma das instituições e da economia.

Plinio Correa de Oliveira, (in Legionário, N.º 423, 20 de outubro de 1940)

A beleza e a harmonia

A majestade real resplandeceu num dos atos mais belos da história da Inglaterra quando o Rei Santo Eduardo, cumprindo o desejo do Papa, conduziu em seus ombros um mendigo ao qual curou e uma terrível doença.  Analisando o fato, Dr. Plinio nos aponta, com profundidade, a beleza do princípio de ordem e harmonia que nele está refletido.

Num trecho do livro “La Baja Edad Media”(1), de autoria de Cristopher Bruck, Professor de História Medieval da Universidade de Liverpool, está descrito o seguinte fato da vida de Santo Eduardo, a respeito do qual eu gostaria de fazer algumas considerações.

A imagem medieval da pobreza, a realeza e a vontade divina se ilustram na vida do Rei Eduardo, o Confessor, do século XII.

Essa história narra que Gila Michael, um irlandês, foi a Roma em busca de remédio, mas São Pedro lhe disse que sanaria o mal se o Rei Eduardo da Inglaterra o levasse sobre os ombros desde a Westminster Hall até a Abadia de Westminster.

São Pedro, neste contexto, quer dizer o Papa.

O virtuoso monarca consentiu. Pelo caminho, o intumescido irlandês sentiu que se afrouxavam os seus nervos e suas pernas se distendiam.

O sangue de suas chagas corria pelos trajes reais, mas o Rei o levou até o altar da Abadia. Ali chegando, o pobre doente ficou curado; começou a andar e pendurou as muletas na Abadia, como sinal do milagre.

“Basta o Rei carregar-te aos ombros”

Como lemos acima, um homem vítima de grave e dolorosa enfermidade, a qual fazia com que seus nervos se contraíssem, produzindo, com isso, feridas que dificultavam extremamente seus movimentos. Certo dia, esse homem conseguiu que o levassem até o Papa para que lhe pedisse a cura. Este respondeu ao enfermo que ele seria curado, mas para isso era necessário que o Rei da Inglaterra o pusesse sobre os ombros e o levasse da grande sala de Westminster até a Abadia, onde por fim encontraria a cura do mal que o atormentava.

Voltando à Inglaterra, o pobre homem teve certamente de percorrer longos trajetos, por estradas onde a todo momento estava em risco de cair em mãos de salteadores. Por outro lado, quanto bom trato e hospitalidade não terá o viajante recebido nos conventos pelos quais passava. Talvez as pessoas generosas lhe ofertassem esmolas para assim poder prosseguir a aventura que consistia tal viagem.

A majestade e a repugnância se encontram

Tendo chegado, por fim, à Inglaterra, o doente dirigi-se ao palácio real. Alegando trazer uma mensagem pontifícia, ele conseguiu comparecer à presença do soberano. Imagine-se como terá sido a cena daquele homem chegando diante do Rei, o qual provavelmente se encontrava em seu trono, cingindo o diadema e as vestes reais, resplandecente de majestade, mas ao mesmo tempo de bondade e afabilidade.

— O que quer? Interroga-lhe o Rei.
— Senhor, eu venho da parte do Papa.
— Então, diga-me do que se trata.
— Ele pede que vós me cureis.
— Mas como poderei fazer isso?
— É ordem do Papa…

Quanto contraste nesta cena! De um lado, o pobre homem, provavelmente um mendigo, coberto de chagas sangrentas e repugnantes; do outro lado, o Rei, saudável, presumivelmente jovem e cheio de majestade.

O recado que é transmitido consiste na manifestação do desejo do Papa de que esse grande monarca, glorioso chefe da nação, carregue ao pescoço aquele mendigo chagado e purulento, apresentando-se nessa postura humilhante pelas ruas, ao longo de todo o percurso.

O santo soberano atende o pedido. E, na pequena Londres de então, o Rei sai de seu palácio, enquanto as sentinelas se perfilam e um arauto toca trombeta avisando que Sua Majestade vai passar. Provavelmente, nas ruazinhas estreitas da cidade de Londres, o povo se espanta com a saída do Rei, sobretudo porque ele não está, como de costume, montado em seu magnífico corcel, nem tampouco numa carruagem, mas está a pé, sozinho, sem guardas nem tropas e fazendo-se montar por aquele indivíduo.

Dos mais belos fatos da monarquia inglesa

Naquela cidade pequena, onde todo mundo se conhece, certamente o povo deve ter comentado: Logo Gila Michael, esse mendigo miserável, carregado assim pelo Rei! Nosso augusto Rei, Santo Eduardo, símbolo da Inglaterra e da virtude da Igreja Católica, ele tão majestoso, digno e altivo como um lírio, trazendo um mendigo montado sobre si! Que coisa extravagante!”

Enquanto isso, tanto o mendigo quanto o Rei vão rezando, e pedindo a Nossa Senhora a esperada cura.

Atrás do Rei o povo atônito forma um cortejo que caminha rumo à Abadia de Westminster, a fim de ver qual será o desfecho daquela curiosa cena.

No caminho, porém, as vestes reais vão se enchendo de pus e sangue que começam a verter das chagas daquele homem, o qual ao mesmo tempo começa a sentir que algo nele está se dando. Ao entrar na Abadia, em meio à expectativa geral, talvez devido ao fato de o povo pressentir que uma das mais belas cenas da história daquele recinto estava prestes a acontecer, o monarca dirige-se para junto do altar, lá tira o precioso fardo de seus ombros e o põe no chão. Então, o homem, que montando no Rei, vinha trazendo nas mãos suas muletas, larga-as e começa a andar, pois suas chagas estavam inteiramente secas e ele miraculosamente curado.

Por outro lado, o Rei está com seus trajes gloriosamente cobertos de sangue e pus. Enquanto se operou por seu intermédio um grande milagre através do qual a majestade real resplandeceu esplendorosamente num dos atos mais belos de toda a história da monarquia inglesa.

Belo como fato ou como lenda

Alguém poderia levantar dúvida sobre a historicidade desse fato. A meu ver, isto não tem grande importância, pois ainda que venha a ser um mito ou uma lenda, o importante é ter havido numa determinada época multidões desejosas de que as coisas tivessem se passado deste modo; caso contrário, nem mesmo seriam capazes de inventar algo assim.

Pode tratar-se de uma lenda baseada num fato verídico, o qual foi glosado e embelezado para atender mais plenamente a apetência das pessoas, porém, o que importa é ter existido um povo que tivesse o estado de espírito tendente a se entusiasmar com a possibilidade das coisas se passarem desta forma.

Como vibram de entusiasmo por realidades diferentes as pobres multidões hodiernas, infelizmente tão massificadas, materializadas e quase aniquiladas!

Este episódio é indiscutivelmente belo, porém é necessário fazermos uma análise a fim de que a beleza que nele se encontra não permaneça apenas como convicção, mas seja fundada no raciocínio, para desta forma podermos compreender mais profundamente o esplendor da Igreja Católica, sem a qual tais fatos seriam impossíveis, seriam impensáveis.

A espera só aos fortes é pedida

O primeiro aspecto encontra-se na Fé daquele homem, que não hesita em ir candidamente pedir ao Papa um milagre. Por outro lado, também, quanto prestígio gozava o Papado naquele tempo! Pois, o enfermo foi até ele com certeza de que seria curado.

Como a Providência tratou a Fé desse homem?

Poderia tê-lo curado logo, mas não o fez. Pelo contrário, inspirou ao Sumo Pontífice de enviá-lo de volta à Inglaterra para lá ser miraculado. Tal ato de confiança Nossa Senhora pede aos fortes. Enquanto aos débeis na Fé, a maior parte das vezes Ela atende imediatamente.

Outro aspecto de beleza é a certeza do pobre homem de que o Rei Eduardo o iria curar. Caso fosse rabugento poderia pensar: “Por que fui até Roma se eu tinha tão perto de mim quem me podia curar?” Mas, não possuindo esse defeito, ele aceitou que Nossa Senhora dispusesse dele como quisesse, indo ter com o Rei cheio de tranquilidade e uma Fé que move montanhas.

Um rei “cavalgado” por um mendigo

Chegando à Inglaterra, o mendigo pede a cura apresentando ao Rei a condição do Papa para alcançar o milagre. Era de que ele “cavalgasse” o Rei.

A condição não poderia parecer mais extravagante, pois o Rei podia curar o mendigo ali na mesma hora. Então, por que deixar-se cavalgar por um doente como aquele? Por outro lado, tratando-se de irem até a Abadia de Westminster, não podiam os dois para lá se dirigir sentados numa carruagem?

Aquele pedido do Papa, o qual no fundo manifestava o desejo da Providência, parece ser a inversão de toda a ordem, pois Deus criou os reis para governar e não para serem montados por mendigos. Isso é uma desordem?

Não, a ordem encontra-se profundamente presente nesse fato. Por quê?

A grandeza de se fazer pequeno

Trata-se do seguinte: É lindo o fato de o poder público dominar, é verdadeiramente maravilhoso e nobre que os inferiores prestem aos detentores deste poder o respeito que lhes é devido. Sobretudo quando se trata de alguém que reconhece a origem divina de seu poder.

Mas, é também esplendoroso que, em certas ocasiões, o maior, às vezes heroicamente, seja pai, amparo e auxílio do menor. Por isso, é bonito que um rei, homem posto no mais alto píncaro da hierarquia social, se lembre de que ele é homem como o outro, pois de certa forma todos são iguais. São desiguais apenas em seus acidentes, os quais por vezes são de uma importância muito grande, mas, em sua essência, o rei é homem como o outro.

Por causa disso, o maior deve ser capaz de servir o menor, respeitando assim a qualidade de homem que ambos têm em comum.

Estes são os dois aspectos lindíssimos desse fato: um pobre resignado, mas que com essa naturalidade e Fé pede ao Rei para que o leve sobre os ombros; um Rei que reconhece a altura de sua realeza, mas é capaz de dizer: “Meu filho, pois não. Suba e vamos juntos pedir o milagre que você necessita”.

A maravilhosa harmonia das desigualdades

Há neste episódio uma harmonia que corresponde à lei profunda das harmonias, a qual admite que os extremos se toquem: é belo ver a realeza tocar na mendicância e, assim, ambas se unirem harmoniosamente.

É belo, portanto, ver ambas se aproximarem do altar junto ao qual está Deus que se encanta ao ver o esplendor daquela obra da qual Ele próprio é Autor. Ele criou o mendigo e também o rei. Ele quis que no mundo houvesse realeza, mas também pobreza, sofrimento, dor, doença, mendicância. E em tudo isso Ele pôs uma harmonia perfeita.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/6/1974)

 

1) “La Baja Edad Media”, Ed. Labor, Barcelona, 1968, p. 32.

Santa Margarida Maria

Algumas pinturas retratam as aparições do Sagrado Coração de Jesus a Santa Margarida Maria Alacoque: Ele se dirige à vidente numa expressão de bondade, comprazimento e misericórdia insondáveis. Ela, por sua vez, naturalmente nimbada de enlevo e adoração.

Ah! Se pudéssemos ouvi-Lo manifestando aos homens o infinito amor de seu Coração Sagrado por nós! Se nos fosse dado conhecer o timbre de sua voz, ensinando como Divino Mestre: repassado de clareza, sabedoria, profundidade e horizontes extraordinários, ao lado de uma simplicidade desconcertante! Como gostaríamos de ali estar, ao lado de Santa Margarida Maria, adorando-O com todas as veras de nossa alma!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Castelo de La Brède, beleza e encanto

Força e placidez, longe de se excluírem, harmonizam-se perfeitamente nesta construção iniciada no século XIV, a respeito da qual Dr. Plinio tece interessantes comentários.

 

Vamos fazer uma exposição de alguma coisa da Europa, que desperte o senso do maravilhoso, do admirável, do estupendo, do esplêndido, porque a apetência das coisas maravilhosas é um elemento fundamental para o desenvolvimento de uma verdadeira civilização, desde que esse maravilhoso seja reto e bom.

Pequena fortaleza maravilhosa

Temos aqui uma espécie de micro-maravilhoso, cuja maravilha consiste precisamente em ser micro. Trata-se de um pequeno castelo francês, não de grande luxo. É uma habitação comum, mas que possui as proporções de um castelo. E tem uma certa importância histórica porque é o chamado Castelo de La Brède, aonde morou  o malfazejo e célebre Montesquieu(1). Está situado na Gironde, nas proximidades de Bordeaux.

Para compreendermos a arquitetura um pouco singular do castelo, nota-se que ele se compõe de um corpo grande e, junto dele, outras construções menores.

O castelo possui um sistema de defesa na hipótese de um ataque. Pelo traçado do lago, percebe-se que ele é artificial, ou natural, mas que foi muito retificado em seus contornos, para que pudesse ser utilizado de fosso para o castelo. Todas as janelas do castelo ficam a uma considerável altura da superfície das águas. De maneira que ao se encostar um barco com homens armados, estes facilmente podem ser atingidos pelos defensores postados nas janelas mais altas. E o ataque direto ao castelo, para quem queira atingi-lo por água, fica difícil.

Então o recurso é atacá-lo por terra, tentando entrar pela porta, mas encontrarão várias dificuldades, pois é uma verdadeira fortaleza. Suspendendo-se a ponte levadiça, a porta é quase inacessível.

Uma moldura de irrealidade

Pode-se dizer que é um castelo estritamente funcional, porque todas as suas partes foram calculadas para uma determinada função militar muito definida. Apesar de ele ser estritamente funcional, não lhe faltam uma grande beleza e um grande encanto. E isso não obstante o fato de se tratar de uma construção pobre.

De onde vem essa beleza e esse encanto? Qual é o valor artístico desse castelo, construído manifestamente com a preocupação principal de ser uma fortaleza e não um bonito edifício?

Tenho a impressão de que o primeiro elemento de beleza é dado pelas águas. Tudo o que fica à beira da água sobe de valor. Se imaginássemos esse castelo colocado no meio do campo, ele perderia enormemente. Mas a água lhe dá uma moldura de irrealidade. O céu e diversos aspectos do castelo nela se refletem, e com esta proximidade da água toda a arquitetura se nobilita. Há um modo digno e plácido do castelo dominar a água que lhe dá uma espécie de distinção aristocrática tranquila. E por esta forma o castelo sai da linha do vulgar.

De outro lado, o que é bonito nele é o contorno da ilha. Se bem que não seja um contorno regular, há uma espécie de suavidade, de inopinado, de doçura nessa forma. E o que o telhado tem de um pouco achatado é vantajosamente compensado pelas torres que de um lado e de outro se levantam.

A principal das torres parece dominar todo o castelo com a sua massa; depois há outras menores que fazem cortejo a ela e um telhado que dá a impressão de ser da capela do castelo, encastoada no corpo da construção.

Fica-se agradavelmente surpreendido por essas formas tão diferentes. Há uma torre que tem um quê de indefinivelmente digno e plácido, apesar de seu ar de fortificação. Essa torre é flanqueada por duas outras torres menores, que lhe dão como que um apoio, e se perde nas águas distanciadas do resto. E muito inopinadamente existe um quadrilátero, realçado por uma espécie de arbusto no centro de um grande gramado verde, com a beleza dos gramados europeus.

Harmonia entre nobreza e povo

O conjunto dá um ar simultâneo de calma, dignidade, altaneria, distinção, harmonia, mas ao mesmo tempo de fantasia com esses corpos de edifício que distraem a vista e agradavelmente fixam o olhar sobre a massa do edifício e o lago. É o charme, o encanto do pequeno castelo e da vida da pequena nobreza já mais próxima ao povo. Nobreza que existe na familiaridade dos homens do trabalho manual, e que constitui o ponto de apoio da verdadeira aristocracia na massa da nação. Nobreza que conseguiu, em algumas regiões da França, levantar os camponeses contra a Revolução Francesa e produzir a “chouannerie”(2). E esse tipo de castelo exprime isso.

De que gênero era a vida que aqui se levava?

Em geral, as famílias desse tipo eram numerosas. O filho mais velho ficava habitando no castelo e exercia ao mesmo tempo alguns poderes governativos sobre seus súditos, e como o castelo era a sede de uma propriedade rural grande, ele se dedicava à exploração da agricultura e da criação. Isso é um resto de feudalismo, que é o regime político, social e econômico no qual esse tipo de construção foi concebido.

Um nobre dessa categoria, de vez em quando, frequentava a corte real, aonde, conforme o protocolo, ele tinha um lugar, embora modesto, mas definido em razão de sua posição e de seu nascimento. Em geral, a sua vida era pacífica. Quando moço, ele servia no exército e, tornando-se um pouco mais maduro, se retirava para as suas terras e entregava-se no resto de sua vida à agricultura, à criação, a esse pequeno governo local, à educação de seus filhos, ao convívio com sua esposa e, de vez em quando, ia ver o rei em Paris. Era essa a vida calma e operosa de um castelão desses tempos.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 4/9/1967)

 

1) Charles de Montesquieu (1689-1755), um dos principais teóricos do liberalismo político; cujas ideias influenciaram diversos líderes da Revolução Francesa.

2) Movimento armado, de Jean Chouan e seus seguidores camponeses, que se opôs heroicamente à Revolução Francesa.

Hífen gaudioso

Sempre se concebeu a ponte como algo de nobre e belo, digno de possuir fisionomia e características próprias. Ela é uma obra da inteligência e da habilidade humanas, construída para vencer as  dificuldades e os entraves da natureza, impondo assim a vitória do rei da criação sobre aquilo que o desafia.

A ponte é um hífen entre as duas partes de um caminho interrompido pelo precipício, pelo vale, por um rio… Traço de união, ufana-se de não pertencer a nenhum dos lados que ela aproxima, ciosa de sua individualidade e de sua nobreza. Seja a mais elementar, estendida numa trilha de roça, seja a mais monumental, projetando-se acima de águas famosas, ela possui peculiaridades que a diferenciam do restante do percurso.

Pensemos na célebre ponte da Torre de Londres, sobre o Tamisa. Em determinados momentos, seu leito se divide e se ergue para dar passagem aos navios que, numerosos, sulcam o rio a serviço  de um intenso comércio. Em seguida, ela se fecha, permitindo a fluência do trânsito da grande capital inglesa. Quer na sua posição horizontal, que nos transmite a ideia de firmeza, de solidez e  força; quer quando suas partes se levantam lenta e solenemente, como se ignorassem a vida ao seu redor, e o rio começa a ser navegado diante da majestosa indiferença (ligeiramente indignada e  sentida) dos batentes que se abrem — a ponte mantém aquele semblante próprio, fotografado e filmado de todos os modos possíveis por turistas do mundo inteiro.

Há pontes lindas em outro gênero. Uma delas, a que transpõe o Rio Tibre, em Roma, e conduz ao Castelo de Sant’Ângelo. Esta antiga construção abrigava outrora os restos mortais do Imperador Adriano. Os despojos do  César se desfizeram, e no período medieval essa mole se transformou no castelo fortificado onde as tropas dos Pontífices se acantonavam para a defesa da Cidade  Eterna.

A ponte, monumental, muito à maneira italiana é adornada com imagens de Santos e de Anjos, e no passado era favorecida por indulgências: o fiel que a atravessasse  recitando determinadas orações junto a cada imagem, beneficiava-se de tais e tais privilégios concedidos pelos Papas. Assim, sobre as águas do velho Tibre romano que os imperadores contemplaram, os Anjos lançam  uma fabulosa ponte espiritual, significando que a intercessão deles ajuda nossas almas a vencerem as distâncias entre a Terra e o Céu…

Há, também, pontes de uma simplicidade maravilhosa. Não a singeleza fria, mal-humorada e tola, mas aquela feita de equilíbrio, distinção, e de beleza presentes apenas na forma dos seus arcos. Entretanto, parecem nos dizer coisas inenarráveis. Exemplo frisante, o Pont-Neuf, sobre o Rio Sena, em Paris. Construído por Henrique IV, não é mais que um conjunto de arcos lembrando um pouco ogivas, mas tão calculados, tão medidos na sua simplicidade que, tempo eu tivesse, passaria uma tarde inteira contemplando a sua beleza se refletindo nas prestigiosas águas do Sena.

Lembra-me, ainda, a Ponte dos Suspiros, em Veneza. Não reúne dois pedaços de estrada, mas dois corredores de palácios. Tão simples! Tão pequena! Quase irrisória em comparação com os gigantescos viadutos modernos. Porém, ao contrário destes, ela é um capítulo da história da alma humana. Nem precisaria ser autêntico o fato de que passavam por ela os condenados à morte na Sereníssima República. Pois só a ideia de se chamar Ponte dos Suspiros a reveste de uma beleza ímpar. Como é nobre suspirar numa ponte, olhando para a água! Como é lindo! Que melhor lugar para um derradeiro gemido, um último murmúrio ouvido pelas águas que pranteiam a desdita de quem caminha para o suplício?

A relação ponte-água nos faz pensar… A ponte se espelha no rio que passa sob ela. Pode-se dizer que a alegria deste é fluir por debaixo da ponte, recolher a imagem dela e levá-la muito além. É a realização dele: passou pela ponte tal.

Mas, como é verdade o contrário! Imagine-se uma ponte a cujos pés as águas tenham deixado de correr, desviadas que foram para alguma represa. Desolada, envolta por uma triste solidão, a ponte vê seus fundamentos secos, percebe o vazio junto a ela: sua imagem já não se reflete em nada, não tem mais brilho, ela está seca, esturricada no ar. De súbito, abrem-se as comportas, a água  começa a circular novamente… E da ponte, revigorada, rejuvenescida, parte uma exclamação de gáudio!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Decisão, perseverança e reflexão

Em Santa Teresa de Jesus vemos qualidades suavemente justapostas, com algo de harmonicamente dissonante entre a ação e a contemplação, altivez e misericórdia, determinação e bondade, que denotam e constituem uma imensa personalidade. Realmente, ela foi uma das maiores figuras femininas de toda a História. Tão extraordinária que mereceu ser proclamada Doutora da Igreja.

Seu olhar e seu semblante parecem dizer: “Eu só tenho Aquele a Quem admiro, e não temo absolutamente ninguém ou nada que me possa acontecer, porque Ele é tudo e vence tudo”. É a própria expressão da decisão, perseverança e reflexão.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 22/7/1975 e 6/6/1980)