O Maravilhoso Medieval e o milagre de Avignon

O homem medieval era ansioso, sôfrego de maravilhoso; seu espírito voltava-se continuamente para o maravilhoso, como toda pessoa que crê em Deus.

Aquele que acredita em Deus e tende para Ele, que é o Maravilhoso, o Perfeito, ama as coisas na medida em que elas exprimem o Criador. E quanto mais elas são excelentes e admiráveis, tanto mais espelham a Deus.

É concebível que nestas condições o espírito medieval tenha sido ansioso para representar o maravilhoso em tudo. Um exemplo foi o que ocorreu no século XV, na cidade de Avignon.

Todos sabem que a Santa Sé tinha o poder temporal sobre um enclave no território francês, que era o condado de Avignon, onde moraram vários Papas franceses, que não deixaram na História uma memória particularmente esplêndida, a não ser um deles que, se não me engano, morreu bem-aventurado1.

Nesse enclave produziu-se, no século XV, um milagre. Em si o milagre é uma coisa maravilhosa.

Recentemente li o caso admirável de uma pessoa que viveu durante quinze anos engessada; parece-me que todo o seu corpo estava metido dentro do gesso. Esteve duas vezes em Lourdes para pedir a cura, mas não a conseguiu. Foi uma terceira vez; entretanto ela estava tão coberta de gesso que não podiam mais colocar água sobre seu corpo. Então, para que se beneficiasse de algum modo dos efeitos milagrosos da água, foi injetada em suas veias água de Lourdes.

Pois ela curou-se instantaneamente. E o mais extraordinário é que, tendo sido retirado o gesso, dentro do qual passara quinze anos, essa senhora começou a andar. O que de si é uma coisa absolutamente inconcebível.

O milagre foi atestado, provado, porque ela se submetera a operações. De si, o fato é maravilhoso, no sentido de que ele representa uma manifestação da onipotência de Deus e que causa maravilha. Não é um fato artisticamente maravilhoso; ele não tem um pulchrum debaixo deste ponto de vista.

Recordaremos agora um milagre que tem um grande pulchrum artístico e veremos como Deus Nosso Senhor, na sua condescendência, satisfazia os anseios de alma do homem medieval. Quer dizer, Ele manifestava sua onipotência — como no milagre de Lourdes —, mas de um modo muito bonito, artístico.

Ao atender também ao aspecto artístico, Deus satisfazia a sede de maravilhoso, da qual Ele mesmo era o Autor no espírito do homem medieval.

Passo a ler a narração, extraída da “Vida dos Santos”, Bonne Presse, Paris:

A Confraria dos Penitentes Cinzas de Avignon, que teve por fundador Luís VIII, pai de São Luís, possui sua sede na capela da Santa Cruz, chamada de Pénitents Gris. O Santíssimo Sacramento está aí exposto – com certeza já não é mais assim; até há pouco tempo era – noite e dia, desde 14 de setembro de 1226.

Isto já é uma verdadeira maravilha. Há quase 750 anos que o Santíssimo Sacramento não saiu da capela desse lugar2. Sendo que naquele tempo a exposição permanente do Santíssimo Sacramento não era hábito na Igreja.

A cidade de Avignon está situada a algumas centenas de metros da confluência dos rios Ródano e Durence, e atravessada por um de seus confluentes, o Sorgue. Em 1433, as chuvas torrenciais fizeram transbordar os três rios que inundaram as partes baixas à margem do Sorgue. A inundação tomou tais proporções durante a noite que, na manhã seguinte, os superiores da Ordem, temendo que a água atingisse o trono onde estava exposto o Santíssimo Sacramento, tomaram uma canoa e foram até a capela. Qual não foi a sua surpresa quando, depois de aberta a porta, constataram que as águas, à semelhança das do Mar Vermelho e do Jordão, se mantinham à direita e à esquerda, elevadas como grandes paredes, deixando absolutamente livre e seca a passagem que conduzia ao altar.

Podemos imaginar que aspecto lindo o de uma capela cujas paredes eram feitas de água, mas nenhuma gota caía. O sulco por onde os religiosos deveriam passar estava completamente seco. E no fundo aquela majestade misteriosa, adorável, mas quão real, do Santíssimo Sacramento exposto.

Gostamos de supor — e tudo leva a crer que assim o foi — que esses bons religiosos, depois do espanto, fizeram profunda genuflexão e adoraram o Sacramento Santíssimo, em homenagem a Quem o milagre estupendo se realizava.

O prodígio lhes pareceu ainda maior quando, chegados ao altar que fica ao nível da capela sem degraus, viram em volta tudo igualmente seco. As águas se levantavam ao longo das paredes como verdadeiras tapeçarias, formando arcobotantes ao alto, como uma espécie de teto.

Que maravilha! Como Deus quis glorificar o Santíssimo Sacramento, mas atendendo ao movimento de alma do homem que vê no belo um reflexo do Altíssimo. Deus presente, mas inteiramente oculto, no Santíssimo Sacramento, e agindo de um modo sensível, manifestando-Se por semelhança, precisamente nas águas que subiam e davam certo vestígio do esplêndido e da beleza d’Ele.

Assim diz o antigo relato conservado nos arquivos da confraria.

Não é, portanto, uma lenda que se transmitiu de séculos em séculos, mas é um relato conservado nos arquivos da própria confraria.

Os dois frades, depois de terem adorado o Autor desse prodígio, se apressaram a comunicá-lo aos outros confrades. Vieram doze. E todos juntos foram chamar quatro frades menores da Ordem de São Francisco, dos quais três eram doutores em Teologia. A água se mantinha no meio do banco que fica ao longo do átrio da capela, de maneira a deixar uma parte inteiramente seca.

Para comemorar o milagre, celebra-se com solenidade, todos os anos, a festa em 30 de novembro, dia de Santo André. Pela manhã, todos os membros da confraria comungam, percorrendo de joelhos, até a mesa da comunhão, o caminho sagrado, conservado milagrosamente pelas águas. Às vésperas, o pregador relembra o milagre, e o cântico “Cantemus Dominum”, que foi entoado por Moisés depois da passagem do Mar Vermelho, precede a adoração e a bênção do Santíssimo.

Durante mais de quinhentos anos se conservou férvida e ardorosa a lembrança desse milagre. Quanta beleza existe no fato de que, em todo dia 30 de novembro, uma confraria — cujos membros, pelo menos em parte, presumivelmente descendem daqueles que viram o milagre —, formando uma longa procissão acompanhada pelo povo, entram naquela igreja para celebrar essa maravilha!

Podemos imaginar com que devoção eles adentram na capela, adoram o Santíssimo Sacramento e entoam o cântico de Moisés, lembrando que Deus fez em Avignon aquilo que realizou no Rio Jordão e no Mar Vermelho. São verdadeiras maravilhas de Deus.

Qual é a beleza especial que apresenta a continuidade dessa tradição? É a pulcritude da lição que nos dá, pois os benefícios de Deus devem ser lembrados. Nós não podemos deixar de agradecê-los sempre. Como através das gerações, durante cinco séculos, eles se lembraram disso, com a Fé e a gratidão que se transmitiram. E o que dá muito mais calor à comemoração é a tradição.

Imaginemos que fôssemos fazer agora uma procissão numa igreja para adorar o Santíssimo Sacramento, a fim de comemorar e ilustrar o que se passou em Avignon. Seria com muito menos vida do que o que fazem em Avignon, porque aquele é o lugar onde o milagre ocorreu, e onde durante quinhentos anos, ininterruptamente, o milagre vem sendo glorificado.

A tradição confere um sabor, um calor, uma vida especial a uma ação de graças certamente muito bonita, muito justa, mas que perderia alguma coisa se não fosse tão tradicional. Aprendamos dessa maneira a amar a tradição, e compreender como ela adorna as coisas de Deus e de Nossa Senhora.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/7/1975)

 

1) Santo Urbano V.

2) Lamentavelmente, em 1793, a Revolução Francesa causou a completa destruição da Capela da Santa Cruz. Mais tarde, uma nobre família promoveu a construção de uma nova capela. Concluída a construção, o Arcebispo de Avignon restaurou ali a Adoração Perpétua do Santíssimo Sacramento (Cf. Eucharistic Miracles and Eucharistic Phenomena in the Lives of Saints, Joan Carroll Cruz, Tan Books and Publishers, Rockford, Illinois, 1987, p. 144).

Balduíno IV, o protótipo do católico – III

Ficamos maravilhados com as vitórias alcançadas pelo Rei leproso contra os inimigos da Igreja. Entretanto, ele travou dois combates simultâneos: um contra os maometanos e outro contra o lado  ruim que todo homem leva em si. A verdadeira e mais dura batalha do homem é a enfrentada dentro de si.

 

Pudemos realçar vários ensinamentos que se desprendem da vida heroica, santa e magnífica de Balduíno IV, o Rei leproso de Jerusalém(1). Eu gostaria, entretanto, de fazer um pequeno  complemento. É preciso dar com prontidão e alegria Tenho ouvido, às vezes, a frase: “Dar muito não basta, é preciso dar tudo e para sempre.” É bem verdade, mas faltam ainda dois elementos para que ela fique completa.

Quando se põe clara aos nossos olhos a necessidade de dar, deve-se fazê-lo imediatamente. A cada minuto que deixamos passar sem ter dado, a doação se torna mais difícil, e vamos nos  descolando mais penosamente do objeto de nosso apreço. No fim, acabamos não dando. Se alguém, ouvindo a narração da vida de Balduíno, o Rei leproso, forma o propósito de, por exemplo, pedir o espírito de sacrifício, o amor à cruz, não deve dizer o seguinte: “Mais tarde vou pensar um pouco nisso e depois, um belo dia, começarei a rezar nessa intenção…”

Se um impulso interior da graça me leva a rezar a ele, vou começar hoje e com uma jaculatória agora: “Balduíno, glorioso Rei leproso, dai-me o vosso espírito de sacrifício!” E para não fazer torcidas e retorcidas, dando algo e depois voltando atrás, define-se bem o que se dá.

Mas isso mesmo não basta. É preciso dar com alegria. Quem dá com tristeza, tendo pena de si mesmo, não deu nada.

Por exemplo, alguém toma a resolução de fazer a Deus um pequeno sacrifício: abster-se de seu melhor travesseiro, uma vez na semana. Digamos todas as sextas-feiras, tomando em consideração que Nosso Senhor morreu numa sexta-feira por nós, na Cruz. A pessoa deve privar-se disso com alegria, porque encontrou o modo de tirar melhor proveito do seu travesseiro, que não é dormir usando-o, mas dá-lo a Deus, a Maria Santíssima.

Então a pessoa reza: “Meu Senhor, dou-Vos graças por terdes morrido por mim na Cruz, e me concedido um travesseiro que sacrifico hoje por Vós.” E afirma isto com o coração alegre por ter  encontrado com que retribuir a Deus e a Nossa Senhora a imensidade do que fizeram por ela. Há uma frase da Escritura que diz: “Deus ama quem dá com alegria” (2Cor 9, 7).

Quem dá com pena de si não pertence à estirpe dos heróis

A lepra é uma doença terrível, que cobre o homem de feridas, úlceras, pústulas; depois vão caindo pedaços dos dedos, do nariz, das orelhas, o homem vai apodrecendo inteiro. No fim da doença,  ele é uma podridão ambulante. Pensem em Balduíno IV andando no meio dos outros homens e notando que ele é objeto do nojo e do horror geral. Percebe que os outros olham para ele  procurando disfarçar, mas tendo asco. Na véspera daquele dia ele ainda tinha nariz, naquela noite o nariz caiu, ou uma orelha, ou um dedo, e assim ele vai apodrecendo.

Ponha-se cada um neste papel: apresento-me para os outros, tendo perdido o nariz na noite anterior… As pessoas, por amabilidade, fingem não perceber e perguntam como passei a noite, mas interiormente pensam, rachados de dor: “O que aconteceu nesta noite com ele?”

Entretanto, diante de Balduíno IV, que na véspera de uma batalha perde o nariz, está o corcel. O Rei leproso monta a cavalo, ele todo é uma chaga e cada vez que o cavalo salta seu corpo inteiro dói. A dor aumenta e se renova à medida que o corcel apressa a velocidade, e a cada vez em que Balduíno ergue o braço para desferir um golpe com a espada.

Haveria dois modos de Balduíno partir para a batalha. Um seria: “Ai, meu Deus, então Vós quereis deste vosso pobre filho Balduíno mais este horror?” E na hora do combate: “Vós desferis contra ele um golpe que se os maometanos desfechassem seria cruel! Durante esta noite, Senhor, pelas mãos da lepra, Vós me arrancastes o nariz e desfigurastes a minha face, abrindo mais uma fonte de  dor em meu rosto. E Vós ainda quereis que eu combata! Ai que dor, que sofrimento! Senhor, eu me resigno vagarosamente, para que tudo doa o menos possível: ponho um pé no estribo, vou dar o salto para cima do cavalo e tenho medo da dor que vou sentir. Mas pulo, estou sobre o cavalo… Ai, que lancetada!”

Que horror! Ponho o pé no outro estribo…

“Agora, cavalo, martirizador meu, põe-te a caminho”. Ele teria vencido as batalhas que venceu se tivesse procedido assim? Não, porque não teria pertencido à estirpe espiritual dos heróis.

O verdadeiro seria dizer o seguinte:  “Senhor, eu vou para a batalha, entrego-me a todas as dores, e sei que daqui por diante, até a hora da vitória, não deixarei de sofrer dores cada vez maiores. Dores, vinde a mim!” Pula sobre o corcel e sai depressa. A dor deve ser aceita e sorvida com coragem Assim devemos fazer com sofrimentos tão menores que a Providência põe em nosso caminho.

É uma hora de estudo ou de oração; um companheiro que nos trata como não gostaríamos de ser tratados; um superior que não nos compreende bem. Seja o que for, devemos dizer: “Dor, venha sobre mim!” A dor deve ser aceita e sorvida como um homem tomaria a taça de um vinho perfeito. Alguns goles, e a dor está sofrida. É assim que o homem se torna corajoso. Ele luta contra os maometanos, é bem verdade, mas tem dentro de si um adversário pior do que os mouros: é o medo que ele tem da própria dor. Mas ele enfrenta!

Eu bem sei, por dura e amarga experiência própria, que é a alegria de minha existência, quanto o homem sofre na vida. Se ele entra nela com medo de sofrer, está mal engajado e não dá em nada que acerte. Ele deve entrar na vida à Balduíno, o Leproso.

Vimos o episódio da Batalha de Montgisard(2). Balduíno IV, com apenas trezentos guerreiros, tem diante  de si um exército de milhares de mouros. Um Balduíno chorão diria: “Meu Deus, mais essa ainda? Por cima da dor, da queda do nariz, de uma orelha que começou a apodrecer, tenho ainda que ver esses trezentos homens serem esmagados pelo adversário?!”

Esmagado nunca! Um filho de Nossa Senhora não pensa nisso. Ele pensa com ânimo, com alegria no esmagamento estupendo que vai infligir no adversário. Entretanto, sabe que isso não se obtém naturalmente, porque não é possível, e ele está encurralado contra o paredão da impossibilidade. Ele levanta os olhos ao céu e clama: “Salve Rainha, Mãe de misericórdia…” De um jeito ou doutro Ela tem pena dele, a batalha começa, e ele entra na luta com todo o corpo, mais do que isso, com toda a alma. Algum Anjo misterioso esvoaça no céu sobre os maometanos, espalhando o terror entre eles, e os católicos avançam. Pouco depois eles são uma cunha no meio dos mouros, que se tomam de medo e fogem correndo.

Meditações no Santo Sepulcro

Podemos imaginar Balduíno voltando a Jerusalém com seus guerreiros, depois da vitória e de terem recolhido as armas deixadas pelo adversário na fuga, preparando-se, assim, para outras batalhas. Entram na Cidade Santa e se dirigem ao Santo Sepulcro, junto ao qual meditam no que ali se passou.

Lembram-se de que nesse lugar esteve o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo, pensam naquela sepultura fechada, na qual não penetrava mais nem o ar nem a luz, onde o Corpo do Salvador, transformado como se fosse o de um leproso, tantas eram suas feridas e chagas, jazia envolto no sudário com o qual os orientais envolviam os cadáveres, na escuridão completa, esmagado,   reduzido à inércia e ao isolamento da morte, enquanto a sinagoga maldita triunfava sobre Ele.

Ao cabo de três dias, àquela sepultura, sobre a qual dir-se-ia que nenhuma esperança mais pairava, os coros angélicos começam a afluir cantando, enchendo de luzes e de perfumes aquele local onde até há pouco só houvera tristeza. De repente, por um movimento vindo de  Si mesmo, Nosso Senhor ressuscita.

Sua Alma que estivera no Limbo consolando os justos do Antigo Testamento, anunciando-lhes que estavam redimidos, afinal, cumprida a sua missão, penetra no seu Corpo e O faz reviver. Todas aquelas feridas não apenas saram, mas se transformam em fonte de luz. De maneira que sua fronte sagrada, até há pouco coroada de espinhos, refulgia coroada de sóis que espargiam de cada furo produzido pela coroa de espinhos. 

Certamente, antes de aparecer a qualquer outra pessoa, Ele esteve num lugar quase tão triste quanto uma sepultura: o Cenáculo, onde Maria Santíssima, na penumbra, chorava a morte de seu  Filho, à espera do momento da Ressurreição. Quando de repente Ele entra radioso.

Sem dúvida, apraz-nos imaginar o último olhar de Jesus para Nossa Senhora, do alto da Cruz, quando Se olharam e, logo em seguida, Ele fechou os olhos e morreu. Uma coisa extraordinária!

Como terá sido, então, o primeiro olhar depois da Ressurreição? Como Ele A inundou de gáudio, de felicidade, e qual terá sido o diálogo dos dois naquele momento?

A maior batalha do homem é a  que ele trava dentro de si

Quiçá Balduíno IV teve em vista tudo isso no momento sagrado em que penetrou no Santo Sepulcro, passo ante passo, carregando todas as suas dores, todas as suas  glórias, talvez cingindo a coroa real em cima daquele monte de chagas que era ele, e osculando com indizível veneração e ternura aquela sepultura.

Não consta que tenha pedido a cura. Se ele a pedisse, provavelmente teria saído curado. Mas o Rei leproso travava duas batalhas simultâneas: uma era contra os maometanos; outra contra o lado ruim que todo homem leva em si. Ele não era concebido sem pecado original e, portanto, tinha lados ruins, como todos nós; mas ele os combatia. É muito mais duro combater o próprio lado ruim do que um mouro que se tem na frente.

A verdadeira batalha do homem não é a que ele trava fora de si, mas a enfrentada dentro de si. Balduíno rezou a Nosso Senhor e, a não ser no dia do Juízo, não poderemos saber o que o Divino Redentor respondeu a ele. O fato é que o “rei das dores” saiu de lá provavelmente mais chagado, mais dolorido, mais alegre e mais grandioso.

Por certo, ao lado da admiração que a figura excelsa desse rei leproso produz, nasce uma perplexidade: “Mas se Dr. Plinio pensa que eu devo encontrar coisas dessas no meu caminho, não tenho coragem nem meios de fazer isso! Ele levanta diante de mim uma montanha alta como o Himalaia, e depois me diz: ‘Suba!’ Mas ele não percebe que não tenho vontade de subir o Himalaia, nem quero sofrer tanto assim? Como é que Dr. Plinio me incita a uma coisa para a qual, em última análise, a qualquer homem se pode perguntar: ele terá coragem?” Respondo o seguinte: É bem  verdade, e se eu – que não tenho o direito de me comparar a Balduíno IV – tivesse sabido, quando jovem, tudo quanto iria sofrer, talvez não tivesse tido coragem.

Já em menino tive batalhas muito duras para enfrentar, e não senti coragem. Mas fiz uma coisa: ajoelhei-me diante de uma imagem alva, na Igreja do Coração de Jesus, e sem coragem de avançar,  as não querendo de nenhum modo recuar, disse: “Salve Rainha, Mãe de misericórdia, vida, doçura e esperança nossa, salve!”

Uma música que poderia ser o cântico de guerra de Balduíno

A palavra “salve”, em latim, é uma saudação, como quem diz “bom-dia”. Mas eu era menino e sabia uns arranhões de latim que se aprendia no ginásio. Eu pensava que “salve” queria dizer “salvai-me”, e então dizia neste sentido: “Salvai-me, Rainha! Dai-me forças, dai- me coragem, Vós que sois Mãe de misericórdia!” Nunca tinha prestado tanta atenção naquela oração como naquele momento em que eu estava aflito, e pensava: “Ela é mãe como mamãe… Como mamãe é boa, como ela tem pena de mim, como eu confio nela, e como a quero bem. Mas Nossa Senhora me quer mais bem do que mamãe me quer. Estou aqui como um trapo sujo aos pés d’Ela, não sinto força para ser bom, mas tenho certeza de que, pedindo à Mãe de misericórdia, Ela me dará esta força e acabarei, com o auxílio d’Ela, vencendo a batalha de minha vida, que consiste em ser verdadeiro católico apostólico romano.”

A partir desse momento, a Salve Regina foi a respiração de minha alma. Em todas as aflições de minha vida – quantas e quantas foram! – a coragem nunca me faltou, porque Ela dava. E isso porque a Santíssima Virgem resolveu ouvir a oração para lá de aflita de um menino aflito, e tenho certeza de que Ela mesma, naquele momento de aflição, movendo as coisas, fez com que eu fosse parar lá, diante do altar d’Ela. Posso afirmar que, em todos os transes de minha vida, nunca deixei de pedir forças a Nossa Senhora, e Ela nunca deixou de me dar as forças de que eu precisava.

Sei que pareço um homem muito decidido, muito forte; graças a Deus eu o sou porque Ela dá a força. Se Ela me abandonasse, eu cairia como uma pétala de uma flor no chão; vem a vassoura e a joga no lixo, está acabado! Eu tenho essa força porque Ela é a minha força.

Há uma canção lindíssima, que me enche o coração e a alma, cuja letra é a oração do paraquedista francês: “Mon Dieu, donne-moi la souffrance…”(3) Esse poderia ser o cântico de guerra de  Balduíno, o Leproso, na hora de montar no cavalo e avançar, em meio a cem dores e aflições, no auge do sofrimento, mas também entre mil atos de amor a Deus e de alegria por estar sofrendo por  Ele. E com sua alma limpíssima da lepra do pecado, derrubando a cabeça de quantos malfeitores empedernidos! Balduíno IV não está canonizado, mas nós podemos supor com que amor a alma dele foi acolhida por Deus, e com que glória nos aparecerá no dia do Juízo. Por certo ele está no Céu ouvindo este comentário, feito neste Brasil longínquo do qual não tinha ideia que pudesse existir naquele tempo; este Brasil no qual, no século XIII, habitavam apenas tribos de índios, em meio ao obscuro matagal das florestas brasileiras, mas onde hoje se elevam exclamações de entusiasmo pelo exemplo que ele deu. Exclamações de pessoas esperançosas de seguirem esse exemplo e serem verdadeiros batalhadores, dentro e fora de si mesmos. É o que eu lhes desejo de toda a alma.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/5/1991)

A realeza de Maria Santíssima

Em Fátima, com a promessa de triunfo do Imaculado Coração de Maria, começou a se delinear nas páginas da história a era em que a realeza de Maria deverá atingir todo seu fulgor.
Esmagando o demônio, príncipe deste mundo, com seu calcanhar puríssimo, Nossa Senhora reinará, triunfará!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 31/5/1965)

Modelo de penitente

Sumamente penitente, São Pedro de Alcântara foi a própria personificação da penitência na Igreja Católica, durante o século XVI.

Os grandes santos sofredores, os grandes santos penitentes, são aqueles que pelo exemplo e pelo deslumbramento de sua entrega, mantêm nos homens o espírito de penitência necessário.

Isto fez São Pedro de Alcântara numa época em que a Renascença começava a tomar conta do mundo e o espírito de penitência era abominado. Época em que, devido à explosão do orgulho e da sensualidade, manifestou-se uma tendência universal para transformar a vida num ininterrupto prazer.

Peçamos a São Pedro de Alcântara a graça de admirarmos e imitarmos o seu exemplo em nosso tempo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/10/1964)

Maria, Medianeira da Graça

Maria Santíssima exerce um papel preponderante na santificação de uma alma. Com efeito, Ela é a medianeira através de Quem recebemos as graças..

Imaginemos uma cidade no Tirol, ao pé daquelas grandes montanhas, para as quais vão pessoas do mundo inteiro, a fim de praticarem alpinismo. Havia lá um moço impossibilitado de se mover. Porém, de manhã vinha à sua casa um médico que lhe dava um remédio misterioso, desconhecido por todos, sob a ação do qual ele se curava e subia as montanhas corajosamente. À noite, tendo voltado para sua residência, cessava o efeito do medicamento e o jovem voltava a ficar imóvel na cama.

Esse moço não poderia dizer: “Eu sou um grande alpinista!” Ele poderia, isto sim, dizer: “Meu médico e eu somos grandes alpinistas!” Pois, na realidade, ele atingia o pico dos montes porque colaborava com o remédio fornecido pelo médico. Do contrário, permaneceria na imobilidade. Jovens que chegavam ao alto das montanhas, havia muitos. Médico que dava ao paralítico o meio de subi-las, existia somente um. De maneira que a ação do médico foi o principal fator do ato, embora o moço também tenha exercido seu papel: suou, segurou-se nas cordas, correu o risco de se espatifar no chão, teve o mérito do alpinismo. Mas apenas começou a mover-se a partir do momento em que o médico lhe deu aquele remédio.

Suponhamos que certo dia o remédio atuou mais longamente, e o rapaz, regressando da montanha, descansou em sua casa e depois foi passear na cidade, vangloriando-se junto a seus companheiros. Em determinado momento, passou o médico que cumprimentou o jovem, o qual respondeu à saudação de modo desdenhoso. Perguntaram-lhe, então, seus amigos:

– Quem é aquele senhor?

– É um velhinho que conheço e, às vezes, de manhã me visita, respondeu o moço.

O médico não teria o direito de ficar indignado com o rapaz? Afinal, se ele não fosse no dia seguinte à casa do jovem, este permaneceria na horizontal! Então, aquela vaidade é nada. O médico é quase tudo nos feitos do moço.

Este conto não nos dá uma ideia inteiramente exata, mas sim próxima, da realidade; ajuda-nos a compreender alguns aspectos do problema da graça e, portanto, de sua ação em nós, ou seja, a virtude. Todo homem é completamente paralítico para a virtude. Porém, a partir do momento em que recebe a graça, ele se torna capaz de praticá-la.

Quando temos vontade de adquirir virtudes que julgamos não estarem ao nosso alcance, podemos dizer a Nossa Senhora: dai-nos. A devoção à Santíssima Virgem é fundamental elemento de nossa vida espiritual; aquilo que Lhe pedimos, Ela nos obtém.

É claro ser necessária a nossa cooperação, pois Deus, que nos criou sem nosso auxílio, não nos salvará sem nossa colaboração. Embora indispensável, essa cooperação é secundária. O principal fator de nossa salvação é a atuação da graça em nós, a qual recebemos por meio de Nossa Senhora, Rainha e dispensadora de todos os dons divinos.

Quando Nossa Senhora nos concede a graça, somos como o jovem cheio de disposição para subir as montanhas, mas se não a pedirmos, ficamos estendidos na cama, paralisados. Esse é o papel da Santíssima Virgem em nossa santificação.  

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/5/73)

À nossa espera…

Meu filho, aqui estou Eu, sozinha, no canto a que teu desprezo me relegou, repleta daquele amor materno que tua rejeição comprime em Mim e impede que se expanda; daquele afeto que se conserva intacto em sua abundância e intensidade, palpitando de compaixão, à espera de que retornes para te purificar, te envolver e cumular com sua misericórdia inesgotável…

O Homem-Deus

Ao iniciar uma das concorridas conferências de Dr. Plinio, jovens membros de seu Movimento pedem-lhe que comente a flagelação de Nosso Senhor Jesus Cristo. E proclamam os seguintes trechos de um artigo por ele escrito(1):

 

Por que foi o Bom Jesus manietado por seus algozes? Por que impediram eles o movimento de suas mãos, prendendo-as com duras cordas? Só o ódio ou o temor poderiam explicar que assim se reduza alguém à imobilidade ou à impotência. Por que odiar assim estas mãos? Por que temê-las?

A mão é uma das partes mais expressivas e mais nobres do corpo humano. Quando os pontífices e os pais abençoam, fazem-no com um gesto de mão. Quando o homem inocente perseguido se vê saturado de dores e apela para a justiça divina, é ainda com as mãos que ele amaldiçoa. E por isto, os homens osculam as mãos que fazem o bem e algemam as mãos que praticam o mal.

Vossas mãos, Senhor Jesus — agora sangrentas e desfiguradas, entretanto tão belas e tão dignas —, desde os primeiros dias de vossa infância, quem pode dizer, Senhor, a glória que estas mãos deram a Deus, quando sobre elas pousaram os primeiros ósculos de Nossa Senhora e de São José?

Quem poderia dizer com quanta meiguice e com quanto carinho fizeram a Maria Santíssima o primeiro carinho? Com quanta piedade se uniram pela primeira vez em atitude de prece? E com quanta força, quanta nobreza, quanta humildade, trabalharam na oficina de São José? Mãos de Filho perfeito, que outra coisa fizeram no lar, senão o bem?

Por que, Senhor, tanto ódio? Por que tanto medo, que pareceu necessário atar vossas mãos, reduzir ao silêncio vossa voz, extinguir vossa vida? É porque alguém receasse ser curado ou afagado? Quem, porventura, teme a saúde, ou quem odeia o carinho?

Senhor Deus, para compreender esta monstruosidade, é preciso crer no mal, é preciso reconhecer que tais são os homens, que sua natureza facilmente se revolta contra o sacrifício. E que, quando entra no caminho da revolta, não há infâmia, nem desordem de que não seja capaz. E quando alguém diz “não”, começa a Vos odiar, odiando todo o bem, toda a verdade, toda a perfeição de que sois a própria personificação.

E se não Vos tem à mão sob forma visível, para descarregar seu ódio satânico, golpeia a Igreja, profana a Eucaristia, blasfema, propaga a imoralidade, prega a Revolução! Vossos inimigos amam tanto o mal, que percebem ainda sob as humilhações das cordas que vos prendem, toda a força de vosso poder, e tremem!

Ó Bom Jesus, vossos adversários tremem diante da Igreja, enquanto eu, miserável, vendo-a manietada, reputo tudo perdido…

Vossa Igreja, entretanto, participa de vossa força interior e pode, a qualquer momento, destruir todos os obstáculos com que a cercam!

Nossa esperança não está nas concessões, nem na adaptação aos erros do século. Nossa esperança está em Vós, Senhor!

Atendei às súplicas dos justos, que vos imploram por meio de Maria Santíssima:

Enviai, ó Jesus, o vosso Espírito, e renovareis a face da Terra!

O que, fundamentalmente, fazia sofrer a Nosso Senhor Jesus Cristo?

Na agonia — contemplada no primeiro mistério doloroso — a Alma santíssima de Nosso Senhor sofreu de modo inenarrável. A repercussão desse sofrimento da Alma sobre o Corpo ocasionou o suor de sangue. O Corpo sagrado de Nosso Senhor ainda não fora atingido de modo direto, mas somente à maneira de reflexo, de corolário.

O primeiro mistério em que contemplamos o Corpo d’Ele ferido diretamente é a flagelação. Seguem depois a coroação de espinhos, Nosso Senhor com a Cruz às costas e a Crucifixão. Assim, nos cinco pontos sucessivos dos mistérios dolorosos, a Paixão inteira de Nosso Senhor, de Alma e de Corpo, está expressa.

Mas, de fato, a dor da Alma não cessou de nenhum modo quando começaram os sofrimentos do Corpo. Pelo contrário, foi num crescendo; a Paixão de sua Alma foi se desenvolvendo à medida que a Paixão do Corpo aumentava. E chegou ao ápice no momento do “Consummatum est” — Tudo está consumado, e Jesus expirou.

Na Paixão, Ele padeceu no Corpo, mas, sobretudo na Alma. O que, fundamentalmente, fazia sofrer a Nosso Senhor Jesus Cristo?

Seria preciso um oceano de tempo para fazer uma meditação completa sobre este tema. Mas alguns pontos podem ser dados, sumariamente. Assim, entro diretamente no assunto.

Verdadeiramente homem, verdadeiramente Deus!

Em Nosso Senhor Jesus Cristo há uma só Pessoa com duas naturezas, a divina e a humana. A Igreja definiu esta verdade nos primeiros séculos, depois de ter saído das catacumbas, contra muitas heresias que pretendiam desfigurar essa realidade, ora afirmando que Cristo era exclusivamente um homem, ao qual Deus tinha, por assim dizer, extrinsecamente tocado um pouco; ora dizendo, pelo contrário, que Ele era um fantasma, uma figura que Deus suscitara para dar a impressão de que tinha havido a Encarnação. Porque eles não queriam se consolar com a ideia desse arco voltaico sublime, feito entre Deus Onipotente e Criador e o homem tão miserável.

Conforme o ensinamento da Igreja, Nosso Senhor Jesus Cristo é uma só Pessoa, com duas naturezas. Para dar alguma comparação, consideremos o homem que tem uma parte animal e outra espiritual, as quais formam uma só pessoa. Essas duas naturezas, o aspecto animal e o aspecto espiritual — o aspecto anjo, digamos —, convivem perfeitamente, de tal maneira que a muitos de nós nunca passaria pela mente perguntar como somos constituídos.

Em Nosso Senhor Jesus Cristo, a natureza divina e a natureza humana coexistem perfeitamente e estão hipostaticamente unidas, de modo a constituírem uma só Pessoa, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, o Verbo de Deus que se fez carne, quer dizer, formou-se nas entranhas puríssimas de Nossa Senhora, resultante do esponsório da Santíssima Virgem com o Espírito Santo.

Segundo inúmeros teólogos, ainda que não houvesse o pecado original e, portanto, não fosse necessário Nosso Senhor vir à Terra para resgatar os homens, teria havido a Encarnação do Verbo.

Embora representasse perfeitamente o gênero humano, Adão não possuía o mais alto grau que a natureza humana pode atingir.

Deus dispôs toda a Criação admiravelmente: os anjos com suas três hierarquias, e em cada uma delas três categorias, formando nove coros, que cantam perpetuamente a glória divina; abaixo dos anjos — em certo sentido, pouco abaixo; em outro sentido, enormemente abaixo dos anjos —, vêm os homens.

Adão, o primogênito do gênero humano, Deus o criou com grandeza de inteligência, bondade de vontade e riqueza de personalidade. E com uma força, bem como um aspecto perfeito da face e do corpo, que o faziam digno de ser o primeiro dos homens, o primeiro jorro desta torrente, que deveria ser a Humanidade.

Ele era belo e grande em todos os sentidos da palavra. O Criador o fizera esplendidamente dotado de alma, o elevou à ordem sobrenatural, vivia na graça de Deus. Havendo nele a ordem perfeita, seu corpo e notadamente sua face eram o símbolo perfeito de sua alma.

Tinha, portanto, a beleza física, que era o aspecto material de sua beleza moral, e que se completavam harmonicamente. De maneira que, quem olhasse para Adão, veria a perfeição do gênero humano manifestada de modo adequado e esplêndido.

Tudo isso entrou em decadência, em degradação, com o pecado original. E os homens nascidos de Adão e Eva tiveram a marca do pecado original e, depois, a dos pecados que foram cometendo, causando os resultados por nós conhecidos.

Se não tivesse sido cometido o pecado original, e os homens nascidos no Paraíso Terrestre lá continuassem — porque eles, no Éden, seriam pecáveis; muitos poderiam pecar, mas seriam expulsos —, constituiriam como que uma raça perfeita, eleita, magnífica, repetindo de algum modo as grandezas e os esplendores de Adão.

Adão, embora representasse perfeitamente o gênero humano, que haveria de nascer, não era seu ápice. A perfeição é escalonada, e ele não possuía o mais alto grau que a natureza humana pode atingir.

Nosso Senhor Jesus Cristo, considerado na sua humanidade santíssima, é a suprema perfeição do gênero humano.

Deus, na sua sabedoria infinita, não cria as coisas como quem retira de uma sacola punhados de confete e os joga na rua, sem saber sua quantidade e o local para onde os lança. Muitas pessoas têm a impressão de que a Criação foi assim: Deus tirou do nada — que seria o saco de confetes — tufos de pessoas, que começaram a viver meio espantadas de estarem juntas, não havendo uma ordenação superior que as reuniu para determinado fim.

Mas o Criador faz as coisas de um modo especial, ou seja, com uma perfeição que só Ele pode proporcionar. A partir do barro, criou Adão. E depois os outros homens, fazendo com que se reproduzam como conhecemos, e dotando cada um de uma alma espiritual. De tudo isto, no plano de Deus, forma-se uma coleção ordenada, como seria, por exemplo, uma coleção de leques, de relógios, de armas, em que cada peça tem sua individualidade, sua razão de ser, e constitui uma harmonia com as outras peças.

Para melhor exprimir essa ideia de harmonia, todos os homens — o gênero humano — constituem uma harpa colossal, com milhões de cordas que vibram sob o olhar de Deus. Se cada corda vibrar como Ele quer, executa uma harmonia digna dos anjos e do próprio Criador.

É claro que, nesta coleção, Deus haveria de fazer as coisas com graus de perfeição desiguais. Pelo princípio da unidade deve haver variedade. E em razão do princípio da unidade na variedade, ou da variedade na unidade, nessa coleção estabelecida, planejada pela Providência, teria que existir um ser supremo.

Esse supremo, que leva a perfeição do gênero humano a um grau inconcebível por nós, é Nosso Senhor Jesus Cristo, considerado na sua humanidade santíssima.

Se imaginarmos o mais perfeito dos homens, física, moral e intelectualmente falando, sem comparação com os outros, não teríamos nem de longe uma ideia completa do que era Nosso Senhor Jesus Cristo na Terra, e do que é no Céu, onde Ele está com seu Corpo glorioso, acrescido de esplendor de modo verdadeiramente maravilhoso.

Devemos considerar que este Homem não era apenas um santo, o qual levou sua santidade ao mais alto grau. Ele é o Homem-Deus! Aquele Corpo, aquela Alma humana, ligados pela união hipostática à natureza divina, formavam uma só Pessoa. Não era apenas um santo, mas a própria santidade!

Ficamos diante de uma ideia de grandeza, de perfeição, que excede a tudo quanto se possa cogitar. E devemos acrescentar outra reflexão: o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo — porque é próprio do corpo refletir a alma — era a expressão perfeita de sua Alma humana; exprimia a própria Divindade.

O Homem-Deus, no que tinha de humano, amava infinitamente o que possuía de divino

Entendemos assim quem é Nosso Senhor Jesus Cristo e, portanto, qual a atitude de adoração, de veneração, de respeito, de fidelidade, etc., que Ele naturalmente devia despertar em todos.

Nosso Senhor veio à Terra para salvar as almas; portanto, esse efeito, tão salvífico para as almas, Ele queria produzi-lo. E, neste sentido, o Divino Salvador amava sua própria figura, sua própria inteligência, sua própria santidade, não só porque era Deus — e Deus não pode deixar de amar-Se a Si mesmo infinitamente —, mas pelo fato de que aquilo de humano que havia n’Ele era o melhor reflexo de tudo quanto fora criado.

Lemos no Gênesis que Deus, depois de ter criado o universo, descansou, contente, vendo a harmonia que Ele havia feito. Porque cada coisa era boa e o conjunto ainda melhor.

Ora, tudo quanto há no universo valia menos do que Nosso Senhor Jesus Cristo. Podemos imaginar o seu comprazimento — santíssimo, sem nem de longe se assemelhar àquilo que chamamos egoísmo, paixão tão vil —, conhecendo-Se como era, e a natureza humana dizendo dentro d’Ele às três Pessoas da Santíssima Trindade: “Eu sou o vosso espelho mais exato em toda a Criação, glória a Vós!”

O Homem-Deus, no que Ele tinha de humano, amava infinitamente o que possuía de divino; por causa disso, Nosso Senhor tinha gosto em que, por amor a Deus — evidentemente não por uma vaidade; isto está inteiramente afastado — os homens contemplassem esse reflexo do Criador e O adorassem. E para Ele era uma razão de alegria, quando as multidões iam ao seu encalço, sendo preciso que os Apóstolos O protegessem, para não chegarem perto demais.

Ensinava fazendo o bem

O Evangelho narra a cena de Nosso Senhor pregando para o povo de dentro de uma barca, para que pudesse ser ouvido por todos. Ele tinha a voz perfeita — com que suavidade, força, grandeza, riqueza de inflexões! — e dali podia falar admiravelmente as coisas mais fulgurantes, ou mais doces, ouvidas a qualquer distância.

O Redentor passava por algum lugar e via uma pessoa que estava sofrendo, sozinha, numa estrada ou num caminho. Ele via as almas que se abriam para Ele, e tinha com isso a felicidade que Deus tem na sua própria glória, observando que a criatura, que Ele criou e chamou para amá-Lo, é tocada pela graça e exclama: “Meu Senhor e meu Deus!”

Para provar aos homens ser Ele o Homem-Deus — sua missão consistia em ensinar quem era Ele —, Nosso Senhor tinha como instrumentos, primeiro — e que instrumento incomparável! — a Si próprio. Depois o que Ele dizia: sua doutrina maravilhosa, simplicíssima, delicadíssima, fortíssima, de lógica inquebrantável, verdade intocável, irrepreensível, perfeita. Até o fim do mundo, os homens estudarão os sermões do Divino Mestre que estão no Evangelho, e não chegarão até o fundo.

Além disso, Ele aconselhava, ajudava, praticava milagres para curar. Tais benefícios mereceram que São Pedro fizesse de Nosso Senhor este elogio tão simples e tão grandioso: “pertransivit benefaciendo” — passou pelo mundo fazendo o bem(2). Em todos os lados, de todos os jeitos, Ele praticou o bem, até mesmo quando punia.

E quando Jesus tomou um látego na mão e expulsou os vendilhões do Templo, teve bondade para com eles. Aterrorizou-os, mas deve ter-lhes dado a graça do temor, para que se convertessem. O seu braço fortíssimo, divino, atingia e metia em fuga, mas, ao mesmo tempo, a sua graça procurava levantar as almas, para se unirem a Ele através do temor de Deus.

Milagres, que quantidade! Milagres físicos: curas que Nosso Senhor realizou; milagres morais: pessoas péssimas, perdidas, completamente desviadas pelos recantos da vida, e que, entretanto, conhecendo-O, se voltavam para Ele e ficavam limpas.

Mais ainda: pessoas tão embotadas no mal, que O conheciam, convertiam-se por pouco tempo e caíam novamente no pecado. O Redentor as procurava, reconduzindo-as para o bem. Ricos como Lázaro, pobres como as multidões que O acompanhavam, poderosos como Nicodemos, José de Arimateia, todos O seguiam, encantados.

 

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/4/1984)

 

1) Artigo publicado na revista “Catolicismo”, de abril de 1952.

2) At 10,38

 

A Santa Igreja, nosso maior tesouro

Outubro de 1943. Os conflitos da Segunda Guerra Mundial devastavam as nações, produzindo um morticínio nunca antes visto e expondo vários povos ao perigo de caírem sob a tirania de um dos totalitarismos em voga.

Naquela grave conjuntura em meio à qual se jogavam os destinos da humanidade, Dr. Plinio, pelas páginas do Legionário, procura orientar as almas para algo de valor supremo e imprescindível, capaz de abrir ao mundo os caminhos da salvação: a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Ao comentar a célebre encíclica do Papa Pio XII sobre o Corpo Místico de Cristo, afirmava:
“Quem ler com atenção o texto pontifício perceberá facilmente a extrema complexidade da matéria de que ela trata, e a série quase interminável de confusões, de erros serpejantes — a expressão é do Papa —, de ambiguidade de toda ordem que se têm procurado apoderar do assunto. (…)

“O ambiente contemporâneo é cheio de contradições e entrechoques doutrinários violentos, [conforme aponta Pio XII]: enquanto por um lado perdura o falso racionalismo, que tem por absurdo tudo o que transcende e supera a capacidade da razão humana, e com ele outro erro parecido, o naturalismo vulgar, que não vê nem quer reconhecer na Igreja de Cristo senão uma sociedade puramente jurídica; por outro lado grassa por aí um falso misticismo que perverte as Sagradas Escrituras, pretendendo remover os limites intangíveis entre as criaturas e o Criador. (…)

“Na esfera política, o resultado foi claro. Poucos foram, infelizmente, os católicos que souberam ver na disciplina ardente e incondicional à infalível autoridade da Igreja, a verdadeira tábua de salvação. Uns procuraram a fórmula salvadora no nazismo. Outros, no comunismo. Outros, na forma nazificante ou nas bolchevizantes. Poucos foram os que se lembraram de que “bonum ex integra causa; malum ex quocumque defectu”. Se havia mal nos dois lados, ficássemos só com a Igreja, integra causa por excelência.

“E daí uma tremenda confusão. Uns, por amor à autoridade, chegaram ao totalitarismo. Outros, por amor à liberdade, chegaram até a demagogia. A grande tragédia da luta entre nazismo e comunismo, entre fascismo e democracia, não foi tanto o extravio completo dos que já eram maus, mas a ruína, a confusão, a dilaceração interna entre os que eram bons “Sejamos prosélitos ardentes da doutrina do Corpo Místico de Cristo. E, sobretudo, insistamos por que todos os estudos feitos nesta matéria tenham por base e constante ponto de referência a admirável Encíclica Mystici Corporis Christi. Com isto, cessará qualquer dificuldade e brilhará serena, para a edificação geral, a genuína doutrina da Igreja.

“Da Igreja! Como não compreender, admirar e amar ainda mais a Santa Igreja Católica, depois da luminosa e claríssima doutrina ensinada pelo Santo Padre Pio XII sobre o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é a própria Igreja Católica!

“A Igreja Católica é o maior tesouro que Nosso Senhor deu aos homens. É ela o escrínio em que se encerram todos os outros tesouros que Cristo nos deu. Não sei de coisa mais urgente, mais atual, mais premente, do que inculcar nos fiéis uma ardente devoção à Santa Igreja.”

(Extraído do “Legionário” de 24/10/1943)

Supremacia, nobreza e serenidade

A arte medieval me levou à conversão, pois aprendi as verdades da Igreja Católica nas criptas das velhas igrejas e catedrais europeias.

Assim se exprimiu Pugin, um dos mais ilustres arquitetos ingleses do século XIX, que havia sido educado num rígido calvinismo. Tendo se tornado católico, dedicou-se de corpo e alma ao renascimento do gótico na Inglaterra, posto ser a única arte que ele considerava realmente cristã. E teve sucesso, embora, após a sua morte, vários dos edifícios que construiu tenham sofrido  reformas, mudando-se-lhes propositadamente o estilo original. Outras de suas notáveis obras tiveram seu nome apagado e substituído pelos de arquitetos anglicanos.

Um exemplo é o Parlamento de Westminster, do qual, durante muito tempo, julgou- se que somente alguns detalhes triviais eram de Pugin. Hoje se sabe com certeza que são dele toda a fachada que dá para o rio Tâmisa e a famosa torre do relógio.

Grato me é constatar a comprovação histórica dessa autoria, pois vem corroborar a impressão que tive quando pude contemplar de perto o Parlamento inglês e a torre do Big Ben. Aquele conjunto arquitetônico pareceu-me tão medieval, tão acertada e retamente católico, que pensei: “Pode ser que, aqui, a Igreja Católica tenha deixado algumas das melhores marcas de seu próprio pensamento e de sua própria alma”.

O que existe ali de especial?

Não é, por exemplo, o que há de peculiar na Catedral de Colônia ou na de Notre-Dame de Paris. A primeira  possui algo de feérico, uma espécie de explosão de pedra, de uma imponência extraordinária, na qual, mais do que a razão, está presente a imaginação germânica no que ela tem de categórico. Ou seja, não se trata de uma concepção suave nem poética (no sentido doce da palavra), mas é a ideia de quem desejou construir uma epopeia grandiosa e, desse modo, marcar todos os séculos com uma nota de magnitude mais celeste do que terrena.

Assim, a característica saliente da Catedral de Colônia é algo de fantasioso e imaginativo, que o espírito possante conseguiu realizar.

Na catedral de Notre-Dame encontramos a conjugação da fantasia com a razão. Dir- se-ia que a fantasia concebeu uma construção magnífica e que, depois, a razão colocou os planos em ordem,  introduziu simetrias, bons sensos e harmonias quase clássicas, sem subtrair nada do sublime e do extraordinário próprios ao medieval.

Já a fachada do Parlamento de Westminster e a torre do relógio representam, dentro desse conjunto, algo de diferente. Não é a afirmação predominante da fantasia, nem a admiração predominante da razão, mas é uma reunião de dois valores diversos que se situam numa outra ordem de idéias: a força e a delicadeza.

Sua fachada é toda feita de linhas longas que se repetem, e de um grande desdobramento estendido numa amplitude de horizonte que, sem ter o “élan” de Colônia nem a espécie de harmonia  superlativa de Paris, possui entretanto uma categoria que lhe é peculiar. Ela se reveste de imensa dignidade, de superior  elevação e de alta nobreza, com algo de sereno, de senhor de si, de afável e, ao mesmo tempo, de sacral e de sério, reunindo assim extremos opostos. E toda obra de arte que, numa fusão, alia extremos opostos — que um espírito comum poderia julgar contraditórios —,  realiza algo de supremo no seu próprio gênero. Supremacia esta que, a meu ver, a fachada do Parlamento inglês logrou alcançar.

Nela, o aspecto força se faz notar também na forma de uma grandeza estável, que não se entregará a novos empreendimentos, sem todavia começar a decair. Ela se senta sobre seu próprio poder e se põe a meditar em suas glórias imorredouras… O mesmo se pode dizer da torre do relógio, uma verdadeira maravilha digna de ser justaposta ao edifício do Parlamento. Este, ao ter de ostentar uma torre, só pode ser uma como aquela: tão coerente, tão lógica, tão bela, porém com essa doçura, essa suavidade dos ingleses que o gênio católico depositou ali pelas mãos de Pugin, que soube interpretar os edifícios nos seus planos originais e comunicar um sopro de catolicidade a tudo aquilo.

Ele soube compreender, de modo ímpar, a nostalgia que a Inglaterra, anglicana e industrial, sentia — e ainda sente — daquela primeira Inglaterra, católica, feita mais para conquistas de ordem cultural do que para triunfos de ordem material. Ele, o arquiteto católico (como era chamado), soube, por meio de símbolos, tocar a fundo a alma de seu país, e realizar monumentos que  incontáveis protestantes não têm cessado de admirar até os presentes dias.

Muitos dos monumentos e edifícios projetados por Pugin não saíram do papel. Se porventura, no mundo de hoje, fosse dado a alguém construir uma obra que ele planejou, mas não pôde levar a cabo, prestaria a mais alta homenagem que se pode tributar a esse varão, verdadeiro artista católico. Seria a realização póstuma de mais um de seus grandes sonhos inspirados pela Fé.

Plinio Corrêa de Oliveira

O Versailles da Idade Média

Em viagem pela Europa no ano de 1978, um dileto discípulo de Dr. Plinio visitou o famoso “Château de Vincennes”, nos arredores de Paris. De volta ao Brasil, resolveu ele presentear seu mestre com um belo álbum de fotografias tiradas nessa ocasião. Dr. Plinio as comentou em uma de suas conferências.

 

Antes de iniciarmos a projeção das fotografias do “Château de Vincennes”, seria interessante apresentar alguns dados históricos a respeito do castelo.

O espírito francês possui obras-primas de toda ordem. Uma delas é o modesto “Guide Vert”(1) [Guia Verde], o qual contém interessantes referências sobre o castelo.

Veremos como as sacolejadas do passado deixaram suas cicatrizes no castelo.

Narra-nos o livro:

O Versailles da Idade Média apresenta dois aspectos distintos: um altaneiro e severo “donjon” e um majestoso conjunto do século XVII.

Esta descrição é um primor de resumo e talento.

Continua o Guia:

No século XI, a Coroa adquiriu, da Abadia de Saint Maur, a Floresta de Vincennes. Filipe Augusto lá construiu um castelo. São Luís o enriqueceu com a construção de uma capela. O bom rei proibiu que nessa floresta se caçassem animais, pois ele gostava de encontrá-los durante seus passeios.

Simbolizando a mansidão de um rei cruzado

Apesar de exímio caçador, São Luís IX fez ali o que talvez tenha sido o primeiro parque florestal da Europa: uma larga extensão cercada, onde era proibido caçar. Ele queria ter a alegria de passear pelas belezas do bosque e encontrar os animais, a fim de se entreter e brincar com eles.

Aos pés de um carvalho, o rei recebia, sem o impedimento de qualquer oficial, todos quantos viessem suplicar-lhe justiça.

Este episódio ficou famoso na História: nas estações mais belas do ano, São Luís sentava-se sob um carvalho particularmente frondoso e de seu agrado, para tomar contato com qualquer francês que quisesse vê-lo.

Esta era uma manifestação da benignidade do rei para com todos, especialmente em relação àqueles que tinham mais difícil acesso à sua pessoa. Este carvalho tornou-se símbolo da mansidão deste rei tão majestoso e cheio de glória.

Maison du Roi Soleil…

Mazarino, tornando-se Governador de Vincennes em 1652, fez construir simetricamente dois pavilhões: o do Rei, e o da Rainha. Um ano após o fim dos trabalhos, em 1660, Luís XIV lá passou sua lua de mel.

Entre os mil cargos que Ana d’Áustria, Regente da França, deu ao cúpido Primeiro Ministro Mazarino — homem extraordinariamente capaz, que desenvolveu o absolutismo real em detrimento do feudalismo — está o de Governador do Castelo de Vincennes.

Ele, por sua vez, teve o mau gosto de alterar o estilo do castelo, mas, é preciso dizer, o fez com bom gosto! Quer dizer, introduziu no famoso conjunto arquitetônico medieval duas construções ao estilo de seu tempo: o Pavilhão do Rei e o da Rainha.

Luís XIV, então moço recém-casado, passou seus primeiros tempos de matrimônio com Maria Teresa D’Áustria no Pavilhão do Rei, em Vincennes.

Percebe-se, ao longo dos séculos, uma espécie de chuva de ouro de recordações extraordinárias, que vai se acumulando em Vincennes. Primeiramente, São Luís ali acolhe os humildes e acaricia os animais.

Bem depois, Luís XIV, precedido e seguido por mosqueteiros, chega ao castelo numa carruagem magnífica, trazendo consigo a jovem rainha; ele sai da carruagem, estende a mão à rainha que nela se apóia levemente para descer, os cortesões ali estão para recebê-los, as tropas prestam armas, algum sino toca. O jovem monarca começa a sua vida de casado em Vincennes. Luís XIV estava na sua ascensão e, nesse tempo, era um monarca de vida muito pura — mais tarde, ele se desencaminhou.

Prisão dos ilustres

Desde o início do século XVI até 1784, o “donjon”, onde não moram mais os soberanos, torna-se prisão de Estado.

Tendo os reis deixado de residir no “donjon de Vincennes” — cuja estatura impressionante veremos pelas fotografias que serão projetadas —, este se transforma em prisão do Estado. Entre outros, um prisioneiro muito conhecido foi o Príncipe de Condé,  que na batalha de Rocroi jogou seu bastão de marechal no meio das tropas espanholas e disse: “Agora vamos buscá-lo”;  com esse artifício, Condé  determinou o curso, para ele vitorioso, da batalha que estava indecisa.

Mais uma vez vemos aqui a História se acumular. Isso nos mostra como foi a vida na Europa. Quantas coisas se somaram nas paredes veneráveis dos prédios que duraram séculos!

Belas porcelanas…

Outro fato digno de nota na história do Château de Vincennes é o seguinte:

Em 1738, o castelo transforma-se fortuitamente num atelier industrial. Dois operários, desertores da fábrica de porcelana em Chantilly, lá receberam asilo. Executando os segredos trazidos, eles fabricaram verdadeiros jardins de porcelana.

Naquele tempo, a fabricação de porcelana era um segredo de altíssimo valor, que os missionários jesuítas haviam trazido para a Europa. Quando os ocidentais chegaram à China, naturalmente se encantaram com a porcelana lá existente — a qual é mundialmente famosa — e começaram a comprar peças da mesma e enviá-las por navio aos amigos da Companhia de Jesus, a fim de serem vendidas na Europa para, com o dinheiro, manter as missões etc. E a porcelana chinesa interessou enormemente aos europeus.

Mas não se sabia fabricá-la. Até que um jesuíta, particularmente dotado do dom da sagacidade, de que Santo Inácio foi o padrão e modelo perfeito, conseguiu saber de um chinês o segredo para confeccionar a porcelana. Então, o religioso escreveu a fórmula e a mandou para a Europa, com todas as indicações de qual era o tipo de terra, como esta deveria ser preparada etc.

E em Chantilly, na França, começaram a fabricar a porcelana, porém mantendo o segredo. Certo dia, dois operários propuseram à Corte: “Se quiserem entrar numa combinação conosco, mandem vir tal terra que nós fabricaremos porcelana e ensinaremos o segredo para o rei”.

O monarca foi consultado e concordou. Os operários passaram então a fazer, nos imensos salões de Vincennes, lindas porcelanas que começaram a se escoar.

Como a narração do Guia é muito resumida, não conta como eles saíram de Vincennes. O certo é que fundaram uma das duas fábricas de porcelanas mais famosas da França: a de Sèvres(2) .

Cenário de um crime famoso

Num outro trecho o Guia narra:

Ao lado do fosso percebe-se, à direita, aos pés da Torre da Rainha, uma coluna que lembra o lugar onde foi executado o Duque d’Enghien, Príncipe de Condé(3).

Creio que todos já ouviram falar da execução do Duque de Enghien por Napoleão. Limito-me simplesmente a fazer um resumo.

Ele foi um dos cavaleiros mais brilhantes de seu tempo e o último da estirpe de Condé. Esse príncipe era um obstáculo para a realização dos planos de Bonaparte, pelo seguinte:

Todo o mundo, e talvez o próprio Napoleão, percebia que seu império e sua dinastia não podiam durar muito. E que mais cedo ou mais tarde, pela lei pendular da História, após a França ter chegado até a república, o pêndulo deveria oscilar e voltar, embora não inteiramente, ao ponto de partida que fora a monarquia absoluta e de direito divino do “Ancien Régime”, ou ao menos a uma monarquia temperada, com a mesma dinastia.

Entretanto, quanto aos Bourbons, as possibilidades de se perpetuar a estirpe não eram muito grandes, porque Luís XVIII, o eventual sucessor de Napoleão, era viúvo, não tinha filhos e já estava velho.

E o irmão dele, que lhe sucedeu, Carlos X, tivera um filho, do qual poderia provir uma descendência; mas, sendo viúvo e sexagenário, não era provável que ele tivesse outro filho. Se eventualmente o filho de Carlos X fosse assassinado, o trono passaria ao Duque de Orléans, filho do regicida, Felipe “Egalité”, que era ele mesmo um liberal de quatro costados.

Evidentemente, a transferência do trono para o Duque de Orléans indignaria os monarquistas franceses, que tinham a pior recordação de seu pai. Assim, provavelmente ele não subiria ao trono, mas sim o Duque de Enghien, que era o último príncipe do ramo da família Condé.

Esse homem brilhante, que lutara contra a Revolução na chamada Rue du Prince, foi capturado durante a noite pelas tropas de Napoleão, levado para o Castelo de Vincennes e, depois de um simulacro de julgamento, executado barbaramente à noite, num fosso aberto junto à muralha. Esse crime impressionou enormemente todos os europeus daquele tempo.

Então, há uma coluna indicando o lugar preciso onde esse crime se deu.

Já o século XIX deixou ali mais uma recordação famosa e impregnada de traços de romantismo, porque o Duque de Enghien era secretamente casado com uma princesa da Casa de Rohan. Não sei por que razões seus pais se opunham a esse casamento; por isso as bodas foram celebradas às ocultas.

Quando ele morreu, revelaram-se os documentos e a princesa, Duquesa de Enghien, ficou inconsolável, chorando. Uma viúva jovem, vertendo lágrimas por um príncipe de conto de fadas, executado por um tirano, numa noite de tragédia, dentro de um fosso, foi material para o século XIX, romântico, fazer toda espécie de choradeiras. E, na história do pranto romântico universal, esse local ficou marcado de um modo especial.

Com isso se fecha o ciclo da história do Castelo de Vincennes, assim descrita em linhas muito gerais no “Guide Vert”. Passemos agora a analisar as fotografias.

 

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/2/1979)

 

 

1) Guide Vert Paris. Michelin e Cia. França. 1978.

2) Sèvres, cidade situada às margens do Sena, no subúrbio sudoeste de Paris.

3) Louis Antoine Henri de Bourbon-Condé.