Nossa Senhora – Céu de Virtudes

Eu venho tão do alto… E posso tudo. Em Mim reside o reflexo perfeito da bondade incriada e absoluta. Aquilo que Eu quero doar porque sou boa, aquilo que desejo conceder porque sou Mãe, aquilo que posso dar porque sou Rainha, isso, meu filho, Eu dou!

Eu não te digo uma palavra, mas faço algo muito melhor que falar a teus ouvidos… Eu te comunico uma graça que murmura no fundo de tua alma.

Sentes essa paz que transborda de Meu coração, que te envolve, te penetra e te cumula? Essa paz que nenhuma alegria terrena pode trazer, e que te faz sentir uma tranqüilidade interior, na qual ressoa minha voz, inaudível a teus sentidos: Tudo está resolvido! E aquilo que não estiver, resolver-se-á. Confia em Mim, Eu acertarei tudo.

As aparências podem não ser essas. Mas… Aceita esse sorriso, percebe esse sussurro, contempla essa bondade… E não duvides jamais!

Plinio Corrêa de Oliveira

O comércio das almas na sociedade humana

Prosseguimos com a publicação de um artigo inédito, redigido em 1960 por Dr. Plinio. No fim do capítulo anterior, ele explicava como cada homem é influenciável por seus semelhantes, e procura  imitar alguns deles. Se admira e imita pessoas virtuosas, cresce em perfeição e aumenta sua semelhança com Deus, refletido no espelho de suas criaturas. Por isso, imitar e servir de exemplo são obrigações de cada homem, operações essenciais ao aperfeiçoamento das almas, inerentes à sua vida social. Dr. Plinio estende suas observações a esse respeito perguntando-se: como se dá esse comércio entre as almas? Em outros termos, qual sua parte na existência social dos homens? Vejamos a resposta.

 

Quando duas pessoas estão em contato entre si, por mais que sejam desiguais em inteligência, instrução, ou força de persuasão, estão em condições de exercerem recíproca influência uma sobre a outra. Maravilhoso instrumento para a expressão da alma Todas as nossas idéias, mesmo as mais abstratas, todas as nossas emoções, mesmo as mais subtis, são suscetíveis de uma expressão adequada, pela ação primordial da palavra em si mesma, completada e enriquecida pela inflexão da voz, pela expressão do olhar, pelos gestos, pela atitude do corpo, pelo porte, e até pela maneira de caminhar.

Virgílio nos diz que, pelo simples modo de andar, Dido se mostrava uma deusa: “et incessu patuit dea…”. O homem ainda acentua o poder de expressão de seu corpo por meio do traje e do ornato. Esse poder chega a ser tão grande que é considerado, às vezes, aliás erroneamente, como irresistível.

Quando essa transparência da alma em todo o modo de agir e de ser do corpo se torna nítida, e sobretudo quando tal transparência revela uma alma firme, clara, lógica, reconhecemos estarmos  em presença do que se chama uma personalidade. Ter personalidade, ser uma personalidade, é ter uma alma bastante desenvolvida para dirigir, influenciar, brilhar em todo o corpo material. É realizar, dentro do mero campo natural, como que uma transfiguração da matéria pela iluminação interior da alma, prefigura meramente natural, mas esplêndida em si mesma, da transfiguração sobrenatural, incomparavelmente mais radiosa e mais nobre que os corpos gloriosos terão no Céu, e de que Nosso Senhor, no Tabor, assim como alguns santos, nos deram uma visão sensível nesta terra de exílio.

O homem pode comunicar expressão aos seres inferiores

As formas, as cores, os sons, os odores, os sabores têm uma analogia – que não é meramente convencional —- com as disposições do espírito humano. E, por isso, as palavras que servem para designar estados da alma humana são correntemente empregadas para designar por analogia as propriedades de seres animais, vegetais ou minerais. Pode-se falar do cântico alegre de um pássaro, do aspecto risonho de um buquê de flores ou de um panorama, do mesmo modo pelo qual se fala do riso alegre de uma moça ou de uma criança. Pode-se falar da majestade de um rei, como da águia, ou do trovão. Os exemplos disso poderiam ser multiplicados quase ao infinito.

Pode o homem aplicar sua ação sobre os seres inferiores, comunicando-lhes uma determinada expressão. Assim, é indiscutível que as espécies animais domesticadas recebem como que certa  amenidade de comportamento, certa compostura, que as distingue das congêneres selvagens por diferenças muito semelhantes àquelas que distinguem o homem civilizado do bárbaro. Certos animais, como os gatos de Angorá ou os lulus da Pomerânia, tomam uma espécie de distinção evidentemente afim com os ambientes humanos em que vivem.

Uma ação do mesmo gênero pode também ser desenvolvida pelos homens sobre certas plantas, nas quais se distinguem as espécies selvagens e as cultivadas, antes diríamos, as “culturadas”. Certa  expressão de alma, o homem pode comunicá-la até a seres perfeitamente inanimados: quando faz, por exemplo, um quadro que terá uma expressão que de nenhum modo preexistiu na tela, no pincel e nas tintas.

E tal é a alma humana que o próprio do homem é comunicar uma tal ou qual expressão a todos os objetos de que se cerca. Porque somos feitos de alma e corpo, queremos que os objetos que nos servem ao corpo falem também à alma. Um móvel apenas cômodo é o que serve só ao corpo; um móvel elegante é o que serve também à alma. Um tecido resistente, agradável ao tato, adequado ao clima, satisfaz o corpo.

Mas a alma tem exigências próprias e pede que ele seja belo. Essas observações nos conduzem a uma noção essencial, que é a de “ambiente”. Os ambientes exprimem estados de alma Quando às vezes entramos numa sala, parece-nos sentir a personalidade de quem a decorou. Dizemos que tem ambiente. O que quer dizer aí “ambiente”? É a expressão de alma que, pelo jogo das formas e das cores, pela disposição e qualidade dos móveis, uma pessoa conseguiu comunicar a objetos materiais.

Nisto, como em tudo, o homem imita a Deus. Quando contemplamos certos panoramas marítimos; quando à noite olhamos para o céu, sentimos uma expressão de alma que se desprende deste mundo: é o ambiente criado por Deus, e pelo qual Ele se exprime a nossos sentidos.

Muito mais fácil ainda nos seria exemplificar com os sons, os perfumes, os sabores. Diz o Eclesiástico (31, 36) que o vinho, bebido moderadamente, alegra a alma e o coração. A Igreja se serve da música para formar nossa piedade. O aroma austero do incenso lhe parece adequado a ser respirado por nós na oração. Os seus moralistas, pelo contrário, sempre nos premuniram contra os perfumes voluptuosos e capazes de excitar a moleza e a luxúria. Consideremos agora o ambiente em relação com o fim essencial da contemplação, que é conduzir-nos a Deus.

Se os estados de alma são suscetíveis de se exprimirem assim, está implícito que as virtudes e os vícios também. Eles se manifestam com freqüência na face humana, na inflexão de voz, no gesto, no andar. Eles são suscetíveis de marcar com sua nota própria tudo quanto o homem faz e produz. A intemperança ou a temperança de um artista não se nota só no fato de explorar ou não o nudismo. O ritmo de uma música pode em si mesmo ser lascivo; como a combinação de certos perfumes; ou a complicação de certos sabores. A falta de siso não se exprime só pelo sentido das palavras, mas pelo desalinho do gesto, pela extravagância das linhas ou das cores de um traje, de um móvel, de um edifício.

Neste ponto, como em outros, o homem é sujeito a erro, e pode taxar de voluptuosas ou desatinadas coisas que só lhe parecem tais porque não está habituado a elas. Não obstante, uma certa volúpia ou extravagância pode estar realmente na coisa produzida por um homem voluptuoso ou extravagante. Qualquer que seja o ambiente, precisamente porque ele exprime um estado de alma, não pode ser moralmente indiferente: ou será bom, e favorecer á as almas na consideração e assimilação de Deus; ou será mau, e agirá em sentido oposto.

É isto o que se poderá dizer da honestidade ou desonestidade natural dos ambientes. Será lícito caminhar mais um passo, e falar em ambientes especificamente cristãos? Parece-nos que sim. A alma tocada pela graça adquire uma perfeição sobrenatural que por vezes se espelha na face. A hagiografia pulula de testemunhos a tal respeito. O que foi a Transfiguração senão isto? Ora, a pintura e a escultura podem exprimir algo de semelhante. E certos edifícios em que essas esculturas e vitrais se encontram têm com eles uma tal harmonia que parecem, à sua maneira, exprimir a mesma “irradiação” de uma alma misticamente unida a Nosso Senhor Jesus Cristo. O heroísmo dos cruzados foi tipicamente cristão, e, pois, diverso do heroísmo meramente natural de um legionário romano. É possível considerar o ambiente formado numa paisagem por um possante castelo medieval, sem ter a impressão de que algo de tipicamente cristão nos toca a alma?

Não queremos estender por demais este artigo. Por isso não fazemos senão assinalar que, pelos mesmos motivos pelos quais se poderia falar de um ambiente especificamente sobrenatural e cristão, poder-se-ia falar de um ambiente especificamente preternatural e diabólico.

A formação da “alma coletiva”

Quando a vida social das almas é regular e intensa num determinado grupo humano — uma família, digamos, ou uma sociedade —, constitui-se aí uma como que alma coletiva; ou seja, um conjunto  de convicções, algumas das quais prezadas como particularmente importantes; conseqüentemente, uma mentalidade coletiva, um estado de espírito comum, e exercendo uma influência especialmente forte sobre todos os membros. O vocabulário se define pelo uso mais insistente de certas palavras, ou expressões, que até tomam por vezes, dentro do grupo, uma tonalidade específica. Não é raro aparecerem também neologismos. De outro lado, o modo de trajar, de falar, de comportar-se, todas as preferências pessoais tendem a receber a marca dos princípios comumente aceitos, e especialmente dos que são dominantes. Por fim, o ambiente material se satura desta influência, e aos poucos o quadro físico — casa de família, sede social, etc. — vai sendo  transformado de maneira a exprimir ele próprio o espírito dominante.

Várias sociedades menores, formando entre si algo como uma sociedade de sociedades — um conjunto de famílias numa cidade, digamos — podem manter um comércio espiritual comum, que forma  o ambiente mais genérico, porém não menos afirmativo, da vida da cidade. O florescimento de um conjunto de vocábulos, de trajes, de hábitos locais, a produção de obras de artesanato marcadas pelo estado de espírito local, e até de influências artísticas nitidamente locais, tudo isto é o resultante de uma sociedade espiritual harmônica, definida e ativa.

Evidentemente, poderíamos subir assim da cidade à região, desta ao país, e deste por sua vez às grandes zonas de cultura e de civilização. Sem entrar no debate inesgotável sobre o sentido de “civilização”, de “cultura ”, de “estilo” artístico, chamemos aqui “cultura” social o estado de espírito coletivo, a “alma coletiva”, pelo menos enquanto fecundada e ordenada pelo trabalho intelectual, e enquanto existente como nota característica que marca também o trabalho intelectual; chamemos “civilização” o conjunto das instituições, leis, costumes, enfim todo o modo de ser coletivo, enquanto marcado pela “cultura”; e “estilo” as manifestações da arte enquanto marcadas pela “cultura”, e, pois, necessariamente afins com a “civilização”. Chamemos “ambiente” social a impressão de conjunto exercida sobre o observador pela ação harmônica da civilização, da cultura e do estilo, a transparência definida, forte, inequívoca, do estado de alma e dos princípios doutrinários que são o que aquela sociedade de almas tem de mais intrínseco.

Benefícios da sociedade de almas

Neste sentido, podemos e devemos dizer que o ambiente, a cultura, o estilo, a civilização, isto é, os bens intrinsecamente mais altos da sociedade humana, são o produto da vida social enquanto sociedade de almas. Esses bens são indispensáveis ao modo de ser habitual das almas, e justificam por si mesmos, independentemente de outros argumentos — todos legítimos, aliás — a existência da sociedade. Pois ninguém pode conceber um convívio humano que não tenda, por seu dinamismo próprio, a produzir esses bens. Nem condições normais de vida para a alma fora de tudo quanto se possa chamar ambiente, cultura, estilo e civilização.

Ainda no mesmo sentido, devemos dizer que a função contemplativa do homem nesta terra — aprendizado, prova e prenúncio de sua função eterna no Céu — normalmente se exerce com apoio no  ambiente, na cultura, no estilo e na civilização. Pois é com o auxílio de tudo isso que o homem melhor vê e mais adequadamente assimila ou rejeita os diversos aspectos do meio que o cerca.

Ainda nesta ordem de idéias, devemos acrescentar que a formação do ambiente, da cultura, do estilo, da civilização, embora produtos tipicamente espirituais, constituem objeto próprio da sociedade temporal. Pois é esta última noção que nos permitirá prosseguir em nossas reflexões, chegando a uma perspectiva muito ampla, das relações entre a Igreja e a sociedade civil.

Plinio Corrêa de Oliveira (Continua no próximo número)

Meditação de Maria

Talvez nunca ninguém teve os meios para fazer uma meditação da vida inteira de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas creio que sendo Nossa Senhora quem era, favorecida de todas as graças e dons num grau e numa abundância insondável, Ela não fez senão isto.

Assim, Ela meditava em todo o significado e alcance diante da Santíssima Trindade de cada gemido, cada dor, ao longo da Paixão, mas também de cada alegria por ocasião dos júbilos da Ressurreição, como durante o Nascimento, e enquanto Ele vivia em seu claustro virginal; tudo isso Ela conheceu e adorou, esteve continuamente presente em sua mente por causa dos conhecimentos próprios a Ela, e que Lhe eram comunicados por seu Divino Filho.

Essa contemplação deveria conferir à expressão do olhar de Maria Santíssima e à sua atitude recolhida uma força de meditação verdadeiramente extraordinária, ligada à sabedoria d’Ela: um conhecimento milagrosamente amplo e uma interpretação sapiencial de tudo quanto houve.

Isso constituiu uma arquitetura como a de um palácio: “vita Domini Nostri Iesu Christi”, desde o primeiro instante da Encarnação até a hora da Ascensão. Completada esta, quando Ele entrou no Céu e sentou-Se em seu trono, terminou a vida terrena d’Ele e um todo se fez. Esse todo Ela conheceu, admirou e amou de um modo extraordinário!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/7/1991)

Para alcançar a emenda de meus defeitos

Ó Senhora, Vós sois a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Mãe de todos os homens e, portanto, também a minha Mãe! Eu serei, talvez, o último dos filhos, mas Vós sois a mais alta e a mais excelsa de todas as mães. Se meus pecados são um abismo, a vossa compaixão é uma montanha muito maior do que esse abismo.

Sei que minhas preces, por si mesmas, não valem nada. Mas se o coração da mãe está sempre aberto a perdoar, amar e afagar, quanto mais o vosso, que sois a Mãe das mães! Assim, não desprezeis essas súplicas, mas atendei-as favoravelmente, pois Vos estou pedindo como filho. Alcançai-me a emenda de meus defeitos.

Sei, ó Mãe, que nunca deixareis de olhar com boa vontade para o filho que pede a vossa assistência. Por isso Vos imploro com insistência: tende pena de mim e arrancai-me de meus pecados. Assim seja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 21/9/1991)

Nossa Senhora, Rainha da História

Inúmeras vezes, em suas conferências, Dr. Plinio falou a respeito da realeza de Nossa Senhora. Suas elevadas explicitações eram frutos  de uma autêntica piedade mariana.  Imaginando como teria  e desenvolvido a Humanidade no Éden,  caso não houvesse o pecado original, Dr. Plinio narra  o movimento ascensional da História rumo a Nossa Senhora.

 

Com que alegria eu atendo ao pedido que me apresentaram para fazer uma exposição a respeito de Nossa Senhora como Rainha da História!

Para se entender em que sentido Maria Santíssima tem esse título, é preciso compreender o que significa Rainha e História. Esses são temas familiares a nossas almas; tratarei apenas de explicitá-los.

A História tem necessariamente um “unum”

Imaginemos que alguém, ao fazer um histórico de um hotel, o concebesse da seguinte maneira: o que se passou nos quatrocentos ou quinhentos quartos do hotel. Não seria, portanto, a história dele como uma instituição, um estabelecimento que fornece comida, alojamento, com épocas em que os hóspedes são mais numerosos ou menos, a renda é maior ou menor; onde surgem problemas com os empregados, há mudanças de donos porque antigos proprietários morreram ou o venderam.

O histórico seria, portanto, composto de histórias do que se passa naquela população ambulante, os hóspedes que vêm de diversos lugares, passam lá algum tempo, depois voltam ou nunca mais aparecem; são eles animados por desejos, esperanças, realidades diversas, e um hóspede que entra não tem ideia de quem o antecedeu nem de quem o sucederá. Isso não forma a História.

Um historiador que trabalhasse essas informações poderia, quando muito, escrever “histórias em um hotel”. Escolheria esses e aqueles personagens interessantes que passaram pelo hotel, e explicaria em que períodos de suas vidas estiveram lá, quais eram presumivelmente seus pensamentos, suas preocupações, o que faziam, por que ali se hospedaram e, talvez pelo registro das ligações interurbanas do hotel, com quem teriam falado etc. Isto seriam histórias num hotel, mas não a história de um hotel.

Por quê?

A História, como um “unum”, é diferente das histórias fragmentadas e esparsas como as acima imaginadas. Ela é uma narração que tem o mesmo agente, temas conexos, e cuja ação é contínua através dos tempos. Essa é a perfeita História.

Por exemplo, História de uma nação: há um mesmo agente, quer dizer, a nação tomada no seu conjunto, que está agindo. Em geral, os temas têm certa continuidade: relações com os países fronteiriços, problemas internos culturais, sociais, econômicos que vão mudando com o tempo, mas nascem um do outro.

Mas, se não houver uma continuidade de agentes e de temas; mais ainda, se não existir uma continuidade daqueles em relação aos quais a História se desenvolve, ela não forma um todo.

Nossa Senhora é a Rainha de todos os povos

Ora, quando dizemos que Nossa Senhora é Rainha da História, não afirmamos que Ela é a Rainha apenas da História deste ou daquele país, nem sequer de um bloco de países. Por exemplo, Rainha da História dos povos cristãos Ela o é, sem dúvida, a título especial dos povos católicos. Mas a Virgem Santíssima é genericamente Rainha da História de todos os povos. E as relações longínquas entre a Coreia e o Japão, a Coreia e a China, a China e o Japão — relações triangulares complexas, atormentadas, que se desenvolveram entre esses três povos de raça amarela e vizinhos ao longo dos séculos — não tinham a Nossa Senhora como ponto de referência, mas sim como Rainha.

A triste História intertribal da América do Sul, das várias nações de índios cujas tribos se atacavam umas às outras, colaboravam entre si por terem inimigos comuns, se ignoravam e por vezes se perdiam nas vastidões da “jungle”(1) americana; toda essa movimentação dos homens é a História. E Nossa Senhora é a Rainha dessa História, ainda para os povos que A ignoravam. Ela é a Rainha da História inteira.

Digo de propósito “da História inteira”, porque não se refere apenas a tudo o que aconteceu em determinada época, mas desde que o homem foi criado até o momento em que os últimos justos vivos serão chamados a participar do julgamento dos outros — porque serão amados por Deus —, e os malditos escorraçados pela justiça divina. Enfim, enquanto houver homens vivos haverá História, e Nossa Senhora será a Rainha dessa História.

“Post-scriptum” marial da História

Qual é a relação de Nossa Senhora com o centro em torno do qual se move a História?

Compreendendo o “unum” da História, entenderemos melhor como Ela é a Rainha da História. Então, a glorificação de Maria Santíssima como Rainha da História aparecerá claramente aos nossos olhos.

No Reino de Maria haverá uma esplendorosa catedral em honra de Nossa Senhora Rainha da História. Será talvez a catedral de todos os esplendores do Reino de Maria. A vitória sobre o dragão da Revolução para a implantação do Reino d’Ela fecharia uma era na História e abriria outra. Mais ainda: de algum modo terminaria a História e começaria a post-História.

Há uma tese, que nos é cara, de que a História propriamente não se encerraria agora e, portanto, não estaríamos no fim do mundo, embora todas as aparências sejam de fim de mundo. Em razão dos acontecimentos que ocorrem atualmente, podemos dizer que é o fim de um mundo, mas não o fim do mundo.

Porque, pela intercessão de Nossa Senhora e para a realização de uma glória d’Ela, sem a qual a História não pode encerrar‑se — por causa d’Ela e não devido a nós —, a História terá a sua post-História. Como numa carta se pode colocar um “post-scriptum” mais belo do que a própria carta, na História será escrito o “post-scriptum” marial da História: o Reino de Maria. Todas as riquezas, todo o bom gosto e, sobretudo, toda a piedade do mundo devem se mobilizar para comemorar a abertura dessa post-História, que é o fecho de ouro da História do mundo.

Antes mesmo de nascer, Nossa Senhora já reinava na História

Vejamos qual será a continuidade dessa História.

Antes da Torre de Babel, os homens constituíam um só todo, moravam no mesmo lugar, ou em locais tão próximos que tinham contato contínuo entre si. Em suma, o gênero humano não estava disperso pela Terra, todos os povos giravam em torno de alguns acontecimentos centrais e eram o eixo da História.

Nossa Senhora ainda não havia sido criada, mas já era com vistas a Ela e a seu Divino Filho, o Qual haveria de vir, que a História era tecida.

Deus, ao governar a História — e quem pode duvidar que Ele seja o Rei da História? —, tinha em vista a Encarnação do Verbo no claustro puríssimo de Maria Virgem, e, por causa disso, dirigia a História caminhando para esse ponto, esse destino. Nossa Senhora estava, portanto, presente nos planos de Deus e, antes de nascer, já reinava na História, porque tudo era dirigido por Ele de modo tal que desse glória a Ela.

Há alguns reis que o são desde meninos; outros que, estando ainda no claustro materno quando lhes morre o pai, herdam a realeza antes mesmo de terem nascido; mas ninguém é rei antes de ter sido concebido. Nossa Senhora, séculos antes de ser concebida, já era Rainha. Desde sempre Ela estava nos planos do Padre Eterno, no amor do Verbo, nas ansiedades de seu Divino Esposo, o Espírito Santo, e, por causa disso, tudo corria em direção a Maria Santíssima. Isto é ser Rainha!

Depois da dispersão da Torre de Babel — que estava sendo construída por pessoas tomadas de orgulho, pretendendo que ela chegaria até o Céu —, os homens foram para as direções mais variadas. A História nos mostra que uns perderam contato com os outros. Como um planeta que tivesse explodido no céu, dando origem a muitas estrelas pequenas e algumas Vias Lácteas, a Humanidade eclodiu, fazendo surgir corpúsculos, grupos humanos que se ignoraram uns aos outros do modo mais completo.

Entretanto, acima disso pairava um “unum”, o qual fazia com que a História humana se desenrolasse. Qual era esse “unum”, e como Nossa Senhora é Rainha desse “unum”?

Fivela que prende o reino angélico ao reino animal

De fato, o gênero humano tem uma unidade. Nos planos de Deus, os homens constituem intermediários entre os anjos, seres puramente espirituais, e, de outro lado, os animais, seres materiais; e mais abaixo estão as plantas e os minerais. O ser humano é, por assim dizer, a fivela que prende o reino angélico ao reino animal.

Embora não sejamos, nem de longe, elevados como os anjos — os de menor categoria entre eles, quando têm aparecido a simples mortais, mostram-se tão esplendorosos, que quem os vê começa a tremer pensando estar diante do próprio Deus —, entretanto temos este título de glória: somos o liame que une o imensamente grande com o imensamente pequeno, onde, portanto, a harmonia se afirma, triunfa.

Essa é uma explicação pela qual convinha que nesse ponto de junção, ou seja, o gênero humano, o próprio Deus se encarnasse para honrar a Criação inteira. De nenhum modo o Criador poderia honrar tanto a Criação, quanto se encarnando. Ele se põe no centro de sua obra; a corola da flor do universo somos nós, homens. No centro dessa corola está Nosso Senhor Jesus Cristo e junto d’Ele, com o véu de mãe, está Nossa Senhora.

O homem simboliza, melhor do que o anjo, todo o universo

Na mente de Deus, esta categoria da criação tão magnífica, de uma posição tão excelente, tão honrada por Ele, deveria realizar uma glória especial.

O que vem a ser aqui a glória?

É o deleite que Ele tem com a honra que recebe pelo fato de que seres à sua imagem e semelhança Lhe prestam culto e veneração. E a homenagem oferecida pelo homem simboliza melhor a de todo o universo do que a homenagem prestada pelo anjo.

A estrela mais distante e da qual, talvez, não tenhamos conhecimento até o fim do mundo — corpo material com reluzimento e propriedades físicas e químicas no equilíbrio do universo —, entretanto, participa de nós e temos algo com que a honramos, porque ela é matéria, e a matéria está presente em nós. E se as estrelas não tivessem brilho, mas pudessem conhecer e soubessem que há homens, elas começariam a cintilar.

Deus quis que esse gênero humano assim constituído tivesse certa forma de beleza e de excelência física, que não fosse senão o espelho de algo muito mais magnífico, precioso e nobre, que condiciona a beleza física, que é a beleza espiritual: o “lumen” do intelecto, a força da vontade, o cognoscitivo e o vibrátil da sensibilidade, formando em cada homem um exemplar e um padrão especial de beleza.

História da Humanidade se não tivesse havido pecado original

Caso não tivesse havido o pecado original, Deus intencionava nesta linha criar cada ser humano com seu papel nesse universo de beleza: nasceria e, depois de passar algum tempo no Paraíso terrestre, seria chamado ao Céu, sem a morte, e brilharia por toda a eternidade, cintilando diante de Nosso Senhor.

É claro que, neste plano, toda a História desenvolvida no Éden teria como ponto central a Encarnação do Verbo. O amor de Deus por essa espécie de criaturas iria se manifestando cada vez mais, de maneira tal que os homens até então existentes, e a própria natureza, exprimissem um santo, calmo e ardoroso alvoroço: “O que virá agora, já que Ele nos ama tanto?” E, em certo momento, viria o insuspeitado, o inimaginável: o próprio Deus se faria carne e habitaria entre nós. E apareceria o Homem ultra‑ arquetípico, elevado a uma glória incomparavelmente maior do que a simples natureza pode dar, mas Homem, ligando sua natureza humana à natureza divina, formando uma só Pessoa, a segunda da Santíssima Trindade.

Movimento ascensional da História rumo a Nossa Senhora

Como se daria isso?

É claro que o gargalo magnífico, pelo qual se chegaria até esse acontecimento único, seria Nossa Senhora, a Virgem perfeita, da qual Ele nasceria. Ela, a incomparável, a única para cuja construção gradual tudo confluísse, de maneira que os profetas teriam dentro de si uma palpitação, que era um pressentir de Maria que viria. A perfeição de todos os seres humanos de algum modo prenunciaria a d’Ela; poderíamos assim imaginar uma ascensão gradual da Humanidade até Nossa Senhora, a flor que se abriria e o Verbo estaria em seu interior. Rainha da História…

Não estaríamos no alto do morro do qual se desce, mas depois haveria algo mais alto. Porque as criaturas, conhecendo a Encarnação do Verbo e Nossa Senhora, convivendo com Ele e com Ela — por quanto tempo não se sabe —, num convívio pacífico, amoroso, reverente, como gostamos de imaginar ter sido na noite de Natal, no dia de Pentecostes, nas grandes festas de Nosso Senhor Jesus Cristo; haveria aquela paz, alegria, glória, sabedoria, majestade e, ao mesmo tempo, misericórdia e bondade indizíveis; surgiria então — eu emprego um termo moderno e desdourado — uma pista de voo ainda mais alta.

No alto do morro se construiria uma catedral; e muito mais magnificente do que o morro seriam os séculos da História cristã.

Como seria a festa da gloriosa Ascensão do Verbo Encarnado? Ele subiria ao Céu certamente sem Paixão, sem cruz. E, depois, a Assunção de Nossa Senhora? Como seriam as alegrias de todo o gênero humano? Os homens ficariam no Paraíso terrestre e Nosso Senhor viria apenas nas espécies eucarísticas? Ou, com a ausência do pecado, a inocência do gênero humano — podemos imaginar a beleza do gênero humano inocente! — levaria Deus Nosso Senhor a tornar a presença d’Ele frequente entre homens?

Ninguém pode ter ideia, porque viriam alcandores sobrepujados por outros alcandores, no ápice dos quais sempre estaria Nossa Senhora, Rainha de todos os anjos e santos; Rainha de tudo aquilo quanto a graça engendrasse de grande, porque d’Ela nasceu Nosso Senhor Jesus Cristo, o Homem‑Deus.

Portanto, por mais que a História glorificasse Maria Santíssima e Nosso Senhor, Ela pairaria acima de tudo e atrairia a Si a História. Aí está a Rainha da História: o movimento ascensional de toda a História rumo a Ela para chegar a Ele.

Com a Virgem Maria a História se evanesce em santidade, virtude e beleza

Para que isto tivesse tido a sua verdade, não era preciso que, depois de Adão e Eva, nenhum outro homem pecasse. O pecado original propriamente, o pecado do gênero humano, foi cometido em Adão e Eva porque eles eram o gênero humano naquele tempo. Mas seus descendentes já não continham todo o gênero humano. De maneira que os pecados deles não seriam pecados originais, nem se transmitiriam aos seus descendentes.

Caso aqueles que pecassem fossem postos fora do Paraíso, deveriam aguentar a vida nesta Terra como pudessem. E surgiria a sub‑História, como as notas ao pé da página de um livro. O grande eixo central da História seria dos homens que teriam continuado no Paraíso.

Em determinado dia a coleção dos homens estaria completa. E Nossa Senhora representaria às Três Pessoas da Santíssima Trindade: “Vede, o número misterioso, intencionado por Vós, está completo. No Céu, os lugares dos anjos malditos, que apostataram, estão também preenchidos, vosso plano está realizado; a História chegou ao auge de sua glória!”

Como seriam esses homens perfeitíssimos do final da História? Como seria, então, o Reino de Maria? Aquela época em que os homens pudessem dizer a Nossa Senhora: “Vós realizais o que há de mais maravilhoso na História. Vós sois o ponto terminal, a História convosco se evanesce em santidade, virtude e beleza. Vós sois o aroma que se desprende da flor, ou seja, o melhor que a flor deita de si. Vós sois o aroma da História, o perfume de todas as misericórdias e todas as justiças daquele Infinito que nos criou”.

A História terminaria quando o último justo tivesse atingido o píncaro de sua justiça, e Deus dissesse ao gênero humano: “Ó salvos no Céu, ó salvos na Terra, ó amados por toda parte, acabou!”

Que glória e que hino! Todos os homens deixando o Paraíso terrestre para viver no Céu! Mas, não se restringindo às belezas insondáveis da visão beatífica e do Céu empíreo, eles de vez em quando desceriam à Terra e, olhando os diversos lugares, comentariam uns com os outros: “Lembra‑se? Lembra‑se?”

Devido ao pecado original, Deus não desistiu de seu plano, mas o transcendeu

Esse era o plano e essa seria a linha reta da História. Não se realizaram… O homem pecou. Mas, no momento trágico de sua expulsão do Paraíso terrestre, Deus revelou ao homem que a História continuaria, Ele realizaria seu plano e viria a Virgem que esmagaria a serpente. O Criador profetizou ao homem a História, a qual não seria de paz, de beleza e de harmonia, mas de luta, de guerra; o gênero humano cindido entre duas raças, a da Virgem e a da serpente, e a vitória permanente da Virgem sobre a serpente, calcando-a aos pés.

Nessa profecia estava contida a promessa do Salvador que viria. E, portanto, da Encarnação do Verbo e de tudo quanto aconteceu em virtude disso.

Deus não desistiu de seu plano nem da História que os homens desfiguraram pelo seu pecado. Ele os transcendeu em magnificência, fazendo dessa luta uma História de algum modo mais bela do que a História daquela paz.

A nossa grande guerra contra os filhos do demônio, por vários aspectos, é mais bela do que a própria História do Paraíso.

Considerem a hipotética História do Paraíso: que magnificência! Mas seria uma História que não teria mártires, cruzados, nem homens que estraçalhassem o erro pelo vigor de sua lógica.

Sendo verdadeiro o provérbio português “quanto maior a altura, tanto maior é o tombo”, também é verdade que quanto maior é o tombo, tanto mais alto é o soerguimento. E a altura da vitória se medirá pela profundidade do tombo, e por mais outro tanto que se elevará acima.

Esta é a História com a post-História, a História do Reino de Maria que vem se aproximando.

Se Nossa Senhora era a Rainha da História, nos planos cheios de bondade, impregnados de encanto paradisíaco de Deus Nosso Senhor, por essa mesma razão Ela é Rainha da história dos tormentos, das aflições, das lutas, das angústias, das incertezas, das batalhas, das polêmicas, da vitória. Portanto, Ela é verdadeiramente a Rainha da História.

Poder-se-ia perguntar: “E a História triangular de chineses, coreanos e japoneses, que ligação tem com tudo isso?” Aliás, é a História noturna, porque longe do Sol da Justiça, que é Nosso Senhor Jesus Cristo.

Para ver as coisas simplificadamente, toda essa História correu até o momento em que São Francisco Xavier chegou ao Japão, pregando a Nosso Senhor Jesus Cristo. De um modo ou de outro, tudo havia sido um conjunto de tentames da Providência para aproximar esses povos e prepará‑los para aquela hora de bem‑aventurança.

Uns rejeitaram, outros aceitaram e batalharam. Eles ignoravam qual era o ponto central em torno do qual lutavam, a fim de que se soerguessem tanto quanto possível de dentro da lama do paganismo, para poderem estender as mãos ao apóstolo magnífico que lhes fora mandado pelo zelo de Santo Inácio; e aos missionários que se lhe seguiram, ao longo da História desses povos.

O centro é este: o momento magnífico da vitória do Reino de Maria, em que eles deverão converter‑se. E Nosso Senhor e Nossa Senhora, ainda que eles não soubessem, eram o centro dessa História. Maria Santíssima é ou não é a Rainha dessa História?

Leme e figura de proa

Rainha em que sentido?

Como nós gostamos muito de lógica, de definições bem feitas, buriladas, lapidadas e de cada coisa colocada em seu lugar, estou certo de que todos desejam entender bem qual é aqui o papel da rainha.

Até aqui eu descrevi a rainha como uma espécie de modelo ideal, que exerce uma presidência honorífica, atrai pelo esplendor, inspira pela magnificência de sua ação de presença e de seu exemplo. Mas uma rainha não é apenas isso.

Em ponto muito pequeno, puramente terreno, “in partibus infidelium”, nas regiões dos infiéis, há uma rainha cujo papel, de certa forma, é análogo ao que foi dito: a Rainha da Inglaterra. Se se comparasse um fósforo com o Sol, ainda haveria exagero no tomar em consideração o papel do fósforo, de tal maneira é grande a desproporção entre essa Rainha e a Rainha da História. A Rainha da Inglaterra tem uma ação de presença, ela encanta, deslumbra, anima. Porém ela não reina, porque reinar não é só isso; é governar. Dizer que a rainha não governa, mas reina, equivale a afirmar que é uma figura de proa no navio.

A figura de proa tem seu papel no navio, porque é um estandarte. Mas é uma coisa inteiramente diferente do leme. Para reinar é preciso ser leme e figura de proa.

Maria Santíssima dirige a História…

Em que sentido Nossa Senhora tem nas mãos o leme da História?

Ela conhece as intenções de Deus a respeito da História; tais intenções são o plano de Deus condicionado às orações, aos atos de virtudes e aos pecados dos homens.

Depois da Redenção infinitamente preciosa de Nosso Senhor Jesus Cristo, os homens pertencem a seu Corpo Místico, formando com Ele uma unidade sobrenatural em cuja realidade interna o mais delicado disso se passa. Tomando essa verdade em consideração, é do modo pelo qual reagimos às graças, dizendo sim ou não, e também da maneira pela qual os outros aceitam ou recusam os favores divinos, que Deus realiza um balanço geral. Nesse balanço Ele faz pesar a sua bondade e a sua justiça infinitas.

Mas o próprio Deus, na sua insondável bondade, quer mais do que Ele mesmo faz. Os homens são tão ruins que Deus daria aos homens menos do que Ele quer. Por uma disposição de sua sabedoria, verdadeiramente magnífica, Deus constituiu esta situação: uma criatura inteiramente humana, mas absolutamente perfeita; além disso, Filha do Padre Eterno, Mãe de Deus Filho e Esposa do Divino Espírito Santo, que sempre está em condições de retocar, ao menos em parte, o que homens fazem e, por assim dizer, corrigir — se a palavra “corrigir” não fosse inadequada —, reformar, rever, segundo os planos da misericórdia de Deus, aquilo que sua justiça faria. De maneira que Maria Santíssima está sempre pedindo: “Meu Pai Eterno, meu Filho adorável, meu Esposo perfeitíssimo, recuai um pouco, adoçai um tanto, ajeitai aqui, fazei mais acolá…”

E a rogos de Nossa Senhora, que nunca deixou de ser atendida, Deus como que passa a borracha sobre o plano da História escrito a lápis, e deixa a Santíssima Virgem traçar a ouro o plano verdadeiro, o qual corresponde ao mais fundo da intenção d’Ele.

Deus não A teria criado se não fosse isso. Mas se não A tivesse criado, ficaria difícil ou impossível — hesito diante do termo — fazer a História tão bela como é. Nossa Senhora enfeita essa História. E somente por isso, de um lado, Ela é a Rainha da História, porque Ela imprime, por um profundo consentimento de Deus, à História um rumo, que Deus sem Ela não teria imprimido. Nossa Senhora, portanto, dirige o leme da História.

De outro lado, Maria Santíssima não se limita a isso. Ela pede também, para alguns, o castigo. É natural. Quando surgir o Anticristo, virá o momento em que o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, com um sopro de sua boca, o exterminará. Mas esse momento não será apressado por Nossa Senhora? Ela dirá: “Eis que os últimos bons que restam bradam e pedem que venhais! Vinde, por favor, vossa Mãe Vos pede.” E pelo sopro dos lábios de Nosso Senhor estará encerrada a História.

Compreendemos, então, a direção da História, direção “intercessiva”. Deus é quem dirige tudo, mas a intercessão de Nossa Senhora é segundo os planos do Criador. E Ela realiza a vontade de Deus, obtendo a modificação dos planos d’Ele. Deus reina, mas por meio de Maria Santíssima, a Quem Ele quis dar toda a glória que se pudesse imaginar a uma tão excelsa missão de intercessora de todo o gênero humano. Assim, Ela dirige a História.

…e a modela como um artista faz com a argila

Há mais. Nossa Senhora dirige a História geral dos homens, que é composta pelas Histórias de cada nação; e a História de cada nação é composta pelas histórias de cada família; e a história de cada família se compõe das histórias de cada homem. E, como família, entendo pai e mãe, unidos em legítimo matrimônio, e filhos dele decorrentes; e também as famílias espirituais, suscitadas por Maria Santíssima ao longo da História. É a reação delas que condiciona a História.

Nossa Senhora intervém na história de cada um de nós, do último mendigo que possa estar implorando misericórdia, porque é um bêbado e um inútil, até o maior potentado da Terra. Por todas as pessoas a Santíssima Virgem intervém até o último momento de suas vidas, pedindo ao Padre Eterno, a Nosso Senhor Jesus Cristo e ao Divino Espírito Santo que mandem graças para converter esse, melhorar aquele. E são derramadas graças que a pessoa pode recusar totalmente, ou só a meias. Por isso a história, mesmo dos malditos, sofre certa inflexão devido a algum pedido da Virgem Maria.

Até lá vai o poder de Nossa Senhora. E a oração d’Ela, interveniente junto a cada homem e “intercessivamente” junto a Deus, modela a História como um artista modela a argila para fazer uma imagem. Portanto, Maria Santíssima é operante na História.

O fator determinante de todo o curso da História é nossa atitude diante das graças que recebemos através de Nossa Senhora. Todos os nossos pedidos sobem ao Céu por meio d’Ela, e só são gratos a Deus porque são apresentados por Ela.

É conhecido o princípio de que, se o Céu inteiro pedisse sem Maria Santíssima não obteria; Ela, pedindo sozinha, obtém. Tal é a gloriosa, magnificente e régia intercessão de Nossa Senhora.

Considerando tudo isso, compreendemos bem o que significa o poder d’Ela como Rainha da História.

Aspecto “catedralício” da História

Um homem inteligente, que olha para uma catedral, não tem a visão apenas das pedras com as quais ela é construída; sobretudo ele vê o “unum”, que é a catedral.

Se a uma pessoa que foi olhar uma catedral perguntamos:

— O que você viu?

— Um montão de granitos.

Pensamos: “É claro que ele viu uma quantidade enorme de granito, mas se viu só isso ou principalmente isso é um estúpido.”

O modo de relacionar esses granitos entre si forma uma coisa muito superior: a catedral. O granito foi “per accidens”, por acaso, circunstancialmente, um meio para se chegar a ver a catedral.

Assim Nossa Senhora vê a História da Humanidade, da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, a História d’Ela e do seu Divino Filho.

Quer dizer, Maria Santíssima vê o plano de Deus e a inter‑relação do agir da Humanidade e do agir de Deus, mas da Humanidade formando um todo; e dentro da Humanidade, outros todos: as nações, as regiões, as famílias. Ou seja, Ela contempla todos os componentes e o grandioso todo do gênero humano que é a fivela entre o anjo e a criatura meramente material; o gênero humano ao qual Nossa Senhora e, em sua natureza humana, o Divino Filho d’Ela pertencem, com honra insondável para o gênero humano.

Então, Maria Santíssima vê o conjunto dos pecados que conduzem a um grande movimento único de pecado: a Revolução. Mas Ela observa também o conjunto das virtudes e um grande movimento único que combate os pecados. E, como um homem não estúpido contempla uma catedral, os olhos virginais de Nossa Senhora veem o aspecto “catedralício” da História, isto é, a Revolução e a Contra‑Revolução.

A Virgem Maria é Rainha da Contra‑Revolução e, em certo sentido, Rainha da Revolução.

Como? A Revolução como tal é uma rebeldia contra Nossa Senhora, e Maria Santíssima não pode ser Rainha dessa rebeldia, a não ser neste sentido: Ela tem o direito, a missão e o poder de punir, e manda como a rainha sobre o escravo revoltado.

Aí está uma exposição sobre Nossa Senhora como Rainha da História.

Que a misericórdia de Maria Santíssima pouse sobre esta reunião, e faça com que produza frutos de salvação para nós e dê glória a Ela.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/4/1982)

 

1) Selva.

 

Misericórdia, a porta para a santidade

“A santidade de uma alma tem sua origem na misericórdia de Deus”. Partindo desta ideia, Dr. Plinio comenta a história de Nossa Senhora de Coromoto e salienta que, quando a Virgem Santíssima manifesta claramente sua bondade, é impossível opor-Lhe qualquer obstáculo.

 

A história de Nossa Senhora de Coromoto(1) é sumamente edificante e, para que se compreenda todo o seu alcance, farei algumas considerações preliminares.

Durante o Concílio, em 1962(2), os membros de nosso Movimento que estavam em Roma receberam de um bispo da Venezuela, da Diocese de Guanare, onde está o Santuário Nacional desse país, estampas representando Nossa Senhora de Coromoto.

A imagem chamou-me a atenção, porque — embora não tivesse grande valor artístico, no que diz respeito à execução material — seu porte e a expressão do olhar tinham uma elevação régia, uma majestade especial. E uma majestade com inteira consciência de sua grandeza, com muita dignidade; e ao mesmo tempo sem nada de apropriativo, de fruitivo, de como quem dissesse: “Aqui estou eu, sou extraordinária”. O olhar indica que seu pensamento está posto em seres de algum modo superiores a Ela, os anjos, no Céu ou no próprio Deus Nosso Senhor. É a imagem de uma Rainha, ao mesmo tempo contemplativa e mística de primeira categoria, e que considera todas as coisas da Terra através de altíssima luz. Por causa disso, pus a estampa em minha carteira, e dali nunca mais a retirei. Das imagens de Nossa Senhora por mim conhecidas, essa é talvez uma das que mais me falam à alma.

Embora eu já tivesse ouvido falar várias vezes de Nossa Senhora de Coromoto, nunca soube dos detalhes de sua história. Só recentemente vim a conhecê-los, e tocou-me enormemente imaginar uma imagem tão majestosa sendo o veículo para tanta misericórdia. Através dela se tem a verdadeira ideia de majestade unida à misericórdia. É uma Rainha com fisionomia extremamente elevada e nobre, com porte muito digno e olhar pairando nas mais altas paragens do espírito, e ao mesmo tempo cheia de uma misericórdia inefável. A misericórdia não é demagógica, vulgar, uma condescendência com o pecado, uma afabilidade criminosa em relação ao mal, mas um ato de bondade generoso, gratuito, de quem converte e vence o mal, que vem muito de cima, mas entra a fundo e é capaz de toda espécie de regenerações.

Há um sacrossanto contraste entre a majestade e a misericórdia. Não há verdadeira majestade sem misericórdia, nem verdadeira misericórdia sem majestade.

A santidade de uma alma é conseqüência da misericórdia de Deus para com ela

A história do índio Coromoto, ao qual apareceu a Santíssima Virgem, fez-me lembrar as aparições de Nossa Senhora a um índio em Guadalupe, no México. A Mãe de Deus tratou-o com uma ternura especial, uma bondade, como não se vê nas outras aparições — mesmo em Fátima, onde Ela se manifestou tão condescendente e bondosa. Esse índio sentia tanta liberdade para com Nossa Senhora que, em vez de chamá-la “minha Rainha”, tratava-A de “minha filhinha”. E a Santíssima Virgem tomou tão bem esse tratamento, que uma ampliação fotográfica recente da imagem de Guadalupe mostra que na pupila dos olhos de Nossa Senhora está a figura do índio, tornando-o imortalizado nos olhos d’Ela. Estar na menina dos olhos significa ser o centro da atenção, do cuidado, e isto realizou-se ao pé da letra.

Tudo isso levou-me também a pensar a respeito do que disse Santo Antônio Maria Claret, após assistir as últimas sessões do Concílio Vaticano I, há cem anos atrás. Vendo, já naquela época, os sinais da desagregação da Europa, afirmou querer morar na América, porque aqui floresceriam santos maiores do que os surgidos na Europa. Essa afirmação me pareceu extraordinária.

Há mais. Antes de ser confessor da Rainha da Espanha, Isabel II, Santo Antônio Maria Claret tinha sido Arcebispo de Santiago de Cuba, e saíra deste país por ser perseguido pelos inimigos da Igreja, apesar de seu apostolado com a população do lugar, em favor da qual ele praticara magníficos milagres. No navio que o conduzia, predisse o futuro próximo de Cuba, sua separação da Espanha e submissão aos Estados Unidos. E apresentava isso como uma série de apostasias e castigos. Naturalmente, uma apostasia causa outra, e por fim se chegou à atual e miserável situação de Cuba.

Parecia-me curioso que ele, tendo falado de Cuba com tal energia e precisão, previra tanta santidade na América Latina. Isso significava a presença de um grande perdão e uma imensa misericórdia, ao lado do abismo representado pelo anúncio dessa severidade.

E, afinal, como a santidade tem sua origem, sua causa primeira, numa misericórdia de Deus para conosco, eu achava muito razoável que houvesse esse nexo entre a profecia de Santo Antônio Maria Claret, de um lado, e de outro o fato de Maria Santíssima ter-Se manifestado tão carinhosa, condescendente, em relação a esse índio do México. Nossa Senhora de Guadalupe foi proclamada pela Santa Sé Patrona da América Latina e, evidentemente, esse índio representava, para o olhar d’Ela, a América Latina inteira, e todos nós somos simbolizados por esse índio. De certo modo, pode-se dizer que cada um de nós está na menina dos olhos da imagem de Nossa Senhora de Guadalupe.

Apesar da extrema maldade do índio, Maria Santíssima manifesta sua inesgotável misericórdia

Essas considerações estavam reunidas em meu espírito quando soube do fato ocorrido em Guanare, Venezuela, com o índio Coromoto, em seus detalhes. Através destes, se vê que é impossível a um homem levar mais longe a obstinação no mal, e inimaginável por nós que a Mãe de Deus chegasse a tal extremo sua “obstinação” em convertê-lo. Realmente é a última palavra em matéria de condescendência: depois de o índio ter querido flechar e golpear Nossa Senhora, Ela fez um milagre, deixando nas mãos dele um pergaminho com sua imagem, e depois o converteu! Não se pode excogitar misericórdia mais excelsa, mais excelente, do que essa.

Alguém poderia observar que o pecado dos que mataram Nosso Senhor Jesus Cristo foi um pecado maior do que o desse índio, tentando agredir a Santíssima Virgem. É certo. Tudo quanto toca à Pessoa Divina de Nosso Senhor Jesus Cristo ultrapassa qualquer dimensão e não pode ser comparado com absolutamente nada. Porém é preciso considerar que em sua Paixão Jesus estava na prostração, na humilhação própria à sua natureza humana. Nossa Senhora, em Guanare, Se apresentou em visão, de forma esplendorosa, mostrando-Se superior a tudo quanto o índio conhecia, e de uma maneira evidente, como Nosso Senhor não fez com seus verdugos. Apesar disso, a maldade dele foi tão grande que tentou agredi-La. Não afirmo ter ser isso mais grave do que o deicídio, mas, sob certo aspecto, revela uma dureza de alma ainda maior. Pois bem, para esse homem, a Mãe de Deus manifestou tanta bondade e misericórdia.

“À sua bondade soberana ninguém resiste”

Que ensinamentos retiramos desse fato? Antes de tudo, para Nossa Senhora a maldade humana não consegue opor obstáculos decisivos. De um jeito ou de outro, se a Santíssima Virgem quer mesmo, e até o fim, Ela acaba vencendo a maldade humana. Portanto, se em determinado momento da História da Humanidade Nossa Senhora quiser praticar um ato de generosidade excelso em relação a um homem, ou a uma série de homens, Ela poderá fazê-lo e vencerá, porque à sua bondade soberana ninguém resiste.

A Santíssima Virgem é soberana em tudo, inclusive em sua bondade. Querendo, Ela derruba todos os obstáculos, como Rainha cheia de suavidade, de tal maneira que uma pessoa, liberta dos grilhões do vício, dos apegos maus, realiza o verdadeiro livre arbítrio, o qual consiste em ser confiscado por Nossa Senhora. Trata-se de um verdadeiro confisco, porém a Mãe de Deus quando confisca, liberta. Ela não cobre o indivíduo de algemas, mas torna-se sua senhora, e ele torna-se senhor de suas más inclinações, de seus vícios, de seus pecados, de tudo quanto impede que sua alma voe para o bem. Essa é a própria substância da definição do livre arbítrio, segundo a Doutrina Católica.

A misericórdia de Nossa Senhora se estende aos povos e às instituições

Outra lição muito importante que decorre das aparições da Virgem Maria ao índio Coromoto é a seguinte: se Nossa Senhora fez isso com esse homem, não poderá realizá-lo com as pessoas de um continente, ou de uma parcela da Humanidade, especialmente suscitada para ser d’Ela, e para seu futuro reino? Maria Santíssima não tem o poder de provocar a conversão da América Latina? Pobre América Latina, tão endurecida, opaca e apagada na Fé que recebeu, na pureza e elevação dos costumes que já não possui; tão longe das esperanças dos santos e dos missionários que vieram cá, para fazer um novo reino de Deus, a fim de compensar, no balanço das coisas entre a Terra e o Céu, o que a Santa Igreja estava perdendo com a apostasia protestante! Essa conversão não ocorrerá de um momento para outro?

Por fim, voltamos nossos olhos para nosso Movimento.

Vendo as coisas bem de frente, tendo Nossa Senhora desígnios sobre nosso Movimento e sua atuação na América Latina, não é bem verdade que o episódio de Coromoto, a graça desse perdão, que dulcifica qualquer dureza e vence qualquer ingratidão, precisa começar dentro de casa? E que devemos pedí-lo para nós e para toda essa parte da Humanidade, aonde Nossa Senhora quis fazer esse milagre extraordinário? E não é verdade também que, apesar de todas as nossas fraquezas e infidelidades, temos razões especialíssimas para confiar, e nunca devemos consentir num pensamento de desespero, à vista de uma graça tão extraordinariamente grande?

Aqui está o ponto central da meditação a respeito de Nossa Senhora de Coromoto, que visa mais especialmente nosso Movimento — porque tem uma missão muito em ordem a isso — e, dentro dele, cada um de nós. Mas essa meditação deve também ter em vista a América Latina, como sendo especial protagonista do dia de amanhã, no Reino de Maria.

Coromoto e Fátima: íntima relação

Finalmente, podemos nos perguntar qual a relação de tudo isso com as profecias de Fátima. São os mistérios de Nossa Senhora… A realização das promessas da Virgem de Fátima purificará e preparará as almas para o “Grand Retour”(3). Quando ele vier, receberemos a graça da misericórdia, da conversão completa.

Com esta visualização, temos um grande enriquecimento para o conjunto de nossas concepções sobre o futuro da História, isto é, a ideia do “Grand Retour” fundada num milagre extraordinário como foi o de Guanare. É um fato concreto que nos dá uma esperança especial e nos explica em algo como vai ser o “Grand Retour”.

Poder-se-ia objetar que não foram apresentadas provas que demonstram a veracidade da história de Nossa Senhora de Coromoto. A prova é: em Guanare está o pergaminho contendo a imagem, com base na qual foi tirada essa estampa que estou comentando, colocada num belíssimo relicário de ouro. Todo o povo, desde quando ocorreu o milagre, vai venerá-lo, indicando assim que já naquele tempo se espalhou sua fama; foi, portanto, admitido por todos os que conheciam aquele índio e sua família, que os fatos relacionados à imagem e a eles eram reais. E essa versão e essa crença foram conservadas através das gerações.

Mas, para mim, isso que poderia ser uma prova histórica muito boa é de pouca importância. O importante é saber que Nossa Senhora é assim, conforme nos ensina a Doutrina Católica. Portanto, ainda que as aparições de Nossa Senhora de Coromoto não tivessem acontecido, elas são reais na sua substância: a misericórdia de Maria Santíssima pode chegar até lá. Se pedirmos, seremos atendidos.

E, para esse efeito, poderíamos fazer uso da seguinte jaculatória: “Nossa Senhora de Coromoto, cuja misericórdia a dureza de coração do índio pecador não conseguiu deter, tende pena de mim, entretanto tão pecador e tão endurecido”.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/7/72)

 

1) Sobre a história de Nossa Senhora de Coromoto, ver “Dr. Plinio”, nº 102, de Setembro de 2006, p. 27.

2) De outubro a dezembro de 1962, Dr. Plinio e alguns integrantes do Movimento por ele fundado, estiveram em Roma, onde instalaram um escritório a fim de acompanhar os trabalhos do Concílio Vaticano II, o qual iniciou-se em 11 de outubro de 1962.

3) Ver “Dr. Plinio”, nº 86, maio de 2005.

Verdadeiro vaso do Espírito Santo

Nosso Senhor cumulou a alma de São Lucas de graças muito especiais para ser o companheiro de São Paulo, redator de um dos Evangelhos e autor dos Atos dos Apóstolos.

Que qualidades morais precisa ter um homem para ser escolhido por São Paulo para seu companheiro de viagem! Alguém que, de um modo eminente, deve desdobrar as atividades apostólicas de São Paulo, figurar ao lado do Apóstolo das Gentes como o discípulo por excelência, aprovado pelo mestre e com quem este quer viajar.

Que dons deveria ter um homem para compreender tão bem a vida de Nosso Senhor, a ponto de coletar os dados necessários e escrevê-la como ele a redigiu no Evangelho!

E que dotes para merecer a glória e a honra de ser o único a escrever um livro inspirado e histórico a respeito do começo da vida da Igreja!

Podemos avaliar quão excelsos são esses dons, considerando que as qualidades do efeito estão na sua causa, e que o autor de um livro sempre vale mais do que sua obra.

Sendo o Divino Paráclito o autêntico Autor desses livros sagrados, isso supõe que São Lucas seja um verdadeiro vaso do Espírito Santo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/10/1971)

Molduras que cantam

A arte de compor jardins com uma vegetação viçosa junto a edifícios antigos e veneráveis constitui um cântico à eternidade de Deus e à glória imperecível da Santíssima Virgem Maria.

 

Tenho visto muitas coisas bonitas, antigas, nas quais sempre me chamou a atenção um particular: a parte que diz respeito aos jardins.

O ajardinamento constitui uma moldura dentro da qual os acontecimentos se passam. E eu, embora não entenda nada de plantas, tenho alguma prática em fazer comentários a respeito de ambientes e costumes.

Debaixo desse ponto de vista, procurarei explicar o papel da vegetação para a ambientação, não somente de um prédio, mas também dos que nele moram. O que é a arte do ajardinamento?

“Fugindo” para os jardins de Versailles

Não posso me esquecer do verdadeiro encanto que senti quando, pela primeira vez, tive uma fotografia global do palácio de Versailles. Era uma espécie de fotografia aérea que dava uma vista panorâmica do jardim.

Lembro-me de que eu tinha um cartão representando essa cena, na minha carteira no Colégio São Luís. E nas longas horas em que estava obrigado a estudar coisas interessantes, mas também outras desinteressantes, um dos modos de “fugir” era suspender o tampo da minha escrivaninha e ficar olhando a fotografia dos jardins de Versailles, as alamedas, etc. Eu ficava encantadíssimo com o jardim!

Diversas formas de beleza em um jardim

Sempre me atraiu a atenção o fato de que quando há um palácio ou uma igreja, e em torno um jardim, existe um elemento inerte, que é o edifício, e um elemento mutável constituído pelo próprio jardim. Este vai sofrendo transformações ao longo das várias estações do ano, é alterável de acordo com o que nele se planta, enfim, muda enormemente.

Como todo prédio dura muito mais do que a vegetação que o circunda, as plantas tendem a envelhecer em torno do edifício, e por causa disso este tem a sua velhice própria agravada pelo envelhecimento da vegetação. Um prédio se cobre, então, de altas árvores cheias de sombras — às vezes estas árvores trazem no tronco a cicatriz de longas idades heroicamente atravessadas — e o tornam mais digno. Mas é uma dignidade que se soma a outra dignidade; uma velhice que se soma a outra velhice; uma penumbra que se acrescenta à moldura de outra.

O cântico da soma das idades

Ora, a teoria da soma das idades pediria que o prédio e o jardim apresentassem todas as idades e, ao lado de uma veneranda ancianidade, mostrassem o esplendor de uma juventude repleta de viço.

Compreende-se que haja um jardim só com elementos velhos, como determinados jardins de palácios italianos em que, por um inteligente descuido, as árvores até apodrecem e caem, as águas estagnam e surgem mosquitos… Isso tem uma grandeza do passado, uma coisa fenomenal!

Entretanto, causava-me certa má impressão ver sempre o passado circundado de coisas que falavam de morte. E me parecia necessário que algumas formas de vegetação cercassem os prédios magníficos e antigos de todo o viço da coisa nova.

Nesse sentido há determinadas plantas encantadoras que têm ar de coisa sempre jovem, cujas folhas parecem estar na sua primeira alegria, saudando os primeiros raios do Sol.

A visão desse contraste sugere-me a seguinte ideia: Como é bonito plantar, ao lado de monumentos veneráveis e antigos, vegetações novas e cheias de viço! Como é belo que as idades, as forças se somem e que todos juntos cantem a eternidade de Deus e a glória imperecível de Nossa Senhora!

Assim devem ser as coisas, pensava eu, e então concluí: Se algum dia me for dado dispor sobre a ordenação de algum grande jardim de palácio, igreja ou praça pública, farei com que haja, junto ao antigo — conservado na força convicta, desinibida e afirmativa de sua continuidade —, algo de novo que fale de uma vida que emerge com pujança no momento mesmo de seu nascimento.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/3/1980)

O verdadeiro conceito de liberdade

Para muitas pessoas, a liberdade consiste em fazer tudo quanto seja agradável. Porém, a verdadeira liberdade incide na faculdade de escolher entre a verdade e o erro, entre o bem e o mal.

 

Estando diante de um auditório com grande número de jovens, parece-me oportuno tratar de um tema que interessa a todos.

Por toda parte ouve-se falar de liberdade. A Revolução Francesa teve um lema intitulado: “liberdade, igualdade, fraternidade”. Os revolucionários entendiam que os três maiores bens na vida do homem eram: ser livre, liberdade; não ter ninguém acima nem abaixo de si, igualdade; e todos os homens conviverem entre si como irmãos, fraternidade. Então, liberdade, igualdade e fraternidade eram o supremo bem.

Segundo eles, a liberdade e a igualdade produziam a fraternidade. Desde que os homens fossem inteiramente livres de fazer tudo quanto quisessem, fossem totalmente iguais — não houvesse nenhum superior nem inferior —, eles se sentiriam completamente irmãos. Então, a fraternidade seria uma flor nascida dessa dupla semente da liberdade e da igualdade.

Tenho certeza de que desde o tempo da Revolução Francesa, portanto a partir de 1789, a humanidade mais ou menos viveu com essa ilusão de que a liberdade, a igualdade e a fraternidade eram três princípios que orientariam a vida humana e que dariam aos homens a felicidade nesta Terra. Assim se compreende que haja estátuas levantadas em honra da liberdade, por exemplo, a famosa situada na entrada de um rio em Nova York, que foi mandada de presente pela França para os Estados Unidos, a fim de celebrarem o fato de que ambos os países eram, ou pretendiam ser, construídos sobre a base do tríplice princípio da liberdade, igualdade, fraternidade.

“Hippismo” e o lema “liberdade, igualdade e fraternidade”

A afirmação mais moderna desses princípios encontra-se no “hippismo”.

Considerada a vida dos hippies naquilo em que ela se diferencia da existência de um rapaz que anda pela rua, tem um emprego e leva uma vida comum, a grande diferença é exatamente a liberdade.

O hippie perambula de um lado para outro e faz o que quer. Ele não tem residência nem obrigação fixa; não possui vínculo fixo com ninguém. Não se casa, também não se divorcia. Mesmo quando esteja casado, ele abandona a mulher quando quiser; muitas vezes, nem mesmo tem uma mulher fixa.

A fim de ter o mínimo para viver, o hippie exerce um trabalhinho qualquer; não tem o intuito de constituir um capital para adquirir uma casa boa, um automóvel e organizar a sua vida. Por quê? No fundo, ele tem a ideia de que essas coisas lhe tiram a liberdade; e ele quer perambular o dia inteiro de um lado para outro, fazer o que entende, viver solto numa cidade, mais ou menos como um índio vive na floresta.

O que pode distinguir, por exemplo, um índio que vive na floresta, de um aldeamento de gente civilizada dentro da floresta? É que os civilizados se estabelecem, logo dividem aquela área em residências; estas têm proprietários; normalmente eles se casam, constituem família, em relação à qual, quer dizer, àquela mulher, àqueles filhos, todos têm obrigações uns com os outros, se entreajudam e por causa disso têm condições de realizar uma vida normal, progredirem etc. Eles têm necessidade de um afeto, de uma amizade estável, enquanto os hippies não sentem necessidade de nada disso e vagueiam de um lado para outro como os animais.

Mesmo entre os animais podemos distinguir os gregários e os não gregários. Os primeiros formam grupos, vivem em bandos; os que não são gregários vivem sozinhos.

O hippie não aprecia o raciocínio. Para ele, o raciocinar é algo que tolhe um pouco a liberdade. Gosta de imaginar, de vagabundear pela imaginação como os passos materiais dele vagabundeiam pela cidade.

E, com aquele resíduo mínimo de lógica que existe na cabeça de todo homem, ele se sente livre e acha que os outros são comprometidos, amarrados, algemados.

De outro lado, os hippies se sentem iguais, porque não acumulam dinheiro e entre eles ninguém quer exercer o mando. Os aqui presentes nunca ouviram a frase: “Fulano é o chefe de tal grupo de hippies.” Eles não têm chefe. Pode haver um grupo de hippies, que vivem 24, 48, 72 horas juntos, mas se dispersam “por dá cá aquela palha”; não têm nenhuma continuidade.

E nós, como católicos, devemos compreender por que esse modo de conceber a vida é oposto à Lei de Deus. O que há de sábio na Lei de Deus é o contrário do que existe de errado no princípio do “hippismo”, que é a liberdade, a igualdade e a fraternidade, entendidas de um modo ultrarradical, levado até as suas últimas consequências.

O nosso tema está, portanto, enunciado; vou agora começar a tratar dele.

Proibir o mal significa garantir a liberdade

Imaginemos um menino travesso de dez, onze, doze anos, que tenha o hábito de, acompanhado por mais três, quatro, cinco meninos, seus amigos ou irmãos, brincar com espadinhas feitas de taquara. E a brincadeira consiste em fingir que vai furar o olho do outro menino.

Um pai ou uma mãe vê essa brincadeira e a proíbe; recolhe todas as espadinhas de bambu e as entrega para a cozinheira queimá-las; o menino que for apanhado querendo brincar de furar o olho do outro, é punido.

Pergunta-se: O pai ou a mãe, proibindo o menino de brincar assim, exerceu um ato de tirania ou, pelo contrário, protegeu a liberdade da criança?

A resposta é: Essa brincadeira pode cegar um ou até mais de um menino, causando-lhes um desastre para a vida inteira. As crianças que brincam assim, o fazem por falta de entendimento; elas são vítimas de uma debilidade que há nessa idade, por onde não têm o raciocínio exato. Fazem uma brincadeira que é contrária ao verdadeiro interesse delas. E contrária à natureza delas, porque a natureza do homem consiste em ter dois olhos que funcionem bem; e quando não funcionam é preciso operar, dar um jeito qualquer.

Portanto, os pais garantem a liberdade da criança defendendo o direito dela não ser cega, de viver de acordo com sua natureza, e proibindo-a de fazer o que quer.

Mas, no fundo, é uma proibição na aparência; de fato, é uma garantia da liberdade. Numa idade extremamente jovem, a criança faz coisas que não são racionais, ela é vítima da tirania da falta de maturidade. Para defendê-la contra essa tirania, os pais obrigam-na a fazer uma coisa ou outra.

Dormindo sobre o parapeito de um terraço

Quando eu era menino, tinha uns oito ou nove anos, na minha casa havia um terraço dando para o jardim; era um local batido por ventos, agradável, uma construção em estilo antigo com uma colunata sobre a qual existia um parapeito largo.

Eu estava estudando nesse terraço, e via os tico-ticos, muito abundantes no jardim, que pousavam naquele parapeito, corriam e saíam voando. Às vezes eles abriam as asas e tomavam vento; e eu tinha loucura por tomar vento. Em certo momento, saíam voando, e eu ficava devorado por um secreto desejo de voar também.

Certo dia pensei o seguinte: “Bem, vou parar esse estudo — primeira coisa que eu não devia fazer; mas, sobretudo quando eu tinha que estudar Matemática, o convite era ardente a fim de cessar o estudo imediatamente — e deitar-me em cima do parapeito deste terraço para dormir; meu sono não será muito profundo, mas terei a sensação de um passarinho quando está aqui…”

Deitei-me. Não sei quanto tempo fiquei dormindo lá.

Para tirar-me desse local, do modo mais amável do mundo e sorrindo, sem me causar nenhum susto, Mamãe bateu levemente em mim; acordei e olhei para ela. Eu toda a vida tive uma atração enorme por Mamãe, ainda mais estando ela sorrindo; então, virei-me para o lado de dentro do terraço a fim de acariciá-la. E pensei que ela fosse me acariciar também. Mas não.

Ela me falou com uma seriedade que me deixou pasmo, dizendo que eu precisava prometer-lhe que nunca mais deveria fazer isso. E de fato nunca mais dormi no parapeito do terraço.

Dona Lucilia, fazendo isto, diminuiu a minha liberdade? Ou, pelo contrário, ela garantiu a minha liberdade contra a imbecilidade de minha idade?

Todos assim compreendem que proibir uma pessoa de fazer uma coisa que é contra o bom senso, contra a razão, é uma defesa da liberdade.

Policiais que impedem pessoas tentadas de se atirarem do alto das pontes

A vida é um vale de lágrimas, nela tudo é assim. Quando nas grandes cidades há rios muito grandes, constroem-se sobre eles pontes em geral bonitas, às vezes são verdadeiras obras-primas.

Sobretudo quando são pontes edificadas até o começo do século XX. E quando a ponte é bonita, há muita gente que fica parada sobre a mesma, olhando a água passar, as lanchas, canoas e outras embarcações.

Mas acontece que alguns têm a tentação de se jogar para baixo e se matar. Em São Paulo, por exemplo, algum indivíduo de vez em quando se lança do Viaduto do Chá. Está muito aborrecido, para num daqueles parapeitos feios do viaduto e começa a olhar para baixo; em certo momento, pensa: “Homem, se eu me jogasse, acabaria com essa vida…” E se joga.

Por causa disso, em alguns lugares, a polícia manda vigiar o pessoal que para sobre as pontes. E quando um começa a dar provas de que vai se jogar, os policiais têm a incumbência de ir correndo e agarrá-lo. Quando um policial agarra uma pessoa que vai se suicidar, ele limita a liberdade dela? Não! Ele assegura à pessoa a liberdade de viver, que, num momento de crise, foi ameaçada pela incapacidade de enfrentar as dificuldades da vida. Quer dizer, defende a pessoa contra movimentos errados, por onde ela agiria contra a sua própria natureza.

Então, na aparência o policial que agarrou o suicida limitou a liberdade deste; de fato, ele garantiu o direito do suicida viver, contra uma debilidade que está na natureza humana, ou seja, a de querer acabar com a própria vida por causa de certas circunstâncias — o que não é razoável, não é direito, não é sério.

A boa ordem da natureza

Chegamos assim ao seguinte princípio: Tudo quanto é conforme à boa ordem geral da natureza, tudo quanto é razoável o homem, em princípio, deve ser livre de fazer. Mas quando uma coisa não é razoável, é contrária à boa ordem da natureza — contrária à boa ordem da natureza dele, ou da natureza ambiente —, ele deve ser proibido de realizar.

Isso é uma defesa da liberdade dele e dos outros. Porque nunca existe a liberdade de um homem agir contra o seu próprio interesse. A liberdade consiste em que o homem proceda de acordo com o seu interesse. E que significa “seu interesse”? Não é o interesse do gatuno, de apropriar-se dos bens dos outros. Mas o interesse da natureza humana que há nele, que o leva, por exemplo, a trabalhar para ganhar dinheiro a fim de viver honestamente; isto é a boa ordem da natureza, dentro da qual o homem é livre. Quando é uma coisa contrária à boa ordem da natureza, ele não é livre; a liberdade para ele é um mal. E agarrá-lo, privá-lo dessa liberdade, é um bem.

Há povos que, por terem um conceito errado de liberdade — e nem possuem essa noção de ordem natural que acabei de expor —, descem tão baixo que fazem coisas verdadeiramente absurdas; e às vezes são povos muito civilizados.

Viúvas eram queimadas vivas…

A Índia, por exemplo. Até o século XIX, quando os ingleses tomaram conta desse país, havia o seguinte hábito. Ao morrer um marajá, quer dizer, um príncipe, ou um brâmane, isto é, um sacerdote — os sacerdotes em todas as ­religiões podem casar-se, exceto na Religião Católica — ou qualquer pessoa de alta categoria, a viúva devia ser queimada viva.

Então, nos funerais de um marajá, por exemplo, iam animais sagrados para serem queimados, servidores que tocavam músicas fúnebres, e em certo momento do cortejo surgia um carrinho todo enfeitado com matéria preciosa, digamos, revestido de ouro, com tecidos finos, cortinas abaixadas, pessoas na frente e atrás, tocando flautas. Às vezes havia carpideiras, ou seja, mulheres que ganham para chorar.

Quando um grande sacerdote, um pontífice, um príncipe, etc., morria, julgava-se que era bom dar a impressão de que foi muito chorado. Mas às vezes nos funerais ninguém chora. Então contratavam essas choradeiras para irem chorando; elas recebiam um tanto e voltavam para casa. E há pessoas que têm uma facilidade de chorar extraordinária!

No interior do carrinho vinha a esposa do príncipe falecido e, ao final do cortejo, ela era amarrada e lhe ateavam fogo.

Quando a Inglaterra se sentiu firme para poder mandar na Índia, ela proibiu esse rito. Fazendo essa proibição, a Inglaterra tirou a liberdade aos hindus de serem assim, ou libertou-os do mau hábito? Ela libertou os hindus do mau hábito.

Termino com mais um exemplo.

Rodelas colocadas nos beiços

Lembro-me, ainda em tempo de menino, do susto que tive, folheando uma revista; de repente vi uma fotografia de uma pessoa com a cabeça caracteristicamente rapada e com uma rodela metida no beiço inferior e outra no beiço superior. De tal modo que, para falar, ela movimentava essa espécie de castanhola, não tocada pelos dedos, mas pelos beiços.

Fiquei horrorizado e fui imediatamente pedir explicações aos mais velhos. Causou-me espanto o fato de que os mais velhos não pareciam horrorizados; porque todos eles já sabiam do que se tratava.

Eu disse, creio que ao meu pai:

— Olhe aqui que coisa horrorosa!

Ele, com toda a placidez:

— Ah, isso é lá na África!

Perguntei:

— Mas como? Na África não se proíbe isso?

— Hoje parece que já está proibido.

Continuei:

— Mas eles passam a vida inteira assim?

— Habituam-se. Quando a gente se habitua não tem nada.

Posteriormente eu soube que os colonizadores, ao chegarem naquelas regiões, acabaram com esse hábito. Eles privaram aquelas pessoas de um hábito legítimo? Não! Eles impediram um mau hábito, que era contrário à natureza.

Imaginemos que uma pessoa tivesse uma doença por onde ficasse com os beiços assim; ela pagaria qualquer valor para fazer uma operação, a fim de ficar com os lábios normais. Pois seria uma vergonha medonha sair à rua e começar a mexer uma beiçorra com essa forma; simplesmente um horror.

A autoridade pode ser comparada ao corrimão de uma escada

Portanto, está bem claro o princípio: Quando uma nação, um povo, um particular se deixa arrastar a um hábito contrário à sua própria natureza, ele sofreu a debilidade, a tirania do seu lado mau, que o leva a querer fazer coisas contrárias à sua própria natureza. Logo, a liberdade consiste em defendê-lo, proibindo-o de fazer aquele ato mau.

Eu comparo a autoridade que proíbe o indivíduo de trabalhar contra a sua própria natureza, ao corrimão de uma escada.

Ninguém vai dizer que o corrimão limita a liberdade do indivíduo, porque este tem vontade de andar na beiradinha da escada e não pode fazê-lo…

Percebemos assim o erro do liberalismo, que afirma o princípio pelo qual o indivíduo deve fazer tudo quanto é gostoso. E proibir uma pessoa de fazer uma coisa gostosa é atentar contra a liberdade dela.

Pelo contrário, o princípio de autoridade é aquele que protege a razão, a natureza humana. Quer dizer, leva o homem a agir de acordo com a sua natureza; e a razão nos manda agir de acordo com a nossa natureza.

Os dez Mandamentos e a ordem natural

Assim sendo, examinemos as leis mais sábias que há no mundo: os dez Mandamentos da Lei de Deus.

A respeito dos dez Mandamentos da Lei de Deus, Santo Agostinho enuncia um princípio muito bonito. Diz ele: “Imagine um país onde todo o mundo cumprisse os Mandamentos — naquela época os países eram pequenos reinos. O rei, os ministros, os generais, todo homem do povo cumprem os dez Mandamentos. As leis feitas pelo rei são perfeitas, porque estão de acordo com os dez Mandamentos, e a obediência que os súditos prestam a essas leis fazem com que o Estado ande eximiamente”.

Suponhamos uma família onde pai, mãe e filhos cumpram os dez Mandamentos: é a família perfeita. Os dez Mandamentos mandam agir de acordo com a natureza; por isso tudo é tão exímio. Deus é Autor da natureza, e todos os Mandamentos contêm um princípio de acordo com a ordem natural posta pelo Criador; por causa disso o cumprimento dos dez Mandamentos leva à perfeição.

Então, um país onde se ama a Deus sobre todas as coisas; não se toma o seu santo Nome em vão; respeitam-se os dias santificados; não se mata; não se rouba; honra-se pai e mãe; não se peca contra a castidade; não se deseja a mulher do próximo; não se cobiçam os bens alheios; um país onde todo mundo seja assim é necessariamente perfeito.

“Rock and roll” e minueto

E o “hippismo” é a negação mais categórica da razão, do bom senso, da ordem natural. O hippie proclama-se independente de Deus, das regras que todas as coisas devem seguir. Se num país todo mundo se torna hippie, a geração seguinte começa a ficar selvagem.

Uma coisa que indica bem isso é o “rock and roll”, a dança do hippie.

Façamos uma comparação do rock com o minueto.

O minueto é uma dança que se praticou até mais ou menos cem anos antes de começar a Revolução Francesa. Foi a mais nobre, a mais delicada e a mais bela das danças que existiu durante o “Ancien Régime”(1). Músicas delicadas e homens e senhoras faziam cumprimentos uns para os outros etc., formando figuras geométricas na sala, uma espécie de desenho animado; ficava uma verdadeira maravilha. Era o raciocínio quase geométrico inspirando a dança. Esse era o minueto.

E no rock não se dança, pula-se. O indivíduo sente umas golfadas por onde ele tem vontade de dar saltos de um lado para outro e pula. O raciocínio já está banido. Quem dança rock é escravo; o homem livre é capaz de compreender e dançar o minueto.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/1/1987)

 

 

1) Período da História da França que precede a Revolução Francesa.

 

Santa Gemma Galgani

Com traços harmônicos e ar de profunda reflexão, a fisionomia de Santa Gemma Galgani expressa algo de extraterreno. Ela possui uma espécie de altivez e pureza angélicas; sua cútis, impalpavelmente resplandecente e luminosa, exprime a pureza virginal que há nesta santa.

O olhar é de quem tem cogitações que não são desta Terra. E não é tanto o olhar de um pensador, mas é o olhar da mística que está embebida do que vê.

Percebe-se nela a virtude da fortaleza muito saliente: o que ela quer, quer mesmo. Mas, o que ela quer? Servir a Deus e a Nossa Senhora. E esse rumo, sejam quais forem os obstáculos, ela o seguirá!

Eu diria que Santa Gemma é uma representação física, corpórea, da mulher forte do Evangelho: uma pérola rara, de preço incomparável, que compensa ir até os confins do universo para encontrar.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/1/1986)