Variedades do modo de ser de Nosso Senhor

Em menino, Dr. Plinio analisava atentamente uma imagem de Nosso Senhor que havia no quarto de Dona Lucilia, bem como as existentes na Igreja do Sagrado Coração de Jesus. Contemplando-as ele foi discernindo a mentalidade do Divino Salvador, discernimento que depois seria confirmado ao conhecer os episódios narrados nos Evangelhos.

 

Percebe-se que os Apóstolos e todas aquelas pessoas que tinham o convívio com Nosso Senhor — exceto naturalmente Nossa Senhora — não O haviam entendido bem. Parece que com o curso do tempo, depois de equívocos primeiros, eles acabaram pelo menos não formando ideias erradas a respeito d’Ele, mas vê-se que eles não tinham formado uma ideia inteira a respeito de Jesus, exatamente como era a Pessoa d’Ele. E isso era de uma importância transcendental para eles amarem a Nosso Senhor como deviam ter amado.

Amar e compreender

Quer dizer, se eles tivessem amado como deviam, teriam compreendido como podiam; se tivessem compreendido como podiam, teriam amado como deviam.

Assim é o jogo entre o amor e a compreensão. E eles não tiveram esse amor assim. O resultado é que custou para reconhecerem a Nosso Senhor como Deus.

Consideremos que n’Ele há duas naturezas — a humana e a divina —, unidas na Pessoa do Verbo. Portanto, não existem duas pessoas, mas uma única Pessoa divina. Há, pois, n’Ele uma verdadeira alma e um verdadeiro corpo ligados entre si como em todos os seres humanos, mas essa alma e esse corpo estão unidos hipostaticamente à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

Por isso, cada vez que Ele falava, era o Verbo de Deus Quem falava. Cada vez que Ele olhava, era o Verbo de Deus Quem olhava. Cada vez que Ele fazia qualquer gesto, era o reflexo mais perfeito que se possa imaginar da natureza divina na humana.

Portanto, manifestava uma santidade, uma perfeição, uma superioridade, da qual nós não podemos ter uma ideia, nem sequer remota, se não nos ajudar a graça de Deus. Se fizéssemos uma ideia tão exata quanto podemos e devemos de como foi Ele, então teríamos começado a amá-Lo como precisamos amar.

Fisionomia e ação de presença de Nosso Senhor

A voz, os olhares, os gestos d’Ele… Que espelho da Santíssima Trindade! Nós precisamos reconstituir um pouco disso para O amarmos como Ele merece ser amado, e não haver o equívoco de O amarmos como Ele não foi, com todo o perigo que isso traz consigo.

Esse é um trabalho muito delicado que, se não fosse a ajuda da graça, não se faria na alma de nenhum homem. Porque, primeiro, é muito mais alto do que a cogitação de qualquer homem. Em segundo lugar, seria preciso utilizar dados muito imponderáveis; ser um psicólogo do outro mundo para recompor.

Por exemplo, no que diz respeito à fisionomia de Nosso Senhor, um dia em que sentimos certo tipo de consolação sensível ao estar perto do Santíssimo Sacramento, isso produz um determinado efeito que nos deve levar a pensar sobre como era a fisionomia de Quem está causando sobre nós esse efeito. E como era, portanto, o divino rosto d’Ele e — coisa altamente própria ao Santíssimo Sacramento — sua ação de presença.

Então, devemos procurar analisar e entender o que Ele está comunicando. E, tomando os episódios do Evangelho, imaginando-O exercendo sobre nós — se presenciássemos um deles — um efeito daqueles relacionados com o fato, compreenderíamos um tanto o que foi o trato com Nosso Senhor.

Relacionando a fisionomia d’Ele com episódios de sua vida

Tenho a impressão de que, com o Batismo e as primeiras impressões religiosas, nos é dada uma certa primeira noção d’Ele, que vai se formando e aprimorando dentro de nós. Por exemplo, posso me lembrar de como isso foi se constituindo aos poucos na minha própria alma.

Graças a Deus, eu tomei como ponto de partida que a fisionomia apresentada habitualmente pelas imagens de Nosso Senhor era fiel, e que aquele era o semblante que Ele tivera em sua vida terrena.

Sempre dado a examinar as pessoas pelo rosto, instintivamente eu analisava por longo tempo a fisionomia d’Ele. Sobretudo naquela imagenzinha do Sagrado Coração de Jesus, presente no oratório do quarto de mamãe.

Longamente, atentamente, meditadamente — quanto possa caber numa criança — eu a analisava. E ela condizia com a imagem que há num altar lateral da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, também com a existente no teto dessa igreja, e formava assim uma resultante, uma espécie de figura central, que era o essencial dessas várias imagens, e como eu imaginava mais ou menos a Ele.

Então vinham os episódios da vida de Nosso Senhor, e eu procurava me perguntar se aqueles fatos estavam de acordo com aquilo que imaginava da mentalidade d’Ele. E percebia que não só estavam de acordo, mas que os episódios tomavam um realce extraordinário, imaginando-os praticados por aquele Varão, com aquele rosto e aquela atitude. Aquela fisionomia explicava o episódio, e o episódio explicava a fisionomia. E eu me sentia, portanto, na verdadeira pista de entender como Ele era.

Harmonia extraordinária entre as virtudes opostas

Depois, eu procurava também ver o reflexo disso na Igreja. Dado que Nosso Senhor tinha tal fisionomia e, portanto, devia ter tal personalidade, se Ele precisasse fazer uma obra como a Igreja, tê-la-ia feito como ela é? E chegava à conclusão que sim, que era inteiramente o que Ele devia fazer.

De onde, então, uma confirmação da Fé originária que, pela bondade de Nossa Senhora, recebi no Batismo.

Como O imagino?

Antes de tudo, contemplar a Humanidade santíssima de Nosso Senhor causa-me a impressão de cogitações enormemente superiores a tudo que se possa imaginar. Pensamentos de uma elevação, de uma altura, sem proporção com nada. Entretanto, sem podermos chegar nem de longe até onde Ele atingia, alguma luz desses pensamentos brilhavam em Jesus, e como que se via sua Alma inundada dessas luzes das quais Ele estava cheio.

Seria mais ou menos como um homem que não pode entrar numa catedral à noite, mas nota pelo lado de fora que as luzes estão acesas dentro. Ele vê, portanto, a coloração dos vitrais iluminados; aproxima-se e ouve a música; avizinha-se ainda mais, o perfume do incenso chega ao seu olfato. Ele se encanta com a catedral, onde não entrou. Os sinais da catedral o fazem perceber algo da sua beleza.

Assim se passava comigo em relação a Nosso Senhor. Percebia qualquer coisa de uma elevação prodigiosa, mas desde o primeiro momento, desde o ponto mais profundo onde eu O poderia compreender, com essa característica de uma fusão harmoniosa, em nível indizivelmente alto, das virtudes mais opostas, formando uma harmonia extraordinária.

De maneira que, por exemplo, uma força incomparável, mas de uma bondade incomparável também. Uma severidade inquebrantável, mas ao mesmo tempo um perdão de uma doçura sem fim. Um poder incomparável de tranquilizar, mas, de outro lado, também de mover para a luta e para a batalha. Uma superioridade divina, porém ao mesmo tempo uma possibilidade de descer, já não digo à última pessoa, mas a um cachorrinho, e fazer-lhe um benefício qualquer. Estou certo de que, se um cachorrinho se aproximasse de Nosso Senhor, Ele se alegraria com isso.

Seu sono e seus silêncios

Isso tudo indica a superioridade maravilhosa d’Ele, mas também sua imensidade, para que virtudes tão opostas, levadas a um grau tão alto, possam caber em Jesus com tanta harmonia, na qual estaria exatamente o que melhor o meu olhar pudesse pegar na sua natureza humana, como transparência da Divindade, da graça n’Ele.

E por isso, muita gravidade, uma seriedade enorme! Impossível é não só vê-Lo dizer algo que não seja muito elevado, mas falar algo atrás do qual não haja uma elevação infinita, uma coisa infinitamente perfeita.

Realmente, se tomarmos no Evangelho tudo quanto Nosso Senhor disse, já nas primeiras palavras adquire um tamanho que não se sabe o que pensar!

E mesmo quando Ele dormia, seu sono era um arqui-sono, de uma perfeição, um equilíbrio, uma doçura, uma força, um poder de manifestação, uma santidade tal que se uma pessoa, que entendesse Quem e como Ele era, pudesse apenas passar uma noite inteira vendo-O dormir, consideraria essa noite como a mais feliz de sua vida.

Os silêncios d’Ele! Há silêncios que cantam, outros feitos para a poesia, outros ainda para a prosa, para dizer, com afabilidade e intimidade, determinadas coisas que só o silêncio fala.

Por exemplo, o Santo Sudário tem um silêncio eminentemente eloquente. Jesus está ali morto e nada n’Ele pressagia uma palavra. Entretanto, o que Ele diz sem falar é uma enormidade!

Nosso Senhor, independentemente de falar, tinha uma imensidade de coisas dessas que explica porque os discípulos ficavam tão intrigados sobre Quem era Ele.

Construir uma catedral para abrigar uma varinha utilizada por Ele

Suponhamos que nesse silêncio Ele faça as coisas mais simples: colhe uma florzinha e a contempla, ou com uma varinha que tenha na mão risca um pouco o chão. Tem-se vontade de dizer:

— Não mexam nesse riscado, porque Ele riscou!

Alguém retrucará:

— Isso não quer dizer nada!

— Não mexam! As mãos de Nosso Senhor tocaram aqui e ficou alguma coisa que é sacrossanta, na qual não se deve mexer. Se você não entende vá embora, mas isto não sai daqui, ficará para sempre! Voltarei aqui todos os dias e me ajoelharei diante disto, e só não vou oscular o chão para não estragar o desenho que Ele fez.

Para abrigar aquela varinha mandaríamos construir uma catedral! Entretanto essas coisas são apenas símbolos de uma realidade muito superior: o chão riscado por Ele representa a alma de cada um de nós, e a varinha, nosso livre-arbítrio que Ele tentou inclinar de um lado para o outro.

Tenho a impressão de que a tintura-mãe do pensamento de Nosso Senhor era uma síntese harmônica, mas também frequentemente contrastante, entre o que Ele é, o que estava fazendo e aqueles para quem Ele estava agindo. Quer dizer, Jesus conhecia a imensidade de dons prodigalizados por Ele, via a indiferença com que esses dons eram recebidos, por vulgaridade de espírito, falta de senso metafísico, de senso sobrenatural, em uma palavra, falta de amor das pessoas beneficiadas. Contudo, Ele não se afastava daquelas almas, continuava a perceber o que tinham de bom e procurava ainda elevá-las, mas pensava a fundo sobre essa ingratidão e Se entristecia.

Ele, olhando para cada um de nós, conhece inteiramente como somos. Com o olhar Ele saberia tratar a cada indivíduo, de tal maneira que, conforme Ele quisesse, a pessoa se sentiria vista até o fundo da alma nos lados ruins, ou nos lados bons. Naqueles, com uma rejeição por onde o indivíduo teria vontade de fugir do seu próprio pecado; nestes, com uma atração tal que a pessoa teria vontade de multiplicar por cem quintilhões a sua virtude, logo de saída!

Mas, por uma bondosa condescendência para com os homens, Nosso Senhor não olharia inteiramente de um jeito nem de outro, a não ser nas situações excepcionais, para as pessoas poderem viver ao lado d’Ele.

Os episódios da vida d’Ele são todos maravilhosos. Mas não me impressiona tanto este ou aquele fato, quanto as variedades do modo de ser pessoal d’Ele, enquanto andava de um lado para outro.

Jesus chora pela morte de Lázaro e depois o ressuscita

Sempre me impressionou a cena diante do sepulcro de Lázaro. Primeiro, a bondade com a qual Jesus chora junto ao sepulcro, porque Lázaro morreu. E depois, como que não podendo conter a sua própria dor, brada: “Lázaro, vem para fora!”, com um brado que eu imagino majestoso e fendendo a sepultura! E a vida volta em Lázaro. É uma coisa majestosa!

Imaginá-Lo recebendo a censura de Maria Madalena: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”.(1) É, portanto, uma censura. Parecia estar insinuando que, pela relação de amizade existente entre os dois, Ele tinha obrigação de ter salvado Lázaro da morte. E, naquele momento, talvez Ele tivesse parecido a Maria Madalena ligeiramente tisnado de culpa.

E como Jesus se portou nessa ocasião em que Ele não lhe deu nenhuma justificação? Foi para a sepultura, e quase pareceu justificar a censura, chorando. Então, por que deixou morrer? Por que não veio mais cedo? Ela disse que Ele poderia tê-lo salvo! Ele chora a morte que poderia ter evitado? Que pranto é este?!

Nosso Senhor deu algo melhor do que salvá-lo da morte: foi tirá-lo da morte! Ele fez Lázaro ressuscitar! Não há o que dizer…

Podemos imaginá-Lo vendo Maria Madalena, com certeza prostrada diante d’Ele, chorando com emoção dulcíssima, e Ele atendê-la como quem diz: “Minha filha, Eu te perdoo. Tu deverias ter compreendido que Eu não tenho falta! Mas dei-te um dom que não esperavas.”

Depois, sabendo que a partir daquele milagre os fariseus tomariam a deliberação de matá-Lo, passar perto deles e fitá-los… Que olhar!

Pensemos na sucessão de atitudes de Jesus, por exemplo, indo a Betânia descansar. Pode-se imaginar alguém mais adorável do que Ele, repousando no convívio afável com Marta, Maria, Lázaro e os Apóstolos? Ou com Nossa Senhora, certamente na vida cotidiana, ou na residência de Lázaro, recebendo as honras, conversando na intimidade, etc.?

Como Nosso Senhor Se sentiria consolado de tanta infâmia, ao ver o que havia de maravilhoso naquelas almas que Ele estava formando na virtude! É uma coisa maravilhosa!

Tudo isso junto, as várias atitudes d’Ele se sucedendo, sobretudo no momento de passar de uma posição para outra, me deixam especialmente encantado.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 6/9/1984 e 11/7/1991)

 

1) Jo 11, 32.

 

Cristo Rei, Sacerdote e Profeta da História

Sendo a História o conjunto dos eventos humanos que se desenvolvem no tempo, passando por “idades” e etapas, parece-me de grande interesse considerar que cada um dos fatos históricos tem relação, de maneira proporcional, com gestos, pensamentos e episódios da vida terrena de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Entre outros benefícios, tal consideração nos ajudaria a compreender o seu holocausto supremo, uma vez que, como Redentor universal, Jesus oferece fundamentalmente toda a História compendiada na existência d’Ele.

Graças para todas as idades dos homens

Nesse sentido veremos, por exemplo, que a infância d’Ele foi paradigmática, fonte incomensurável de graças especiais para todas as infâncias da Terra. Os mais diversos e abundantes favores espirituais que os homens adultos recebem ao volver o olhar para a sua meninice, todas as oportunidades de reflexão, de raciocínio que a consideração dessa época lhes proporciona, desprendem-se da infância de Jesus.

E o mesmo se poderia dizer das várias etapas da vida d’Ele, cada uma tomada como manancial de graças particulares para os períodos etários análogos vividos pelos homens de todas as épocas. Assim como, em contrapartida, enquanto nosso Salvador expiava também a cada passo da existência d’Ele, os pecados cometidos por todos os homens nas suas diversas idades.

Portanto, no suceder dos seus dias neste mundo, Jesus Cristo de algum modo previveu a vida de todos os homens, de todos os povos, de todas as instituições e nações. Compreende-se, assim, que a História inteira se encontra recapitulada n’Ele, e que Nosso Senhor a tenha vivido de modo paradigmático, merecendo as graças para todos os amanheceres, todas as adolescências, as juventudes, as mocidades, as maturidades, bem como para todos os envelhecimentos dos homens.

Por outro lado, tem-se a impressão de que a bela sentença do Evangelho segundo a qual o Menino Jesus crescia em graça, formosura e santidade perante Deus e os homens, sugere que Ele tinha a inteligência, a vontade e a sensibilidade na sua humanidade santíssima condicionadas às várias idades pelas quais passava. E que ia aos poucos meditando e cogitando, tendo em vista a situação do mundo e a história da Salvação que Ele viera realizar. Creio que a oração no Horto foi o ápice de sua cogitação.

É deveras difícil não se sentir deslumbrado com esse crescimento da natureza humana de Nosso Senhor, recebendo revelações da sua própria divindade, num regi-me interno de relações insondáveis. Não recuo mesmo em achar que a vida oculta e doméstica d’Ele afirma a preponderância do mundo dos pensamentos sobre o da ação, e que as cogitações d’Ele durante aquele tempo continham de algum modo a história das cogitações dos homens. E o papel do raciocinar, do prever, do dar o sentido, do querer, do meditar — muito mais importante do que o fazer — está ali asseverado com uma grandeza indizível.

Temos, então, que todo o processo histórico, todas as etapas do existir humano, coletivo e individual, adquire em tudo uma força, uma nitidez e um esplendor extraordinários com a presença do Homem-Deus na Terra. Porque Ele se encarnou e viveu entre nós, as diversas idades da História e as de cada um de nós se revestem de pujança e de clareza, tornam-se mais compreensíveis, inteligíveis, reluzindo com encanto e majestade especiais.

Mais ainda. Dessa visão da história dos homens à luz da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo se destaca um importante corolário que cumpre assinalar. Se todas as nossas ações se espelham naquelas do Divino Mestre, serão elas julgadas, no fundo e principalmente, em função desse nexo com Ele. O que nos faculta a misericordiosa possibilidade de retificarmos a nossa existência pessoal, caso o o nosso proceder não se compagine com a santidade das etapas da vida d’Ele. É-nos dada, pois, a oportunidade inapreciável de pedir a Ele, por meio de Maria Santíssima, que conserte, repare e oriente ao bom termo — pelos méritos da santidade e perfeição do processo d’Ele — o que houve de defectivo em nós.

Tríplice vocação de Jesus: Rei, Sacerdote e Profeta

Poder-se-ia evocar aqui os mais diversos significados das etapas da vida de Nosso Senhor, todas elas repassadas de suma beleza, sob esse prisma das correlações com o desenrolar dos fatos históricos e com nossas existências particulares. Desde a Encarnação e a gestação imaculada no claustro materno de Maria — uma como que ouverture musical da vida terrena de Jesus — até essa forma misteriosa e sublime de Ele permanecer presente no mundo, como Hóstia Sagrada. O Santíssimo Sacramento é Nosso Senhor que por assim dizer deixa o Céu e volta à Terra, continuando a viver ao lado dos homens. Quanta coisa haveria a dizer e a excogitar! Porém, gostaria de ressaltar um aspecto da vida de Nosso Senhor que talvez reúna todos os demais e lance especiais cintilações sobre as tramas da História.

Com efeito, desde o primeiro instante do seu ser, Jesus se sabia Homem-Deus, investido pelo Padre Eterno dos atributos da tríplice vocação de ser Rei, Profeta e Pontífice.

Rei por direito, conquista e nascença, conforme nos ensina a Teologia. Rei, porque traça um plano sobre o qual tem a direção efetiva, posto deter a prerrogativa de mandar em todas as coisas. E ainda quando concede ao homem a liberdade de escolher se cumpre ou não a vontade d’Ele, os seus superiores desígnios acabam se concretizando no que têm de essencial. De um jeito ou de outro, a sua vontade prevalece e Ele obtém a glória que deseja. Rei, portanto, porque governa os acontecimentos, por mais desgovernados que estes pareçam ser.

Sacerdote Ele o é, porque oferece ao Padre Eterno tudo o que realiza em ordem à sua missão, e na medida em que o plano d’Ele se vai executando, vai sendo também oferecido. Em seu pontificado, um imenso sacrifício, uma grande expiação é apresentada aos pés do Altíssimo: primeiro por Ele, o Salvador; depois, por Maria Santíssima, a Co-Redentora, e em seguida por todos os homens, pois para todos Nosso Senhor comprou a capacidade de sofrer, em união com Ele, o que padecemos em nossa existência. E Ele é o Pontífice que deposita essas imolações no altar divino.

Então, a partir desta Terra há um contínuo evolar de dor, de tormento, como também de felicidade e de esperança, que, ao transpor os limites entre o tempo e a eternidade, transforma-se num brado de vitória e de glória.

Como Pontífice, ainda, Jesus possui o privilégio da distribuição de todos esses méritos que nos alcançou com seu holocausto, e Ele a faz por meio da misericordiosa assistência de Maria Santíssima. Com essa efusão dos méritos — pontos vitais na trama da História —, Ele reafirma sua condição de Soberano que governa e provê ao benefício de seus súditos. Sacerdote, conquistou aqueles tesouros espirituais; ao distribuí-los, reina.

É também Profeta, porque prevê, conhece e anuncia o que acontecerá; porque tem a cognição profética da própria vontade, e de como os fatos se ajustarão de maneira a realizar os superiores desígnios de Deus, traçados desde toda a eternidade.

A glorificação do Rei, Sacerdote e Profeta

Quer dizer, Nosso Senhor Jesus Cristo previveu, nas várias etapas de sua existência, todos os acontecimentos que vieram depois. E como, na condição de Pontífice-Rei, é o distribuidor da vida sobrenatural para todos os homens em todos os tempos, Ele regula tudo desde o início. De maneira que, ao longo de cada período de suas diversas idades, Ele conheceu tudo quanto se passaria no mundo até o fim dos tempos, dispôs e quis que fôssemos como nos é dado ser. Assim, de um modo muito excelente, Ele é o Rei, o Pontífice e o Profeta da História.

E quando soar o magno e tremendo dia do Juízo Final, Nosso Senhor estará oferecendo e recebendo a glória do Pontífice cujo sofrimento foi aceito; a glória do Rei cujo governo foi bem-sucedido, e a glória do Profeta que previu o que tinha de ser feito e o realizou. Destarte, tudo o que será narrado no último dia é a glorificação omnímoda do Pontífice, do Rei e do Profeta. Aquele será o grande domingo da História, em que todos nós seremos julgados, premiados ou castigados em função da proclamação da excelsitude dessa tríplice vocação de Jesus Cristo.

Reflexos dessa trilogia no processo histórico

Concluo, levantando um ponto interessante.

Estabelecido o vínculo entre a vida de Nosso Senhor e os acontecimentos históricos, parece plausível que todos os atos humanos estejam de algum modo relacionados com a tríplice missão d’Ele. Por exemplo, nota-se isso nas funções da hierarquia eclesiástica, à qual cabe o múnus de ensinar, governar e santificar o povo de Deus. Não haveria nessa analogia uma corroboração de que essa trilogia abarca todo o agir humano? E se em todo exercício de poder, por parte de alguém na história dos homens, fosse dado discernir um reflexo dessa trilogia, então todos os fatos históricos dariam glória a Nosso Senhor Jesus Cristo, como Rei, Profeta e Sacerdote, na medida em que cada um desses aspectos fosse mais saliente nos acontecimentos.

Então, no desenrolar da trama da História — considerada como a existência do conjunto da humanidade e não apenas a de um povo ou de uma nação —, três luzes brilhariam, uma mais, outras menos, sem que nenhuma deixasse jamais de cintilar. E assim os fatos seriam vistos como preponderantemente régios, sacerdotais ou proféticos, enquanto as almas chamadas a contemplar o Homem-Deus como Profeta, ou como Sacerdote ou como Rei, dariam, cada uma a seu título, especial e fervorosa glória a Jesus Cristo e à sua Mãe Santíssima.

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Como jóia no seu escrínio…

A Festa da Apresentação de Nossa Senhora no Templo, que transcorre no dia 21 deste mês, foi instituída ao ser consagrada a igreja de Santa Maria a Nova, em Jerusalém, no ano 543. Assim, a liturgia confirmava como fato histórico o que se lê no texto apócrifo conhecido como Protoevangelho de Tiago: a Santíssima Virgem foi levada pelos seus pais, São Joaquim e Sant’Ana, ao Templo de Jerusalém, com tenra idade, para viver uma vida de recolhimento e oração nesse sagrado lugar.

Para Dr. Plinio, o momento do ingresso da santa Menina no Templo provavelmente foi o mais belo espetáculo até então contemplado pelos Anjos do Céu. E ao comentar uma passagem de São Francisco de Sales a esse propósito, acrescentava:

“Não sei se São Joaquim e Sant’Ana tinham plena noção de que Nossa Senhora estava destinada a ser a Mãe do Verbo Encarnado. Porém, certamente sabiam que sua filha fora escolhida por Deus para altíssimas coisas com vistas ao advento do Messias.  É-nos dado supor, aliás, que essa menina,  concebida sem pecado original e, portanto, sem as limitações inerentes a este, sem deixar as atitudes próprias de uma criança, possuía em sua alma um dom de contemplação maior que o dos maiores santos da Igreja.

“Quer dizer, n’Ela se harmonizavam a extrema afabilidade e meiguice da criança com uma grandeza da qual os homens mais excelentes da Terra não são senão minúscula figura. Esse terá sido o desejo de Nossa Senhora, em que sendo Ela a Rainha incomparável do universo, aparecesse aos olhos de todos como uma simples menina. Contraste de beleza insondável, diante do qual permanecemos emudecidos de admiração!

Pois foi essa maravilhosa menina que seus pais levaram ao Templo. Segundo São Francisco de Sales, durante essas peregrinações à Cidade Santa, os judeus iam pelas estradas entoando cânticos, de modo particular os salmos compostos por David para essa finalidade. Podemos imaginar as lindas cenas que tais romarias proporcionavam: chegado o mês da visita ao Templo, judeus das mais variadas regiões se punham a palmilhar os caminhos de Israel, envolvendo-os com seus cantos religiosos.

“Entre eles, certa feita, encontravam-se São Joaquim, Sant’Ana e Nossa Senhora. Imaginemos, então, se pudermos, o cântico da Menina, elevado com uma voz inefável, repetindo as palavras que seu régio ancestral escrevera por inspiração do Espírito Santo para aquela circunstância!

“Pensemos em Maria cantando pelas estradas judaicas, e os anjos acompanhando seus passos e seu cântico, extasiando-se eles, sobretudo, com as harmonias de alma que a pequena Virgem manifestava a cada instante.

“Ainda segundo São Francisco de Sales, do alto dos terraços da Jerusalém Celeste, os querubins e os serafins, e toda a corte angélica, debruçavam-se para contemplar Nossa Senhora a caminho de Jerusalém, e esse espetáculo, ignorado pelos homens, incutia-lhes um gáudio inexprimível.

“De fato, cena mais bela e mais eloquente do que essa, só poderia ser aquela em que esses mesmos anjos viriam Nossa Senhora ingressar no Templo, como a rainha que toma posse daquilo que lhe é próprio; como a joia que se instala no escrínio onde deve ser guardada…”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 21/11/1965)

Cristo Rei

Nosso Senhor Jesus Cristo é Rei, a quem devemos obedecer, conhecendo a sua vontade e executando o que Ele nos manda com amorosa e pormenorizada exatidão. Para isto, devemos pedir a graça de Deus pela oração, pela prática dos Sacramentos, por nossas boas obras, pela vida interior.

Em outros termos, sejamos bons católicos; sendo-o, seremos necessariamente apóstolos; e sendo apóstolos, seremos necessariamente soldados de Cristo Rei.

Apresentação de Nossa Senhora

Todas as esperanças, o perdão, a reconciliação, a redenção, a misericórdia que se abriram para o mundo com o nascimento de Jesus, tiveram seu marco inicial e propulsor no aparecimento de Nossa Senhora neste mundo. A criatura de uma vida insondavelmente perfeita, pura e fiel, que seria a maior glória da humanidade em todos os tempos, abaixo da glória da Encarnação do Verbo.

Compreende-se, pois, que já em sua mais tenra infância Maria tenha começado a influir nos destinos da história, sendo, desde então, imenso e inesgotável canal de graças para todos os homens.

Lindo exemplo para os governantes eclesiásticos

O Rei Santo Edmundo foi martirizado porque não aceitou fazer negociações de paz com os pagãos, pois isto significava a apostasia de seus súditos. Seu sangue fez com que toda a Inglaterra se cristianizasse e, até a época do protestantismo, ela foi uma nação católica que durante algum tempo se chamou Ilha dos Santos.

Comentaremos uma síntese biográfica sobre Santo Edmundo, extraída do livro Os Santos Militares, do General Silveira de Mello. (Não dispomos dos dados bibliográficos desta obra.)

Enfrentando o inimigo por excelência

Edmundo, que fora muito bem educado na Religião Católica, tornou-se modelo de cristão para seu povo. Justo e bom, era homem de invulgar energia. Percebeu cedo o perigo que representavam os escandinavos para seu país e preparou-se militarmente, assim como dispôs seu povo para uma possível guerra.

Os escandinavos eram, naquele tempo, o grande perigo dos povos civilizados. Hoje tão pacíficos, entretanto foram no passado os tiranos dos mares. Eles ocupavam a Escandinávia e deitavam aquelas migrações pelos mares, que iam descendo pelos vários lugares da Europa e que representavam, digamos, a última leva das invasões bárbaras no continente europeu. Para se ter uma certa ideia de qual era o espírito deles, alguns usavam o título de reis do mar, porque eram monarcas de povos que viviam em barcos – juntamente com as mulheres, os filhos e tudo o mais – fazendo pirataria de um lado e de outro. Aliás, eram barcos com umas proas lindas, de uma audácia e arrogância de que a Suécia e Dinamarca perderam completamente o segredo. Com a queda das proas caiu tudo. Fala-se de figuras de proa; poder-se-ia dizer que cada povo tem a proa que merece. De maneira que preparar o seu povo contra a invasão desses inimigos significava enfrentar o inimigo por excelência.

Não se enganou em suas previsões. De fato, os dinamarqueses atacaram o reino inglês. No primeiro combate foram duramente rechaçados, mas, unindo esforços num grande número, venceram a Santo Edmundo e o aprisionaram em Hoxne. Ele venceu uma primeira leva de inimigos que atacou o seu reino. Mas eles concentraram-se e naturalmente o esmagaram, pelo grande número que tinham desembarcado em vários pontos da Inglaterra.

Nexo entre os assuntos políticos e os religiosos

O chefe dos adversários fez várias propostas de paz ao santo rei, que as recusou por serem contra a Religião Católica e os direitos de seus súditos. Foi duramente supliciado e, por fim, decapitado.

Foi martirizado a 20 de novembro de 870. Um Concílio nacional reunido em Oxford, em 1122, tornou obrigatória a festa do mártir. Suas relíquias, inclusive um saltério que usava diariamente, foram veneradas na Abadia de Cluny até o surto da heresia protestante. Preso e levado para Hoxne, Santo Edmundo foi intimado a fazer negociações de paz pelas quais ele cedia seu reino aos vencedores. Ora, ele não queria fazer isso porque seria entregar seu povo aos pagãos e favorecer o restabelecimento da religião pagã naquele local. Ele resistiu e, então, foi morto. Vemos a alta consciência que tinha esse homem do papel de rei, de suas obrigações e das relações entre os assuntos políticos e os religiosos.

Ele tinha noção de que a queda dele e a implantação de uma dinastia de reis pagãos traria a paganização do Estado e dos indivíduos. Causaria, portanto, a apostasia daqueles povos, a perdição das almas. Ele compreendia muito bem o nexo entre a vida política, a forma do Estado e a forma religiosa, e por isso se manteve fiel até o fim, sendo martirizado. Por que razão queriam que ele renunciasse? Naturalmente porque Santo Edmundo continuava a ter prestígio, senão a sua renúncia não adiantava de nada. É porque era difícil consolidar a conquista, enquanto não houvesse uma prova de que ele tinha renunciado. Talvez os inimigos quisessem até levá-lo a seu próprio reino para declarar aos seus súditos que ele tinha renunciado. Santo Edmundo entendeu isso e não quis renunciar, provavelmente na esperança de que seus súditos organizassem uma espécie de revolução, de guerrilha contra o ocupante para salvar a Fé. E ele regou com seu sangue essa esperança de uma restauração católica.

Devemos ser fiéis até a morte à nossa vocação

Que lindo exemplo para os governantes eclesiásticos! Sem dúvida, o sangue desse rei valeu porque, de fato, a Inglaterra acabou se cristianizando inteira e, até a época do protestantismo, ela foi uma nação católica que durante algum tempo se chamou Ilha dos Santos, tal foi o número de bem-aventurados que nesse país floresceram. Devemos pedir a Nossa Senhora que nos dê muitos homens de Estado e muitos homens de Igreja que tenham esse espírito. Porque enquanto os povos católicos, no campo temporal e, sobretudo, no espiritual, não são governados por homens dispostos a derramar seu sangue pela Santa Igreja, eles não são dirigidos por quem preste. Só governa bem quem está disposto a levar a fidelidade a seus princípios e a seu cargo até o martírio; do contrário não vale de nada. Assim como um militar que não está disposto a morrer é igual a zero, um bispo, um príncipe, um rei, um alto governante que não esteja decidido a morrer para o cumprimento de seu dever é igual a absolutamente zero. Os altos cargos exigem a alta coragem. São os cargos pequenos que podem se acomodar com o valor moral normal. Os grandes cargos requerem o grande espírito de dedicação, o grande sacrifício. Entretanto, será um cargo o que Deus concede de mais alto a um homem? O que vale mais: um cargo ou uma vocação? Não há situações em que uma vocação vale mais do que um cargo? Nós temos mais do que um alto cargo, possuímos uma alta vocação. Pensemos no exemplo desse rei para termos sempre a deliberação de sermos fiéis até a morte à nossa vocação.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/11/1970)

Grandeza régia de Nosso Senhor Jesus Cristo

A grandeza régia de Nosso Senhor Jesus Cristo reluziu em mais de um episódio de sua vida, e de um modo muito especial na Transfiguração no Monte Tabor, onde apareceu simultaneamente toda a sua majestade como Rei e, sobretudo, como Deus. O ódio despertado por Ele comprova sua grandeza, porque os medíocres não suscitam ódio. Mesmo depois de morto Cristo foi odiado, o que indica ser Ele incomparavelmente grande.

Rei dos judeus

Contudo, o fato de ser apenas muito secundariamente Rei da Casa Real de Davi, não quer dizer que isso seja indiferente, nem que se deva excluir ou olhar com pouco caso essa circunstância. Porque tudo quanto diz respeito a Ele não é indiferente, tem um grande alcance, um grande valor.

E, portanto, ainda que não seja o valor máximo, supremo, merece ser examinado a fundo. Tudo quanto sucede se insere ou na providência geral ou na especial com que Deus rege todo o universo. Mas o que diz respeito a Nosso Senhor Jesus Cristo tudo está regulado por uma providência especialíssima. Por causa disso merece toda a atenção, toda a análise a circunstância de Ele ser membro da Casa Real de Davi.

O alcance dessa circunstância, se precisasse ainda ser demonstrado, além de ter por base as razões que acabo de alegar, possui também outro motivo: o fato de a Providência ter querido que no letreiro que encimava a Santa Cruz estivesse escrito “Jesus Nazareno, Rei dos judeus”; e isso molestou os judeus, a ponto de pedirem a Pilatos que tirasse a inscrição, tendo ele respondido: “O que eu escrevi, escrevi” (Jo 19, 22). É o senso dominador dos romanos muito bem aplicado no caso concreto: “O que eu escrevi, escrevi, não tiro mais. E se vocês não gostam, engulam com farinha”.

Sempre interpretei essa resposta de Pilatos – tão bonacheirão, tão moleirão, tão indecente no que diz respeito ao seu dever de proclamar a inocência de Nosso Senhor – como um agastamento dele. Tinham-no obrigado, sob pena de ser denunciado como inimigo de César, a lavrar uma sentença que julgava injusta. E quando vieram pedir-lhe para tirar esse letreiro, ele estava agastado e, então, disse: “Não, o que eu fiz, fiz, está acabado! Pelo menos agora me deixem ser homem”. Seja como for, ficou o letreiro para sempre imortal na Cruz imortal: Nosso Senhor Jesus Cristo é o Rei dos judeus. E isso supõe, então, uma certa análise desse atributo terreno: Rei dos judeus.

Posse de um presidente dos Estados Unidos e coroação da Rainha da Inglaterra

Toda realeza existente na Terra provém, em última análise, de Deus. Porque tudo quanto existe no universo é criado por Ele.

Dante, na Divina Comédia, diz muito bem que certas criaturas são filhas de Deus, pois Ele as cria diretamente. Outras, porém, são suas netas, por serem filhas dos filhos d’Ele, mas produzidas segundo seus divinos desígnios. Assim, Deus está na origem desses seres, entre os quais se encontram as formas de governo.

Por outro lado, convém àqueles que possuem o primado na Terra e na ordem temporal representar de modo mais excelente a majestade de Deus. Por isso, em todos os lugares onde o poder monárquico tenha existido, os povos têm se aplicado em representar de modo mais excelente a grandeza do rei. Por exemplo, em nossos dias os Estados Unidos constituem a maior potência temporal da Terra; e seu presidente tem, sem dúvida, um poder sobre os acontecimentos deste mundo muito maior do que o do governo inglês e, portanto, também da Rainha da Inglaterra, que é a figura simbólica e ornamental colocada no alto dessa estrutura venerável chamada governo inglês. Mas a simbologia adotada pelo povo norte-americano para exprimir o poder do seu chefe, não se reflete nas manifestações de esplendor que cercam o chefe de Estado.

O presidente norte-americano deve parecer poderoso, grande, excelso, superior a todas as criaturas? Não. Por não se tratar de um poder hereditário e vitalício, que não está simbolicamente acima de todos os poderes, como o poder real, não se vê nele um reflexo tão direto e límpido da majestade divina, quanto na forma de governo monárquica. Esta é a razão pela qual a posse de um presidente norte-americano é um espetáculo jovial, acompanhado de manifestações de regozijo características de um magnata bem-sucedido nos seus negócios. Não próprias a um homem que está inteiramente consciente da representação divina, que de fato todo chefe de Estado possui.

Notamos muito essa diferença ao compararmos a tomada de posse de um presidente da América do Norte com a coroação da Rainha da Inglaterra. Esta se dá dentro de uma cerimônia majestosa, esplendorosa.

Formas de grandeza próprias aos reis da Terra

Em Nosso Senhor Jesus Cristo, enquanto Rei, deveria refulgir, portanto, uma majestade temporal, com todas as formas de grandeza próprias aos reis da Terra. Antes de tudo, uma grandeza de alma, de descortínio de horizontes, de pontos de vista, por onde quem está posto no píncaro da ordem temporal desvenda coisas muito mais amplas e matizadas do que aquele que está colocado em posições inferiores. A ordem temporal constitui uma hierarquia riquíssima.

No caso da monarquia, um simples trabalhador manual não é obrigado a ter, e habitualmente não possui, o descortínio e o horizonte do rei, a quem as informações mais graves, os anelos mais ardentes das várias populações chegam como os ventos no alto das montanhas. Estes não sopram nos vales com a pureza e largueza com que sopram no píncaro das montanhas. Essa largura de horizontes traz como corolário necessário a obrigação de uma virtude especial. Porque aqueles a quem a Providência deu muito, deles se exige uma retribuição especial. E, portanto, uma obrigação de ter em relação a Deus um amor, um nexo e uma humildade especiais.

Nessa humildade perante Ele, poder-se-ia dizer que a glória de Deus baixa sobre eles e neles refulge. Uma das manifestações mais tocantes disso é o fato que encerrava as festas da coroação de um Rei da França, no “Ancien Régime”. Na famosa e histórica Catedral de Reims, terminada a cerimônia, do lado de fora alinhava-se uma série interminável de doentes que padeciam de escrófula. Segundo uma tradição, o monarca recém-coroado tinha o poder, dado por Deus, de curar os escrofulosos.

Então, quando havia a coroação de um rei, os escrofulosos da França inteira – e quero crer que também de outros países da Europa – acorriam para serem curados. O monarca, em traje de coroação, saía para a praça pública onde estava essa gente colocada em leitos, em cadeiras, enfim, como era possível, e tocando um a um – na coroação de Luís XVI, se não me engano, chegaram a mil e quinhentos – dizia: “Le roi te touche, Dieu te guérisse” – O rei toca em ti, que Deus te cure.

Segundo uma antiga praxe, inabalável ao longo dos séculos, muitos saravam. Era, portanto, o poder divino que baixava através de um rei ungido por Deus e cognominado, na terminologia da Cristandade, “Rex Christianissimus” – o Rei Cristianíssimo – que era o Rei da França, intitulado “Sua Majestade Cristianíssima”, assim como o Rei da Espanha era “Sua Majestade Católica”, e o de Portugal “Sua Majestade Fidelíssima”; o Rei da Inglaterra, antes da heresia abjeta de Henrique VIII, intitulava-se “Defensor Fidei” – “Defensor da Fé”. A unção recebida na coroação era verdadeiramente um sacramental, segundo a Teologia, e o ungido do Senhor tocava e sarava, manifestando o nexo entre Deus e ele. Essas são as qualidades espirituais às quais, normalmente, deveria corresponder uma aparência física. O rei não tem obrigação de ser bonito.

Ninguém escolhe o próprio rosto. Mas, de qualquer forma, convinha que o rei tivesse, em grau eminente, a pulcritude. Por causa da sua condição, convém ao monarca uma indumentária, trajes à altura daquilo que ele deve refletir. Isso enquanto à sua pessoa. Também seu modo de reinar deve ser esplêndido como tudo quanto nele há. Eis o que caracteriza um grande rei.

Transfiguração no Tabor e Domingo de Ramos

Como ver todas essas qualidades em Nosso Senhor Jesus Cristo, que não andou pela Terra como Rei? Mesmo no Domingo de Ramos, quando Ele foi objeto de uma grande homenagem da parte do povo de Jerusalém, era aclamado como Filho de Davi, mas não houve nenhum atentado para tirar Herodes do cargo, nem algo semelhante. Ele foi aclamado como homem que tinha, entre suas glórias, a de descender de Davi. Um homem eminente, um santo, mas não era por isso que estavam restaurando-O politicamente na realeza.

Pelo contrário, era filho de um príncipe pobre como São José, que exercia a profissão de carpinteiro. Como entrar em Nosso Senhor essa grandeza e todos esses requisitos de Rei? Em alguma coisa deveria ter aparecido porque, se Ele possuía, havia de aparecer em certo momento, pois Ele veio para Se manifestar por inteiro a todos os homens.

Em mais de um episódio da vida d’Ele, essa grandeza real reluziu. Mas de um modo muito especial, intencional, na Transfiguração no Monte Tabor, onde apareceu simultaneamente toda a sua majestade como Rei e, sobretudo, como Deus. Eu falei dos trajes reais.

Quando Jesus Se transfigurou, sua veste era alva como a neve (cf. Mt 17, 2). A respeito dos lírios do campo, Ele disse que ninguém era capaz de se vestir como um deles (cf. Mt 6, 28-29). Ora, a túnica em que Ele estava envolto deveria ter sido elaborada por Nossa Senhora; nunca houve tecido igual. Imaginem como estava ela, refulgindo como a neve! Ele estava tão esplendoroso, mostrando-Se na sua verdadeira glória e deixando-a transparecer aos Apóstolos por Ele convocados para o alto do monte, que eles ficaram não só maravilhados, mas não queriam ir embora. São Pedro propõe ficar ali em cima, arranjarem tendas e não sair mais (cf. Mt 17, 4).

Em toda a História não se viu um rei que fosse objeto dessa aclamação: “Vamos ficar aqui juntos de vós, não precisamos mais do resto do mundo, ficaremos olhando para vós!” Pelo contrário, o rei é muito admirável, mas as pessoas gostariam de lhe dizer: “Senhor, dai-me cargo, dinheiro, honra… Desejo vos servir, mas quero que também vós me sirvais. Nada de ficar aqui parado só para vos olhar. Quero ser fiel, sede fiel vós também. Aliás, antes mesmo de vos ter prestado serviço, já tenho a lista dos benefícios que quero de vós.

E quando os receber, mostrarei ao povo, nas ruas da capital, para ser apreciado e admirado eu também. Isso de viver só para vos admirar não basta…” Esta é a história de todas as monarquias terrenas. Com Nosso Senhor não. Ele apareceu em sua majestade.

Reação: “Fiquemos aqui, não precisamos de mais nada!” Além da esplendorosa manifestação de sua realeza no Tabor, Ele teve também a do Domingo de Ramos à qual aludi há pouco. Embora não tenha sido saudado como Rei, é evidente que aquele povo aclamava n’Ele uma majestade pessoal, presente n’Ele, que se exprime na Ladainha do Sagrado Coração de Jesus com esta invocação magnífica: “Cor Iesu, maiestatis infinitae, miserere nobis” – Coração de Jesus, de majestade infinita, tende compaixão de nós.

Majestade de Nosso Senhor na morte, na Ressurreição…

O que quer dizer coração aqui? O culto incide sobre o Coração de carne d’Ele, símbolo da alma, do espírito, da mentalidade, dos desejos, dos propósitos, os quais eram de uma majestade infinita.

O que isso significa? Tudo quanto Nosso Senhor Jesus Cristo queria era de uma grandeza ilimitada; o que Ele inteligia possuía um descortínio sem fim; nos desígnios d’Ele, a bondade era de uma majestade infinita, como também sua justiça.

Ele deixou claro que a manifestação dessa justiça, de uma majestade infinita, estaria reservada para depois. E foi guardada para sua morte e o dia em que vier julgar os vivos e os mortos no fim do mundo, quando Ele virá na majestade de Rei e de Deus, acumuladas. A majestade da morte do Divino Redentor! Ele morreu sob o desprezo geral, compensado pela adoração indizivelmente preciosa de Nossa Senhora e, num grau respeitável, mas enormemente menor – porque tudo quanto existe, exceto Nosso Senhor, é incomparavelmente menor do que Maria Santíssima – pela adoração de São João, das santas mulheres, do bom ladrão. Iniciam-se, então, o que Bossuet – o grande Bispo de Meaux, na França, e pregador sacro dos mais eminentes – chama de “os funerais do Filho de Deus”.

Que rei teve ou terá semelhantes funerais? A terra treme, o Sol se obscurece, o véu do Templo se rasga. Com o tremor da terra, as sepulturas dos justos do Antigo Testamento se abrem e eles saem pelas ruas (cf. Mt 27, 52), exprobrando a todos os homens maus o pecado de deicídio que tinham cometido, pois era o pecado da nação inteira. Quando o povo disse: “Que o sangue d’Ele caia sobre nós e sobre nossos filhos” (Mt 27, 25), o pecado da nação foi cometido.

Então, a acusação desses pecadores se faz com essa majestade suprema. Porém, a majestade de Jesus, Nosso Senhor, se mostra também quando Ele, ressurreto, aparece a Maria Santíssima. Tenho como certo, embora não esteja dito na Sagrada Escritura, que ao ressuscitar, antes de Se manifestar a qualquer outra criatura, Ele apareceu a Ela.

Nosso Senhor rompeu a sepultura, os Anjos atiraram ao chão a pedra funerária e Ele saiu (cf. Mt 28, 1-3), e todas as cicatrizes da Paixão refulgiam como sóis! Depois, todas as aparições d’Ele se revestiram dessa nota de majestade. Por exemplo, Ele entra no local em que se encontravam reunidos os discípulos, ninguém sabe por onde (cf. Jo 20, 19). Estava com seu Corpo glorioso, as portas e janelas fechadas não adiantavam de nada, Ele as atravessava.

Que majestade entrar através de um muro que ninguém derrubou! Muitos reis na História derrubaram muralhas… Transpô-las sem as ter derrubado, só o Rei Jesus Cristo! Ele aparece tão bondoso, tão amoroso, mas incute tanto medo que as palavras d’Ele às santas mulheres são: “Não temais!” (Mt 28, 10)

…e na Ascensão

É indescritível o que deve ter aparecido de grandeza d’Ele na Ascensão! Enquanto falava, ia Se elevando lentamente.

À medida que Se aproximava do céu, não levado por Anjos, mas por sua própria força, ia ficando mais reluzente, mais majestoso! Em certo momento, desaparece. Pode-se imaginar a alegria de Maria Santíssima por ver glorificado o Filho que Ela vira tão humilhado! Mas, de outro lado, o que estava se passando n’Ela, de tristeza por causa da separação… Havia, entretanto, uma consolação. Tenho a impressão muito forte e vincada de que Deus não recusou a Nossa Senhora a graça concedida por Ele a numerosos Santos: amaram tanto o Santíssimo Sacramento que, a partir de determinado momento de suas vidas, nunca mais a Sagrada Eucaristia deixou de estar presente neles.

Comungavam, e as Sagradas Espécies ficavam no Santo até que ele comungasse novamente. Foi o caso, por exemplo, de Santo Antônio Maria Claret, fundador dos padres do Coração de Maria, no século XIX. Ele veio a ser, assim, um tabernáculo vivo de Nosso Senhor.

Tendo Nossa Senhora sido, no período de gestação, o Tabernáculo vivo do Salvador, será que Ele indo para o Céu não manteve n’Ela esta condição? Pelo menos a partir da primeira Missa, creio que jamais Nosso Senhor deixou de estar presente em sua Mãe virginal. Após a Ascensão, certamente Ela pensava: “Ele está no Céu, mas também aqui!” Os Apóstolos, por sua vez, com certeza cogitavam em celebrar já no dia seguinte e recebê-Lo, por tempo maior ou menor, em seus corações.

A presença eucarística começava, assim, a consolar a Igreja dessa longa separação de muitos mil anos, que cessará quando Ele vier no dia do Juízo Final.

Grandeza até nas piores humilhações

Pode-se imaginar grandeza régia comparável a essa? Pois bem, há mais. Que Nosso Senhor fosse adorado no seu esplendor, está explicado. Mas não é só isso. Os inimigos d’Ele, querendo achincalhá-Lo, sujeitaram-No às humilhações da Paixão. De ponta a ponta, Ele bebeu inteira a taça de todas as dores e vexações possíveis.

Os algozes não supunham que ao longo dos séculos começaria uma adoração de cada humilhação sofrida por Ele, e que diante de imagens representando-O sentado com a coroa de espinhos, o manto de irrisão e a vara de cretino na mão, os maiores sábios se ajoelhariam e chorariam de emoção.

Os reis mais poderosos tomariam por elogio exagerado serem comparados, de longe, a esse Rei sentado naquele trono dos bobos. Aquele Homem dignificaria de tal maneira a Cruz na qual fora cravado que, no alto de todas as coroas das nações católicas, a cruz seria o sinal da glória. Quer dizer, ninguém foi, nem de longe, tão grande quanto Ele, considerado não só nas horas de glória, mas nas de pior humilhação. Aliás, mesmo nessas horas, Ele deu sinais de poder incríveis como, por exemplo, ao bom ladrão, a quem o Divino Crucificado canonizou no alto do Calvário, com esta promessa pronunciada por quem é Rei do Céu e da Terra: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43).

Notem! A promessa não é a seguinte: “Hoje estarás no Paraíso”. Jesus sabia que se não dissesse que estaria com Ele a promessa não seria completa, pois um Paraíso onde não estivesse Ele não seria Paraíso. Que realeza!

O maior ódio da História até o fim dos séculos

Certa ocasião, um historiador francês cético fez esse comentário: Os historiadores costumam passar por cima da figura de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu lhes pergunto quem é o homem que tenha, ao longo da História, conseguido que tantos outros se pusessem de joelhos com tanta humildade, e se considerado honrados por terem se ajoelhado diante de sua figura? Se depois disso ele não é digno de entrar na História, o que faz a História? Esses compêndios de História usados nos colégios, mesmo em universidades, tratam de toda espécie de coisas, d’Ele não falam.

Ora, Nosso Senhor é o centro da História. E se Ele não foi grande, quem o foi? Alguém poderia objetar: “Dr. Plinio, levado pelo seu entusiasmo, o senhor está ladeando o problema. Está provado que César, Carlos Magno, Napoleão existiram, mas quem provou que Jesus existiu?” Ora, é a existência histórica mais certa que há! Porque todas as razões pelas quais nós acreditamos que César existiu, nos levam a crer que Jesus Cristo existiu.

Um cretino, certa vez, me perguntou: “Onde estão os originais dos Evangelhos?” A resposta possível era: A Causa Católica estaria muito mal servida se o fosse por você! Porque se houvesse em algum lugar uma pilha de pergaminhos com os originais dos quatro Evangelhos, quem nos garantiria serem, de fato, os originais? Não provariam nada! Poderiam ser um muito bom objeto de culto, de investigação histórica, um documento antigo; prova, não. Seria preciso provar que aquelas provas eram provas. Agora, eu pergunto: onde estão os originais das Catilinárias de Cícero? Não obstante, quem põe em dúvida que Cícero existiu e que é o autor daquelas Catilinárias? Ninguém, por uma série de razões históricas.

Estas existem no caso de Nosso Senhor com superabundância. Pode ser razão de grandeza o ódio que alguém despertou? Sim, porque os medíocres não despertam ódio.

Para ser odiado como Nosso Senhor o foi, até depois de morto, há uma forma de grandeza régia. Até nisso Ele foi e é incomparavelmente grande. Ele será odiado com o maior ódio da História até o fim dos séculos. Quando o Anticristo vier, será uma espécie de personificação do ódio contra Ele. Também a vitória d’Ele sobre o Anticristo será alcançada de um modo que nunca nenhum rei teve: com o sopro da boca Ele o liquida (cf. 2Ts 2, 8). Não é nem sequer o tato de um peteleco, é um sopro da boca! Reduzido a pó, acabou a História, começa o julgamento!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/9/1986)

Nossa Senhora no templo de Jerusalém

No dia 21 de novembro a Igreja celebra um dos mais significativos momentos da vida de Nossa Senhora: sua Apresentação no Templo, quando Ela contava apenas três anos de idade. Segundo a tradição, ali a menina permaneceria num contínuo exercício de união com Deus, até a hora de sair para cumprir a augusta missão a que fora predestinada: conceber e trazer ao mundo o Divino Redentor.

Na conferência a seguir transcrita, tece Dr. Plinio piedosas considerações acerca de tão importante data mariana.

Nesta festa da Apresentação de Nossa Senhora, gostaria de comentar algumas reflexões de São Francisco de Sales a tal respeito, publicadas no livro “Os mais belos textos sobre a Virgem”. Assim se exprime o Doutor Suavíssimo:

“É ato de admirável simplicidade o desta gloriosa criança que, presa ao regaço de sua mãe, agia como as outras crianças de sua idade, embora falasse já com sabedoria. Ela ficou como um suave cordeiro junto a Santa Ana pelo espaço de três anos, após os quais foi conduzida ao Templo, para ali ser ofertada como Samuel, que também foi conduzido ao Templo por sua mãe e dedicado ao Senhor na mesma idade.”

“Ó meu Deus, como desejaria poder representar vivamente a consolação e suavidade dessa viagem, desde a casa de Joaquim até o Templo de Jerusalém! Que contentamento demonstrava essa criança vendo chegar a hora que tanto desejara!”

“Os que iam ao Templo, para adorar e oferecer presentes à Divina Majestade, cantavam ao longo da viagem. E, para essas ocasiões, o real profeta David compusera expressamente um salmo, que a Santa Igreja nos faz repetir todos os dias no Ofício Divino. Ele começa pelas palavras: ‘Beati inmaculati in via’. Bem-aventurados são aqueles, Senhor, que na tua via (ou seja, na observância dos Mandamentos) caminham sem mácula, sem mancha de pecado.”

“Os bem-aventurados São Joaquim e Santa Ana cantavam então esse cântico ao longo do caminho, e com eles, nossa gloriosa Senhora e Rainha.”

“Oh Deus, que melodia! Como Ela a entoava mil vezes mais graciosamente que os Anjos! Por isso ficaram estes de tal forma admirados que, aos grupos, vinham escutar essa celeste harmonia. E os Céus, abertos, inclinavam-se nos alpendres da Jerusalém celeste para olhar e admirar essa amabilíssima criança.”

“Eu quis vos dizer isso, embora rapidamente, para que tenhais com que vos entreter o resto desse dia considerando a suavidade dessa Virgem. Também para que fiqueis comovidos escutando esse cântico divino que nossa gloriosa Princesa entoa tão melodicamente. E isso com os ouvidos de nossa devoção, porque o muito feliz São Bernardo diz que a devoção é o ouvido da alma.”

Admiráveis contrastes numa criança imaculada

O fundamento teológico desse trecho de São Francisco de Sales — em que, aliás, transparece toda a doçura e todo o suco dos escritos dele — é a Imaculada Conceição de Nossa Senhora.

Ela, concebida sem pecado original, desde o primeiro instante de seu ser foi isenta de todas as limitações decorrentes da mancha que herdamos de Adão. Entre essas carências está o fato de o homem nascer sem o uso da sua inteligência, o que só ocorre mais tarde, à medida que ele cresce e se desenvolve. Em Nossa Senhora, porém, essa regra não se verificou. É sentença corrente na Teologia que Ela, tão logo foi concebida, teve imediato uso da sua inteligência, naturalmente altíssima.

Esse singular privilégio fazia com que, uma vez vinda ao mundo, se reunissem na excelsa menina aspectos admiráveis e aparentemente contraditórios. De um lado, possuía Ela, já naqueles primeiros passos de sua existência, uma capacidade de contemplação que sobrepujava a dos maiores Santos da Igreja. Mas, de outro, Ela mantinha uma postura de criança, não exteriorizando a perfeição de sua alma. Desejava assim, por humildade, viver como uma menina comum, de maneira tal que, quem tratasse com a pequena Maria, teria a impressão de estar em contato com uma criança igual a todas — exceto por alguma expressão de olhar ou palavra d’Ela.

Tal o Filho, tal a Mãe

O mesmo se deu com Nosso Senhor Jesus Cristo, que queria ser nutrido, protegido e custodiado como uma criança comum, embora Ele fosse Deus, soberano Senhor e Rei do Céu e da Terra.

Quem poderá imaginar, então, na vida quotidiana de Nossa Senhora e São José, o momento em que era preciso aleitar o Menino-Deus? Ou em que era necessário trocar suas roupinhas, e um dos dois O toma nos braços, reclina-O com todo o carinho sobre uma mesa e começa a vesti-Lo? Sabendo que, unida à natureza humana daquela criancinha que Lhe sorri, daquele menino que tudo entende, mas parece nada entender, está a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, constantemente imersa nas alegrias, nas grandezas, na majestade e nos esplendores divinos!

Quem poderá imaginar a admiração e o aturdimento que tais contrastes despertavam em São José e em Nossa Senhora!?

Pois bem, algo disso se dava igualmente com São Joaquim e Santa Ana, em relação à sua filha imaculada. Ainda que não tivessem conhecimento de que Ela estava predestinada a ser a Mãe do Deus Humanado, certamente compreendiam ser uma menina destinada a altíssima vocação em vista do Messias. Menina que, por vontade própria, levava a vida de uma criancinha como as outras. Simples, cheia de bondade e acessibilidade, deixando que os parentes a tomassem no colo, ou, assim que o foi capaz de fazer, servindo às visitas e dispensando pequenas atenções a todos. Ela, Rainha incomparável, Soberana do Universo!

Cantando, a caminho do Templo

Nessas condições, aos três anos de idade foi Nossa Senhora levada ao Templo por seus pais. E, como já afirmamos, no caminho iam entoando cânticos e salmos compostos pelo Rei David, obedecendo ao lindo costume dos judeus daquela época.

Como se sabe, embora houvesse espalhadas pela Judeia inúmeras sinagogas onde eles se reuniam para rezar e promover certos cultos, o Templo era um só, o de Jerusalém. E os fiéis de todo o território judaico, e também os da Diáspora, dispersos pelo mundo, iam periodicamente a Jerusalém para participar do sacrifício do Templo. E para externar a alegria de se dirigir até o lugar onde se manifestavam a glória e as consolações de Deus, ao lugar que representava o vínculo entre o Céu e a terra, era bonito que eles fossem cantando. Como, aliás, tantas vezes acontece em romarias católicas, nas quais o povo intercala seguidamente preces e hinos religiosos.

Compraz-nos imaginar os caminhos que conduziam à Cidade da Paz, nas épocas de visita ao Templo, repletos de judeus chegados de todos os lados, enchendo com seus cânticos os ares da terra judaica. Numa dessas ocasiões encontravam-se entre eles São Joaquim, Santa Ana e a pequena Maria. Sem dúvida, haveria de ser belo o cântico da menina, entoado com uma voz inefável, repetindo o salmo que David, por inspiração do Espírito Santo, compusera para tais circunstâncias:

“Bem-aventurados os que se conservam sem mácula no caminho, os que andam na lei do Senhor. / Bem-aventurados os que estudam os seus testemunhos, os que de todo o coração O buscam.”(Salmo 108)

É interessante notar que, com extraordinária finura de tato, São Francisco de Sales não comenta a impressão que o canto de Nossa Senhora produziria nas pessoas ao redor d’Ela. E isto porque, como a Santíssima Virgem não deixava transparecer sua grandeza, era possível que Ela não cantasse com toda a perfeição que estava a seu alcance. Na realidade, uma música cantada por Nossa Senhora, sem as limitações intencionais impostas por Ela, teria de ser o cântico!Antes e depois de Maria Virgem, excetuando Nosso Senhor Jesus Cristo, ninguém cantou nem igual a Ela.

Mas, se não era dado aos homens compreender a excelência das melodias entoadas por Nossa Senhora, diz São Francisco de Sales que os Anjos a conheciam, e por isso se punham a ouvir, extasiados, as harmonias de alma com que Ela cantava. E São Francisco vai mais longe: compara o Céu a uma cidade, a Jerusalém celeste, em cujos alpendres e terraços os Anjos se debruçavam para contemplar Maria Santíssima cantando pelos caminhos da Judeia. E essa visão os enchia de um gáudio inexprimível.

Já nos primeiros passos de sua existência, Maria possuía uma capacidade de contemplação superior à dos maiores Santos da Igreja (Nossa Senhora menina, por Zurbarán)

Ápice da história do Templo

A meu ver, pensamento mais apropriado e mais bonito do que esse, só mesmo o que nos sugere a entrada de Nossa Senhora no Templo de Jerusalém, o lugar mais abençoado da terra, envolto em grandeza e majestade sacrais, e ainda habitado pela glória do Pai Eterno.

Podemos imaginar o estremecimento de alegria de todos os Anjos que pairavam no Templo, ao verem Nossa Senhora entrando pela primeira vez na Casa do Altíssimo, como uma Rainha entra naquilo que lhe é próprio; como uma joia posta no escrínio onde deve ser guardada!

Os espíritos celestiais deviam saber, por revelação de Deus, ser aquele o momento em que a grande história e, ao mesmo tempo, a grande tragédia do Templo iam se iniciar. A história: em breve, o próprio Filho de Deus, nascido de Maria Imaculada, entraria por aquelas sagradas paredes. A tragédia: o Templo ia recusar o Messias. E o fim dessa história e dessa tragédia seriam — no magnífico dizer de um autor eclesiástico (Bossuet) — as pompas fúnebres de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ou seja, assim que Ele expirou, o Pai Eterno começou a preparar suas exéquias: o céu se obscureceu, o sol se toldou, a terra e o Templo tremeram!

No caso deste último, tenho a impressão de que os Anjos receberam ordem divina de abandoná-lo ao poder dos demônios, e que estes fizeram ali uma espécie de festa sacrílega, à maneira de cem mil gatos selvagens soltos naquele local, praticando abominações de toda ordem e fazendo estremecerem as colunas do outrora edifício sagrado.

Mas, apesar de tudo, o Templo conheceu sua plenitude quando Maria atravessou uma vez mais aqueles pórticos — que abandonara para se unir a São José — trazendo em seus braços o Menino Jesus, o Esperado das nações. Mãe e Filho foram recebidos por Ana e Simeão, representantes da fidelidade, os quais reconheceram Jesus como o enviado por Deus. Estava fechado o elo entre os justos da Antiga Lei e a promessa que se cumpria. Era o ápice da história do Templo de Jerusalém.

Ora, o primeiro passo para esse auge foi realizado naquele momento em que Nossa Senhora, menina de três anos, apresentou-se no Templo com seus pais. Quem poderá descrever o que devem ter sentido nessa hora os Simeões e as Anas ali presentes? E as graças, as fulgurações do Espírito Santo que se espargiram pelo Templo nessa ocasião?

Sigamos, porém, o conselho do suavíssimo São Francisco de Sales: conservemos todas essas cogitações em nossa alma, e, tanto quanto possível, pensemos nelas serena e alegremente. Máxime nestes tempos agitados em que vivemos. Nada mais recomendável do que, ao cabo de um dia de faina, nos distendermos na consideração desses fatos: Nossa Senhora, São Joaquim e Santa Ana a caminho do Templo, cantando pelas estradas da Judeia, enquanto nos alpendres da Jerusalém Celeste os mais altos Anjos se debruçam, embevecidos com a alma daquela menina.

Plinio Corrêa de Oliveira

A arte de subir e descer escadas

Sem exagero poder-se-ia dizer que em Dr. Plinio a observação do mais profundo, expresso na realidade dos edifícios, ambientes e atitudes humanas, enquanto reflexo de qualidades ou carências da alma, era uma segunda natureza. Assim, numa exposição verbal, discorreu ele sobre o papel das escadas e das formas pelas quais, ao subir e descê-las, o homem manifesta sua dignidade de filho de Deus.

 

Em ocasião anterior consideramos como o subir e também o descer escadas constitui, no seu gênero, uma arte. De fato, tanto quanto as circunstâncias permitirem, o homem deve ter o pudor de suas próprias misérias, velá-las, por respeito a si mesmo e aos outros.

Demonstração de apreço pela virtude

Emprego a palavra “pudor”, não no sentido da castidade preceituada pelos sexto e nono Mandamentos, e sim no de frisar que tais misérias são castigo de um pecado cometido por nossos ancestrais no Paraíso terrestre e todos nós carregamos o ferrete daquela queda. As debilidades são, portanto, reflexos da mancha original à qual o homem acrescentou suas próprias faltas.

Assim, o homem procura disfarçar suas lacunas como homenagem prestada à virtude. E o “maintien”(1), exigindo um esforço dele sobre si, é um preito de seus lados fracos àquilo que ele teria sido se não fosse o pecado. De sua parte, essa é uma atitude bela e nobre.

Cenário para o exercício de uma arte

Então, a escada precisa ser construída de maneira a servir de cenário digno, distinto, mesmo numa habitação modesta, para que o homem possa exercer a arte de subir ou descer. Se falarmos não de uma casa comum, mas de um palácio, neste deve haver uma glorificação dessa arte, pois muito mais do que a moradia do conforto, ele é a residência do esplendor, cuja definição adequada é esta: habitação proporcionada com a glória. Assim, com sua escadaria, o palácio deve dar às pessoas a possibilidade de descê-la e subi-la brilhantemente.

E aqui caberia perguntar o que é mais glorioso: subir ou descer?

Em tese, é o subir. Por exemplo, à medida que se eleva até o zênite, o sol patenteia de modo crescente a sua glória. Pelo contrário, passa a velá-la, conforme se põe e se deixa envolver paulatinamente nos crepes da noite.

Porém, nossas operações são feitas na presença de Deus e dos homens. Diante do Criador, o mais glorioso, de si, é subir uma escada. Entretanto, aos olhos dos homens, é o descer.

Explico. A pessoa que sobe é vista de cima para baixo por quem está no andar superior; e aquele que desce é observado de baixo para cima por quem se encontra no plano inferior. E, portanto, mostra-se melhor a própria glória a quem está embaixo do que àquele situado no alto.

Diversos modos de se descer uma escada

Como se deve descer com honra uma escada?

Antes de tudo, não se pode ser “mega”(2). Quer dizer, a pessoa precisa descê-la com glória, quando a esta tem direito; com distinção, quando se encontra numa situação ou é pessoa distinta; com correção, pelo simples fato de ser uma criatura humana, porque todo homem tem obrigação de ser correto.

Sumamente incorreto é dar a impressão de que perdeu o auto-controle e cairá. Portanto, se alguém tiver agilidade de descer uma escada depressa, saltando de dois em dois degraus, não deve fazê-lo, pois dará impressão de uma avalanche desmoronando.

Como a lei da gravidade nos atrai para baixo, o homem precipitando-se desenfreadamente nessa direção transmite a ideia de alguém vencido por aquela lei, entregue, derrotado, como um destroço que rola. Por isso, se houver necessidade de ele descer uma escada com rapidez, deve procurar manter a correção, portando-se de maneira a demonstrar claramente que, apesar da pressa, conserva inteiro domínio de si. Portanto, sua cabeça e seu tronco têm de estar tesos e eretos. Se não observar essa postura, descerá de modo vil.

Ora, nenhum homem tem o direito de fazer uma coisa de forma desprezível. Pelo fato de ser criatura racional, está obrigado a agir com correção, é uma exigência da dignidade humana.

Quando uma pessoa se acha numa situação de distinção, pela sua idade, pelo seu cargo ou outras circunstâncias, deve descer a escada, não muito devagar, mas compassadamente, a fim de permitir aos que estão embaixo perceberem todas as fases da operação: o avançar dos pés, a posição do tronco, da cabeça, etc. Além disso, precisa fazê-lo de modo desembaraçado, dando a ideia de estar posto em cogitações elevadas, sem prestar atenção nos degraus como se receasse cair.

Um acontecimento…

Assumindo essa postura, à medida que vai descendo, a pessoa faz sentir cada vez mais sua ação de presença. Esta se torna plena quando ela atinge os últimos degraus, e se percebe que não chegou apenas um corpo — como um pacote de carne e ossos — mas também uma alma.

Os antigos, tendo melhor noção desses aspectos da vida, faziam com que os grandes personagens, conforme a indumentária própria ao homem ou à mulher, usassem cauda. Por exemplo, os bispos e altos dignitários de Estado (como reis e príncipes) tinham capa magna, a qual era levada por pessoas distintas ou simples pajens, de acordo com a situação.

Ao descer uma escada, a cauda formava-lhe um fundo de quadro, e à medida que baixava, o tecido ia se desdobrando; ao tocar o solo, estava todo estendido. Aquela descida de escada tinha sido um acontecimento…

No subir, afabilidade e deferência

Por seu lado, o subir uma escada de maneira correta requer igualmente determinadas disposições de corpo e espírito.

Assim, o que sobe precisa fitar quem se acha em cima, de um modo afável, atencioso, conforme o caso respeitoso, como se já estivesse perto dele. De certa forma, sua alma tem de anteceder seu corpo, impressão esta que ele transmitirá se, ao pisar o primeiro degrau, depositar desde logo o olhar naquele que o aguarda no alto.

Em seguida, empreender a ascensão sem precipitações, evitando qualquer manifestação de cansaço, de peso, às vezes esboçando um sorriso. Ao atingir os últimos degraus e se aproximar de quem o espera, deve dirigir-lhe a palavra, de tal maneira que o outro não perceba a distância entre os dois, e em todo momento se sinta igualado ou até mesmo superado.

São estas algumas atitudes e posturas pelas quais o homem, observando-as no ato de subir e descer escadas, é capaz de conservar sua dignidade de ente racional, criado à imagem e semelhança de Deus.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

1) Postura correta

2) A partir do termo “megalomania” Dr. Plinio criou a palavra “megalice”, a fim de designar o vício de quem atribui a si mesmo qualidades que não possui ou então as exagera. E empregava o vocábulo “mega” para significar o indivíduo que se deixa arrastar por esse defeito.

Encontro da esperança com a realidade

A festa da Apresentação de Nossa Senhora tem uma beleza especial. Maria Santíssima, a raiz de Jessé da qual haveria de nascer o Messias, é apresentada no Templo, a instituição incumbida de guardar a Promessa. Recebendo Aquela que representa o primeiro passo rumo à realização da Promessa, houve no Templo o encontro da esperança com a realidade.

Nossa Senhora consagra ao serviço de Deus sua alma insondavelmente santa, fazendo penetrar no Templo a luz incomparável de sua santidade. Começa, então, a preparação d’Aquela que viria a ser a Mãe do Salvador.

Nesta comemoração, devemos apresentar nossas pessoas à Santíssima Virgem para que Ela se digne aceitar e assumir a tarefa da nossa santificação, como foi feito pelo Espírito Santo com Ela, no Templo de Jerusalém.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/11/1965)