Arautos e escravos de Maria

Saudando um grupo de jovens que se haviam consagrado à Santíssima Virgem como escravos de amor, segundo o método de São Luís Maria Grignion de Montfort, Dr. Plinio, chamando-os de “arautos de Nossa Senhora”, os incentiva a ir por toda a Terra, cheios de confiança, proclamar as grandezas da Rainha do Universo.

 

Caríssimos arautos de Nossa Senhora! Vós sabeis, sem dúvida, que os arautos eram aqueles que os reis antigos mandavam a todos os lugares para proclamarem as suas ordens. Naqueles tempos não havia imprensa, nem rádio, nem televisão, e os monarcas, para comunicarem suas ordens, precisavam enviar homens especializados para isso.

Símbolo, porta-voz e transmissor das ordens do rei

Esses homens chegavam aos lugares principais das cidades, montando corcéis fogosos, trajando um hábito especial, e às vezes tocavam algum instrumento para avisar à cidadezinha adormecida que eles lá estavam. Todo mundo deixava as suas ocupações, a rotina tranquila e um pouco sonolenta da vida de todos os dias, para ouvir as ordens e as novidades que o arauto transmitiria.

Ele traria notícias de guerra ou de paz? Viria anunciando um nascimento ou uma morte na família real? Comunicaria um decreto lançado pelo rei, uma anistia ou uma condenação feita por um tribunal em nome do monarca?

Sem dúvida, ele vinha transmitir as vontades do rei, e por isso o arauto era objeto de grande respeito por toda parte por onde passava. Ele era o porta-voz do monarca, que transmitia suas ordens, como que um embaixador e símbolo do rei. Então, símbolo, porta-voz e transmissor das ordens: esses eram os aspectos principais da função de arauto.

O nome “arautos de Nossa Senhora” não é um título qualquer. Nenhum homem sério usa uma designação para dizer algo superficial, mas para significar alguma coisa que tenha sentido e importância. E se, há pouco, fostes chamados, a plenos pulmões, “arautos!”, ou este termo tem uma aplicação ao vosso caso, ou então as palavras não significam mais nada.

A preocupação do arauto não é a de evitar a morte, mas de cumprir sua missão

Ora, a verdade é a verdade, o bem é o bem, o belo é o belo, o erro é o erro, o mal é o mal, e a hediondez é a hediondez. Os campos estão separados e os arautos de Nossa Senhora vão pelo mundo afora para anunciar os direitos d’Ela, proclamar a vontade de Deus que se exprime através da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, da qual vós sois não porta-vozes, mas filhos, que conheceis, amais e venerais os ensinamentos dela, e por causa disso os difundis por toda parte por onde ides.

É lindo ser arauto, realmente! Mas eu vos pergunto o que é mais bonito: ser arauto durante o dia, na hora em que todo mundo está acordado, em que o arauto é cercado de homenagens; ou é ser arauto durante a noite?

Noite negra, espessa, cheia de nuvens, onde não brilham nem sequer as estrelas; tem-se a impressão de que a Lua deixou de existir, do Sol nem se fala, a natureza parece toda ela dominada pelas trevas. Numa circunstância assim, atravessando obscuridades cheias de ciladas, de perigos, de incertezas, galopa um homem com coragem: este homem é o arauto.

Se, por ventura, surgirem inimigos, ele tem uma espada bem temperada, um braço forte e, sobretudo, uma Fé fecunda, e combate! Se ele morrer, como no caso de Roland, aparece São Miguel para ajudá-lo a ir para o Céu. A preocupação dele não é a de não morrer, mas de cumprir sua missão.

O arauto chega ao seu destino; é noite, todo mundo está adormecido. Ele toca a sua corneta, faz soar o sino da igreja, mas a população não se levanta. Entretanto, ele campeia de tal maneira em grandes e heroicas cavalgadas pela cidade, que alguns acabam acordando: assoma-se a uma janela um velho de carapuça na cabeça para olhar o que está acontecendo lá fora; depois, acorda a mulher, os filhos…: “É o rei que mandou um arauto, vamos ouvir o que ele diz!” Dali a pouco todos vêm, e é proclamada a vontade do rei.

Em meio às trevas do campo, o arauto abandona a cidade rumo a outros lugares. Ele desperta, coliga, faz com que as vontades se ordenem para cumprimento dos desígnios do rei.

O arauto proclama a aurora do Reino de Maria

Eis vossa missão nesse mundo que se encontra na meia-noite do pecado, nessas trevas densas onde quase tudo é corrupção, imoralidade, terror. Vós percorrereis, como arautos, as ruas, as praças e os ambientes que vós frequentais, para dizer:

“Ouvi a grande nova! Os filhos de Nossa Senhora vão se multiplicando pelo mundo. Acabou-se a época em que apenas o vício tinha coragem de existir. Fugi trevas, o sol do Reino de Maria está começando a se levantar! Por toda parte Maria Santíssima está suscitando seus filhos que A aclamam bem-aventurada! Esses filhos têm cânticos de Fé, de pureza, de coragem, de esperança e de alegria. Chegou a hora em que eles se multiplicam pelo mundo, e tu, impiedade maldita, prepara-te para fugir!”

Esta é a razão de serdes arautos de Nossa Senhora. E para que transmitais bem o pensamento d’Ela, as pulsações de seu Coração materno e imaculado — ordenado, nos dizem as Escrituras, “como um exército em ordem de batalha”1 —; para este efeito vós, bem unidos a Ela, acabais de vos consagrar como escravos de amor à Sabedoria Eterna e Encarnada, pelas mãos de Maria.

Ir para a frente, lutando contra o inimigo externo e o interno.

O que quer dizer “escravos de amor”? São aqueles que não se fizeram escravos por medo, por imposição, mas livremente; consideraram o que a Igreja ensina a respeito da Santíssima Virgem e, ajoelhados diante de uma imagem d’Ela, disseram:

“Minha Mãe, Vós sois tão admirável, medianeira tão certa, tão direta e tão necessária por vontade de Deus, junto a Nosso Senhor Jesus Cristo, que eu dobro os meus joelhos. E, por ser batizado, já estou consagrado a vosso Divino Filho, mas ratifico hoje, em vossas mãos, esta consagração. Ficai com tudo quanto é meu, minha Mãe, tomai conta de minha inteligência, de minha vontade, de minha sensibilidade, para que minha inteligência, robustecida e esclarecida nas vias da Fé, creia em Vós com toda a força; minha vontade, que concorre para o ato de Fé, seja firme e decidida; para que, nos momentos de dificuldades, eu tenha força e vá para a frente, quer seja diante do inimigo externo que caçoa de minha pureza e de minha Fé, ao qual enfrento com serenidade, quer seja o inimigo interno — muitas vezes mais perigoso — e que me oferece os seus presentes imundos.”

A verdadeira vida é viver e morrer por Nossa Senhora, para que Ela tome nosso ser e o santifique, dando-lhe dons, glórias e graças que por si mesmo jamais teria, e o apresente a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Metáfora da maçã na bandeja de ouro

São Luís Grignion de Montfort nos propõe a famosa metáfora da bandeja de ouro e da maçã. Na Europa, a maçã é uma das frutas mais comuns. Este santo imagina, então, um pobre que não tem outra coisa para oferecer ao rei a não ser uma maçã, e não tem coragem de oferecê-la diretamente ao soberano, porque vê que ela não vale nada. Então, procura a mãe do rei e lhe diz:

“Senhora, por favor, eu não ouso me apresentar a ele, mas apresentai vós este pobre presentinho meu: é uma maçã, minha mãe!”

O Rei é Deus, glorioso, três vezes Santo; é Nosso Senhor Jesus Cristo, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnada; e a Mãe é a Virgem Maria que, com pena, manda um Anjo trazer uma salva de ouro, na qual põe a maçã e, irradiando as virtudes que em grau tão excelso só Ela possui, se dirige ao seu Divino Filho e diz:

“Meu Filho, é uma maçã; é tão pouco, e Vós tendes tanto mais. Mas, neste momento, quero Vos oferecer isso.”

Por ter vindo pelas mãos de sua Mãe Santíssima, na salva de ouro que são os méritos d’Ela, o Rei no Universo recebe a maçã comprazido, como se fosse um fruto do Paraíso.

Assim são as nossas orações. O que elas valem? Contudo, ao pedirmos a Nossa Senhora que as apresente a seu Divino Filho, Ela Lhe dirá: “Meu Filho, essa oração é tão pouco, mas aquele que a ofereceu Eu o quero como a um filho. Fazei de conta que é um grande dom”.

E Jesus responde:

“É um grande dom, pois veio por vossas mãos, minha Mãe!”

Portanto, confiai sempre! Por menor que sejam os dons que tenhais a oferecer a Nossa Senhora, oferecei-os. Mais ainda — serei arrojado no que vou dizer —, se pecardes, não ofereçais o vosso pecado, pois é um fruto do Inferno, mas dizei: “Minha Mãe, dai-me arrependimento, por favor! Um arrependimento como teve São Pedro, que chorou a vida inteira por ter renegado a Nosso Senhor três vezes. Minha Mãe, dai-me arrependimento, e a primeira lágrima que eu chore, peço-Vos, ponde na salva de ouro e ofertai a Ele!” Ela o fará certamente.

Essas palavras conduzem à confiança, à alegria e à luta pela virtude. Confiança, alegria e luta são os estados de alma que eu vos desejo neste grande dia. Arautos, ide e proclamai por toda a Terra Nossa Senhora, Rainha do Universo!

O boletim do Colégio São Luís

Acabo de falar em confiança. Eu sei de um menino que era aluno do Colégio São Luís, e que fez uma falsificação de um boletim. Esse menino, tão longe de ser menino hoje, vos está falando neste momento. No colégio, davam-se duas notas para cada matéria: aproveitamento e comportamento.

Minha mãe costumava dizer-me, para me formar, e eu tomava muito a sério: “Eu não faço tanta questão de nota de aproveitamento. Se você não aproveitou as aulas — os professores são dos melhores de São Paulo —, é porque você é burro, e ninguém tem culpa de ser burro; seria como se eu tivesse um filho doente; não há culpa em ser doente. Se você fosse burro, eu teria pena, olharia para você e diria: ‘Pobre Plinio, é burro!’ Mas eu tocaria a vida com o Plinio burro. Agora, nota baixa em comportamento, não! Porque significaria que você é ruim, e isso eu não tolero; ruim não pode ser”.

E quando distribuíram meu boletim no colégio, veio com boas notas de aproveitamento. Depois, em comportamento, 10 em todas as matérias — era a nota máxima —, mas em Geografia, seis. Tratava-se de um professor com quem eu não simpatizava muito, meio caprichoso, e eu sabia não merecer aquela nota, porque era um aluno bem comportado. Então pensei:

“É, aquele homem, que me olha atravessado, não gosta de mim e percebeu que eu também não gosto dele, e me bateu esse seis na cabeça. E agora, como vou me arranjar? A minha mãe vai ficar indignada comigo e eu não tenho culpa!” Não tive dúvida, peguei a minha caneta e escrevi por cima, 10.

Vendo o que havia feito, refleti: “Minha mãe não vai acreditar nisso, eu fiz uma bobagem. Ela vai ver o que estava escrito embaixo e será pior”. Eu tinha uns dez ou onze anos. Estava chovendo e ocorreu-me, então, a seguinte ideia: “Já sei o que fazer: vou levar este boletim na chuva e deixar cair água em cima deste infortunado 10; assim borra tudo isso, o que eu escrevi e o que estava embaixo. Quando ela me perguntar, vou dizer que abri a minha caderneta na chuva e que a página se encheu de água.”

Então fui para a chuva e abri o boletim. Mas não havia meio de cair uma gota d’água na referida nota. Afinal, caiu uma gota, mas fez um riacho ali, e ficou uma coisa indescritível!

Indignação de Dona Lucilia

Dona Lucilia sabia que era o dia da distribuição de boletins. Cheguei a casa procurando disfarçar, distraí-la para ela não pedir o meu boletim. Mas foi em vão…

— Plinio, onde está o boletim? — perguntou-me.

— Está aqui — respondi.

Ela o abriu, olhou e exclamou:

— O que é isto?!

Não ousei chamá-la de “meu bem”, como de costume, e contei-lhe a verdade.

Ela me disse:

— Pelo que me conta, você é um estelionatário!

Estelionatário é quem falsifica documentos, mas a palavra me pareceu uma chicotada no ar. Pensei: “Estelionatário, que crime horrível, com nome tão pesado! Amanhã eu entro no São Luís e os meus colegas vão apontar: ‘Aqui está o estelionatário’, e se afastam todos de mim”.

Mamãe acrescentou:

— Fique sabendo que, na segunda-feira, vou mandar seu pai ao Colégio São Luís para verificar qual foi a sua nota. Se você realmente mereceu esse seis, você vai para o Colégio Caraça, em Minas Gerais.

O Colégio Caraça era um excelente colégio, mas tinha em São Paulo uma fama, completamente injusta, de ser um estabelecimento de ensino severíssimo, uma espécie de penitenciária para meninos. Eu fiquei horrorizado. Imaginem: Caraça… E, depois, longe de mamãe!

”Salve Rainha, Mãe de misericórdia…”

Eu estava assim, nessa angústia, quando chegou o domingo e fui à Igreja do Coração de Jesus, onde eu costumava assistir à Missa. Comecei a rezar e, de repente, meu olhar fixou-se na imagem de Nossa Senhora Auxiliadora. Vendo-a tão nobre, tão afável, tão amável, vieram-me aos lábios as palavras “Salve Rainha”. Salve, em latim, quer dizer “eu te saúdo”, mas eu tinha a impressão de que significava “salvar”, “agarrar-me”. E pensei:

“Aqui está o que eu preciso! Salve Rainha, Mãe de misericórdia… Mãe, e Mãe de misericórdia, que coisa boa, hein! Mamãe é tão boa, mas Nossa Senhora é incomparavelmente melhor do que mamãe. Ah! vou arranjar esse caso com Ela.” Rezei a Salve Rainha inteira, várias vezes.

Não tive uma visão nem revelação, mas ficou-me a impressão de que a imagem me olhava e dizia: “Olhe, eu arranjo isso, meu filho”.

No dia seguinte, meu pai foi falar com o reitor do colégio que, depois de averiguar a nota nos registros, afirmou:

“Isso foi uma criancice sem nome do Plinio! Ele tinha a nota 10, porém o funcionário que copia as notas errou e escreveu seis. Se seu filho dissesse que se julgava objeto de uma injustiça, eu teria mandado verificar e eu mesmo poria a nota certa no boletim dele.”

Meu pai contou isso à minha mãe, que me disse:

“Está bem desta vez. Mas nunca mais repita isso, senão, da próxima vez… Caraça.”

Pensei, aliviado: “Nossa Senhora me ajude para eu não fazer uma outra bobagem desse gênero.”

Encerremos, portanto, nossa reunião, rezando a Salve Rainha.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/10/1987)

Revista Dr Plinio 188 (Novembro de 2013)

1) Ct 6, 10.

 

Medianeira onipotente

O reinado de Nossa Senhora resulta do fato de Ela ser o ponto de convergência e de espargimento de todas as graças divinas. Maria é Soberana, porque todos os dons e favores celestiais concedidos aos homens nos vêm pelas suas mãos maternais; porque todos os pedidos e orações que dirigimos a Deus são-Lhe apresentados por Ela.

Se os Anjos e Santos rogassem juntos, sem Ela, nada obteriam; sozinha, a Virgem Santíssima tudo alcança, de tal modo se concentrou n’Ela a inteira predileção do Criador.

Rainha onipotente, porque pode tudo junto d’Aquele que tudo pode, e que A constituiu Medianeira de todas as suas graças.

(Imagem de Nossa Senhora das Graças)

ENCONTRO COM O CORAÇÃO EUCARÍSTICO DE JESUS

Certa vez perguntaram a Napoleão Bonaparte qual havia sido o dia mais feliz de sua vida. Apesar de toda a glória que lhe obtiveram seus ribombantes triunfos militares e políticos, ele não hesitou  em responder: “Foi o dia de minha Primeira Comunhão”. Este é um exemplo muito ilustrativo de quanto uma alma fica marcada, de modo indelével, pelo momento em que se abre para ela o  convívio com Nosso Senhor sacramentado. Tal se passou também com Dr. Plinio, naquele 19 de novembro de 1917, quando se aproximou pela primeira vez da Sagrada Eucaristia. Décadas mais  tarde, ele se comprazeria em recordar essa inesquecível data:

 

A atmosfera que cercava as Primeiras Comunhões, no meu tempo de menino, era muito especial, porque fora organizada segundo a doutrina e a mentalidade de São Pio X, o Pontífice das Primeiras Comunhões. Antes dele, a tendência corrente era de que uma pessoa só se aproximasse da Santa Mesa quando inteiramente adulta, não sendo raro o caso de homens e mulheres que comungavam pela primeira vez nas vésperas de seu casamento.

Essa atitude era determinada pela compreensível ideia de que a Comunhão é algo por demais sagrado para que as crianças a recebam, pois não têm critério para comungar com o respeito e a devoção necessárias.

O que importa é o grau de inocência

São Pio X, entretanto, entendia de modo diferente, e colocou a questão em outros termos. Dizia ele: “Não se trata de saber o que a criança é capaz de pensar, e sim que grau de inocência ela tem. Porque, se fôssemos raciocinar em função de sua capacidade intelectual, então não deveríamos batizá-la nos primeiros dias após seu nascimento”.

Um juízo muito acertado, cujo desenvolvimento é este: no momento do Batismo, embora o recém-nascido ainda não pense, a recepção do Sacramento significa para ele uma comunicação de graças extraordinárias, que agirão sobre sua alma até o dia em que comece a fazer uso da razão. E, mesmo nesse início da vida de pensamento, as graças do Batismo lhe serão de extrema valia, guiando seus primeiros passos e o fortalecendo na Fé. É esse um dos motivos primordiais pelos quais a Igreja inteira batiza as crianças logo depois do nascimento.

E análogo princípio aplicou São Pio X, ao instituir a Primeira Comunhão para as crianças. Quer dizer, tomando em consideração que estas, via de regra, ainda conservam sua inocência, ser-lhes-á ocasião de graças superabundantes receberem a Sagrada Eucaristia.

Para tanto, basta compreenderem a mudança de substância operada na hóstia no momento em que é consagrada, quando ela passa a ser, verdadeiramente, Nosso Senhor Jesus Cristo, em seu corpo e sangue, alma e divindade.

Trajes especiais

São Pio X determinou que a festa da Primeira Comunhão para as crianças fosse cercada de grande solenidade. Datam daí os ornamentos de que se revestem as igrejas nessas ocasiões, e os trajes  cerimoniosos com os quais meninos e meninas se apresentam para receber a Jesus sacramentado, símbolos do coração inteiramente inocente e virginal que vai de encontro ao seu Salvador.

Recordo-me de que, na minha época (e talvez esse costume se conserve até hoje), as meninas apareciam diante de Nosso Senhor, o Divino Esposo das almas, trajadas de noiva, com vestido longo,  o véu cingido na fronte por uma grinalda de flores brancas, e brancos também os sapatos.

Por sua vez, os meninos deveriam ir tão bem vestidos quanto o permitiam as posses de seus pais. Aqueles com mais recursos mandavam confeccionar uma roupa especial para a ocasião. E no meu tempo, o hábito de Primeira Comunhão masculino era a cópia do uniforme solene de um dos colégios mais famosos do mundo — o “Eaton”, da Inglaterra: uma roupa muito pomposa, consistente em paletó e calça de casimira inglesa e corte elegante, camisa engomada, de colarinho duro, gravata escura. No braço esquerdo fixava- se um laço de fita branca, em cujas pontas brilhavam pingentes dourados. O branco simbolizava a castidade e a virgindade do menino; o dourado lembrava a sua fé.

Depois da cerimônia, a festa No dia da Primeira Comunhão, após o ato na igreja (comumente realizado pela manhã), as respectivas famílias costumavam se reunir nas casas dos meninos, onde as  mães haviam preparado uma grande festa para celebrar a data memorável. Além dos parentes, eram convidadas todas as crianças com quem o filho ou a filha tinha relações, não sendo raro  ajuntarem-se vinte ou trinta pimpolhos, em torno de uma lauta mesa. Naqueles idos de 1917, a maravilha que fazia a alegria da meninada era o prato de chocolate com o que chamavam de creme “chantilly”. Como São Paulo era, entretanto, uma cidade ainda nos primórdios de seu desenvolvimento, não se conhecia o verdadeiro “chantilly”, mas apenas uma deliciosa imitação feita com clara de ovo batida. Então vinham aquelas copiosas porções de chocolates sob o “creme francês”, e as crianças se regalavam. O passo seguinte era fazer as honras às frutas, sorvetes, refrescos e toda espécie de sanduíches e doces.

Terminado o banquete, começava a correria pelo jardim da casa, tanto maior quanto mais extenso fosse o terreno à disposição dos infatigáveis meninos. O cansaço só se apresentava à noite, quando se aprontavam para dormir, depois de terem rezado.

Assim transcorria o dia da Primeira Comunhão. “Hoje, pensem apenas no Santíssimo Sacramento” Para mim, minha irmã e uma prima que fez a Primeira Comunhão conosco, as coisas se passaram de modo diferente. Dª Lucilia, exímia organizadora de tudo, entendia que a comemoração em família não deveria acontecer na volta da igreja.

Julgava ela que, se realizada a festa no mesmo dia, poderia haver o risco de a criança, levada pela imaginação infantil, amanhecer pensando mais nos festejos do que na Sagrada Eucaristia. Então, com seu afeto e cuidado todo especial, mamãe nos chamou alguns dias antes para nos colocar a par do programa.

Disse-nos: — Vocês devem entender que a festa não vai ser no mesmo dia. Nessa data vocês devem se preocupar somente com a Primeira Comunhão. É como se fosse um feriado: não vão estudar nem se entregar a atividades muito dispersivas. Devem passar o dia vestidos com o hábito de Primeira Comunhão e terem atividades tranquilas, dentro de casa, sem ir ao jardim, e evitar de olhar pelas janelas, para não se distraírem com o movimento da rua. Passeiem de uma sala para outra, de um quarto para outro, andem pelos corredores, rezando e procurando lembrar-se do que se deu com vocês nessa ocasião. Quer dizer, pensem e concentrem a atenção no Santíssimo Sacramento. Depois, no dia seguinte, faremos a comemoração em grande estilo.

Um passo muito sério a ser dado

Nós três havíamos tido um curso de catecismo particular, ministrado por um padre amigo da família. Durante algumas semanas, ele nos explicou os pontos essenciais da Doutrina Católica, contou-nos a História Sagrada, etc., preparando-nos dessa forma para o solene encontro com Nosso Senhor Eucarístico. Dª Lucilia, por seu lado, também nos predispôs para a Primeira Comunhão, antes e mais do que tudo pelo ambiente que ela criava em casa, todo feito de piedade, de inocência, de inteira e ilimitada confiança nela, bem como de imenso afeto. Além disso,  mamãe nos ajudava a entender melhor as lições recebidas do padre, e nos fazia ter uma alta ideia do que significava a graça da Primeira Comunhão. É supérfluo dizer que a materna e zelosa  assistência dela nos foi de imenso proveito.

Assim, a preparação feita com muito cuidado pelo padre, somada às explicações de Dª Lucilia, que completavam os ensinamentos do sacerdote, e depois o programa traçado por ela dias antes da  Primeira Comunhão, fez-nos ver como era sério o passo que íamos dar. Evidentemente, esse ambiente criado em torno de nós era próprio a determinar todo o grau de recolhimento que uma criança possa ter.

Eu, particularmente, fiquei muito compenetrado e fiz o propósito de observar esse recolhimento quanto me fosse possível, nos meus nove anos. Depois de termos sido examinados, e verificado que  sabíamos o bastante para comungar, fizemos parte de uma turma de Primeira Comunhão da paróquia de Santa Cecília. Foi um mundo de crianças, vestidas de acordo com a situação financeira dos pais. Algumas estavam ricamente trajadas, levando nas mãos lindos rosários e livrinhos de oração encadernados com forro de madrepérola. Os de certas meninas eram até recamados de pérolas nas bordaduras. Outros eram impressos com várias cores e também muito bonitos.

A primeira confissão…

Antes desse grande dia, porém, fiz a minha primeira confissão. Tomei-a com tanta seriedade que, para não me esquecer de nenhum dos meus pecados na hora de dizê-los ao padre, fiz uma lista deles. Imagine-se o que podiam ser as faltas de um menino de nove anos… Entretanto, apesar da pouca gravidade que elas poderiam encerrar, tive de me arrepender a duras penas por havê-las cometido! Pois a Fräulein Mathilde, a governanta alemã que nos levara para confessar, era muito exigente. Antes de eu me dirigir ao confessionário, ela me perguntou: — Você está arrependido de seus pecados?

Eu entendia que estar arrependido era sentir vontade de chorar pelas faltas cometidas. Como tal sentimento não me viera, respondi: — Não!

Inflexível, a alemã (de quem conservo saudosa e boa recordação) replicou, num tom imperativo: — Faça uma Via-Sacra! Achei que, para uma alma dura como a minha, que não se arrependia dos seus pecados, a solução era mesmo rezar a Via-Sacra… Foi o que fiz com toda a convicção. Quando voltei para junto da “Fräulein”, ela me perguntou de novo: — Está arrependido? — Não! Creio que fiz umas duas ou três Vias-Sacras… Afinal, Nossa Senhora teve pena de mim e me concedeu algo vagamente parecido com uma tendência a chorar pelas faltas cometidas.

A governanta voltou à carga: — Você sente agora verdadeiro pesar?

Pensei: “As lágrimas estão vindo… ” Respondi então: “Sinto!” Ela imediatamente ordenou: — Vá fazer a confissão! Entrei no confessionário, puxei a lista dos meus pecados e a li para o sacerdote. Ele ouviu tudo com muita bondade e me deu a absolvição. Na saída, tomado pela importância do momento, não me dei conta de ter deixado cair aquela folha de papel. Quando já havia voltado para casa, mexendo nos bolsos dei pela falta dele. Então procurei Dª Lucilia e lhe disse: — Mamãe, eu preciso voltar à igreja para pegar tal papel, porque se alguém encontrar a lista dos meus pecados, ficarei em má situação.

Ela logo percebeu que era coisa de criança, mas ficou satisfeita ao ver como eu tinha levado a sério a minha primeira confissão. Enquanto nós dois conversávamos, aproximou-se uma lavadeira que trabalhava em casa, pessoa muito boa, piedosa, chamada Madalena. Ela vinha trazendo umas roupas dobradas para guardar num armário e, naturalmente, prestou atenção na nossa conversa.

A Madalena achou graça na minha aflição de menino, e, voltando-se para mamãe, disse: — Ah, eu dava tudo para conhecer os pecados do Plinio. Então, Dª Lucilia, a senhora me dá licença e eu vou  depressa à Igreja de Santa Cecília para ver se pego a lista dos pecados do Plinio!

Eu fiquei ultrajado ao extremo, mas vi que mamãe não tomou ao trágico nem ficou com medo de revelações sensacionais. E eu, sabendo que ela não deu importância, até me esqueci do fato. A  Madalena foi à igreja e não encontrou a lista.

Com certeza um sacristão, ou alguma faxineira limpando o recinto sagrado, encontrou aquilo e jogou fora. Estava acabado. Eram já não sei mais que pecados, mentirinhas não sei de que tamanho. Creio, porém, que os ter relacionado para não deixar de acusar nenhum e pedir perdão a Deus por todos, demonstra a compenetração com que me preparei para o Sacramento da Penitência, enquanto prelúdio da Primeira Comunhão.

Alegria por vestir o “Eaton”

Numa outra ordem de preparação, também tive de experimentar o famoso “Eaton” que usaria no dia solene. Obrigação para mim bastante enfadonha, pois toda a minha vida tive não pequeno desagrado em experimentar roupas: põe-se alfinete, tira alfinete, vira de cá, vira de lá, traçam-se marcas de giz… Nunca gostei disso. Enfim, o alfaiate contratado por Dª Lucilia fez os ajustes necessários, e chegou à conclusão de que o “Eaton” estava muito bom. Foi essa igualmente a opinião de mamãe, que em tudo exigia perfeição e não se contentaria com um Eaton mal cortado. O  alfaiate seria muito bem tratado, receberia o justo pagamento pelo trabalho que fez, mas sob a condição de este estar perfeito. Ela achou que estava.

O encontro com Jesus Sacramentado

Na manhã seguinte, minha irmã, minha prima e eu nos dirigimos à Igreja de Santa Cecília, levando nossas velas que, assim como as das outras crianças, seriam acesas em determinado momento da Missa. O Santo Sacrifício, um tanto longo, dado que solene e cantado, foi seguido por mim com muita atenção, embora eu não soubesse ainda tudo quanto a Missa significa. Porém, o simples fato de estar presente a uma cerimônia da Igreja, pela qual eu já nutria imensa veneração, era o bastante para me fazer assistir àquilo com espírito de oração, com enlevo e profundo respeito.

Afinal, chegou o momento da Comunhão. Formaram-se, separadamente, a fila das meninas e a dos meninos que, pela primeira vez, receberiam em suas almas a visita de Nosso Senhor Sacramentado. Pelo favor de Nossa Senhora, comunguei com muito recolhimento e procurei fazer minha ação de graças com intenso fervor e devoção.

Quando, terminada a celebração litúrgica, eu retornava para casa, estava radiante de contentamento. Junto com minha irmã e minha prima, passei o dia em recolhimento, conforme o programa estabelecido por Dª Lucilia. No dia seguinte houve uma festa soberba, com guloseimas de toda espécie, as costumeiras correrias pelo jardim, etc.

Preparação para uma vida de amor à Igreja Para concluir essas reminiscências de uma data que me é tão cara, gostaria de frisar um ponto que responde à seguinte pergunta: de que me serviu a Primeira Comunhão? Sendo o marco inaugural de uma série de comunhões, ela preparou e fortaleceu minha alma para enfrentar os combates que, dali a pouco, eu teria de travar pelo bem e pela virtude. Ajudou meu espírito a ter o vigor necessário para opor resistência — dolorida, mas forte e decidida — às solicitações más, e quantas vezes pecaminosas, que se apresentam a todo adolescente e a todo jovem.

Ela me preparou para uma vida que, graças à Santíssima Virgem, procurou se fazer sempre de piedade, de vontade de cumprir perfeitamente os mandamentos, e de entranhado amor à Igreja, para  cujos serviço e triunfo eu quis dedicar continuamente todos os meus esforços.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 20 (Novembro de 1999)

Santidade, o ideal de todo homem

De que aproveitará ao homem ganhar todo o mundo, se vier a perder a sua alma?” (Mt 16, 26) — é a advertência, repassada de solicitude, que nos faz o Divino Mestre. Na verdade, riquezas e glórias  terrenas, reconhecimento e aplausos nesta vida, de nada nos valerão para a eternidade, se não procurarmos a perfeição. Por isso Dr. Plinio tomava tanto a peito formar seus filhos e discípulos no  maior e mais belo dos ideais: a santidade.

 

Neste mundo em que o existir humano se volta, cada dia mais, para os interesses meramente terrenos, é muito importante termos bem claro qual o verdadeiro fim a que o homem deve aspirar na sua vida.

A felicidade da perfeita realização

Em primeiro lugar, consideremos que a criatura humana, por sua natureza, é dotada de valores e possibilidades que ela deve procurar cultivar e aperfeiçoar, caso deseje se realizar por inteiro. Para  e valer de uma comparação, tomemos por exemplo um vidro de perfume aberto numa sala. Ele contém uma fragrância da qual o próprio é evaporar-se e impregnar com seu envolvente  aroma o ambiente em que se encontra. Suponhamos que o perfume, posto no frasco, pudesse pensar. E imaginemos que ele permanecesse tampado no seu invólucro de cristal sem que ninguém  jamais o cheirasse, guardado numa gaveta, esquecido, durante 100, 150 anos, até que alguém, ao arranjar um armário velho, numa velha casa de família, o achasse, o destampasse, e dissesse: “Isto  é um perfume antigo que não vale para nada”.

E logo em seguida o espalhasse pelo jardim, deixando que seu cheiro deteriorado e repelente espante as minhocas e bichinhos que vivem dentro da terra. Se esse perfume pensasse, ele julgaria que  ua existência foi bem sucedida?

Reflitamos um momento. Dentro de um vidro de cristal que abafa, colocado na semi-obscuridade de uma gaveta segura, ele teria todo o conforto e a tranqüilidade das coisas nas quais ninguém mexe, que não passam por nenhum susto, que não trabalham, das coisas que, afinal de contas, são zero. Ele estaria ali cercado de toda comodidade. Um perfume não come, não bebe, não dorme; um perfume simplesmente se limita a existir, e existir dentro de um vidro. Um bonito frasco de cristal é um palácio para um perfume, com todas as facilidades de uma boa existência.

Entretanto, algo nele lhe é motivo de sofrimento. É que está na natureza dele perfumar, e ele preferiria qualquer coisa a não poder fazê-lo, pois esta lacuna é contrária à sua essência.

Semelhante raciocínio se aplicaria, por exemplo, às águas que correm sob a terra. Existem rios, fontes subterrâneas que não chegam a aflorar na superfície, e vêem suas águas caudalosas, abundantes, viverem numa perpétua obscuridade. Essas águas poderiam pensar o seguinte: “Felizes somos nós, que não temos bichos, que não precisamos suportar o peso de nenhum barco, e não temos de fazer outra coisa senão deixar a força da gravidade nos ir levando para onde for. Para nós é o ideal!”

Mas, imaginemos que uma dessas águas, de repente, passasse por uma fenda qualquer, encontrasse finalmente a luz do sol e começasse a longa travessia de uma massa líquida desde a sua nascente até o oceano onde ela deve sumir.  É uma epopeia que atravessa mil vicissitudes: um pouco dessa água é absorvida pela terra, outro tanto se evapora, forma-se em nuvem e vai cobrir os céus de algum lugar distante do mundo; um pouco dessa água é derramada aos pés de uma flor, transforma-se em matéria que fará desabrochar uma linda magnólia ou uma bela rosa…

A água passará por mil vicissitudes, mas quando ela saísse da terra e começasse a sua movimentada trajetória, se ela pudesse pensar, se ela pudesse cantar, ela cantaria depois de ter pensado, e diria: “Chegou a minha vez de ser flor, de ser bebida pelos homens e pelos animais, chegou a minha vez de ser nuvem, chegou a minha vez de ser tudo! Afinal, realizarei aquilo que está na minha natureza ser!”

E por mais aventurosa que fosse a existência daquela água, nisto ela encontraria uma felicidade que não lhe seria dada em nenhuma outra condição.

Todo homem procura um ideal

Se essa  necessidade da existência realizada parece tão evidente nos seres inanimados quando nós os imaginamos vivos, como não o será para o homem? Ao procurar a sua felicidade, a sua realização, o  que ele deseja? Ficar engarrafado? Ser um curso de água subterrâneo? Ele procura não ter história, nem vencer dificuldades?

Não. Inteligente, dotado de uma alma espiritual, a primeira coisa que o homem procura, pela sua natureza, é ter um ideal: uma verdade suprema de onde ele deduza todas as outras verdades; uma  beleza suprema da qual ele deduza todas as outras belezas; uma santidade suprema em cuja luz ele contemple todas as outras santidades. Isto o homem deseja, sem que lhe baste ficar apenas no  pensamento. Depois de pensar, ele quer agir, quer ter uma vida em que mexa as coisas e as faça andar num determinado rumo, ainda que isto lhe custe muito. E ao atingir o anoitecer da existência, o homem se perguntar á sobre seus dias neste mundo. E terá imensa alegria se compreender que ele foi um perfume que se evaporou, foi uma água que fecundou terras ou se transformou em flor; se ele compreender, sobretudo, que foi um herói, enfrentando riscos, realizando seu ideal. Então, feliz, ele pode encarar de frente o pouco tempo que lhe resta, e dizer:

“Eu fiz o que eu deveria ter feito, a minha vida está realizada! Vivi! E agora só me resta a coroação da vida: é morrer.”

Ser santo, a mais bela ambição humana

Trata-se de um impulso interno  existente em todo homem, e que se reveste de particular riqueza se considerarmos o seguinte: quando uma criatura humana procura se realizar, procura ser “perfume”, procura ser “água”, procura ser herói, ela não pode ter ambição mais bela e mais nobre diante de si, do que a de ser santa.

Enganar-se-ia quem pensasse que o ideal de santidade não está ao alcance de qualquer um, mas apenas para aqueles expoentes da humanidade que um dia chegam à glória dos altares.

Na verdade, segundo a doutrina católica, sabemos que, pela ação da graça, dom sobrenatural de Deus, todos nós podemos ter uma participação criada na existência incriada do Altíssimo. Com  isto, algo de divino penetra em nós, e recebemos uma força para conhecer e crer em coisas as quais nossa inteligência, por maior que fosse, não teria capacidade de compreender sem esse auxílio da graça. Assim como à nossa vontade é comunicado um vigor para fazer e conseguir coisas que, sem a ajuda sobrenatural, não faria nem conseguiria.

Quer dizer, a graça eleva o homem a uma tal condição que o menor indivíduo — como capacidade, como apresentação, como cultura, como tudo —, sob o influxo da vida sobrenatural vale mais do que  o maior dos homens sem aquele dom divino.

Convidados para a corte celestial

E o primeiro convite que Deus Nosso Senhor nos dirige, quando a Providência d’Ele nos encaminha para o batismo, é este: “Meu filho, Eu te dei a condição de homem; não queres mais? Não queres  ser um príncipe na minha Criação? Eu te concedo uma participação criada na minha própria vida. Com isso Eu habitarei em ti, e tu serás o templo no qual Eu viverei. Far-te-ei meu herdeiro.”

É um chamado maravilhoso, que se desdobra em outros não menos extraordinários. Depois de ser dado ao homem o Batismo, após ser infundida nele esta virtualidade incomparável que é a graça,   própria graça o impele para coisas inauditas, superiores à sua estatura, coisas em que o homem galgue acima de si mesmo e realize feitos de heróis de sonho, de heróis de paraíso, numa palavra, de heróis do Céu.

O verdadeiro católico no qual vive a vida sobrenatural deseja, portanto, o maior. E se ele não chegar ao maior, não chega a nada. Ele quer o quê? Ser um cortesão de Deus no Céu, desfrutando de uma felicidade sem jaça, imorredoura, na contemplação e no diálogo contínuo com o Ser Supremo, Perfeito, que é Deus Nosso Senhor, por toda a eternidade.

Ali teremos esse convívio perpétuo com o Criador, no qual Ele nunca se cansa de nós, e nós nunca nos cansamos d’Ele: Verdade, Bondade, Virtude, Santidade e Beleza personificadas, recompensa  demasiadamente grande que encontraremos no fim desta altíssima escada que todos subimos, degrau após degrau, passando por aventuras, batalhas, sacrifícios e privações. Ali, Deus se revela a nós na sua eternidade, com todo o atrativo daquilo que existiu sempre e daquilo que sempre existirá — o passado no seu esplendor, o futuro na sua magnificência.

É uma situação simplesmente admirável a que somos chamados, fazendo-nos santos, postos na visão e na adoração contínuas da Trindade Santíssima. Então, compreendamos que um homem de fé não se sente talhado para a vida insípida do perfume engarrafado, que envelhece e em determinado momento é jogado fora. Ele se sente, sim, feito para uma imensa, criteriosa, sábia, mas ousada aventura, aquela em que ele ordena sua alma para Deus, a purifica e embeleza, preparando-a para o salto dentro da morte. E com a proteção de Nossa Senhora, Mãe e Rainha de Misericórdia, este salto será para a bem-aventurança eterna, para a corte celestial onde um assento nos está reservado.

Julgados e premiados segundo o amor

Para concluir, é oportuno lembrarmos ainda que Deus tem seus mistérios, e não há quem possa afirmar com toda a certeza que tal bem-aventurado é maior que outro aos olhos do Senhor. Quem  poderá conhecer os arcanos da maravilhosa história das almas? Quem poderá ter exata noção de quantas pessoas se sacrificaram pela Fé nos desertos da África e da Ásia, nas vastidões das Américas, em  meio a populações bárbaras e indígenas, aqui, lá e acolá? E com quanto amor essas pessoas aceitaram esse sacrifício?

Ora, é pelo amor que somos grandes aos olhos de Deus. E se alguém, apagado e obscuro no entender do mundo, entretanto fez um imenso sacrifício com imenso amor, quando forem reveladas todas as coisas no Juízo Final, o maior será esse.

Donde, também, não devemos nos pôr a pergunta se os homens reconhecerão nossas realizações e nossas grandezas. Importa sabermos que Deus nos assiste a todo momento, perscrutando no fundo das almas o amor com que O servimos. E se é verdade o ensinamento de São João da Cruz, segundo o qual “no entardecer desta vida, seremos julgados segundo o amor”, o amor que tivemos a Deus, é verdade então que Ele olhará para quem mais O adorou e glorificou, de forma notória ou oculta, e lhe dirá: “Este me amou de modo extraordinário e merece a maior recompensa!

Por sua vez, este homem que santificou sua alma, no instante de transpor os umbrais da eternidade poderá dizer as palavras mais magníficas que imagino postas nos lábios de um moribundo, repetindo São Paulo: “Eu percorri toda a extensão que deveria percorrer; combati por Vós o bom combate, o combate pelo bem; dai-me Senhor, agora, o prêmio de vossa glória!”

É na esperança de podermos viver, de batalhar pela nossa santificação e de morrer na paz de Deus, confiantes em Nossa Senhora, agradecendo a Ela porque nos obteve graças para nos tornarmos  outros heróis da Fé e príncipes do Céu, que devemos atravessar nossos dias nesta terra de exílio.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 44 (Novembro de 2011)

Cristo Rei

Nosso Senhor Jesus Cristo é Rei da Igreja. E, antes da Revolução Francesa, o Divino Redentor era considerado Rei também da sociedade civil; de tal modo que as leis da Igreja eram automaticamente leis do Estado. Há quase cinquenta anos, Dr. Plinio percebia as negações ou as tímidas afirmações da Realeza de Cristo. O que recomendava ele naquela ocasião?

 

A ideia da realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo veio desde a vida terrena d’Ele mesmo; interrogado por Pilatos se era rei, Jesus disse: “Sim, Eu sou Rei” (Jo 18, 37).

Encontramos manifestações várias e títulos diversos de Cristo como Rei, já na Igreja primitiva. Temos até a figura do Cristo Pantocrator, ou seja, Cristo Rei, porque “Pantocrator” quer dizer Senhor de todas as coisas. Ele está sentado sobre um trono que é o arco-íris, o sinal da aliança de Deus com os homens. E do alto desse trono Ele governa todas as coisas: a Igreja gloriosa, a Igreja padecente e a Igreja militante, como o Rei esperado por todos os séculos, Nosso Senhor Jesus Cristo dominando tudo e Senhor de tudo.

Rei por direito de nascimento e por direito de conquista

Essa ideia de Cristo Rei envolve uma noção que é a seguinte: não só de todas as coisas, mas especialmente de todos os homens Nosso Senhor Jesus Cristo é Rei. E é Rei no sentido de que, enquanto Filho de Deus encarnado e nosso Redentor, Ele adquiriu um direito verdadeiro da realeza sobre nós. E esses dois títulos não se confundem um com o outro.

O primeiro título, poder-se-ia dizer, é por direito de nascimento. Porque há um princípio que estabelece o seguinte: na hierarquia dos seres, quando um deles é imensamente superior ao outro, adquire uma autoridade sobre esse outro. E com fundamento nisto Ele, que é homem verdadeiro, ligado por união hipostática à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, tem uma superioridade infinita sobre todos os seres do universo. E não só como Deus, mas na sua humanidade, Jesus é Rei de todos os homens porque é a cabeça do gênero humano, a mais alta criatura existente no gênero humano. Nosso Senhor é Rei do gênero humano pela união hipostática e na sua humanidade santíssima.

Ele é Rei também como Redentor, porque conquistou o gênero humano, sacrificou-se, se imolou na Cruz, e essa imolação salvou a humanidade do Inferno, abriu as portas do Céu para os homens. Com seu Sangue, Jesus conquistou a humanidade, adquiriu sobre ela um direito régio.

De maneira que a realeza de Cristo tanto pode ser contemplada meditando-se Nosso Senhor sobre um trono, quanto no alto da Cruz. Porque do alto da Cruz, por direito de conquista, Ele se tornou Rei de todo o gênero humano.

A realeza de Nosso Senhor na sociedade espiritual e temporal

Qual é a conclusão disto?

O gênero humano pode ser considerado como pertencendo a duas espécies de sociedades: a espiritual e a temporal. Nosso Senhor Jesus Cristo é Rei da sociedade espiritual, a Igreja Católica. Se o Papa reina na Igreja, é como Vigário de Cristo, quer dizer, como representante de Cristo. Porque o verdadeiro Rei da Igreja Católica, no sentido pleno da palavra, é Nosso Senhor Jesus Cristo.

A Igreja é uma instituição monárquica, antes de tudo porque ela tem um Rei, que é Nosso Senhor Jesus Cristo. O Papa, como Bispo de Roma, é indissolúvel e definitivamente o Vigário de Cristo, reina sempre em nome de Cristo, e o poder das chaves exercido pelo Papa é um poder que Cristo deu a seu Vigário. O verdadeiro Rei da Igreja Católica é Nosso Senhor Jesus Cristo.

Devemos analisar a realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre a sociedade temporal. A esse respeito, fazem-se as seguintes considerações sobre a separação entre a Igreja e o Estado que não são muito exatas:

A Igreja tem uma finalidade espiritual, o Estado uma finalidade temporal. A Igreja conduz os homens ao Paraíso, e o Estado mantém a vida terrena. A partir disso, fica-se com uma ideia de que Nosso Senhor Jesus Cristo é Rei da Igreja, mas que o Estado não tem verdadeiro Rei, e sobretudo os Estados católicos não devem reconhecer Cristo como Rei.

Esse princípio é profundamente falso. O Estado, enquanto Estado, tem Nosso Senhor Jesus Cristo como Rei. E o efeito concreto disto é a obrigação que tem o Estado de aplicar as leis de Nosso Senhor Jesus Cristo; e se não as aplica se coloca em estado de revolta contra o seu verdadeiro Rei.

E qual é a aplicação dessas leis de Nosso Senhor?

Antes de tudo, reconhecer a Igreja Católica como a única Igreja verdadeira e oficial; aplicar todas as leis da Igreja como sendo automaticamente leis do Estado. É o que se fazia antes da Revolução Francesa. De maneira tal que não era preciso que uma lei da Igreja fosse ratificada pelo rei do país, pelo Poder Público; entrava em vigor pelo simples fato de que a Igreja as tinha promulgado. As autoridades eclesiásticas eram objeto de continências e honras oficiais, porque eram autoridades públicas, e autoridades públicas porque autoridades da Igreja verdadeira do Deus verdadeiro que era Rei do Estado.

Toda a vida civil se organizava no terreno cultural, artístico, e em todos os aspectos, de acordo com a lei de Nosso Senhor Jesus Cristo; isto era uma aplicação do princípio de que Cristo é Rei da sociedade humana.

Verdadeiros soldados de Cristo Rei

Isto, que entre nós são noções tão familiares, se esquece, e de vez em quando é preciso lembrar porque tudo quanto se ouve não só tende a fazer esquecer essas verdades, mas até a negá-las. De maneira que ficamos habituados à ideia de que o Estado é leigo, de que por sua própria natureza nada tem a ver com religião e por causa disso ignora, desconhece Nosso Senhor Jesus Cristo.

Então qual é a razão de lembrar essas noções?

Uma coisa é ter na mente esses princípios teoricamente. Outra é ter disso um senso vivo e contínuo, como algo que está à flor da pele. De tal maneira que em todas as ocasiões da vida civil em que notarmos estar sendo negada a realeza de Cristo, isso deve nos causar dor, tristeza e indignação.

Esse laicismo que caminha para um positivo ateísmo em todas as coisas, deve nos ferir de forma a vivermos na sociedade de hoje num estado de exilados, como alguém que reside num lugar onde tudo está posto de cabeça para baixo, e vive num protesto interno e contínuo disto. É assim que por toda a parte anda o fiel vassalo, o fiel militante de Cristo Rei.

É só assim que nós podemos ser verdadeiros soldados de Cristo Rei. Não adianta ter na cabeça, no “mundo da lua”, uma porção de ideias de Cristo Rei, sem que a todo o momento não estejamos percebendo as negações, ou as palidíssimas e timidíssimas afirmações da Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Lembro-me de que, quando fui constituinte em 1934 — depois isto se repetiu nas outras constituições, com estes ou aqueles termos —, vi um exemplo claro disso no preâmbulo proposto por um deputado católico muito ardoroso e muito aplaudido: “O povo brasileiro, pondo sua confiança em Deus e constituído em assembleia soberana, resolve tal coisa.” Como quem dissesse: “Deus, você é um Guaçu(1) que está lá em cima e pode me estragar ou ajudar muito as coisas. Quero, portanto, que você seja um amigo. Mas “ex auctoritate propria” eu faço o que desejo. E ponho minha confiança para que você faça dar certo”.

No próprio instrumento em que se afirma confiar em Deus, está negada a Realeza de Deus. Isto é uma coisa que um católico possa ver sem amargura? Não pode. E quando ele vê sem amargura, não é um verdadeiro devoto de Cristo Rei.

O modo mais autêntico, elevado e sublime de realizar o Reino de Cristo

O carregar dia e noite, a todos os momentos, em todas as ocasiões, essa amargura, essa tristeza — mas tristeza militante! — de que a realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo está sendo subestimada aqui, negada lá, injuriada acolá, isto nos deve caracterizar.

E na festa de Cristo Rei devemos ter muito em vista essas considerações para compreendermos bem qual é a formação que precisamos adquirir; devemos ter aqui a atitude e a postura de exilados.

E lembrar que, para além dessa tristeza, Nosso Senhor Jesus Cristo Rei tem uma promessa para nós: a realização do seu Reino do modo mais autêntico, mais elevado, mais sublime que se possa imaginar, que é por meio da Realeza de Maria Santíssima. É o Reinado de Nossa Senhora, que na fímbria do horizonte se anuncia na promessa de Fátima: “Por fim o meu Imaculado Coração triunfará”.

Então precisamos ter um horror da situação atual e um desejo ardente da situação para a qual estamos sendo solicitados, e que nos é dado como uma promessa. Este deve ser o nosso estado de espírito contínuo, em todas as ocasiões e em todos os momentos.

Ter isto bem em vista e pedir a Nossa Senhora a graça da presença contínua dessa ideia é algo que convém muito rogar em nossas orações a Cristo Rei.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/10/1964)

Revista Dr Plinio 176 (Novembro de 2012)

 

1) Do tupi-guarani: grande.

Jesus Cristo Rei, Profeta e Sacerdote

Seria uma belíssima leitura do Evangelho considerar, nas várias atitudes do Divino Salvador, se Ele está agindo como Rei, Profeta ou Sacerdote. Maria Santíssima tem, como ninguém, uma correlação com cada um desses títulos. Também os acontecimentos da História, o mundo angélico e mesmo o mundo visível poderiam ser analisados sob esse prisma.

A Francisco Lecaros respeito da trilogia “Rei, Sacerdote e Profeta” aplicada a Nosso Senhor Jesus Cristo eu gostaria de expor algumas considerações, começando por tratar da ordenação interna desses três títulos, isto é, sobre como eles se relacionam.

Rei da História

A qual deles pertence o primado: é Ele como Rei, como Sacerdote ou como Profeta?

Tenho a impressão de que, na ordem lógica, o primado fundamental é d’Ele como Rei; e o primado na ordem final é como Sacerdote. O Profeta quase faz uma ponte entre os outros dois. Ele é o Rei da História no seguinte sentido: Deus teve as suas intenções com a História, que são as do Homem-Deus. E suas intenções foram um plano que Ele concebeu, o qual a humanidade segue ou não, cumpre ou não cumpre. Esse plano é, provavelmente, relacionado com a atitude do homem perante Deus, com a atitude religiosa do homem, no senti-do mais lato da palavra.

Em segundo lugar, é um plano da ordenação das coisas como corolário, como o homem deve ordenar, desde que ame Deus. De maneira tal que a ordenação dos homens traz uma ordenação dos acontecimentos, e uma ordenação destes acarreta uma ordenação das coisas materiais. Então as civilizações, as culturas, as obras de arte, os arranjos no mundo etc., também correspondem ao plano de Deus.

Nosso Senhor intenciona fazer isso, mas dá liberdade ao homem de realizar uma coisa ou outra; entretanto, o plano d’Ele, de um modo ou de outro, acaba se cumprindo no que tem de essencial, e por uma imposição d’Ele. Porque Nosso Senhor, como Rei, faz realizar-se a glória que Ele queria. Ele manda e, portanto, é um Rei que governa de fato os acontecimentos, por mais que estes pareçam desgovernados.

Um exemplo característico seria com a vida de Jesus. Dir-se-ia que havia um plano que era de Ele vir à Terra e converter o gênero humano. E entrou um plano B em que — não é verdade, mas dir-se-ia — houve a morte e Ele resgatou o gênero humano. De fato, Ele resgatou e cumpriu mais a fundo o plano de levar a humanidade até o Céu. E Nosso Senhor é Rei fundamentalmente por essa condução forte dos acontecimentos. Ele tem o plano, o direito e o poder de mandar. Jesus Cristo tem o mando efetivo. E com esses ou aqueles desvios, as coisas se realizam como Ele quer.

A própria liberdade que o homem possui e, portanto, pode usá-la contra Ele, é dada por Nosso Senhor. Porque, se Ele quisesse, não criava o homem. Ele quis e, no fundo, é a bondade d’Ele que está sendo feita. Ele é o Rei.

Rei-Profeta que sabe tudo quanto irá acontecer

No elemento terminal da trilogia, Jesus é Sacerdote no sentido de que aquilo que Ele fez e ordenou, Ele oferece ao Padre Eterno.

Nosso Senhor é Profeta na acepção de que Ele, como Rei, sabe o que vai acontecer. Não é como os reis da Terra que conjecturam, mas pode não acontecer o que queriam, e suceder o que não previram. Mas Ele sabe tudo quanto vai acontecer e anuncia. E depois Ele leva à condução o que Ele disse.

O dom profético em Nosso Senhor é o conhecimento que Ele tem da própria vontade e do poder; de como e em que medida os fatos, dentro dos planos d’Ele, se ajustarão de maneira a realizar os seus desígnios. E enquanto revelador, porque o profeta revela. Assim eu concebo a trilogia.

Impostação das almas face a Nosso Senhor

Por comodidade de expressão eu disse Rei, Sacerdote, Profeta. Mas cada um desses títulos poderia ser tomado por outra ordem na qual um dos elementos da trilogia teria a dianteira sobre os outros.

Poder-se-ia dizer, por exemplo, que Ele, como Profeta, é o Profeta-Rei: Ele previu, Ele fará, Ele oferecerá. Por qualquer das pontas pode-se ver o triedro todo.

Caráter fundamentalmente moral do plano de Deus

E o que faz dentro disso o plano moral?

Não que o plano moral esteja numa posição secundária à vista disso, mas é uma outra coisa. Ele tem uma amplitude, um senso lato e até latíssimo que ultrapassa a mera interpretação mais estrita do exame de consciência individual, mesmo quando transposto para a clave dos povos, se esta equivale apenas a uma soma de mortificações que os homens têm que oferecer para alcançar a vida eterna.

A realidade moral a que me refiro é a impostação total da alma humana, atingindo, portanto, a disposição da vontade, da inteligência e da sensibilidade, o cumprimento do Primeiro Mandamento em toda a sua amplitude pelo homem. Mas numa amplitude tal que não fica apenas o preceito a ser cumprido, mas um voo da alma para Deus, que se realiza, por assim dizer, independente do preceito, por uma propriedade da alma que vai para o Criador.

Fundamentalmente, é a impostação das almas em face d’Ele, não só para que todas vão para o Céu e sejam felizes, mas é para que possam ordenar para a glória de Deus esta Terra, teatro de bata-lha esplendoroso da glória d’Ele.

Nosso Senhor Jesus Cristo amará a Terra mesmo depois de destruída pelo incêndio, por ocasião do Juízo, como um general preza um campo de batalha no qual ganhou um grande embate. Se depois houve um homem que ateou fogo e liquidou com as gramas do campo de batalha; para o general isso é uma coisa muito secundária. O importante é que ele venceu a batalha naquele campo. Assim também a Terra. Os homens bons, os justos tornaram-na sagrada pela batalha que venceram com Nosso Senhor Jesus Cristo.

É nessa amplitude que se pode falar do caráter fundamentalmente moral desse plano.

Um só todo na ordem moral

Ao estudar certas correntes teológicas, vi que faziam uma distinção entre o plano moral e o ontológico. Entretanto, não me parecia adequado distinguir o plano moral do ontológico daquela maneira, porque a raiz da Moral está na Ontologia. A boa Ontologia das coisas é o fundamento, o ponto de partida da Moral, pois a ordem das coisas está na natureza das mesmas coisas, é um imperativo desta natureza.

“…devemos pensar em Nosso Senhor Jesus Cristo Sacerdote: oferecendo esse imenso ‘bonum, verum’, pulchrum” que o precioso Sangue d’Ele tornou possível.”

Na época, eu li aquilo, percebi que estava errado e não sabia refutar. Com o curso dos anos, fui refletindo e conseguindo explicitar.

Ademais, a ordem moral “latu sensu” é intimamente vinculada à ordem moral em seu sentido estrito. Elas se condicionam mutuamente. De maneira que não pode haver uma ordem moral sem verdadeiro “pulchrum”, sem um autêntico “verum”; e não pode haver um autêntico “verum” sem “pulchrum”; os três elementos do triângulo por sua vez se revertem uns nos outros e constituem um só todo no qual, entretanto, podem-se fazer distinções. Então, um mundo pulcro, acontecimentos pulcros, almas pulcras, uma História pulcra, tudo isso faz parte desse conjunto moral ao qual me refiro.

É assim também que devemos pensar em Nosso Senhor Jesus Cristo Sacerdote: oferecendo esse imenso “bonum, verum, pulchrum” que o precioso Sangue d’Ele tornou possível.

Enquanto Rei, Ele tinha o plano de fazer com que a História apresentasse um “verum, bonum, pulchrum” resplandecente, e que a Terra fosse mais bela, depois de ter vencido a prova e as tentações do demônio, do que seria se ao demônio não fosse dada a oportunidade de tentar.

Pensemos nas naus de Vasco da Gama procurando atravessar o cabo da Boa Esperança. Aquilo tem um “pulchrum” em si que é o “pulchrum” da tormenta e o do homem procurando enfrentá-la. Tem uma beleza própria da luta do homem contra os elementos.

Maior ainda é a beleza da luta do homem contra o homem. E uma batalha — que é a luta de muitos contra muitos — tem uma beleza muito maior do que a luta de um contra outro.

Reflexos da trilogia no mundo angélico

Reportando ao mundo angélico, eu seria propenso a achar que os elementos dessas três manifestações de glória de Nosso Senhor — Rei, Sacerdote e Profeta — se encontram refletidos na ordem angélica, de maneira que há Anjos chamados, por sua natureza, a glorificá-Lo mais enquanto Rei, Anjos mais glorificativos do Sacerdote, e outros mais glorificativos do Profeta.

Em torno dessa hipótese — que submeto inteiramente ao ensinamento da Igreja — haveria temas muito “suculentos” a abordar como, por exemplo: Qual é o coro mais alto?

Absolutamente falando, o que é mais elevado: a realeza ou o sacerdócio? Ou será, em algum sentido, o profetismo? Uma vez que o profeta, enquanto recebendo uma comunicação de Deus, introduz nesta ordem algo superior a ela, não é mais do que o rei e do que o sacerdote?

Seria muito bonito, à luz dessas considerações, classificar os coros angélicos existentes, e imaginá-los constituídos assim, reluzindo e cantando a Nosso Senhor Jesus Cristo como Rei, como Profeta e como Sacerdote de maneiras diferentes.

Reluzimentos no mundo visível

Nasceria daí uma pergunta que me encanta, mas para a qual não tenho senão vislumbres de resposta:  Poder-se-ia num mundo sensível, visível, como também no mundo das almas, imaginar almas mais voltadas a contemplar a Nosso Senhor Jesus Cristo como Rei, outras como Sacerdote e outras como Profeta?

A consideração de Nosso Senhor  Jesus Cristo como  Guerreiro cabe  evidentemente no  rei. Cristo gladífero seria Ele enquanto Rei, que avança de gládio em punho  para mandar, etc.

A consideração de Nosso Senhor Jesus Cristo como Guerreiro cabe evidentemente no rei. O general ato, a condição de guerreiro é própria ao rei. O rei, quando não é obedecido ou se lhe transgride a vontade em qualquer coisa, é o que luta, faz a guerra para impor a sua vontade. É conforme a ordem e o direito. De maneira que é essencial à função de rei. Cristo gladífero seria Ele enquanto Rei, que avança de gládio em punho para mandar, etc.

Então nesta Terra nós não poderíamos considerar vislumbres disso, por exemplo, no pai de família? Ele não tem um pouco do sacerdote, do rei e do profeta? Reluzimentos ele possui.

É conhecido o aforismo: “O pai é rei de seus filhos, o rei é pai dos pais.” Realmente, a presença do pai só é plena na casa quando ele é majestoso, o atrativo e a movimentação da residência. Ele enche a casa com o movimento forte e o pulsar de sua alma.

De outro lado, o pai tem qualquer coisa de sacerdotal. A missão sacerdotal foi toda absorvida pelo sacerdócio sobrenatural e pertence a uma classe instituída por Nosso Senhor. Mas não deixa de ser verdade que o pai de família conserva residualmente uma representação da família junto a Deus. E por causa disso é ele que consagra a família ao Sagrado Coração de Jesus, não é necessariamente o sacerdote; ele pode rezar, dar bênção, tem certas funções de intermediário natural junto a Deus, que não desapareceram.

Certa ocasião, um bispo me disse que a oração do pai e da mãe, Deus atende muito mais especialmente do que qualquer outra prece. Porque aquele é o pai, aquela é a mãe; embora uma pessoa possa rezar por um determinado filho de outrem com mais fervor, com mais virtude, se é o pai que está pedindo, Deus toma em consideração especial a oração do pai. Não quer dizer que Ele leve mais em conta a oração do pai do que a de um Santo, mas que é um título especial próprio para ser atendido. De maneira que um mau pai que faça uma boa oração a favor de seu filho tem condições especiais de ser atendido. A “fortiori” se for bom pai. Há uma qualquer coisa de sacerdotal nisso, e a família vive suas horas augustas desse modo.

Profeta. Não se pode negar que muito difusamente se encontra daqui, de lá e de acolá, além da função de guia, própria ao profetismo, uma certa capacidade de precognição do futuro em determinados pais e mães: “Olha, cuidado, vai acontecer assim…” Ou então quando dizem: “Bom filho, tu vais ser abençoado, Deus vai te dar tais graças…”; e, de um modo ou outro, Deus concede. É um complemento harmonioso da autoridade paterna.

Nós não teremos uma obrigação de desenvolver esse tríplice aspecto de nossa personalidade? E no Reino de Maria esses três lados não vão reluzir muito mais nos homens, embora nas proporções da vocação de cada um? Eu acredito que sim.

Por exemplo, Santo Inácio de Loyola era um verdadeiro rei, sacerdote e profeta para os seus filhos espirituais.

Distinguindo esta trilogia nos acontecimentos da História

Poder-se-ia fazer uma História que procurasse distinguir os aspectos “régios”, “proféticos” e “sacerdotais” presentes em todo exercício de poder de alguém e na história de alguém ao longo da vida. Assim, todos os acontecimentos históricos dariam glória a Nosso Senhor Jesus Cristo enquanto Rei, Profeta e Sacerdote, na medida em que, nesses acontecimentos, esses aspectos fossem mais salientes.

Então, por exemplo, a batalha de Lepanto não é uma glorificação da realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo, no que ela tem de mais quintessenciado, que é a realeza de Nossa Senhora? A meu ver, pode-se e deve-se achar isso.

Considerados sob este prisma, os acontecimentos da História, à medida que se desenrolassem, glorificariam a Nosso Senhor Jesus Cristo, à Santíssima Trindade por meio de Nossa Senhora, pois todas as graças e favores espargidos ao longo da História por Deus vieram porque Ela pediu. Compreende-se assim a onipotência suplicante d’Ela, conseguindo que a roda da História se movesse no sentido da glória de Deus.

Tudo isso ponderado, no Juízo Final reluziriam sucessivamente essas três luzes com aclamações e esplendores em que, nunca deixando de brilhar, cintilassem ora mais, ora menos, considerando a História do conjunto da humanidade. Então, diante de tal acontecimento preponderantemente régio, sacerdotal ou profético, ora as almas régias, ora as sacerdotais, ora as proféticas clamariam de um modo especial e dariam à Santíssima Trindade, ao Verbo Encarnado, a Nossa Senhora uma glória especial àquele título.

A instituição da Igreja foi um ato de realeza do Redentor

Maria Santíssima teria, como ninguém, uma correlação com cada um desses três títulos, na devida proporção e de modo uniforme. Ela é “Regina Prophetarum” e a Co-Redentora do gênero humano.

Rei, Sacerdote e Profeta no Evangelho

Constituiria uma belíssima leitura do Evangelho considerar, nas várias atitudes de Nosso Senhor, se Ele está agindo como Rei, como Profeta ou como Sacerdote. E, tomando a figura do Santo Sudário, imaginá-la animada, falando e exprimindo-se conforme as diversas cenas evangélicas.

Vemos, então, que o conceito de realeza, sendo a d’Ele, toma uma amplitude diversa da que nossa inteligência humana seria levada a conceber. Desde logo os limites se rasgam. Por exemplo, o poder que Ele tinha de fazer milagres, creio que Ele o exercia como Rei: mandar aplacar a tempestade, expulsar os vendilhões do Templo são caracteristicamente atos de realeza.

Também quando Ele instituiu a Igreja foi um ato de realeza. Porque é próprio ao rei fazer uma instituição. De algum modo a realeza antecede ao reino, o rei funda o reino. Nosso Senhor Jesus Cristo, fundando a Igreja, num sentido mais especial, funda o Reino d’Ele. Então: “Tu és Pedro e sobre esta pedra… Eu te darei as chaves do Reino do Céu…” (cf. Mt 16, 18-19), tem uma majestade!

Coroado de espinhos, Ele era Rei. O Rei que reina do fundo do infortúnio.

Entretanto, notem que coisa bonita: durante toda a Paixão, Ele fez, ao mesmo tempo, o papel de Rei, de Sacerdote e de Profeta. Porque Nosso Senhor profetizou durante toda a Paixão a vitória d’Ele.

A divina altivez, uma das notas da presença d’Ele durante toda a Paixão, é a profecia da vitória. Ele, como Rei, coroado de espinhos, entretanto sabia muito bem que have-ria um momento em que o portador da mais alta coroa da Terra, em certo sentido, a da França, faria uma cape-la para conter um espinho da Coroa d’Ele. Apesar daqueles verdugos es-tarem caçoando, havia n’Ele a segurança do Profeta. Quando Ele disse “Destruí este templo e Eu o reconstruirei em três dias” (Jo 2, 19), falava de Si mesmo como templo, e que ressuscitaria ao cabo de três dias. Entra aí o Sacerdote, em termos magníficos, falando de Si mesmo como se fosse um templo: Pontífice e Vítima. Porque Ele como Vítima é Ele como Sacerdote. Quer dizer, as coisas se entrecruzaram.

Nosso Senhor, com uma vara na mão, o cetro de irrisão da realeza, e a túnica de bobo, sabendo, entretanto, que todos os doutores iriam analisar ponto por ponto o que Ele tinha dito e encontrariam abismos de sabedoria onde aqueles boçais estavam fazendo o que estavam fazendo. É um profetismo de sabedoria.

Nenhum rei ousaria empunhar essa cana! Vou dizer mais: nenhum Papa ousaria empunhá-la. No máximo consideraria uma glória imensa possuir um fragmentozinho dessa cana.

No total, Ele é que foi Rei! E sabia que aquilo proclamava a grandeza d’Ele. Quer dizer, era Profeta, um Rei que profetizava, e que Se oferecia com Vítima. Ele era, pois, na Paixão, o Rei, o Profeta e o Sacerdote. É uma verdadeira beleza!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/11/1982)

Nosso Senhor Jesus Cristo deve reinar efetivamente sobre nós

Celebrar a Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo é festejar seu poder sobre nós. E, implicitamente, nossa obediência em relação a Ele.
Há exatamente 70 anos, Dr. Plinio lembrava o profundo significado da Solenidade de Cristo Rei.

 

Neste domingo em que a Santa Igreja de Deus celebra a Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo, encher-se-ão, no mundo inteiro, os templos católicos com uma multidão piedosa que irá depositar aos pés dos altares suas súplicas e suas orações. Contemplando em espírito essa imensa multidão, composta de pessoas oriundas de todas as raças e de todos os pontos do globo, tão numerosa que, segundo a previsão do Apocalipse, “ninguém a pode recensear”, um pensamento se apodera de mim. E ao mesmo tempo eu experimento o desejo imperioso de o comunicar aos meus leitores.

Ai daqueles que, por covardia ou egoísmo, calaram os bons conselhos que poderiam ter dado

Ser-me-ia, sem dúvida, muito mais grato e mais fácil cingir-me exclusivamente a considerações de ordem geral sobre a Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tenho, porém, a certeza de que tais considerações outros as farão. Mas o pensamento que está em mim, posso eu porventura ter a certeza de que todos os demais o tiveram, e de que em hipótese afirmativa o externarão? Uma dolorosa negativa me responde a esta pergunta. E, por isto, deixando a outros uma tarefa, aliás, incontestavelmente indispensável e fundamental, vou fazer a tarefa mais ingrata, mais obscura, mais desagradável, porém mais necessária: a de dizer uma verdade áspera e dolorosa, neste grande dia de festa.

Os bons pensamentos têm isto de característico: quando aproveitados, servem de remédio, tanto a nós mesmos quanto ao próximo. Quando, porém, nós os rejeitamos em nossa vida interior, ou os calamos em nossas relações com o próximo, eles se transformam, segundo São Paulo, em carvões ardentes que nos causticam e calcinam a alma. Ai dos que receberam e, por egoísmo ou covardia, não atenderam aos bons conselhos! Ai também dos que, por covardia ou egoísmo, calaram os bons conselhos que eles poderiam ter dado! Estes conselhos salutares, que eles não externaram, queimá-los-ão a eles próprios pelo interior, como brasas ardentes. E no dia do juízo serão levados à conta de talentos inaproveitados.

Aí vão minhas reflexões, portanto…

Quantos procuram implantar o Reino de Cristo no mundo, esquecidos de que devem começar por si mesmos…

Quando pronunciou, em Lisieux, sua magistral alocução, o então Cardeal Pacelli, já predestinado pelo Espírito Santo a reger futuramente a Igreja de Deus, fez uma queixa amarga, que nos cabe hoje recordar. Disse ele que entre os muitos homens que desobedecem hoje às palavras dos Pontífices, há uma categoria que causa especial mágoa ao Papa. Não se trata dos que não têm Fé, e nem dos que, tendo uma Fé morta e inoperante, não procuram ouvir o que o Papa lhes diz. Os que mais fazem sofrer o Papa — e este é o ponto que nos interessa — são os que, aos pés do púlpito, em atitude externa correta e reverente, ouvem a palavra do Vigário de Cristo comunicada pela Hierarquia Eclesiástica… mas não a compreendem; se a compreendem não a amam, e se a amam platonicamente não lhe dão execução!

Assim, no dia de hoje, quantos e quantos católicos, elevados pelo Batismo à dignidade de cidadãos do Reino de Deus, nem sequer cumprirão o preceito dominical! Quantos outros católicos, ainda, indo à igreja, ouvirão algum sermão sobre a Realeza de Jesus Cristo, sem saber, entretanto, e sem procurar saber em que sentido se deve atribuir a esta tão clara e tão litúrgica festa! Quantos católicos, finalmente, acompanhando até o próprio texto da Liturgia Sagrada, lerão as maravilhosas lições que ela contém sobre a Realeza de Jesus Cristo e não a compreenderão! Quantos os católicos que procuram implantar o Reino de Cristo no mundo inteiro, esquecidos ou ignorantes de que devem começar por implantar dentro de si mesmos! E quantos outros supõem que podem implantar realmente dentro de si o Reino de Cristo, sem sentir um desejo ardente e devorador de o implantar no mundo inteiro! Em outros termos, não são tais católicos do mesmo jaez daqueles que ouvem corretamente… porém, só com ouvidos do corpo e não com os da alma, o que lhes diz a Igreja pela voz dos Pontífices?

A doutrina da Realeza de Jesus Cristo está intimamente ligada à belíssima e piedosíssima prática da entronização do Sagrado Coração de Jesus nos lares. Se se entroniza a imagem do Sagrado Coração de Jesus no lugar mais rico e mais nobre do lar, é exatamente porque se reconhece que Ele é Rei. Entretanto, quanto lar há por aí, em que a imagem está entronizada na sala, mas em que Cristo não está entronizado nos corações!

Evidentemente, não quero exagerar a tristeza, já de per si tão grande, deste quadro, cometendo a injustiça de desprezar o que há de belo e de bom apesar destas lacunas. Qualquer ato de piedade, qualquer atitude de reverência para com a Igreja de Deus, por mais superficial e insignificante que seja, deve ser por nós, católicos, apreciado, amado e estimulado com um zelo imenso, reflexo direto de nosso amor a Deus. Longe de nós, pois, um pessimismo de sabor farisaico, que nos fizesse contestar todo e qualquer valor a estas práticas de piedade, desde que sejam sinceras, por mais que a frieza ou a ignorância lhes toldem o brilho sobrenatural.

Entretanto, feita esta reserva, a verdade aí está: a queixa de São João ainda hoje é muitas vezes procedente: “in propria venit et sui eum non receperunt”…

Jesus Cristo, o Rei por excelência

Não seria, aliás, difícil conhecer a doutrina da Igreja sobre a Realeza de Jesus Cristo.

Na sua infinita misericórdia, Deus Se dignou de comparar o amor infinito com que nos ama ao amor que nos têm nossos pais. Evidentemente, não quer isto dizer que Ele tenha reduzido na comparação as insondáveis dimensões de seu amor, para as amesquinhar até as proporções exíguas dos afetos de que os homens são capazes. Pelo contrário, se Ele se serviu dessa comparação do amor paterno, foi apenas para nos dar a entender, de longe, o quanto Ele nos ama. Se dermos à palavra “pai” o sentido que ela tem na ordem natural, Deus não é apenas nosso Pai, mas muito mais do que isto, por ser nosso Criador. Porém, como a função de pai, na natureza, não é senão de coadjuvar a Deus na obra da Criação, se alguém merece na realidade o nome de Pai, é Deus. E nosso pai, segundo a natureza, outra coisa não é senão o depositário de uma parcela da paternidade que Deus tem sobre nós.

O mesmo se dá com a Realeza de Jesus Cristo. Para nos fazer compreender a autoridade absoluta que, como Deus, Ele tem sobre nós, Jesus Cristo dignou-Se de Se comparar com um Rei. Entretanto, como é por Ele que reinam os reis — e a autoridade dos reis só é autêntica por provir d’Ele — na realidade, o único Rei, Rei por excelência, é Ele. E os reis ou chefes de Estado não são senão seus humildes acólitos, dos quais Ele se digna servir-Se na obra da direção do mundo. Cristo é Rei por ser Deus. Chamando-O de Rei, queremos simplesmente afirmar a Onipotência divina, e nossa obrigação de Lhe obedecer.

A um rei se deve obediência!

Obediência! Eis aí um dos conceitos contidos essencialmente no conceito da Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo. Cristo é Rei, e a um Rei se deve obediência. Festejar a Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo é festejar Seu poder sobre nós. E, implicitamente, nossa obediência em relação a Ele.

Como é que se obedece a um rei? A resposta é simples: conhecendo-lhe as vontades e cumprindo-as com amorosa e pormenorizada exatidão.

Assim, pois, o único modo de obedecermos a Cristo Rei é conhecer sua vontade e segui-la. Dessa noção tão clara, tão simples, tão luminosa, um programa de vida, também ele claro, luminoso e simples, se segue.

Para conhecer a vontade de Cristo Rei, devemos conhecer o Catecismo. Porque é ali, através do estudo dos Mandamentos — estudo este que só será completo com o estudo de toda a Doutrina Católica — que conhecemos a vontade de Deus. E para seguir esta vontade, devemos pedir a graça de Deus pela oração, pela prática dos Sacramentos e por nossas boas obras; finalmente, pela vida interior, isto é, pela leitura espiritual, pela meditação. E pela vida vivida exclusivamente à luz do Catecismo, seguiremos a vontade de Deus.

Disse Nosso Senhor que o Reino de Deus está dentro de nós mesmos. Ora, este pequeno reino, pequeno como extensão, mas infinito como valor, porque custou o Sangue de Cristo, cada um de nós o deve conquistar para Nosso Senhor, destruindo tudo aquilo que, dentro de nós, se oponha ao cumprimento de sua lei.

Finalmente, as leis de Cristo se aplicam não apenas a um indivíduo em particular, mas aos povos e nações. Que os povos conheçam e pratiquem na sua organização doméstica, social e política, as Encíclicas — que são a expressão da própria vontade de Deus —, e Jesus Cristo será Rei.

Em outros termos, sejamos bons católicos; sendo-o, seremos necessariamente apóstolos; e sendo apóstolos, seremos necessariamente soldados de Cristo Rei.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de “O Legionário”, Nº 372, de 29 de outubro de 1939)

 

Cristandade, o verdadeiro reinado de Cristo

Percorrendo a vossa cidade, e examinando os vossos monumentos sagrados, até encontrei um altar com esta inscrição: Ao Deus desconhecido. Pois bem! O que venerais sem conhecer é que eu vos anuncio” (Atos 17, 22). Isto disse São Paulo no Areópago de Atenas, há mais de dois mil anos.

Os atenienses nem sequer conheciam a Deus, porém o adoravam. Por quê? “Anima humana, naturaliter christiana”, já dizia Tertuliano.

Se a alma humana é naturalmente cristã, seu autêntico gáudio está onde Cristo verdadeiramente se encontra, ou seja, na Igreja Católica. Constituída por membros vivos que compõem o Corpo Místico de Cristo, a Igreja transmite aos fiéis a própria imagem do Salvador.

Nas seguintes considerações, Dr. Plinio nos apresenta a intrínseca ligação que há entre a Igreja e a Cristandade:

“Lendo a História Sagrada explicitei que Nosso Senhor Jesus Cristo era a própria perfeição, e que as coisas só deveriam ser amadas na medida em que se parecessem com Ele.

“Era preciso ser conforme a Ele, e, portanto, conforme a Igreja instituída por Ele. E, por causa disso, era necessário amar as pessoas que tinham o espírito religioso, bom, verdadeiro.

“Em certo momento, pela natural maturação do espírito humano, dei-me conta de que havia nações, veios, correntes de opinião mais católicos e menos católicos. E que a esse mundo formado segundo a Religião Católica, se dava o nome de Cristandade.

“O nome me pareceu, no seu próprio som, augusto e majestoso, deleitável no mais alto ponto. Cristandade, mas que expressão bonita! Como é que uma simples palavra podia ter tanta majestade, tanta doçura? Cristandade!

“O que é a Cristandade? É, afinal de contas, a ordem de Cristo, quer dizer, a boa ordenação das coisas segundo Jesus Cristo, no Reino de Cristo.

“O que é o Reino de Cristo?

“É o conjunto das nações, que forma uma família em torno da Igreja e que vive na paz de Cristo, sob o Reino de Cristo; essa é a Cristandade.

“A Cristandade é a família das nações que vivem no Reino de Cristo. Esse conjunto de nações, como a nação é uma realidade temporal, existe nesse mundo, mas não existirá no outro mundo. No Céu não haverá nações, elas todas se dissolvem na realidade celeste.

“Qual é a relação entre a Cristandade e a Igreja? A Igreja é a alma da Cristandade. Não é possível que uma nação pertença à Cristandade sem pertencer à Igreja. A nação que se afastar parcialmente da Igreja será um membro doente da Cristandade. A Igreja é a sociedade de todos os indivíduos que acreditam na verdadeira Fé, estão sob a autoridade dos legítimos pastores e vivem segundo a Lei de Deus.

“Os homens que constituem a Igreja, vistos no plano terreno, constituem a Cristandade.

“Poderíamos dizer que — todo exemplo claudica — Igreja sem Cristandade é como uma alma sem corpo; mas a Cristandade sem a Igreja é como um corpo sem alma. Quer dizer, a Igreja faz mais falta à Cristandade do que a Cristandade faz falta à Igreja. Porque uma alma sem corpo vive; um corpo sem alma é um cadáver, apodrece.”

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/8/1983)

Reflexões em torno da Festa de Cristo Rei

Aproveitando a ocasião de uma Festa de Cristo Rei, Dr. Plinio comenta, enlevado, os diversos reluzimentos da infinita majestade de Nosso Senhor Jesus Cristo ao longo de sua passagem neste mundo. Majestade coroada nas glórias da Ressurreição e perpetuada nos grandiosos acontecimentos da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Ao considerarmos a celebração da realeza de Cristo e, pois, da majestade do Filho de Deus, creio ser conveniente voltarmos nossos olhos para um aspecto pouco ressaltado quando se aborda esse tema.

Risco, dor e dever são inerentes à majestade

Majestade, do latim “major stare”, significa estar acima, no píncaro. Devemos então começar por compreender que essa condição de supremacia envolve muita reflexão. Não uma reflexão qualquer, mas inspirada, iluminada e elevada pela graça. Esse teor de pensamento patenteia, à pessoa que se encontra nessa posição suprema, o dever, o risco e a dor inerentes à sua condição. Porque possuir majestade consiste também — e não na menor medida — em aceitar a dor, o risco, as obrigações com todos os seus ônus.

Alguns espíritos contemporâneos, superficiais e avessos à reflexão, amigos das facilidades e inimigos da dor e do sofrimento, talvez se sintam contrariados com essa noção de majestade. Tal recusa, porém, não torna essa noção perempta, porque ela permanece invariável: se alguém se afasta dela, não é o conceito que decai, e sim esse alguém. Mais ou menos como um navio que afunda e, por isso, se distancia da luz do sol. Não é o astro que soçobra e desaparece, mas o navio. O sol continua a brilhar no alto dos céus.

A majestade autêntica provém da Fé

As grandes verdades e normas, os grandes princípios e planos, as grandes máximas e execuções são os aspectos por onde um homem, mesmo de condição comum, pode ter majestade. Portanto, essa majestade todo indivíduo deve desejar, sem nenhum prejuízo para a modéstia e a virtude da humildade que ele igualmente deve praticar.

Pois, entendamos, a majestade não é uma faceirice como uma gravata ou um atavio que vestimos para mostrar aos outros: “Veja, chegou-me de Paris”. Não, a autêntica majestade não é enfeite, e nunca ensoberbece aquele que a possui. Pelo contrário, o indivíduo que tem majestade se sente sempre pequeno diante dela, compreende que, por mais majestoso que seja, como simples indivíduo não é diferente de todo mortal. A majestade lhe vem da fé, da influência da Santa Igreja à qual ele se dispõe a aceitar. Se for honesto consigo mesmo, ele se perguntará sempre se levou sua própria majestade à altura para a qual foi criado.

O Rei por excelência, crucificado e rejeitado

Tocamos, então, no exemplo sublime que ilustra os conceitos acima considerados: Nosso Senhor Jesus Cristo.

Pensemos na majestade do Homem-Deus no Calvário, sentenciado, condenado e pregado na cruz. Sobre Ele recaíram as piores execrações possíveis. Era o rejeitado por excelência, como nenhum outro ser humano fora nem será. Durante três anos de sua vida pública, Nosso Senhor não fez senão procurar atrair os outros, manifestando-lhes uma sabedoria, uma misericórdia e uma bondade infinitas. Seu império sobre as forças da natureza tornou-se patente em mais de uma ocasião. Um poder capaz de levantar um morto sepultado há quatro dias e que já cheirava mal, com uma simples ordem: “Lázaro, sai para fora!”

As tempestades agitam as águas do mar e, a uma palavra d’Ele, tudo serena. Falta vinho, Ele manda encher algumas bilhas de água e, quando o mordomo se põe a servir, espanta-se com a qualidade do vinho que é oferecido aos convidados das bodas de Caná. A multidão tem fome? Ele multiplica os pães e os peixes e ordena aos Apóstolos saciar aquela gente. A comida se verifica tanta que, com os restos, ainda enchem doze canastras.

Por onde Nosso Senhor passava, maravilhas se sucediam. Poder, sabedoria, bondade e ternura insondáveis. Seu olhar, sua fisionomia, suas mãos e sua presença divinas estavam repletos de dons ofertados aos homens. O povo O proclama rei para em seguida rejeitá-Lo em favor do facínora Barrabás.

Rejeição completa, na qual Nosso Senhor nada perdeu de sua majestade infinita, de sua distinção incomparável. Qualquer um que, de olhar límpido e isento de preconceitos, O visse pregado na cruz, ajoelhar-se-ia e diria: “Meu Rei!”

Não houve nem haverá na História um monarca que tenha, sequer de longe, manifestado semelhante majestade.

Grandeza régia do cadáver divino

Nosso Senhor morre, alguns discípulos mais corajosos retiram o corpo d’Ele da cruz. Ao longo dos séculos, os pintores têm se empenhado em salientar um aspecto verdadeiro da descida da cruz, isto é, o corpo santíssimo de Jesus sujeito às leis da gravidade, sem vida, pendendo para onde o inclinam. Retirado do madeiro, o depositam no colo virginal de Maria Santíssima e o preparam para ser deixado na sepultura. Igualmente se esforçam os artistas em retratar a dor da Mãe e a inanição do Filho.

Entretanto, se me fosse dado sugerir algo a um pintor ou escultor, pediria que encontrasse um meio de apresentar, na simplicidade e misérias extremas dessa Mãe e desse Filho, a sublime majestade de ambos: a régia grandeza do cadáver divino, e como Maria se sentia dignificada com aquele tesouro depositado no seu colo.

Incomparável majestade da Ressurreição

Pensemos, em seguida, na Ressurreição e naquilo que poderíamos chamar de “re-esplendor” da majestade de Nosso Senhor Jesus Cristo. No interior do jazigo, escuridão profunda. Mais majestoso do que todo o céu e do que toda a terra, ali repousa o corpo exangue do Redentor. Em determinado momento — imaginemos — a alma santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo a ele retorna e o revivifica, vencendo a morte.

Se um relâmpago, mera descarga elétrica, pode ser majestoso; se o sol, cujo fulgor é produto de gases em combustão, tantas vezes nos parece envolto em majestade, que dizer da apoteose que terá sido a alma de Cristo voltando ao seu corpo?

O tema é por demais elevado para nossas cogitações, e creio que pincel de artista algum seria capaz de representá-lo de maneira conveniente.

A pedra do sepulcro se move e o Senhor Glorioso abandona as trevas do túmulo para reaparecer na luz da vida. É a primeira festa de Páscoa da História da Igreja e que se repetirá, todos os anos, até o fim dos tempos. Majestade!

Pentecostes e as catacumbas: exemplos perfeitos de majestade

Poderíamos ainda evocar outras cenas que se seguiram à gloriosa Ressurreição do Rei Divino, as quais espargem reflexos de sua infinita majestade.

Cenáculo. Nossa Senhora e os Apóstolos estão ali reunidos, recolhidos em oração e recordações dos ensinamentos do Mestre. Sentem que algo de extraordinário está por acontecer. Seus corações se inflamam a cada nova oração, a cada nova lembrança das palavras de Jesus. O ambiente se reveste de grandeza, e os discípulos se tomam de um encantamento crescente pela pessoa de Maria Santíssima, vendo n’Ela a imagem do Filho. Tudo reluz.

Subitamente, quando pensam que atingiram o auge de suas cogitações, tudo ainda estava por vir: o Divino Espírito Santo aparece em forma de línguas de fogo e deita sobre cada um deles a plenitude de seus dons. Majestade!

Muda a cena. Correm os séculos, e estamos nas catacumbas de Roma. Labirintos escavados no subsolo da velha urbe. Terra onde os cristãos depositam os corpos inanimados dos seus mártires. Naqueles túneis vivem e transitam pessoas humildes e ilustres, ricos e estropiados, católicos de todas as condições que iam assistir a Missa celebrada pelo sucessor de Pedro.

É uma noite de Natal, digamos. Noite comum para os romanos antigos, alguns dos quais se embriagavam em orgias; mas, lá embaixo, naquela cidade sob a cidade, entre paredes ornadas com pinturas primitivas que lembram cenas evangélicas, o Papa celebra o nascimento e a glória de Cristo. Exemplos perfeitos de majestade.

Revestida de seu manto majestoso, a Igreja atravessa os séculos

É a majestade da Fé, a majestade do sobrenatural professada até nas condições hostis e adversas das catacumbas, desafiando o martírio e a morte, enfrentando o império mais poderoso da Terra, admirando a pessoa do vigário daquele Cristo que adoram, com uma reverência tão grande que sua admiração ilumina aquele subterrâneo inteiro.

Majestade das almas, e, mais ainda, majestade de Deus que de algum modo se comunica àqueles primeiros cristãos e brilha nos seus olhares e na suas demonstrações de Fé.

Majestade primitiva da Igreja que continha em germe todas as majestades que ela manifestaria ao longo dos séculos, nas suas liturgias e na sua história, como uma rainha revestida de um imenso e precioso manto de beleza.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 27/11/1982)

Santa Catarina de Alexandria

Na antiga Alexandria, num período em que os cristãos se deixavam tomar de tibieza e excessiva acomodação diante da idolatria pagã, Deus suscitou Santa Catarina para que — segundo narra uma vidente — com sua luz interior e seu zelo inflamado, reanimasse neles o fervor católico. As palavras, o exemplo e o glorioso martírio de Santa Catarina converteram a muitos que, talvez, de outro modo não se teriam salvado.

 

Plinio Corrêa de Oliveira