Bem-aventurados os que esperaram

Devemos viver para o Reino de Maria e os grandes lances da nossa história. Como esses acontecimentos demoram, a atitude perfeita é a daquele que diante de cada notícia boa estremece, na esperança de que tudo se realizará. Entretanto, se não iniciam já, espera sempre alegre, pronto, disposto, chegando à conclusão: “Deus virá a qualquer momento! E quando Ele vier, encontrará a minha alma preparada!”

 

O  mundo de hoje é muito habituado ao combate contra a espera, e até certo ponto se compreende porque a espera parece engasgar o curso natural das coisas. Por causa disso, a meta da mecanização em nossos dias é apressar todas as coisas e suprimir todas as esperas.

A espera é uma preparação e uma maturação que nos faz dignos de receber algo desejado longamente

Embora essa aversão à espera tenha algo de natural, possui também algo de excessivo, porque no mundo contemporâneo não se compreende o papel da espera na maturação e na formação do homem.

Por exemplo, hoje se toma um avião e, saindo de São Paulo, chega-se à Europa em menos de doze horas de voo. Portanto, em poucas horas transpõe-se o Oceano Atlântico e salta-se para um outro mundo, outra vida, deixando para trás a América.

Antigamente, tomava-se um navio para a Europa, e a viagem demorava quinze dias, durante os quais a pessoa ia preparando o espírito para entrar no país para onde rumava. Essa demora tinha preparado uma maturação. Por isso, chegava-se à Europa maduro. Hoje não: é-se ejetado de dentro do avião e já se sai correndo para outro lugar.

Por vezes, a espera é uma preparação e uma maturação que resulta do desejar longamente uma coisa e que nos torna dignos de recebê-la.

Vemos na Escritura longas esperas e, às vezes, contra o impossível. Por exemplo, segundo uma bela tradição, São Joaquim e Santa Ana, os pais de Nossa Senhora, eram muito velhos, estavam além da idade em que um casal tem filhos. Foi nessa ocasião que milagrosamente nasceu Nossa Senhora.

Ora, algo lhes dizia em seu íntimo que seriam antepassados do Messias, e passaram todo esse tempo esperando. Mas isso é uma coisa extraordinária, porque eles se prepararam, durante a vida inteira, para receber a Mãe do Messias. Teriam sido muito menos preparados para isto se, assim que eles se casassem, a Mãe do Messias, ao cabo de nove meses, nascesse.

Nosso Senhor teve esperas cheias de decepções

A espera tem um grande sentido. Por isso encontramos no Antigo e no Novo Testamentos manifestações de espera assombrosas.

Por exemplo, Nosso Senhor preparou os Apóstolos para serem o que foram. Vejam, entretanto, no que deu o plano do Divino Mestre: de doze Apóstolos, um se torna traidor; os outros onze fogem no Horto das Oliveiras; Ele fica sozinho. Um Apóstolo ainda O renega, São Pedro, e logo de uma vez aquele que deveria ser o chefe da Igreja! Quer dizer, tudo dá errado; é uma espera cheia de decepções, de situações desencontradas.

Pensar que daqueles doze presentes na Ceia mais memorável da História, um trairia; outro, São João, por quem Nosso Senhor tinha uma particular preferência, que encostou a cabeça sobre seu divino peito e ouviu a pulsação do Sagrado Coração de Jesus, esse fugiria como os demais. Quem haveria de imaginar uma coisa dessas!

Nosso Senhor ressuscita, convoca os Apóstolos, eles se convertem, está tudo direito, começam o apostolado pelo mundo.

Chega um Apóstolo que era um perseguidor, um fariseu – quanto Jesus falou contra os fariseus! – que se converteu e, por assim dizer, conquistou para a Fé toda a bacia do Mediterrâneo.

No meio de tudo isso, quanta espera e até quanta decepção teve o Redentor! Mas na ponta de tanta decepção, aguentada com desejo e com a certeza de que viria a conquista do mundo, esta acabou vindo.

A espera sem agitação favorece o pensamento

A beleza disso se apresenta por si mesma, é uma verdadeira maravilha. Deus quer daqueles que desejam alguma coisa d’Ele, que esperem longamente. E isso não está de acordo com os hábitos modernos.

Hoje em dia procura-se eliminar toda espécie de espera; mas por isso também toda forma de maturidade, de reflexão, de pensamento, de meditação está eliminada. Em geral, os países onde mais se corre e menos se espera são aqueles onde menos se pensa.

Considerem os grandes pensadores de outrora: Aristóteles, Platão, na Antiguidade; ou do mundo romano: Santo Agostinho, Santo Ambrósio; ou da Idade Média: São Tomás, São Boaventura, etc.

Pode-se imaginar São Tomás de Aquino fazendo uma tournée de conferências na América do Sul, “pingando” em um avião de capital em capital? Isso não “engarrafaria” o pensamento dele?

Pelo contrário, se São Tomás se deslocasse lentamente sentado num carro puxado por cavalos, ou ele mesmo montado num cavalo, naqueles longos intervalos ele não pensaria, não refletiria? Evidentemente sim. É a vantagem da espera.

Beleza própria da espera

Quando se deseja uma coisa boa, a espera tem uma beleza própria. Suponhamos que Cristóvão Colombo, em sua navegação, não tivesse sofrido aquela espera medonha para chegar até à América, mas, por essas ou aquelas razões, ele tivesse de navegar doze dias, ao cabo dos quais chegasse a uma ilha do Caribe e, de lá, começasse, com seus subordinados, sem muito esforço, a ocupação do novo continente. Uma viagem fácil, simples, rápida, eles chegaram e tomaram posse e começaram a desbravar as novas terras. Não perderia muito?

Mas aquela navegação que não acaba mais, e os marujos se revoltando contra ele… Afinal, aparecem boiando pelo mar pedaços de vegetação, indicando haver terra próxima. Então alguém anuncia: “Terra à vista! Olha ali a vegetação!” Nesse momento, todos se reconciliam.

É muito mais bonito porque não só esperaram, mas esperaram contra toda a esperança. Batalharam para conseguir, sofreram, correram riscos, na incerteza de que, talvez, nunca chegariam a nada. Quem poderia garantir que esse mar não era uma espécie de deserto: gira, gira, gira e não encontra nunca mais terra alguma. Então estavam perdidos, haveria de chegar um momento em que eles não tinham mais água para beber. A morte os esperava. Uma morte de esmeralda e de anil, mas a morte. Entretanto, vão para a frente, vendo como Colombo continuava a esperar.

O lindíssimo episódio de Abraão com Isaac

Porém ainda mais bonita é a espera quando ela culmina em um milagre. Porque no milagre vê-se a mão de Deus, de Nossa Senhora que, por assim dizer, vara as nuvens e aparece dando ao homem aquilo que ele tanto desejou.

É por isso mesmo que muitas vezes vemos, no Antigo Testamento, Deus aparecer, prometer e depois cumprir. Mas, às vezes, há pelo meio toda espécie de dificuldades.

Pensemos no lindíssimo episódio de Abraão com Isaac. Abraão era velho, mas Deus lhe prometera uma numerosa descendência. Afinal, depois de esperar muito, acabou tendo um filho.

Nasce um menino e, quando este fica mocinho, Deus aparece a Abraão e lhe diz:

– Este filho que te prometi, quero que tu o mates em honra a Mim.

Abraão poderia dizer:

– Mas, Senhor, e a promessa? Vós, então, prometeis um filho para tirá-lo depois? E esse menino morre sem ter descendentes! Vós não estais caçoando de mim? Não estais vos burlando da esperança que fizestes nascer no meu débil coração de homem, ó Deus?!

Nada! Ele leva o menino até o alto do monte, disposto a matar o filho da promessa. Com a ajuda da própria vítima ele constrói o altar onde ela deveria ser morta. Ainda enquanto caminhavam para o local do sacrifício, Isaac pergunta:

– Meu pai, temos o fogo e a lenha, mas onde está a vítima para o holocausto?

E Abraão responde ao menino:

– Deus providenciará a vítima para o holocausto, meu filho.

Concluído o altar, Abraão talvez tenha dito a Isaac:

– Deite-se em cima do altar.

Como a dizer: “A vítima é você.”

O menino, dócil como o pai, deita-se. O pai toma a faca e vai brandir um golpe para matar o menino e, no último momento, quando ele ia despencar o ferro no peito do filho, aparece um Anjo e diz:

– Abraão, Abraão! Pare! Deus estava te provando, queria ver até onde vai a tua obediência. Em atenção a tua esperança e a tua disciplina, os teus filhos serão mais numerosos do que as areias do mar e as estrelas do céu (Cf. Gn 22, 2-18).

Abraão não podia imaginar o acontecimento infinitamente maior que se daria: um de seus descendentes seria a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnada! O Verbo de Deus se fez carne e habitou entre nós (Jo 1, 14), quer dizer, Nosso Senhor Jesus Cristo. Deus se encarna na raça judaica, dando, portanto, a Abraão que era o primeiro, o depositário da promessa ao povo hebreu, uma plenitude de recompensa incomparável.

É verdade que a descendência dele seria mais numerosa que as areias do mar e as estrelas do céu; mas, sobretudo, qualitativamente seria maior, pois nela nasceria o Filho de Deus.

Diante da demora, devemos estar sempre alegres, prontos e dispostos

Entretanto, no momento em que nasce o Messias o povo está de tal maneira decadente que é o próprio povo eleito que mata o Messias esperado. Pode haver uma coisa mais terrível do que esta? Cai, então, sobre o povo uma terrível maldição, a maior da História.

Considerem, então, a esperança: Deus prometeu que, por seu amor ao povo de Israel, no fim dos tempos esse povo vai se converter. A história das relações de Deus com o povo judaico se abre por uma prova tremenda e termina com uma reconciliação dulcíssima. Esperar, esperar e super esperar acaba dando certo!

Talvez valesse a pena, em alguma ocasião, contarmos a história de nossas esperas e esperanças. Em face da espera, vemos dar-se uma seleção: há quem procede mal e aqueles que procedem bem.

Os que procedem mal são, por sua vez, de duas espécies: uns se desinteressam, desesperam e começam a se preocupar com as coisas do mundo. Em vez de viverem para o Reino de Maria que virá e para os grandes lances da nossa história, como esses acontecimentos demoram, eles se desesperam e concluem: “Não, isso não dá certo!” Ficam, então, agressivos, briguentos, intratáveis e acabam se lançando, por exemplo, atrás do dinheiro e de tantas outras coisas, procurando engrandecer-se nas vias deste mundo.

Outros tomam um rumo diferente. Esperam durante algum tempo, mas como a esperança não se realiza logo, eles vão entibiando nas vias da vocação, caem numa modorra que os deixam completamente indiferentes diante das maiores maravilhas.

Qual é a atitude perfeita? É a daquele que com cada notícia boa estremece: “Quem sabe se agora vai começar…” E se não inicia já, espera para amanhã, para depois de amanhã. Sempre alegre, sempre pronto, sempre disposto, chegando à conclusão:

“Deus virá a qualquer momento! E quando Ele vier, encontrará a minha alma pronta! Eu não me cansei de esperá-Lo porque Ele é infinito e perfeito. Ora, o infinito e o perfeito se esperam, por assim dizer, infinitamente para esperá-los perfeitamente. Bendito o dia em que a palavra de Deus, confirmada, baixar sobre nós. Vamos para a frente! Nesse dia, poderemos dizer: Bem-aventurados os que esperaram; deles foi a promessa, deles é a vitória!”

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/7/1988)

Revista Dr Plinio 248 (Novembro de 2018)

O Homem-Deus – II

Continuando seus comentários à divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Dr. Plinio salienta a extrema maldade daqueles que O supliciaram.

 

Dir-se-ia que vindo à Terra o Homem-Deus, diante de provas tão claras, de manifestações de uma superioridade divina a todo momento, o povo eleito — o qual sabia que o Salvador nasceria dele, e estava esperando-O — haveria de reconhecer o Messias, aclamá-Lo com glória e eleva-Lo ao píncaro do gênero humano. Se o povo judeu tivesse reconhecido o Messias, com a força de Nosso Senhor Jesus Cristo, romanos, gregos, persas, egípcios, nada significariam. Esse povo seria elevado a um cume extraordinário!

Aqui se inicia o mistério da maldade humana. Esse povo que existia para isso, gemia porque o Messias não vinha; quando Jesus apareceu uma facção do povo se pôs desde logo contra Ele. E se cindiu: uma fração pequena do povo começou a adorá-Lo, a partir dos pastores que estavam em Belém e tiveram o anúncio do nascimento de Nosso Senhor. Mas, de outro lado, a maior parte passou a persegui-Lo.

Logo depois do nascimento de Jesus, Herodes fez o cálculo infame: “Deve ter nascido o Messias, porque os reis magos o estão dizendo. Ele ameaça o meu trono. É o Salvador previsto pelos profetas. Eu estou acreditando, ou pelo menos achando tão provável que até fico amedrontado”. E, para gozar a vida e ter o prazer de ser rei, Herodes quis matar Nosso Senhor sem nem sequer O ter visto, só porque Ele estava no mundo! Mandou, então, eliminar os inocentes, para evitar que o Inocente por excelência vivesse.

Desígnios misteriosos de Deus, caminhos que se compreendem só posteriormente! São José, coarctado pela falta de bondade da população em Belém, que não quis receber a ele e a Nossa Senhora, levou a Santíssima Virgem para uma gruta, fora da cidade.

Quando Nosso Senhor inicia sua vida pública, fazendo inúmeros milagres, o povo se entusiasma etc., aquele cálculo de Herodes se repete nas classes que mais O deveriam aclamar, quer dizer, na sacerdotal e na classe alta política, as quais começam a ter medo: “Quem é este homem que está levando atrás de si tais multidões? Ele é perigoso para nós; de repente nosso poder fica reduzido a nada!” Inicia-se, então, uma espécie de guerra, a “psy-war”, com calúnias e perguntas embaraçosas.

Os fariseus e os saduceus mandam pessoas fazer perguntas a Jesus, que O deixem mal à vontade. Pobres coitados! Se uma formiga quisesse lutar contra um animal quimérico, tão pesado como um elefante e forte como um leão, ela estaria mais próxima de vencer do que qualquer homem disputando com Nosso Senhor Jesus Cristo!

Questões elaboradas nos laboratórios da maldade e da insinceridade, todas retorcidas, cheias de ciladas. Posta a pergunta, vinha a resposta, em geral simples, direta, pulverizadora e luminosa.

— De quem é essa efígie?

— É de César.

— Pois dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César.

Não há mais nada a dizer.

O Evangelho conta que se difundiram calúnias a respeito de Nosso Senhor: era glutão, mundano, ambicioso… Como poderia ser ambicioso Ele que era tudo? É mais ou menos imaginar que um leão quisesse fazer carreira, transformando-se na abelha-mestra de uma colmeia…

Disseram que Ele comia em casa de publicano, para bajular as pessoas que tinham dinheiro… Falaram até — suprema calúnia, supremo insulto contra a evidência — que Nosso Senhor tinha parte com o demônio. Logo Ele, que era direta e esplendorosamente o contrário do demônio; nem é tão exato dizer que Jesus era o oposto do demônio: o demônio era o contrário d’Ele!

Várias pistas da conjuração por excelência que operou o deicídio

Começa-se a criar uma onda contra Nosso Senhor, a qual leva, em primeiro lugar, os muito ruins, que eram uma minoria bem colocada, poderosa e influente.

A partir da tintura-mãe dessa maldade da minoria, a onda começou a crescer de “proche en proche”, de vizinhança em vizinhança, a tomar os ambiciosos, os que se vendiam, aqueles que não queriam o mal pelo mal, mas se amavam tanto que, colocados diante de Nosso Senhor Jesus Cristo, eram capazes de dizer: “Ele é tudo isto, mas ficarei popular, bem-visto, terei importância, se ajudar a calúnia. Portanto, para que os maus me batam as palmas, me glorifiquem, vou também, embora não tenha certeza, começar a falar mal de Jesus”.

Depois desses maus de segundo grau, outra zona moral do povo foi atingida: a dos moles. “Se eu disser o que penso, serei perseguido, e isso não quero. Embora eu verifique que contra Jesus esteja se fazendo uma injustiça abominável, uma ignomínia, uma infâmia, essas coisas são com Ele, não comigo! Quero levar vida fácil, agradável, de maneira que eu possa me instalar bem nesta Terra. Comprometo a minha carreira, tomando a defesa de Jesus. Logo, vou também falar mal d’Ele.”

“Falar mal é horrível. Vejo fulano, um “molóide” como eu — que não tem coragem de enfrentar os outros para não ser perseguido —, falar mal de Jesus. Mas eu sou um homem reto, e não farei isso. Simplesmente não falarei bem. E quando disserem d’Ele, diante de mim, as coisas mais inverossímeis, ficarei quieto.

“Não sou inimigo d’Ele; no fundo, gosto d’Ele, às vezes rezo para Jesus e Ele é tão bom que me atende. Razão a mais para eu não tomar o partido d’Ele. Se Jesus não me ajudasse, eu talvez tivesse vantagem de tomar sua defesa, porque Ele então me atenderia… Mas, uma vez que Ele me auxilia até quando não tomo o partido d’Ele, fico bem com uns e com Ele. Encontro aí o caminho bom para mim, onde me ponho.”

Em seguida, vem a coorte imensa dos voluntariamente imbecis: “Não tenho bastante capacidade intelectual para me situar diante desse problema. Se eu o visse com clareza, tomaria posição. Mas, Deus me deu uma inteligência pequena, não tenho muito jeito para resolver isto. De maneira que vou fechar os olhos e deixar correr o marfim”.

Essas várias zonas do povo foram sendo atingidas, estabelecendo-se em torno de Nosso Senhor o vazio.

A crise no Colégio Apostólico e a traição de Judas

A entrada d’Ele em Jerusalém, no Domingo de Ramos, foi uma manifestação de quanto o povo, apesar de tudo, O via e apreciava, mas não na medida do necessário, do justo. Aclamavam-No, é verdade, mas Ele merecia muito mais!

Fazem-Lhe uma meia festa. Por isso, em geral, as pinturas e gravuras de Nosso Senhor entrando em Jerusalém O apresentam com tristeza, pesar, e dirigindo um olhar quase severo para a multidão que O aplaudia. Para Ele o interior das almas não oferece segredo, e Jesus percebia a insuficiência, a precariedade daquela ovação de que Ele era objeto.

Humildemente sentado sobre um burrico, Ele atravessava em meio à multidão, chamando a todos, pela sua presença, a amarem a Deus. Porém, ao mesmo tempo, percebia as negações, as recusas, a frieza, a hipocrisia deste ou daquele ato de admiração, e sofria com isso.

Se fôssemos estudar todo o padecimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, e não só a Paixão, dir-se-ia que a partir da primeira ingratidão Ele começou a sofrer. Quando teria sido essa primeira ingratidão? Não se sabe. Ela veio aos tufos, em grande quantidade, no Domingo de Ramos. Se fosse só isso…

Aproximam-se as festas judaicas da Páscoa. Nosso Senhor, inteiramente fiel à Lei — Ele era, como Deus, o Legislador —, realiza a ceia na quinta-feira e está com seus apóstolos à mesa. Sabia que um deles, portanto dos mais chegados, O havia traído. Esse apóstolo, que estava em crise, era um homem que Ele tinha chamado. Quer dizer, pela graça Nosso Senhor atraiu Judas Iscariotes para junto d’Ele, mas provavelmente Judas correspondeu mal, desde o primeiro momento. E foi um apóstolo medíocre, que deu depois num apóstolo infame. Crise, crise…

Confiaram a esse homem a guarda do dinheiro para as esmolas e, conta-nos o Evangelho, ele era ladrão. Roubava da caixa comum para gastos consigo a fim de satisfazer sua ganância.

Se fosse só essa crise… Os apóstolos “fervorosos” lá se encontravam com o Redentor; é o banquete. Ele lava os pés dos apóstolos, perdoa-lhes os pecados.

A tristeza vinha tomando a alma de Nosso Senhor; em certo momento disse o Redentor que um deles haveria de traí-Lo. Ele foi tão bom, que não afirmou outra coisa: “E vós todos haveis de Me abandonar”.

Ele conhecia a traição, e também o abandono. Um deles, São João, colocou o ouvido sobre o peito de Jesus, em gesto de amizade e intimidade, e perguntou quem era o traidor. Cristo respondeu: “Aquele a quem Eu der o pão molhado no vinho”. Ele não quis dizer o nome de Judas. Para não perceberem, deu uma resposta rápida, e falou baixinho. Tomou o pão e ofereceu-o amavelmente a Judas. Carinho para com Judas até o último momento.

Nosso Senhor dá a Judas aquela ordem misteriosa: “O que tens que fazer, faze-o logo”. E o traidor saiu durante a noite, e foi consumar o pecado dele.

Jesus não mandou Judas pecar. Mas Judas, naquele momento, rompeu com Nosso Senhor e retirou-se. Podemos imaginar seus passos aflitos, apressados: “Trinta dinheiros! Quero trinta dinheiros!” É melhor não excogitar como se fez o pacto, e o que Judas pensou quando sentiu os trinta dinheiros pesarem na sua sacola.

E quando Judas O oscula para que Jesus fosse preso, ainda é uma pergunta com carinho: “Judas, com um ósculo tu trais o Filho do Homem?” Judas não ligou. Trinta dinheiros, o resto não importa!

Todos conhecem essa história, que terminou ignobilmente numa figueira…

O Divino Redentor passa pela tristeza de constatar que também os Apóstolos escolhidos não O viam. No Horto das Oliveiras, quando dormiam, todos os esplendores de Nosso Senhor Jesus Cristo para eles eram nada. Estavam com sono, queriam dormir. E na hora do perigo todos fugiram. Até aquele que pousara o ouvido sobre o peito d’Ele, e ouvira as batidas de seu Sagrado Coração!

Os algozes não podiam deixar de perceber a perfeição de Jesus

Na Paixão, Nosso Senhor sentia-Se completamente recusado pelos homens, pelo povo eleito. Entretanto, Ele era divino, incomparável! Por que tinham feito isso? Que enorme injustiça, que impiedade sem conta, que revolta atroz contra Deus! Vislumbramos, então, a tristeza, a indignação, o sofrimento de sua Alma.

É neste ponto que entra a flagelação, o primeiro mistério do Rosário considerando a agressão física contra o Homem-Deus. Amarram-Lhe as mãos, atam-No a uma coluna e começam a fustigá-Lo por ódio a Deus.

Poder-se-ia objetar: “Mas eles não sabiam que Ele era o Homem-Deus, e até negavam isso. Como o senhor pode dizer que era por ódio a Deus?”

Eles viam aquela perfeição, que é uma com Deus, e tal perfeição eles odiaram. Portanto, agrediram Nosso Senhor por ódio a Deus.

Se alguém, tomando a fotografia de um dos que está aqui, diz, embora sem conhecê-lo: “Mas que tipo antipático, detestável! Vou crivar de punhaladas essa foto; depois amarrá-la numa árvore e dar tiros contra ela; e ainda atear fogo nos molambos de papel que restarem”.

A pessoa assim ultrajada diria: “Esse homem não me quer, ele me odeia”.

É claro! Eles sabiam, neste sentido, que ali estava Deus.

Começa, então, o contraste pungente entre a mansidão, a bondade, a voluntária incapacidade de defender-Se, de um lado; e o ódio brutal, estúpido, cruel, de outro lado.

Para amarrar Nosso Senhor, os algozes Lhe dizem com brutalidade: “Dá cá as mãos!” Ele, não com uma mão, mas apenas com um dedo poderia expulsar aquela gente toda.

Se quisesse, o Redentor chamaria as coortes do Céu para descerem e defenderem-No; elas viriam imediatamente, porque Ele não chamava, mas mandava!

Jesus entrega as mãos, que eles amarram com brutalidade, utilizando corda tosca, rude, e um modo de amarrar que, com certeza, atormentava, prejudicava a circulação, tolhia os movimentos etc. Tinham a ilusão estúpida de que, amarrando-O, Ele estava amarrado. Bastaria Ele dizer: “Corda, rompe-te”, que ela cairia no chão; ou, se quisesse, poderia transformá-la em serpente, que atacaria aqueles malvados.

Mas Nosso Senhor queria sofrer. O extraordinário é que uns queriam flagelá-Lo e Ele queria ser flagelado. Jesus Se entregou à flagelação.

Os algozes já tinham tirado a túnica do Divino Salvador, ou mandaram-Lhe que a tirasse. Sua vestimenta sagrada era a túnica inconsútil —que não tem costura —, a qual havia sido tecida por Nossa Senhora, e não tinha sujeira nenhuma, pois o Corpo divino só podia irradiar a mais alva limpeza. Por um ato de vontade do Redentor, nada podia macular esta túnica, e os verdugos jogam-na ao chão, com raiva. Ele pensa nas mãos de Nossa Senhora, que a teceram, mas nada diz: era mais uma dor que Nosso Senhor queria sofrer.

A doçura inefável dos gemidos do Homem-Deus atado à coluna da flagelação

Levam-No para junto de uma coluna e, certamente com bofetadas, empurrões, gargalhadas, amarram aquela corda que prendia suas mãos em alguma argola da coluna — porque assim se faziam as flagelações. E aqueles homens — que homens! —, com terríveis açoites, começam fustigá-Lo com toda a força, e Ele a gemer.

Podemos imaginar a doçura, a beleza harmoniosa desse gemido, aquele Corpo santíssimo que se contorcia de dor, pela brutalidade do tormento que estava sofrendo; pedaços de carne caíam ao solo: eram carnes do Homem-Deus! Seu Sangue salvador corria aos borbotões. Ele de pé, digníssimo, inteiramente manso, sem nenhum protesto, nem exclamação de dor, apenas falando com o Padre Eterno. Era o seu refúgio naquela ocasião. E seu Corpo, do alto da cabeça até a planta dos pés, ficou repleto de ferimentos gravíssimos. Era o martírio do qual haveria de resultar a Redenção do gênero humano.

Terminada a flagelação, mandaram-No — os tempos eram de mais pudor do que os de hoje — apanhar a túnica. Com dores inimagináveis devido aos movimentos, Ele foi buscá-la e a revestiu, sabendo que iria começar a “Via Crucis”. Quer dizer, Ele entrava em outra sequência enorme de tormentos de toda ordem.

Considerem a muito bonita imagem de Nosso Senhor que está neste auditório. Ela é principalmente expressiva, vendo-a de baixo para cima. Seu olhar mostra, segundo o artista — a meu ver com fundamento —, o estado de espírito de Jesus durante a flagelação: preocupação, a aflição diante do tormento que vinha, a dor que Ele estava sofrendo em todo o seu Corpo. Mas uma distensão completa, uma mansidão perfeita e uma dignidade de Rei. Nunca rei nenhum teve uma púrpura igual à d’Ele: a do seu Sangue infinitamente precioso.

Isso foi o pórtico, o começo da Paixão cruenta de Nosso Senhor. Depois veio a coroação de espinhos, a Via Sacra, uma série de sofrimentos até o alto do Calvário.

Ele, carregando a Cruz, caiu três vezes sob o peso dela. Pregaram-No na Cruz e seu Corpo ficou doloridamente pendente; tentava apoiar-Se nos pés, mas os cravos neles fincados faziam aumentar a dor… E sua sede ia progredindo, em razão da quantidade de Sangue que tinha perdido. As torturas, as sombras da morte começaram a invadi-Lo, até o momento em que Ele bradou: “Meu Pai, Meu Pai, por que me abandonastes?”

Até o último instante cuidando dos outros, com uma lucidez divina ordenando todas as coisas. Para São João: “Filho, eis aí a tua Mãe”; a Nossa Senhora: “Mãe, eis aí teu filho”. Para o bom ladrão, São Dimas: “Hoje estarás comigo no Paraíso.” Foi a primeira canonização, feita pessoalmente por Nosso Senhor; que glória, que alegria!

E, pensando o tempo inteiro no gênero humano que Ele redimiria quando completasse a Paixão, Jesus disse “Consummatum est”. Nesse momento, Ele salvou o gênero humano.

Nosso Senhor pensou em cada um de nós

Pensou em nós. Esta triste coleção dos homens passou diante de Nosso Senhor. Ele sofreu por este, por aquele, por aquele outro; por cada um dos que se encontram neste auditório, a fim de alcançar as graças pelas quais estamos aqui.

Quando cada um fizer o histórico de sua vocação — como foi chamado, de que modo correspondeu, se cambaleou, como se pôs de pé e continuou o caminho —, lembre-se que Nosso Senhor Jesus Cristo pensou em tudo isto no momento da flagelação!

Talvez, quando um pedaço de sua carne divina caía ao chão, em meio à dor, Ele tenha pensado: “É por aquele filho que há de viver no século XX, o qual amo especialmente e quero que traga outros a Mim. É terrível, mas está bem sofrido!”

E se algum de nós peca contra Ele, máxime em matéria grave, é a mesma coisa do que tomar o pedaço da carne que Jesus deixou cair ao solo por amor de nós, e Lhe atirar no rosto.

O que se pensaria de um flagelador tão cruel, ao qual Nosso Senhor dissesse: “Meu filho, por você caiu-Me esse pedaço de carne no chão”; e o flagelador respondesse: “Ah! é? Toma aqui”, e o lança na face? Seria pior do que qualquer açoite. Os católicos, sobretudo os especialmente chamados, fazem isso quando não são fiéis a Ele.  v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/4/1984)

Revista Dr Plinio 152 (Novembro de 2010)

 

Crescer na confiança

Eis uma linda cena da vida de São Francisco Xavier:

Era noite. Dentro de um barquinho em mar revolto, todos estavam aflitos e São Francisco rezando. Enquanto a nau era sacudida de todos os lados, o Santo ia percorrendo em espírito os nove Coros de Anjos, reverenciando os Patriarcas, recomendando-se aos Profetas, numa visita serena, calma, pedindo ajuda a cada um. As pessoas atônitas, olhando para aquela tranquilidade,  encontravam nela os meios de resistência.

É a atitude de um grande Santo que, por ter em abundância o espírito da Igreja, enfrenta os perigos da existência como um cavaleiro medieval enfrentava os riscos da guerra.

O cavaleiro era ávido de perigos e de aventuras, porque sabia defender assim a causa para a qual fora suscitado. Esta é a posição do varão católico quando se encontra em perigo: não é apavorar-se, mas crescer na confiança.

São Francisco Xavier e o autêntico idealismo

A extraordinária epopeia apostólica de São Francisco Xavier, enfrentando toda sorte de riscos a fim de conquistar os povos do Oriente para a Igreja Católica, oferece a Dr. Plinio ensejo para nos fazer compreender o teor do verdadeiro ideal: mais  do que a realização de uma grande coisa, é o glorificar a Deus, submetendo-se humildemente à sua superior vontade.

Pode-se dizer que o significado de certas palavras sofrem transformações ao longo dos tempos, de acordo com o entendimento das gerações que se sucedem umas às outras. Exemplo característico, a meu ver, são os termos “ideal” e “idealismo”.

Luminosidade e harmonia sonora

A palavra “ideal” possui uma ressonância peculiar, luminosidade, harmonia sonora — quase diria visual — que lhe dão significado próprio. De algum modo ela impele o menos poético dos homens a pronunciá-la como um cântico: ideal!

Quando se diz que alguém tem ideal, entende-se tratar-se de um valor maior que o simples e vil desejo de lucrar vantagem pessoal. Não se aplica, no sentido literal e plano do termo, a afirmações como esta: “Fulano cultiva um ideal, o de tornar-se riquíssimo”. Isto se refere a uma meta, um objetivo, uma ambição, não a um ideal.

Dizer-se de um indivíduo que ele é um homem ambicioso, pois deseja fazer coisas grandes, pode ser até um elogio. Porém, há diferença entre uma coisa grande e uma grande coisa.

O genuíno idealismo de São Francisco Xavier

Imaginemos, por outro lado, São Francisco Xavier dirigindo-se para a Índia e o Japão, como primeiro passo para alcançar também a China. Naqueles idos do século XVI, viajar da Europa para o Extremo Oriente podia representar tanto ou mais perigo do que, hoje, uma expedição de astronautas rumo à Lua.

O discípulo de Santo Inácio enfrentou riscos e dificuldades impensáveis, imbuído de um anelo muito superior ao dos mais audaciosos comerciantes da época: ele ia em busca de almas para Nosso Senhor Jesus Cristo. Viaja com o coração estraçalhado de dor diante das devastações que a Pseudo-Reforma produzia na cristandade européia, e talvez pensasse: “Vou para a Índia, Japão, China, convidar novos povos e almas ainda não evangelizadas a corresponderem à graça, e assim trazê-las para a fé católica que agora se mostra abalada no Ocidente”.

Quem procede desta maneira não realiza uma coisa grande, mas uma grande coisa. Isto se chama ideal. E todos os reluzimentos que esta palavra possa ter, fulguram com toda a sua beleza quando os esforços são empregados na mais alta das finalidades: salvar a-mas para a glória de Deus e de Maria Santíssima. Nesse ideal não está presente o egoísmo; para alcançá-lo, o homem entrega toda a sua vida, disposto a passar pelos maiores riscos, dissabores, perigos, sofrimentos, preocupado unicamente com o serviço divino.

Eis o verdadeiro ideal, autenticamente glorioso. E ao considerarmos essa disposição de São Francisco Xavier, nós o veneramos e lhe imploramos: rogai por nós.

Na aparência, um ideal fracassado

Contudo, a vida de São Francisco Xavier pode parecer, até certo ponto, frustrada. Como se sabe, seu maior objetivo era conquistar a China para Deus. Esteve na Índia e a evangelizou. Visitou o Japão e ali obteve imensas vantagens para a fé cristã. Em seguida partiu em direção à China, sua grande meta, pois este país de população incalculável, riqueza cultural extraordinária e grande prestígio em todo o Extremo Oriente, seria uma conquista incomparável para a Igreja Católica.

Mas, mistérios de Deus… Esse apóstolo de zelo e fervor invulgares morre antes de chegar àquela nação. Seu supremo ideal, a evangelização do povo chinês, não se realizaria. Doente, sentiu a morte se aproximar enquanto se achava na Ilha de Sancian, de onde já se divisava a China continental. Quis então expirar no puro amor de Deus, com seus olhos voltados para aquela China na qual não conseguiu entrar. Rendeu seu derradeiro suspiro em paz, embora não houvesse atingido seu ideal.

Diante dessa situação, vem-nos a perplexidade: “Por que Deus permite tal frustração? Por que o herói desejoso de conquistar para Ele algo tão excelente como toda a China não atingiu seu objetivo? Como entender esse (ao menos na aparência) fracasso?”

Encontro com um Bispo chinês do século XX

Estas questões me trazem à lembrança a figura de um Bispo que conheci em minha viagem a Roma, no início da década de 60. Embora não proviesse de ordem religiosa, achava-se hospedado num convento, ocupando uma espécie de quarto escritório, sem luxo mas dignamente arranjado. Homem alto, esguio, longilíneo, flexível em todas as partes do corpo, possuía o porte de um descendente dos mandarins. Conversou comigo em francês, com uma voz muito afável e amável, tratando-me de “Monsieur le Professeur”, enquanto eu me dirigia a ele chamando-o de “Monseigneur”.

Dotado de um charme próprio, gesticulava e alterava a fisionomia de acordo com seu modo de ser. Sobre a cabeça, um tanto pequena em relação ao resto do corpo, portava um chapéu preto, ornado de uma pena de pavão que oscilava conforme seus movimentos. Ao vê-lo, pensei: “Este homem é um porta penas de pavão perfeito!”

Numa palavra, esse Bispo trazia consigo toda a graça daquela antiga e misteriosa China que fascinou São Francisco Xavier. E no meu interior ecoou algo do imenso desejo que este santo missionário alimentou de conquistar o povo chinês para a Igreja Católica.

Hipótese entusiasmadora

Pode-se supor que se o grande ideal de São Francisco Xavier fosse realizado e tivéssemos uma China católica, a Santa Sé provavelmente consentiria em estabelecer uma liturgia peculiar àquele povo, com manifestações simbólicas dos dogmas da Igreja conforme as circunstâncias locais, um canto sacro próprio, edifícios sagrados inspirados nos estilos arquitetônicos chineses e segundo o talento de seus artistas. Imaginemos, por exemplo, a mirífica beleza de uma catedral feita de porcelana, e cuja torre, semelhante a um pagode, ostentasse no alto uma imagem da Imaculada Conceição! As estalas do presbitério talhadas em marfim, os bancos da nave central feitos de algum lindo bambu, encerado e perfumado…

Se, diante dessa hipótese, nossa alma se entusiasma, não será difícil calcular a intensidade do entusiasmo ainda maior que latejava no coração de São Francisco Xavier.

Dar glória a Deus, o mais elevado ideal

Ora, no momento em que maravilhas semelhantes começariam a se produzir, Deus, em cujas mãos estão as vidas dos homens, diz ao santo missionário jesuíta: “Cessa a tua luta, venha para o Céu!”

E Francisco, olhando para a China e por esta nação rezando, expira docemente no Senhor, dizendo sem ressentimento algum: “Deus que me insuflou esse ideal, não permitiu sua realização. Senhor, seja feita a vossa vontade assim na Terra como no Céu!”

Algum companheiro de São Francisco Xavier, vendo-o morrer assim, quiçá se tomasse de desânimo: “Então, não se dará a conversão do povo chinês? Dir-se-ia que as orações de São Francisco não foram atendidas, e seu ideal foi posto de lado”. Por essas dúvidas percebemos quanto é sutil o tema do idealismo, e de quantos aspectos se reveste, a serem considerados para compreendermos a obra de Deus.

Claro está, o ideal de São Francisco Xavier era a evangelização da China, porém não era seu fim supremo, que consistia em dar glória a Deus. Desde que o Altíssimo, por insondáveis desígnios, dele quisesse, não a China, mas um ato de submissão à vontade divina, São Francisco o aceitava como seu mais elevado ideal. O ideal que os anjos proclamaram na noite de Natal, em Belém: “Glória a Deus nas alturas, e paz na Terra aos homens de boa vontade”.

À semelhança do Divino Mestre e Nossa Senhora

Francisco era um desses homens de vontade boa, santa, reta, nobre, voltada para o ideal. Por isso morreu em paz na Terra, glorificando a Deus. E talvez o Criador tenha recebido mais louvor pela conformidade desta grande alma com os desígnios d’Ele, do que na conversão da China. Desse modo ensinou a todos os homens de boa vontade a cumprirem esse supremo ideal que é dar-lhe a devida glória acima de tudo.

Nisso se assemelham a Nosso Senhor Jesus Cristo, que padeceu e morreu proclamando sua conformidade com a vontade do Pai Eterno. No Horto das Oliveiras, bradou: “Pai meu, se for possível, afaste-se de Mim este cálice, mas seja feita a vossa vontade e não a minha”. Como se assemelham, igualmente, à Santíssima Virgem que, quando da Anunciação do anjo, diante do excelso convite para a maternidade divina, respondeu:

“Eis aqui a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra”.

“Faça-se”, Fiat, termo que aqui significa obediência, disciplina, confiança, bondade, ideal, glória a Deus.

Um mérito maior que o das conquistas

Alguém poderia apresentar a seguinte dificuldade: Dr. Plinio, eu estava certo de que avançar rumo ao ideal significava subir, subir, para finalmente atingi-lo. No momento em que a ideia de conquista mais me entusiasma, o senhor fala de renúncia. Isto quebra as energias de minha alma”.

Respondo: Meu caro, quebra os fracos. Tais considerações são feitas para que não seja pusilânime. Como se viu, o verdadeiro ideal é aquele que se prende ao fim supremo, is-to é, fazer a vontade de Deus infinitamente sábio e santo. As cintilações de minha inteligência pseudo-luminosa são inferiores à de um vaga-lume diante do sol que é a santidade e a sabedoria do Criador. Portanto, não há para o homem, nem autêntico ideal nem bom desejo que não sejam realizar a vontade divina.

“Faça-se em mim segundo a tua palavra”. Pronunciemos a frase da Santíssima Virgem, unamo-nos a Ela na mesma obediência e assim cumpriremos nosso ideal. Pode ser que num primeiro momento Deus espere de nós que desejemos nossas “Chinas”. Num segundo passo, teremos a impressão de que não as conquistamos, elas nos escaparam das mãos e nada conseguimos.

Nesta hora, recordemo-nos de São Francisco Xavier e, pelos rogos de Maria, digamos: “Meu Deus, aconteceu como quisestes; quero o que quereis. Fez-se a vossa vontade e não a minha. Morro em paz.”

Dessa forma nossa vida terá atingido sua finalidade, e de algum modo que não sabemos explicar, o mérito de nossa submissão será maior que o de todas as nossas conquistas.

Mais do que a China convertida

Certamente, ao perceber a morte se aproximar, São Francisco Xavier olhava para aquela nação tão amada e desejada, e pensou: “Meu Deus, esta China virá quando quiserdes. Ela vale muito, mas o Céu tem maior valor. Contemplando vosso Sagrado Coração e o Coração Imaculado de Maria, rogo-vos a graça de sempre ir para frente e para cima”.

Aos olhos de Deus, essa atitude se reveste de um alcance incalculável. Nosso santo não conquistou a China, porém, sem o saber, obteve inúmeras outras vitórias. Somente no Juízo Final saberemos quantas glórias foram dadas a Deus, muito maiores do que a China, simplesmente pela obediência animosa, intrépida e heroica de São Francisco Xavier!

Podemos imaginar que, ao expirar, ele tenha elevado a Deus uma prece semelhante a esta:

“Senhor, meu Deus, meu Criador, meu Redentor. Senhora, Maria Santíssima, Mãe de Deus e minha. Vim até aqui para vos obter a China. Porém, quereis de mim uma viagem maior, que eu transponha os sombrios umbrais da morte e vá para a eternidade. Quereis quebrar-me, separando minha alma do meu corpo, o qual em breve não se-rá senão um cadáver. Rogo-vos que minha alma, julgada por Vós em espírito de benignidade, seja conduzida ao Paraíso.

“Senhor, não pude conquistar a China, mas bem sei que de tudo quanto alcancei na vida, algo queríeis mais do que todo o resto: de Francisco, queríeis Francisco!

“Minha Mãe, aqui está Francisco. Oferecei-me a Deus, pois não nasci senão para isto! Salve Rainha, Mãe de misericórdia…”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 20/10/1984)

São Francisco Xavier

Grande missionário da Companhia de Jesus no Oriente, comparável aos Santos Apóstolos da Igreja nascente, São Francisco Xavier deixou-se modelar pela abundância das graças que recebeu de Deus, tornando-se um varão de extraordinário espírito sobrenatural.

Exemplo de homem que soube enfrentar as dificuldades, as provações e os reveses desta existência, era como o cavaleiro medieval, que se entregava às vicissitudes das batalhas ávido de perigos e de heroísmos, na defesa da causa para a qual fora suscitado.

Também nós devemos fazer face às nossas aflições e necessidades, como o fazia São Francisco Xavier: resolutos, tranquilos e com inteira confiança na misericórdia divina. É essa a maneira pela qual o homem verdadeiramente cresce na sua estatura moral e pode alcançar o ápice de santidade para a qual é chamado.

Com o cetro de Deus nas mãos…

Maria Santíssima é nossa soberana. Ela está incalculavelmente acima de todas as criaturas e, enquanto Mãe de Deus, sua súplica é governativa por vontade de Deus.

Por assim dizer, Ela tem o cetro de Deus nas mãos, como indica claramente, por exemplo, a imagem de Nossa Senhora Auxiliadora: na mão esquerda segura o Menino Jesus e na direita o cetro.

Este significa que Ela tem o governo de toda a criação, pela Sua santidade incomparável e união com Deus, bem como pela Maternidade Divina e pelo fato de ser Esposa do Espírito Santo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/3/1992)

Revista Dr Plinio 152 (Novembro de 2010)

Cogitações na linha do senso do maravilhoso

Dr. Plinio possuía, desde tenra infância, um senso do maravilhoso tão excelente que, vendo um vasinho colorido, imaginava uma catedral, as ruas e casas de uma cidade feitas com o mesmo material, com as mesmas cores e luminosidades. Muito mais sensível às cores que às formas, ele cogitava a respeito de universos possíveis dos quais aquele vasinho era uma amostra.

 

Gostaria de analisar um objeto que, em minha infância, serviu-me para muitas cogitações na linha do senso do maravilhoso.

Espírito muito mais cromático do que dado às formas

Trata-se de um pequeno vaso que, de si, não tem nada de extraordinário, nem é de grande valor comercial. Porém, tem isso de próprio e que me foi muito favorável: ele visa, em vários pormenores, imitar e reunir pedaços de estilos que, sob alguns aspectos, apontam para o admirável.

Seu formato, os desenhos dourados, a base também dourada que, invertida, dá ideia de uma coroa, tudo isso encaminha o espírito para uma ideia de objeto maravilhoso.

Para a criança não é tão importante a questão – que a pessoa se põe depois dos trinta anos, quando começa a maturar errado –: se o objeto tem ou não o maravilhoso para o qual tende. Mas a pergunta que a criança se coloca, ainda que implicitamente, é: Qual o valor do maravilhoso para o qual aponta?

Então, digamos, um vasinho francamente ordinário – não como este que é bom –, mas que apontasse melhor para o maravilhoso, uma criança lhe daria mais valor do que ao bom. Porque a pergunta não é qual o valor venal, nem da pura concepção artística, mas para onde visou, como sendo a primeira qualidade a ser tomada em consideração.

Assim eu via, em menino, este objeto. Notem que meu feitio de espírito é muito mais cromático do que dado às formas. Para mim, mais do que a forma ou a qualidade do material, este vaso é uma gota de cor, na qual se verifica a mistura que me é bem-amada: vermelho e branco. Não assim: uma lista vermelha, uma lista branca, mas são esbranquiçados de vermelho ou uns avermelhados de branco, postos de cá, de lá e de acolá.

A matéria da qual ele é composto tem uma certa transparência a qual permite à luz um certo jogo que se presta muito para a reprodução desse gênero de cor.

Há aqui uma espécie de teoria da mistura das cores que me agrada extremamente. As cores podem misturar-se até um certo ponto onde uma degenera na outra. Então já não é uma mistura, mas uma outra coisa. E o passar por todas as gamas intermediárias dá um valor cromático ideal muito especial.

Imaginar ruas e casas feitas com essa matéria

Aprazia-me considerar como seria um mundo no qual a cor e as luminosidades dominantes fossem essas, onde as pedras das ruas e os tijolos das casas fossem dessa matéria, onde os homens, em consequência, não seriam vermelhos e brancos, mas tivessem um espírito dotado desse jogo de reversibilidades, em que estivesse presente a afirmatividade, mas também houvesse concessões e afabilidades, tendo entre si um trato que eu imaginava nobilíssimo, mas ao mesmo tempo delicadíssimo, todo feito de condescendências recíprocas fantásticas, na linha do bem, de maneira que nada fosse mau, mas tudo aprazível, concessivo, bondoso, um perene sorriso e uma fórmula da perpétua “douceur de vivre”(1).

Seria, propriamente, o relacionamento das pessoas que se estimam por serem diferentes. Não é o relacionamento dos iguais, mas dos diversos que, na diversidade, nesse “ludus”, se completam.

A meu ver, o papel do dourado nessa combinação é lembrar que infinitamente acima paira outra coisa, evocando uma diversa clave de valores.

Imaginem que alguém esborrifasse mil gotinhas douradas em cima disso, por onde o vasinho pudesse tomar um valor venal maior. Para mim, não valorizaria; ainda que fosse de ouro verdadeiro, não lucraria nada. Eu mandava lavar o vasinho porque o dourado se tornaria promíscuo com isso, e faria com que o restante, por assim dizer, se envergonhasse de ser o que é.

Certamente, o artesão que concebeu esse vaso não teve essas ideias explícitas, mas o fato é que ele pôs o dourado fora do tema central. O tema está na parte nacarada. O dourado corresponde aos horizontes para onde a mescla de vermelho e branco aponta, fora do tema, como algo para alcançar.

Transpondo para o jogo das relações humanas, seria mais ou menos como se nas fímbrias desse relacionamento se compreendesse o convívio com Deus como algo de infinitamente mais alto, mais elevado, mais nobre.

Necessidade da prova

Se a grande indústria pudesse e devesse continuar a existir no Reino de Maria, ela poderia e deveria ser utilizada para finalidades superiores à mera produção quantitativa. Poder-se-ia compreender uma grande indústria que fabricasse uma catedral desse material e a colocasse num panorama estudado para combinar com isso.

O fato é que o vitral se fez sem a grande indústria. E nós poderíamos imaginar, com a evolução da indústria dos vitrais, igrejas todas feitas de vidro. De maneira que seria possível ir longe.

Ademais, golpeado com jeito, esse material emite um som bonito. Imaginem uma igreja que seja o sino de si mesma, onde o toque não se dá no campanário, mas na parede da própria torre! Torres que vibram elas próprias como se fossem badalos postos no ar, de maneira a fazer corresponder em som a cor contemplada pelo olhar.

É preciso dizer que fiquei com inúmeros mundos assim possíveis inacabados na mente. Sobretudo cores que eu vi de cá, de lá, de acolá, e que davam margem a imaginar universos possíveis dos quais esse vasinho era uma amostra. Creio que a matriz da inspiração artística é essa.

Um perigo contra o qual é necessário precaver-se: um mundo vivido assim é tal que não se compreenderia dentro dele a dor e nem sequer a prova. Quer dizer, se imaginássemos um mundo de criaturas assim e que Deus resolveu impor a prova para elas, teríamos um suspense como se víssemos o Criador traindo a sua própria obra. Há uma dificuldade em instalar dentro disso a ideia de prova como, por exemplo, em compreender que Deus tenha permitido a entrada da serpente no Paraíso.

O mais interessante é que só depois de ter passado pela prova compreendemos que tudo isso só toma sua perfeição para quem passou pela prova. Somente quando isso recebeu a trombada do oposto e se afirmou, é que propriamente justificou a sua existência.

Donde poderia vir uma objeção: “Então o mal é necessário?”

Não, o mal não é necessário, mas a prova é. Essas maravilhas devem existir em ordem de batalha contra o que as quer destruir. É nesta postura de ordem de batalha que elas adquirem uma espécie de plenitude de consistência que lhes dá força e dignidade.

Um modo de relacionar-se próprio à visão beatífica

Entra, então, um aspecto que à primeira vista não se imaginaria: um cavaleiro cuja armadura fosse feita deste material, mas inquebrantável, trazendo o próprio símbolo da delicadeza e do feérico na batalha mais feroz.

Na Chanson de Roland, as despedidas entre Olivier e Roland dão ideia disso. Os dois iam morrer, encontravam-se numa situação em que estavam liquidados. Entretanto, a ternura com a qual ambos se tratam é enorme.

Ouvi dizer, não sei se é verdade, que hoje em dia se tiram fotografias por onde se percebe a cor de certos corpos celestes, nos quais se vê reinar um colorido diferente do existente aqui na Terra.

Poder-se-ia imaginar um mundo para o qual o colorido desse vasinho fosse como a luz do dia para nós, onde todas as pessoas se tratassem como o vermelho e o branco se “tratam” aqui, e que no interior de cada pessoa – não só fisicamente, mas moralmente – a luz brincasse como brinca neste objeto.

Essas pessoas se compreenderiam e teriam uma espécie de avidez de se entenderem, uma necessidade de mútuo entendimento cordial superabundante, por onde se uniriam umas às outras numa perpétua troca de alegria com a “surpresa”, na consideração de que a outra existe.

De maneira tal que indo à rua não se encontraria uma multidão de anônimos, mas de boas surpresas: “Oh, existe também este, aquele…!” As pessoas, sem se conhecerem, parariam, se saudariam e se alegrariam neste diapasão. E haveria, por assim dizer, um perpétuo sorriso de encantamento, um perene cântico e uma espécie de perpétua dança das pessoas se encontrando, se falando. O Céu deve ser assim.

A questão é que existe um mundo de outras coisas que se prestam a considerações como estas. O objeto aqui analisado é uma gotícula que ocupou, nas minhas cogitações de criança, um pequeno espaço. Os jades, as porcelanas chinesas, os cristais da Boêmia, os esmaltes, os ônix, as mil coisas preciosas que há, exprimem uma ordem natural, filosófica, quiçá metafísica. Acenam para uma superior natureza, mas estão inteiramente dentro da nossa ordem natural. O sobrenatural está fora e acima. Não é inimigo; ao contrário, é amigo, bafeja, abençoa, mas se encontra diretamente acima.

Para considerar como isso se instalaria na ordem sobrenatural, teríamos que imaginar como um objeto desses caberia na gruta de Belém, na noite de Natal.

A ordem natural transposta para a clave sobrenatural

Poder-se-ia fazer uma distinção entre a natureza do Céu empíreo, que ainda está na linha do natural, e a do metafísico. Aquilo que em nós é puramente espiritual enquanto contempla o que nos outros é também espírito; e, depois, o que em nós é espírito e contempla a Deus, portanto a essência divina, infinitamente acima de nós. São coisas inteiramente diferentes.

Mas tudo isso, que seria uma contemplação árdua, difícil, pode-se resumir e acompanhar muito melhor, considerando a união das naturezas humana e divina em Nosso Senhor Jesus Cristo. N’Ele encontramos todas as belezas e excelências possíveis da ordem natural transpostas para a clave sobrenatural.

Assim, poderíamos imaginar as operações da graça pairando sobre objetos como esse. Por exemplo, os vitrais da Sainte-Chapelle são naturais, e aquelas cores são produzidas pela natureza, assim como as desse vaso. Mas quem vê aqueles vitrais recebe uma graça por onde percebe um certo sobrenatural análogo àquela natureza.

O sobrenatural tem certo modo de assumir as coisas por onde estas, sem deixarem de ser elas próprias, elevam-se tanto que mudam de aspecto.

Por exemplo, a imagem de Nossa Senhora do Miracolo tem joias até na cintura. Essas joias são pedras naturais, mas as graças que se recebem na Igreja do Miracolo são tais, que brilham por assim dizer também a respeito dessas joias. Essas joias naturais tomam um luzimento que para nós enriquece o que de sobrenatural a imagem quer dizer.

Em termos mais precisos, a graça se serve também da pedra para comunicar algo a nós. Portanto, no presepe, ela poderia servir-se também deste vasinho para – por um processo análogo, difícil de imaginar – manifestar alguma coisa de si mesma a nós.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/2/1983)

 

1) Do francês: doçura de viver.

São João da Mata – Finalidade nobre e santa

São João da Mata foi suscitado especialmente pela Providência para a obra da redenção dos cativos católicos capturados pelos maometanos e resgatados mediante pagamento.

Esses prisioneiros, tratados como escravos, ficavam sujeitos a tentações medonhas, o que era agravado pelo fato de não terem padres para se confessar. Podemos imaginar o tormento de certas almas que, tendo pecado e podendo morrer de um momento para o outro, encontravam-se em risco de irem para o Inferno, por não contarem com a absolvição sacramental.

Para tirar essas almas deste tormento, São João da Mata e seus religiosos expunham-se ao perigo de, eles mesmos, tornarem-se escravos dos mouros.

Eis a finalidade nobre e santa, a forma de heroísmo desenvolvida por São João da Mata.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/2/1977)

Ansiedade jubilosa do maravilhoso

Atmosfera sobrenatural, piedade, colorido interior, são alguns dos fatores que tornam a Basílica de Santo Antônio em Pádua um lugar que convida à prática da virtude e ao desejo do Céu.

Santo Antônio era um polemista de primeira ordem. Doutor da Igreja, homem de grande inteligência, cultíssimo, falecido aos trinta e nove anos; portanto, muito prematuramente. Era tal polemista que arrasava os adversários, tendo passado para a História com o título de “Martelo dos hereges”.

Peregrinando em Pádua

A penúltima vez que fui a Pádua foi durante um período de peregrinações. Afluíam peregrinos de todas as partes da Europa e do mundo, em especial da Itália e de Portugal. A basílica enchia-se de gente falando, quase não se podia mover ali dentro.

Ademais, havia dentro da igreja mesinhas vendendo aos peregrinos medalhinhas e outros objetos de piedade, isso também muito legítimo, pois as pessoas voltam para casa levando lembranças religiosas para suas famílias, amigos. Longe de mim criticar isso. Mas há sempre gente indecisa que para diante do balcão e fica comparando medalhinha com medalhinha não sei por quanto tempo. Outros que querem comprar se empurram… E a cena repete-se na próxima mesa.

Entra aqui uma questão pessoal: tenho uma verdadeira ojeriza a lugares de oração superlotados. Alegra-me que estejam cheios, mas me comprazo de estar lá quando estão com pouca gente. Acho legítimo que as pessoas sintam isso de um modo diferente, pois depende do temperamento de cada um.

Entretanto, em minha última visita, não. Era um interstício entre temporadas de peregrinação e havia menos gente. Eram pessoas piedosas do lugar e das redondezas que iam lá como todo mundo vai às respectivas igrejas por toda parte. Era um bom número, rezavam e não tinham a preocupação do compra-compra, do vende-vende, sendo vários deles realmente fiéis. Percebia-se que eram pessoas boas, piedosas, que estavam lá para rezar. É Santo Antônio de Pádua e o ambiente criado pelas relíquias dele, as graças das quais ele é ocasião e veículo, que impregnam de algum modo a basílica e condicionam também essa piedade.

A presença dessa piedade cotidiana, boa, realçada pelas graças recebidas por meio de Santo Antônio, faz bem à alma.

Algo do “pulchrum” católico

Pádua pertenceu outrora ao distrito político da República Aristocrática de Veneza e, enquanto tal, era muito influenciada por Bizâncio e pelos Bálcãs. Veneza fica praticamente em frente aos Bálcãs, e a travessia do Mar Adriático, mesmo com os meios de navegação antigos, era muito fácil e relativamente rápida.

Os críticos de arte são unânimes em afirmar que a Basílica de São Marcos em Veneza tem uma nota bizantina muito marcada.

Assim também nota-se que, sendo Pádua politicamente dependente de Veneza na época em que a Basílica de Santo Antônio foi construída, esta dá um pouquinho a ideia de um edifício à maneira de igrejas orientais, e algumas de suas torres lembram minaretes turcos.

A Basílica de Santo Antônio em Pádua exprime bem algo do “pulchrum” da Igreja Católica. Não é uma grande peça de arquitetura, mas exprime o que eu quero fazer notar.

Jogo de cúpulas e minaretes

É impossível negar certa beleza à sucessão de cúpulas e torres, quer pelo colorido, quer pelo ar de fantasia que há dentro disso, por onde se tem a impressão de que essas abóbodas emergem de dentro da igreja como as bolhas de gás de um copo de água mineral: sobem e depois estouram. A aparente desordem em que tudo isto está colocado em cima é bonita, entretém e é agradável de olhar. Portanto, em profundidade, não é uma desordem, pois isso tudo atrai e contenta muito o espírito.

Nota-se, nessa construção, o contraste entre o estilo veneziano e o florentino. É uma outra concepção das coisas pela qual vê-se a riqueza espiritual e intelectual da Europa e, particularmente, da Itália daquele tempo: a uma distância pequena, dois mundos que se desenvolvem lado a lado, sem interferir um no outro, mas numa posição quase polêmica de aspectos diferentes da vida. O despojado está totalmente ausente do interior da Basílica de Pádua. Se nos dermos o trabalho de lembrar a Catedral de Florença, olhando essas pinturas e essa espécie de sinfonia de cores, triunfal, alegre — “Cristo ressuscitou, vamos nos alegrar!” — encontramos uma diferença radical. Porque aqui tudo é pintado, tudo é enfeitado, tudo fala. Enquanto em Florença é o tal estilo despojado.

As cúpulas e essas espécies de minaretes têm o borbulhar de certas formas de beleza como o têm certos movimentos do mar.

Olhando para o telhado, quase que se esquece do corpo do edifício. Temos a impressão de que o resto da construção existe como uma bandeja para carregar bem alto o jogo musical dessas cúpulas. Podemos imaginar um movimento musical crescendo em que as notas se vão sucedendo alegremente umas às outras; assim, temos a impressão que esses minaretes e essas cúpulas estão alegremente esperando a hora que se lhes corte a base para poderem subir para o céu. Uma ansiedade do maravilhoso, uma ansiedade jubilosa, alegre, apenas contida por uma corda que uma mão caridosa irá cortar.

Isso se encontra, por exemplo, em muitos monumentos da Igreja Ortodoxa que são da arquitetura grega. Pádua recebe a influência, através de Veneza, muito helenizante, pelas razões geográficas que já expliquei.

Também a Igreja de São Basílio, se não me engano, na Praça Vermelha, tem aquela série de torres, de torreões, aquilo que sobe, um jogo dessa natureza. No castelo francês de Chambord não encontramos cúpulas assim, mas um jogo de tetos, de chaminés, que também aproveitam este princípio do corre-corre rumo ao céu. É como um dos modos de beleza do mar e isso me agrada.

Atmosfera sobrenatural e preciosa relíquia de Santo Antônio

No corpo material da igreja há o Santíssimo Sacramento — antes de tudo e mais nada —, as relíquias, as imagens especialmente abençoadas que datam de várias épocas da História da Igreja Católica, desde mais ou menos o tempo de Santo Antônio até os nossos dias. Várias épocas foram fazendo as suas pinturas, acrescentando suas imagens; aquilo poderia um pouco parecer um compêndio da história da piedade católica, cada vez menos intensa à medida que nos aproximamos dos grandes dramas, dos grandes cataclismos e dos grandes vazios de hoje em dia. Há também os fiéis que recebem graças e deixam-nas transpirar de algum modo na sua maneira de ser, no modo de andar e de rezar, etc. Esses fatores concorrem, numa igreja como esta de Pádua, com uma especial intensidade para dar uma única impressão da graça e da piedade verdadeira, da presença da Igreja.

O post cerimônia ali deixava um não sei quê de sobrenatural flutuando pela igreja, que tornava este período da vida da Igreja, ao menos para mim, particularmente saboroso. E foi o que eu peguei na Basílica de Santo Antônio. E isso, naturalmente, me encantou. Eu saía com a alma cheia. Falando sobre isso minha alma ainda se enche. São as coisas de que eu gosto mais do que qualquer outra coisa na vida, porque elas são o antegozo do Céu.

Agora, por que a relíquia da língua de Santo Antônio?

Porque se ele era “martelo” era por causa da língua. Ele era um grande orador sacro e fulminava os hereges do tempo dele, e ele os rechaçou magnificamente. Então ele morto, os amigos da verdadeira Fé quiseram glorificar esta língua que tanto falou a favor da glória de Deus. Cortaram e ali está.

Pintura de Santo Antônio

Nessa pintura vê-se como a piedade daquele tempo imaginava o Santo Antônio da hagiografia, da história santa. Nota-se uma placidez extrema decorrente do rosto, mas também de uma coisa que é muito expressiva: a posição dos ombros como modo de indicar o estado de espírito da pessoa.

Ele é franciscano. A capa do hábito forma várias dobras, muito ordenadas, quase diríamos ondas em um suave avançar “rangé”, que exprimem que esse homem nunca faz um movimento exagerado, excessivo, em que o hábito se coloca fora do lugar. A ordem do hábito é uma espécie de sismógrafo da ordem da mente.

O rosto, quase imberbe, com uma boca pequena. O nariz adunco muito bonito, que tem qualquer coisa do bico de uma ave de rapina. No arcado das sobrancelhas, uma delicadeza, uma precisão e uma força que sobretudo o olhar exprime. É um olhar, sob certo ponto de vista, glacial. Não deixa transparecer emoção alguma. O que aparece é a análise — esse tipo de análise que só os pacíficos fazem. Nesse olhar vê-se toda a precisão de quem já passou por todos os desencantos; já viu tudo como é, conhece o pecado original e seus efeitos, satanás com suas pompas e suas obras. Tudo está analisado, catalogado, ele tem um discernimento extraordinário.

A ponta dos lábios é fina e muito ordenada. Ele tem a resposta que faz dele um martelo que está preparando o seu golpe. Há uma pureza, uma castidade e uma serenidade extraordinárias.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

PERFEIÇÃO INCOMPARÁVEL

Se possível fosse reunir numa única mãe as perfeições de todas as mães que houve e haverá até o fim do mundo, e constituir em seu espírito o mais requintado equilíbrio das virtudes maternas, fazendo dela um modelo de bondade e paciência, de força e solicitude extraordinárias — essa mãe ainda nada seria em comparação com a Mãe por excelência, Maria Santíssima, da qual nasceu Jesus.