À procura do ótimo

Em mais uma reunião da série auto-biográfica na qual narra como se formou seu espírito, Dr. Plinio satisfaz o filial interesse de o de seus jovens ouvintes, e lhes descreve feitios personalíssimos da sua alma.

 

Dizer-lhes como se desenvolveu em mim o desejo do ótimo me traz recordações das minhas primeiras batalhas espirituais, de como elas nasceram, se desdobraram e desfecharam em outras pugnas, até chegar às de hoje.

Lembro-me de como se foram forjando em meu espírito alguns princípios que me conduziram ao amor não só ao bem, mas ao mais alto grau de bem em todas as coisas, isto é, ao ótimo. Antes de prosseguir, devo dizer que não é verdadeira a generosa afirmação aqui expressa, segundo a qual em minha alma nunca houve tendência para o medíocre ou para o ruim. Todos somos concebidos no Pecado Original e todos temos, por nossa natureza decaída, inclinações más ao lado de boas. E devemos combater as más, logo que elas se manifestem. Isto posto, de que maneira o desejo do ótimo histórica e concretamente se desenvolveu em mim?

Lembro-me de dois — é possível que fazendo um esforço maior de memória eu completasse o quadro — elementos fundamentais para isso. Em primeiro lugar, certos enlevos por determinadas virtudes e qualidades, mas principalmente pela Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, conhecida na Pessoa adorável e divina de Nosso Senhor Jesus Cristo, na pessoa de Nossa Senhora, a Mãe perfeita por excelência, e, em grau menor, refletida na pessoa de minha mãe terrena.

Havia momentos em que a santidade e o bem da Igreja — é o que me vinha com mais frequência ao espírito — me apareciam tão clara e nitidamente, que eu ficava deveras entusiasmado. Em segundo lugar, concomitante a esse entusiasmo pelo bem, havia em mim um horror a determinados defeitos e a certos estados de alma, assim como a ideia clara de que, se eu não tomasse cuidado, poderia incorrer neles.

Há pouco tempo me caiu sob os olhos um livro sobre a vida de São Vicente Mártir. Impressiona ver como São Vicente, em meio às piores torturas do martírio, no momento em que o governador romano, para atraí-lo à apostasia, começou a lhe sorrir, ele, que já enfrentara torturas de arrepiar, disse ao governador: “Temo mais o teu sorriso do que todos os teus  instrumentos de tortura!”

Eu também me lembro dos sorrisos do mundo, dos sorrisos da vida quotidiana, tão mais risonha, tão mais amena, tão mais alegre naqueles remotos anos 20 do que nesses tardios anos 80! Era tudo tão diferente! Ainda havia um resto de perfume da “Belle Époque” que trazia consigo um pouco das brisas do “Ancien Régime”, que por sua vez tinha uma certa continuidade histórica com a Idade Média. Nessa minha época de menino havia algo, que valia a pena apreciar na vida.

Recordo-me das delícias daquele tempo. A “Fräulein” Mathilde era uma  alemã habituada fortemente aos prazeres germânicos. Costumava nos levar à confeitaria Vienense, pois os deleites degustativos sempre representaram um grande papel na educação que ela dava. Lá havia um padeiro suíço, de nome Moritz ou semelhante, que fazia uns bolos cobertos de fermento de cerveja, realmente de sabor bem vigoroso.

Outras vezes íamos à casa Fuchs, onde havia exposição de brinquedos. Oh, os brinquedos daquele tempo! Não se pode calcular hoje o que eram: extraordinários e caríssimos! Mas de maravilhar qualquer criança! Levavam os meninos à loja para escolherem um brinquedo. E, claro, tomavam isso como pretexto para ver a loja inteira. Naturalmente, acabavam se perguntando por que deveriam escolher um brinquedo só. Não podiam ser dez? Porque toda criança tinha vontade de comprar quanto brinquedo encontrasse ali.

Tudo na vida era mais entretido e mais agradável do que nos tempos atuais.

Mas os sorrisos das pessoas me faziam perceber que, de sorriso em sorriso, em determinado momento eu acabaria adquirindo o estado de espírito de uma delas, e com ele, o defeito de uma ou de outra. Isso me causava a sensação parecida com a vertigem das alturas, aquela possibilidade de derrapar se não se presta atenção.

Daí, um movimento de recuo e de horror: se eu não me afastar muito de certos estados de espírito, eu rolo abismo abaixo. Não é possível encontrar uma posição de meio-termo em que eu consiga me equilibrar.

Eu percebia que o meio-termo era uma mentira e que ou eu me afastava inteiramente do perigo ou, ficando no meio-termo, acabaria tendo apetência pelo abismo, porque o meio termo é a união ilegítima entre o píncaro e o precipício. Estabilidade no meio-termo é um engodo, não existe, pois nele não se tem vontade de atingir o ápice, mas se tende ao abismo.

O meio-termo era, portanto, por excelência o inimigo que eu devia evitar se não quisesse despencar. Daí nasceu minha decisão de procurar o ótimo, que, não fosse esse horror do péssimo, talvez eu não a tivesse tomado. Vi-me colocado no dilema entre rumar para o píncaro do ótimo, para o vértice de bem, ou rolar para o vórtice do péssimo. Esses foram os dois elementos fundamentais na  minha ascensão para o bem: o enlevo por alguns pontos e o horror por outros.

Ou se praticam todas as virtudes, ou não se pratica nenhuma

Havia um terceiro elemento que, graças à intercessão de Nossa Senhora, não tardou a se formar em meu espírito. Era o seguinte princípio, que compreendi com clareza: é uma mentira imaginar que se pode praticar bem só uma, duas ou três virtudes. As virtudes são irmãs indissociáveis. Ou nós as praticamos todas ou não conseguimos praticar nenhuma. Portanto, as virtudes que eu  reconheço pela razão serem louváveis, mas não despertam em minha alma entusiasmo especial, mesmo essas eu tenho de praticar. E tenho de observar na íntegra, porque se não for assim, não  praticarei nenhuma. É como uma corrente da qual se rompe um elo só: ela fica sem valor.

Tomemos, por exemplo, a mentira. Qualquer um compreende que a mentira é um mal. Não se deve mentir. Aquele dito cínico de Talleyrand: “a palavra foi dada ao homem para ocultar o seu pensamento”, não passa de um gracejo de quem não tem sensibilidade moral. Porque qualquer um entende que a palavra foi dada ao homem para exprimir o seu pensamento. Portanto, não se deve mentir.

Mas eu compreendo que a virtude da veracidade talvez não suscite o máximo do entusiasmo de alguém. E que se pode, por exemplo, ter muito mais entusiasmo pela pureza, pelo heroísmo ou pela Fé, do que pela veracidade. Contudo, se a pessoa peca gravemente contra a verdade, ela perde aquele estado sem o qual nenhuma virtude vale. Perde o estado de graça, e em poucos passos terá  perdido todas as outras.

Assim, alguém pode não ter entusiasmo preponderante pela virtude da veracidade, mas desde que ele ame com autêntico fervor, com legítimo enlevo uma virtude qualquer — a da Fé, por exemplo — ele acaba compreendendo que ou é veraz ou ele não serve à virtude da Fé que tanto ama.

As virtudes são todas irmãs. Não se pode, num anel de irmãs, viver afagando uma e detestando outras… É preciso ter boas relações com todas. Não se pode viver num meio-termo que consistiria em ter boas relações com umas e não com outras.

Batalha contra as aparências

Pude fazer a apologia do ótimo conhecendo ao longo de minha vida esses princípios, refletindo sobre eles em função da mediocridade moral, tão comum nos meus jovens anos. Hoje a mediocridade é menos freqüente, pois ela é como uma fita em bobina: à medida que se vai desenrolando, de cinzenta passa a ficar cada vez mais escura, até que no fim é francamente preta! Os  anos 80 são filhos ou netos dos anos 20, e o que em geral era apenas mediocridade ontem, hoje é maldade, pois o medíocre engendra uma geração má. A mediocridade era, precisamente, o grande sofisma que tive de enfrentar.

Porque, naqueles tempos, o bem e o mal se misturavam muito. Havia tendências más encobertas de uma aparência tradicional boa. E não se podia saber com certeza se, no fundo, uma determinada coisa era boa ou má.

Nessa conjuntura, era-se levado a achar normal aquela mistura entre o bem e o mal. Ora, a condição para que eu perseverasse no bom caminho, era exatamente romper essa convicção, arrancar a máscara dos medíocres que viviam dessa composição impossível entre o bem e o mal.

E eu acabava por fim com a persuasão da maldade que havia naquela composição, a qual gerava sempre o mal, pois o bem era ali uma casca, uma aparência. Era a última brisa de uma tarde que já  se pôs, de uma luz que já está além dos montes. Há certas tardes em que o sol se põe e o céu ainda está claro: isso eram os anos vinte, debaixo de muitos pontos de vista.

Tive de batalhar! Batalhar contra o quê?

Contra as aparências, é verdade. Mas também contra a minha vontade de me contentar com as aparências. Contra a minha vontade de me dizer a mim mesmo que aquelas aparências eram reais e  levar a vida despreocupada, amena e cordial com todo mundo.

Formei a convicção interior de que era preciso ter um espírito diferente dos outros. E os outros notaram isso. Era uma grande batalha que começava!

Plinio Corrêa de Oliveira (Continua)

Uma luz brilhou para nós

Em dezembro de 1953, a propósito do Santo Natal, Dr. Plinio tecia considerações muito aplicáveis aos nossos dias(1).

“Lux in tenebris lucet”(2). Com estas palavras o discípulo amado anunciou para seu tempo e para os séculos vindouros o grande acontecimento que celebramos neste mês. Fórmula sintética que exprime o conteúdo inexaurivelmente rico do grande fato: havia trevas por toda a parte, e na obscuridade delas se acendeu a Luz. Por isso a Santa Igreja afirma com estas palavras proféticas de Isaías o seu júbilo, na noite do Natal: “Hoje surgiu a luz para a mundo: o Senhor nasceu para nós. Ele será chamado Admirável, Deus, Príncipe da Paz, Pai do século futuro, e o seu reino não terá fim.”(3)

Qual é a razão destas metáforas? Por que luz? Por que trevas?

Os comentadores são unânimes em afirmar que as trevas que cobriam a Terra quando o Salvador nasceu eram a idolatria dos gentios, o ceticismo dos filósofos, a cegueira dos judeus, a dureza dos ricos, a rebeldia e o ócio dos pobres, a crueldade dos soberanos, a ganância dos homens de negócio, a injustiça das leis, a conformação defeituosa do Estado e da sociedade. Foi na mais profunda escuridão dessas trevas que Jesus Cristo apareceu como uma luz.

Qual a missão da luz? Evidentemente, dissipar as trevas. De fato, aos poucos, foram elas cedendo. E, na ordem das realidades visíveis, a vitória da luz consistiu na instauração da civilização cristã que, embora com as falhas inerentes ao que é humano, foi o autêntico Reino de Cristo na Terra.

Não é o caso de fazermos aqui o histórico do crepúsculo da Cristandade ocidental. Basta lembrar que, do século de São Tomás e São Luís IX, deslizamos para esta nossa era de laicismo e de ateísmo militante.

O quadro que traçamos do mundo antigo poderia aplicar-se facilmente ao de hoje, em cujas trevas do erro e do pecado os homens são retidos, em essência, por três fatores: o demônio com suas tentações, o mundo com suas seduções e a carne com seu aguilhão.

De fato, entregue às volúpias da carne, o ser humano tende a atirar-se com todo o peso de sua miséria às delícias do mundo; e sua alma cheia de tanto lodo está preparada para receber a ação do demônio. Cada um desses fatores abre, pois, o campo para o outro. E por isso, instaurado numa alma o jugo do demônio, ela se torna mais escrava do mundo e da carne.

A capitulação diante de qualquer deles, por mais incipiente que seja, dá imediato vigor aos outros. A ação do demônio cresce na alma com o pecado e, por sua vez, agrava as devastações dos vícios na alma.

Mas no que consiste precisamente a ação do demônio? Em dar aos impulsos de desordem que o pecado original instalou em nós, uma vivacidade, uma energia ainda maior; em nos arrastar a uma esfera de degradação, de sensualidade e de impiedade pior ainda que a da simples malícia humana. Arrastando, pois, para baixo os pecadores, procurando dar coesão, em toda a Terra, às energias caóticas e, por si mesmas, anárquicas da corrupção, soprando-as e estimulando-as, o demônio é o verdadeiro chefe do reino das trevas no mundo.

Contudo, para certos tipos de mentalidade, o papel do demônio, do mundo e da carne na difusão das trevas não deve ser levado tão a sério. O homem contemporâneo não é senão um meninão travesso, mas bom no fundo, que só tem um ponto difícil: é irritável. Por certo ele está algum tanto longe de praticar todos os Mandamentos. A culpa, entretanto, não é principalmente sua, mas dos que não o souberam compreender. Em lugar de irritá-lo com dogmas, preceitos, penas, dever-se-ia tê-lo nutrido com o mel suave das concessões, tratado com sorrisos. Não se compreendeu isto e, como ele é irritável — e algum tanto traquinas… —, ei-lo que quebra igrejas, desencadeia guerras, multiplica revoluções.

A solução consistirá em abrandá-lo. Antes de tudo, não dizer as coisas claramente, porque “pode irritar”.

Castidade, sim. Mas pronuncie a palavra bem baixinho, só quando for indispensável; ou melhor, renuncie a fazer uso dela por muito tempo.

Obediência ao Magistério da Igreja? Sim, sem dúvida. Mas não fale propriamente em obediência, nem em Magistério: poderíamos irritar o meninão. Melhor seria falar vagamente em fé.

Pecado? Não é termo conveniente: fale-se antes em fraqueza, lapso, deslize. E cuidado! Fale-se sobre isto sorrindo.

Inferno, para quê? Se nosso meninão percebe que pode ir ter lá, acabará por sentir um terrível ódio contra Deus. Há no Evangelho algumas referências a este assunto, mas é que os publicanos ouviam falar nisso e lhes fazia bem. Nosso meninão, pelo contrário, é emancipado e se revoltaria. Deixemos o assunto para mais tarde, será mais prudente.

Tudo isso quanto ao modo de enunciar a doutrina. Quanto ao modo de aplicá-la, as concessões vão ainda mais longe…

O que nos ensina a este respeito Aquele que é, por excelência, a Luz brilhando nas trevas?

Por seu exemplo e por suas palavras, Nosso Senhor nos ensina, antes de tudo, que é preciso nunca silenciar a verdade; que cumpre proclamá-la inteira, ainda que nossos ouvintes não nos aplaudam, ainda mesmo que nos queiram lapidar ou crucificar.

É preciso anunciá-la com palavras de ameaça ou com um semblante de indulgência e de bondade? Nosso Senhor fez uma e outra coisa, conforme o estado de alma daqueles a quem Se dirigia.

Também nós, para sermos luz neste mundo de trevas, não havemos de renunciar às apostrofes candentes e ao tom polêmico, nem às palavras de doçura e incitamento. Devemos pedir a Nosso Senhor que nos dê o discernimento necessário para fazer uma e outra coisa no momento oportuno.

Santos houve que fizeram principalmente uma ou outra coisa. Não houve um só Santo que jamais desse prova de severidade, ou jamais desse prova de suavidade. Cada qual agiu segundo nele soprava o Espírito Santo, e por foram canonizados pela Igreja.

Cada um de nós proceda segundo o espírito que tem, com uma ressalva, porém, e esta muito importante: na aplicação dos princípios jamais se pode ceder. Sorrindo ou increpando, diga que o mal é mal e o bem é bem. E não deixe de estimular, incentivar, pregar o bem em todos os seus aspectos. Agir de outro modo não é trabalhar para propagar a luz, é velá-la, é querer extingui-la.

Esta é a lição que nos deixou Aquele cujo nascimento neste mês celebramos genuflexos.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (extraído de conferência)

1) Cf. Catolicismo, n. 36.

2) Jo 1, 5.

3) Introito da Missa da Aurora (Is. 9, 2. 6; Lc 1,33).

Desejo do sublime

Continuando suas clarividentes explicitações sobre a sociedade orgânica, Dr. Plinio mostra que os habitantes de uma cidade, animados pelo espírito católico, devem sempre procurar as coisas mais elevadas, o maravilhoso, o sublime. Do contrário, a cidade vai decaindo e acaba chegando à estagnação.

 

Todo regionalismo vive em torno de uma tradição que se aprofunda. Ao invés de o progresso se dar no sentido de adquirir elementos novos, realiza-se na aquisição de aprofundamentos novos, e então ocorre uma espécie de enclausuramento nos tradicionalismos ou nos regionalismos, por onde os regionalistas são tradicionais e os tradicionalistas são regionais. Isso provém da íntima ligação do espírito tradicional com as profundidades inesgotáveis, que jazem numa determinada região.

Um palácio de antigos reis transformado em Palácio de Justiça

Então, destruir uma região é desviar a atenção de suas profundidades para novidades que ficam borboleteando no noticiário. E, pelo contrário, vivificar uma região é fazê-la viver das novas conquistas que o aprofundamento proporciona. Esse dado me parece indispensável para formarmos uma noção exata de um verdadeiro regionalismo.

É importante notar o seguinte: por vezes, o tradicionalismo chega a um ponto de estancamento em que, por falta de novos aprofundamentos, ele não anda mais, fica estagnado, sem fecundidade, pitoresco, mas embolorado e malcheiroso como pode suceder com certos arquivos. Entretanto, isso nunca acontece ao verdadeiro tradicionalismo.

O que ocorre quando um tradicionalismo estagna?

Senti muito esse problema vendo uma fotografia de um pequeno palácio com as proporções de uma casa de família muito confortável, provido de certa seriedade, certo donaire. A legenda da foto indicava tratar-se do palácio dos antigos reis de um daqueles pequenos reinos — menores do que Aragão, Castela, etc., que a Espanha teve em certo momento —, hoje transformado em Palácio da Justiça. E refleti sobre o caso.

Por um lado, para o prédio não ficar abandonado ou tornar-se um museu, é melhor que ali figure o Palácio da Justiça. Mas constitui certa decadência uma construção, outrora habitação de reis, ser transformada em Palácio da Justiça, com o cotidiano próprio a uma repartição como essa. Por exemplo, as partes que entram para se querelar sobre as causazinhas locais: um pato que fugiu do quintal de um e entrou para o do outro; então, a quem pertence o pato? Os dez ou quinze metros de profundidade existentes no quintal são propriedade de quem? E o galinheiro que ali está, a quem pertence, então? Assuntos como esses são discutidos nas salas onde viveu uma pequena corte, e reinaram os pequenos reis daquele lugar.

Causa certa tristeza imaginar os primeiros dias da época em que essa cidadezinha não foi mais habitada pelos seus antigos reis, porque ela deixou de ser a capital do reino. Então, houve a alegria dos medíocres, pois, tendo ido embora o rei, a vida se tornou mais acomodada e banal.

Depois, aquela vida banal se perpetuou e a tradição transformou-se em paralisia.

A estagnação abriu as portas ao progresso descontrolado

Em seguida, entra o progresso… Por exemplo, em frente daqueles antigos palácios, transformados em repartições públicas, instalam-se um ponto de ônibus, uma bomba de gasolina e um bar com anúncio iluminado a gás neon.

O palácio dos reis continua e nele todo mundo vai discutir os frangos, os patos e os fundos de quintal. Entretanto, alguma coisa correu errada ali…

O fenômeno da estagnação é o mesmo em diversas manifestações da vida. Mas o que vem a ser a estagnação? Do que ela decorre? A que males ela conduz? Até que ponto ela é o grande argumento dos inimigos da tradição?

Parece-me ser esse um ponto muito importante dentro do assunto da sociedade orgânica, pois, mais ou menos por toda parte, o progresso descontrolado entrou porque a estagnação lhe abriu as portas.

Quando se estuda o século XIX — por excelência o período em que os progressos entraram: eletricidade, bonde, ônibus, trem, enfim todas as novidades foram muito mais do século XIX do que do XX —, nota-se uma estagnação em diversas áreas, e os povos se voltam deslumbrados para essas novidades, pois a estagnação lhes tinha fechado todos os horizontes.

Então, os partidários da tradição começam a escrever revistinhas, lembrando como tal coisa era pitoresca, tal outra era bonita. Ou fazendo uma polêmica: como se deve escrever tal palavra típica da região: com K ou com C? Nascem, então, os pequenos eruditos locais que são verdadeiros vermes devoradores de papel: “O Rei tal escreveu, em sua carta de tanto, tal coisa assim; mas tal Juiz, que era um luminar e redigiu um livro de Direito, traduzido na Universidade de Compostela, refutou de tal jeito…” E faz-se uma erudiçãozinha local, que ainda agrava o peso da estagnação. Uma espécie de necrologia.

Em geral, quando vem ao espírito esse problema da estagnação, ele se associa à ideia de um lugar pequeno no qual tudo ficou imóvel. Não obstante, essa situação pode exercer um poder de atração extraordinário.

Prêmio Nobel para um indivíduo de uma cidadezinha

Li certa vez, em uma revista francesa, o caso de uma família que vivia numa cidade bem pequena da França. Todas as noites, terminado o jantar, o pai, a mãe e o filho iam a uma confeitaria, em frente à casa deles. Embora o filho já fosse homem feito e os pais bem idosos, ainda saíam juntos, como no tempo em que ele era menino. O filho era um solteirão que passava o dia estudando, não fazia outra coisa.

Nessa confeitaria tomavam sempre as mesmas bebidas, puxavam um jogo de dominós, que ficava junto à mesa desde tempos imemoriais.

Certo dia estoura a notícia que deixou todo mundo da cidadezinha pasmo e entusiasmado.

Esse homem, que jogava dominó com os pais, passara a vida inteira estudando, sem que ninguém lhe perguntasse qual o tema dos estudos. De repente, ele recebe uma carta da comissão Nobel comunicando-lhe que, devido a um trabalho fantástico por ele realizado, receberia o Prêmio Nobel. Nessa ocasião, ele seria convidado pelo Rei para um jantar de gala no palácio, junto com sua família.

Aquilo produziu um movimento extraordinário na cidadezinha. O homem viajou para a Suécia e, no mesmo dia em que voltou para o lugarejo onde morava, foi com seus pais jogar dominó na confeitaria.

É um sintoma característico de estagnação com aquilo que ela tem de simpático, pois são costumes preservados, nos quais se nota certa candura aprazível. Isso também revela uma seriedade de afeto entre ele e seus pais, uma serenidade de vida, um desapego de uma porção de coisas que o mundanismo oferece.

Mas, de outro lado, é de assustar! Toda noite, durante uma vida inteira, jogar dominó com o pai e a mãe, sem ninguém de fora na roda!

Não se pode afirmar que, neste caso, a estagnação conservou alguma fecundidade que permitiu ao homem aquela invenção. O Prêmio Nobel foi proporcionado pela cidade, na medida em que esta evitava uma série de obstáculos que a vida moderna põe para a produção; mas a descoberta não foi, nem um pouco, inspirada pela vida local, nem trazia benefícios para esta. A cidade continuava inteiramente estagnada.

A vida popular na Idade Média

Devem existir centenas de coisas dessas, mais ou menos em todos os países da Europa.

Contudo, sempre levados pela ideia de a estagnação ser um fenômeno de pequenos lugares, nosso espírito se volta para a Ásia, África, Austrália para ver se encontra alguma coisa parecida com essa estagnação.

É evidente que nesses continentes há um mundo de aldeias. Porém, não se ouve falar de um lugar pequeno que seja célebre pelo seu pitoresco, e a respeito do qual se poderia fazer um conjunto como, por exemplo, a “Exposição do pueblo español”, em Barcelona.

Por quê? Pela simples razão de que não se constituíram aldeias nas quais houvesse um regionalismo no sentido do existente na Europa, ou seja, um local com suas características próprias, vivas, e que em determinado momento progrediu e formou um ambiente de vida distinto dos outros: quase se diria uma civilizaçãozinha.

Então, chegamos à conclusão de que a Europa, em determinado momento, teve um enorme florescimento de pequenas unidades que vicejaram extraordinariamente, e isso não se encontra em nenhuma outra zona do mundo, sendo um fenômeno de vitalidade europeia, medieval, e com a característica curiosa de ser, não exclusiva, mas preponderantemente popular.

Portanto, mais do que todas as declamações do enciclopedismo, do iluminismo sobre os direitos dos pobres, o que comunicou à vida popular uma chama, por onde cada local poderia ser uma lamparina acesa, foi a Idade Média. Não se poderia fazer coisa mais importante para o povo do que dar-lhe elementos pelos quais ele fosse capaz de gerar isso. Em vez de viver obscuramente e sem originalidade à sombra dos ricos, fazer ele mesmo, seu mundinho e sua civilização.

Em Roma e na Grécia, o povo era considerado uma ralé

Uma vez mais os incito a pensarem nesse assunto. Isso não existiu nem sequer entre os romanos ou gregos. Quem ouviu falar de uma aldeia clássica, grega, do mundo helênico, ou do mundo romano? Na cultura clássica, alguém se ocupou de aldeias, da arte popular? O povo era uma ralé anônima, no pior sentido da palavra, porque não tinha personalidade. Roma era Roma por causa de uma elite de patrícios, no começo, e de aventureiros depois, no tempo do Império, com certas características. Mas o povo não tinha nada.

Trata-se de saber qual a origem desse fenômeno na Idade Média e, tendo-a localizado, procurar estudar a estagnação.

A única força atuante, no mundo no período originário da Idade Média, era a Igreja, porque todas as outras forças do antigo Império Romano ruíram, dando lugar à barbárie, em luta contra a Igreja Católica. A barbárie, de si mesma, não tinha a intenção de combater a Igreja, mas era completamente plasmada e formada de um modo oposto ao da Igreja. E, portanto, formavam-se entrechoques, a Igreja era obrigada a dizer para tal guerreiro, tal rei ou rainha bárbara quais eram os deveres de cada um e, por vezes, eles não gostavam de cumprir.

Como surgiu o feudalismo

Tomemos a origem do feudalismo, como é narrada pela maioria dos historiadores. Em propriedades agrícolas os habitantes, atacados por hordas de invasores, recorrem ao proprietário da região, que é o chefe natural, para se defenderem. Esse proprietário se dispõe a acolhê-los nas suas próprias terras e se defender junto com eles. Então eles mesmos pensam em construir uma muralha, e com o tempo sofisticam as suas formas para resistir melhor à agressão. Depois, edificam no recinto da muralha a torre de ménage, para poder ver mais longe o inimigo, e, posteriormente, residências de refúgio para a população quando o agressor ataca.

Torna-se um sistema pelo qual o proprietário se transforma em autoridade. Todos dependem dele, e um direito público se constitui. O mesmo se passa em inúmeras propriedades, sob a pressão das mesmas circunstâncias. Surgem os castelos, nasce o feudalismo. Tudo parece tão lógico!

Mas eu pergunto se os proprietários de hoje, querendo se opor a eventuais invasões, fariam uma resistência da qual surgiria o feudalismo. Creio que não, por faltar aquele espírito católico que caracterizava os medievais. Estes eram tão católicos que punham sempre uma capela na praça central do castelo, rezavam quando o inimigo chegava, enquanto este os sitiava, e davam graças quando o expulsava. Com isso o espírito religioso ia crescendo, a virtude aumentando também, resultando daí uma expansão religiosa.

Procurar sempre o mais elevado

Resta, então, uma pergunta: como do espírito católico pode dimanar o regionalismo e o feudalismo?

Por meio de sua doutrina, evidentemente baseada na Revelação; a Igreja põe diante de nossos olhos ideais imensos, uma noção do Céu que nos dá o desejo de uma perfeição e de um tipo de vida verdadeiramente maravilhosos, extraordinários. E que faz a alma ter o anseio do admirável, do magnífico e até do sobrenatural.

Ora, o normal é que esse desejo da sublimidade e do maravilhoso repercuta na vida terrena, levando as pessoas a espelhá-lo no seu cotidiano, não se conformando com a banalidade e a vulgaridade.

Disso não decorre o desejo de cada um fazer um palácio, mas sim de ornar com verdadeira arte, beleza e bom gosto o pequeno mundo em que está.

De onde decorre algo que o mundo pré-medieval não conheceu: a necessidade de ir sempre mais alto na ordem espiritual e, consequentemente, também na temporal. Um desejo de altura mais ou menos incomensurável, que fazia darem-se, por exemplo, coisas como esta: camponeses suíços, para ocupar suas noites de inverno, passavam longas horas conversando e, ao mesmo tempo, trabalhando a título de distração. Produziam, assim, esculturas de madeira para ornar a própria matriz. Por isso encontra-se, em certas igrejas da Suíça, uma magnífica exuberância de ornamentação oriunda do trabalho popular, artesanal.

Há nisso uma espécie de desejo de subir, de melhorar, sem sair necessariamente de sua classe, mas ornando e aprimorando as suas próprias condições de existência, que é muito expressiva de uma vida local, original, profundamente modelada de acordo com as circunstâncias, e que forma propriamente o que se chama “povo” numa sociedade orgânica, que a meu ver é muito diferente do que se denomina “povo”, por exemplo, em qualquer grande cidade moderna. O povo assim movido por esse desejo da perfeição, do maravilhoso, do sublime, era a expressão mais direta da vida espiritual fervorosa.

Febricitação das grandes cidades

Nota-se nisso uma forma de vitalidade religiosa, um desejo, ainda que subconsciente, do Céu Empíreo, o qual tem como consequência que a alma não se contenta em jogar dominó toda noite, não se satisfaz com a estagnação, mas quer subir, tende, de um jeito ou de outro, para a santidade e vive na grande admiração dos Santos.

À medida que as gerações foram passando, o culto aos Santos continuou, mas a admiração por eles foi, paradoxalmente, diminuindo. O Santo deixou de ser um personagem da família, para se tornar uma pessoa na qual se pensa quando se vai à igreja, e com a qual temos relações quando precisamos de favores. Já não é mais o que era o Santo antigamente, diante de cuja imagem a família rezava unida em casa, e cujo nome era dado a vários filhos, e sua vida era conhecida por todos os membros da família, servindo de ponto de referência. O Santo era um personagem da família.

Compreende-se, assim, o processo de estagnação. Acaba a Idade Média, o impulso de ascensão diminui e termina dando lugar a um esforço penoso, para evitar a decadência. Torna-se um sacrifício meditar em Deus, nos seus Anjos, nos seus Santos. O Céu não é mais um atrativo. Com isso, o progresso verdadeiro fica cortado no seu único nervo vital.

Notamos essa estagnação nas aldeiazinhas, porém não nas grandes cidades, porque estas foram invadidas pelo progresso promotor de uma vitalidade falsa, em que a estagnação foi substituída pela febricitação, pelas neuroses, pelas psicoses. Por isso, a estagnação, vista de dentro da cidade moderna, fica até simpática.

Entretanto, a cidadezinha do interior, que vai se modernizando, acaba tornando-se uma gota sem graça da grande cidade, ou uma pequena aldeia estagnada, sem vida, mantendo ainda algumas virtudes do passado, mas também estas sem vitalidade. Em certo momento, uma parte das gerações novas rompe com aquilo. E não adianta o bom vigário pregar contra isso, porque não há o que segure esse resultado da estagnação que devora o lugar, abrindo as portas a um progresso sem tradição, sem passado.

A piedade não é um meio, mas um fim

Temos, então, dois pontos extremos e opostos: de um lado, esse progresso que rompe com a tradição; de outro, o aprofundamento tranquilo das próprias originalidades e regionalidades, movido pelo desejo do sublime.

Creio que aqui tocamos o fundo da vida da sociedade orgânica.

A meu ver, as pessoas que constituíram uma sociedade orgânica não quiseram explicitamente fazer isso. É algo muito mais profundo, como em geral é o fervor religioso, que vem de um efervescer interior de amor, de dedicação, que não passa pelos alambiques de um raciocínio, mas explode diretamente como uma garrafa de champanhe.

Como esse fervor morreu, somos obrigados a acentuar muito o lado racional, mas em condições normais, em que toda a sociedade é movida pelo mesmo impulso rumo à perfeição, essas coisas nascem subconscientemente.

O amor de Deus, a união com Ele, com seus Anjos, seus Santos na vida espiritual, a piedade podem, pela graça divina obtida por meio de Nossa Senhora, se tornar tão extraordinários que deem na era descrita por São Luís Grignion de Montfort, o Reino de Maria, e cuja grande característica é um impulso para o sublime essencialmente sobrenatural.

Um indivíduo que quisesse ser piedoso para ter uma sociedade orgânica, não seria piedoso e não faria a sociedade orgânica. A piedade não é um meio, mas um fim. Se ela deixa de ser o fim da sociedade orgânica, esta morre. É preciso nascer do desinteressado amor a Deus, a seus Anjos e Santos, à sua Igreja, portanto, à Fé e à Moral da Igreja. A partir disso, o resto floresce. v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/8/1991)
Revista Dr Plinio 201 (Dezembro de 2014)

 

Musicalidade das relações humanas

A cortesia é a perfeita relação que passa por cima do abismo que há de homem para homem. Essa força que liga este abismo chama-se amor fraterno católico. A cortesia é o lado cheio de respeito, distinção e afeto que une as pessoas diferentes e as coloca numa relação como as notas de uma música. Dir-se-ia que as notas de uma bela música estão em estado de cortesia entre si.

Se uma pessoa irrefletida passa diante de um piano que está com a tampa aberta, escorrega e se apoia no teclado para não cair, sai um som horroroso parecido com uma descortesia. Porque não há harmonia. A cortesia é a musicalidade das relações humanas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/6/1974)

A Igreja

Se devêssemos passar dois mil anos apenas aplaudindo a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, enquanto eu vivesse e as minhas mãos pudessem bater palmas, eu estaria participando desse aplauso.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/3/1980)

Santo Annon: energia e astúcia

Utilizando sapiencialmente as qualidades que Deus lhe havia concedido, Santo Annon salvou a Reforma Gregoriana que estava passando por um gravíssimo período. Sua figura nos ajuda a compreender melhor a verdadeira fisionomia da Igreja.

Santo Annon, bispo e confessor, é um dos grandes e pouco conhecidos Santos da Idade Média. A seu respeito, temos a seguinte ficha preparada por um dos membros de nosso Movimento.

Pessoa de trato verdadeiramente agradável

Santo Annon é um dos grandes santos dos primeiros anos do Sacro Império Romano Alemão. Seus altos feitos ficaram registrados não só na História, como na Literatura, pois sobre a sua vida foi escrito um poema em 876 versos, clássico da literatura medieval alemã.

Professor da escola de Bamberg, Arcebispo de Colônia e Chanceler do Sacro Império, fundador de mosteiros, a ele se deve também, em grande parte, a introdução da reforma cluniacense na Alemanha.

Era uma personalidade invulgar. De porte majestoso, bem proporcionado, seus contemporâneos o descreviam como um belo homem, grande orador, e não menor “causeur”, suas aulas e sua prosa prendiam a atenção de todos os que o ouviam, nele admirando não só a ciência, como a ortodoxia de seu pensamento. A amenidade de seu trato e a extraordinária, e mais tarde legendária, energia impunham a todos respeito e veneração.

É uma bonita descrição de um desses homens completos, muito bem constituídos fisicamente e com essa dupla qualidade: um trato muito ameno, orador, “causeur” brilhante, e homem muito enérgico. Isto demonstra quanto é verdade aquilo que o liberalismo procura ignorar: a pessoa seriamente enérgica, quando não é ocasião de usar de energia, deve ser de um trato muito agradável. E a pessoa de um trato verdadeiramente agradável, nas horas de energia, sabe ser enérgica.

O que vem a ser um trato verdadeiramente agradável? Não o de um palhaço qualquer que conta anedotas, mas é um relacionamento elevado, nobre que, ao mesmo tempo, distrai, agrada e deixa a pessoa dignificada, enobrecida. Esse era o trato de Santo Annon.

Glorioso cooperador da Reforma Gregoriana

Continua o texto:
Em 1062, num período difícil da Reforma Gregoriana, ele a salvou de uma crise que poderia ter sido fatal.

Antes de São Gregório VII, a Igreja passou por vacilações enormes, por crises, por depressões morais tremendas. E essas crises morais foram todas elas contrariadas pelo movimento de Reforma Gregoriana, que São Gregório VII, então cardeal, impôs através de vários Papas que eram discípulos dele, e depois ele mesmo, elevado ao Pontificado, com uma energia não excedida e talvez não igualada, levou à sua perfeição. A esse movimento restaura-dor, um dos maiores que tenham havido dentro da Igreja, costuma-se chamar de Reforma Gregoriana. E foi uma glória de Santo Annon ter cooperado para essa reforma.

Dificuldades em época de sucessivos papas

Com efeito, Estevão IX, o primeiro Papa eleito pelo povo romano sem consulta ao Imperador, enviou ao Sacro Império o monge Hildebrando para convencer a Imperatriz Inês, que governava na menoridade do filho, futuro Henrique IV, a reconhecer a eleição. A Imperatriz Inês, que era Condessa de Poitiers e foi educada num ambiente cluniacense, não opôs dificuldades em aceitar. Mas Estevão IX morrera antes da volta de Hildebrando. Na hora da morte, o Papa fizera o clero e a nobreza jurarem que não elegeriam um novo soberano pontífice antes de Hildebrando chegar. Não respeitando o juramento, o clero e a nobreza se reuniram logo depois dos funerais, e elegeram o Santo Padre.

São Pedro Damião, Cardeal-Arcebispo de Óstia, protestou e fugiu de Roma, indo ao encontro de Hildebrando, que estava em Florença, e logo reuniram um Sínodo. Foi eleito Nicolau II, que a Imperatriz também reconheceu. As dificuldades começaram quando Nicolau II decretou que a eleição dos Papas seria feita pelo Colégio dos Cardeais.

A nobreza romana revoltou-se. E os adversários da Reforma Gregoriana conseguiram convencer a Imperatriz de que não devia aceitar o decreto. Pouco depois morreu Nicolau II, e Hildebrando fez o Sacro Colégio elevar ao sólio pontifício Alexandre II. O episcopado da Lombardia e alguns bispos alemães, com a anuência da Imperatriz, reuniram-se e elegeram o antipapa Cádalo, Bispo de Parma, que tomou o nome de Honório II.

Quem deve eleger o Papa? Questão decisiva para o êxito da Reforma Gregoriana

Aqui estava em jogo uma questão muito importante. A eleição do Santo Padre foi, em todos os tempos, um dos elementos decisivos da política mundial, tanto mais na Idade Média, quando o mundo era muito mais católico do que hoje e, portanto, muito mais sensível a qualquer pensamento, vontade, pronunciamento ou ato do Sumo Pontífice.

Porém, se tinha importância a eleição de um Papa, outra pergunta também era muito importante: quem o elegeria? Vemos definirem-se duas tendências diversas: uma que considerava estarem os nobres e o clero de Roma habilitados a eleger o Pontífice; outra julgava que este deveria ser escolhido pelo Sacro Colégio.

Em rigor, não era contra a instituição divina que o Papa fosse eleito pelos nobres e clero de Roma. O Direito Canônico pode atribuir-lhes tal faculdade como poderia concedê-la também ao povo romano. Mas do ponto de vista da conveniência, quer dizer, para assegurar melhor a eleição de um Papa digno do cargo, era muito preferível naquele tempo — e o é em tempos normais — que a escolha fosse feita pelo Sacro Colégio, pois este representa uma aristocracia, uma elite dentro da Igreja, sendo um conjunto de clérigos considerados mais eminentes, pre-claros e seguros pelos Pontífices anteriores.

A palavra “cardeal” vem de cardo, em latim, que significa o gonzo da porta. Os cardeais estão para a Igreja como os gonzos para uma porta: sustentam-na, permitindo e facilitando-lhe o movimento. Era, pois, natural que esse escol de colaboradores dos vários Papas, participando em grau subordinado do governo e conhecendo melhor do que ninguém o ambiente eclesiástico e as necessidades da Igreja, elegessem o Santo Padre.

Isso seria certamente mais adequado do que se a eleição ficasse a cargo de clérigos de uma ordem inferior, incumbidos da direção ou do exercício de atividades na diocese mais importante do mundo, é verdade, mas voltados para problemas locais, circunscritos à Diocese de Roma; enquanto os cardeais são uma elite internacional. Ora, a missão do Papa não é apenas local, mas principalmente mundial.

Por outro lado, os nobres romanos eram os senhores de pequenos feudos nos arredores de Roma, e que muitas vezes guerreavam por seus interesses. Havia o risco de escolherem um Papa de acordo com suas conveniências pessoais ou familiares.

Portanto, era natural que os partidários da Reforma Gregoriana quisessem transferir essa atribuição para os cardeais.

Vemos que se pronuncia um incidente no qual o monge Hildebrando, cardeal e futuro Papa São Gregório VII, convenceu o Pontífice novo de transferir os poderes de eleição para o Sacro Colégio. Naturalmente, o clero e a nobreza de Roma ficariam indignados com isso, pois perdiam um poderoso elemento de influência política. Então, foram logo ao encontro da Imperatriz do Sacro Império Romano Alemão para obter que ela se solidarizasse com eles.

Debaixo de certo ponto de vista, a Imperatriz tinha interesse nisso porque, no sistema anterior, o imperador — ou a imperatriz, quando o imperador era menor de idade — interferia na eleição. Entretanto, feita a eleição pelo Sacro Colégio, as possibilidades de interferência do poder imperial se tornavam muito menores.

Esse choque de interesses comprometia a Reforma Gregoriana que, sendo um movimento de reestruturação e reorganização da Igreja, estava maximamente empenhada em que o órgão adequado elegesse o Sumo Pontífice.

Num momento crucial, Santo Annon intervém com astúcia

Alexandre II e Cádalo foram para Roma e disputaram a cidade. O Papa tinha contra ele o Sacro Império, boa parte da nobreza, e não podia contar com o auxílio do chefe normando Roberto Giscard, que não estava em bons termos com a Santa Sé. Havia até indícios de que ele simpatizava com a causa de Cádalo, por interesses pessoais.

Foi nesse momento crucial que Santo Annon resolveu intervir. Combinou com alguns nobres alemães um golpe de Estado.

Sabia que a Imperatriz Inês gostava de parar em determinada ilha quando viajava pelo reino.

Era uma ilha aprazível e lá costumava ela repousar das fadigas da viagem.

Santo Annon mandou construir uma barca esplêndida, riquíssima, adornada com toda espécie de obras de ar-te: finíssimos tapetes cobriam o chão e as paredes; cortinas dos mais preciosos tecidos vedavam as janelas. Toda a barca estava revestida de boa madeira, com incrustações de ouro e pedras preciosas.

Quando a barca ficou pronta, Santo Annon permaneceu à espera de uma ocasião propícia para utilizá-la.

Notem a atmosfera bonita em que essas coisas se passavam: uma ilha aprazível, uma barca linda, com cortinas e incrustações de pedras preciosas, à espera da Imperatriz. Que lindo teatro para uma cena histórica! Como isso é mais bonito do que um avião para se passar qualquer episódio da História humana!

Essa ocasião se apresentou pouco depois, quando a Imperatriz anunciou uma viagem a Nimegue. Santo Annon, com outros conjurados, viajou diretamente para a referida ilha, chegando lá antes da corte. Quando esta lá aportou, na hora do almoço, Santo Annon, como Chanceler do Império, sentou-se ao lado de Henrique IV, que tinha então seis anos. Fez a conversa cair sobre a barca, e a descreveu com toda a minúcia, maravilhando o menino. Logo depois do almoço, Henrique IV manifestou o desejo de visitar a barca. Recebido com todas as honras, assim que o rei subiu a bordo, os remadores, já avisados, puseram a embarcação em movimento, afastando-a da ilha.

A Imperatriz e os nobres, que tinham ficado na ilha, promoveram um grande tumulto, e o menino-rei, amedrontado, atirou-se ao rio.

O menino-rei era uma víbora; foi o grande inimigo de São Gregório VII, mais tarde.

O Conde Egbert de Brunswick se jogou na água e o trouxe de volta para a barca. Santo Annon levou Henrique IV para uma das salas e teve com ele uma longa conversa, convencendo-o de ir para Colônia, onde seria convocada uma assembleia de nobres para discutirem a situação.

Faço um comentário colateral a respeito da mentalidade dos meninos naquele tempo. Às vezes, aos 14 ou 15 anos, meninos começavam a comandar exércitos, ou dirigir impérios; e, muitas vezes, dava certo. Vemos aqui Santo Annon tratando seriamente com um menino de seis anos sobre política e convencendo-o.

Alguém poderá objetar: “Mas o menino não tinha nenhuma resistência possível a oferecer a um homem da qualidade de Santo Annon”.

É possível. Em todo caso, Santo Annon julgou que não podia resolver o caso só com brinquedinhos e fazendo cocegasinhas no queixo do rei; mas precisava dar uma argumentação política. Deu, e o monarca aceitou. Quer dizer, trata-se de um nível de menino que não é comum.

Para se compreender bem essa atitude de Santo Annon é preciso esclarecer que, em caso de regência, a posse do rei pelo chanceler já era um bom título para que ele se tornasse regente. Portanto, quando o rei era menor, o regente do reino era a mãe, mas também podia ser o chanceler, se este estivesse na posse do rei-menino. E o golpe dele foi roubar o rei-menino dentro dessa “ratoeira” de madeiras preciosas, seda e pedrarias. Uma coisa que nos deixa um pouco interditados quanto à liceidade, se não fosse o fato de que é Santo Annon quem fez, e, portanto, isso deve ter suas razões históricas que provavelmente não aparecem na ficha.

Sínodo em Colônia

Em Colônia, os grandes da Alemanha se reuniram e, depois de se informarem dos acontecimentos, decidiram que a regência caberia ao arcebispo, em cuja diocese estivesse o rei. Como Henrique IV estava em Colônia, o regente seria Santo Annon. Que era Arcebispo de Colônia…

A 27 de outubro de 1062, reunia-se um sínodo presidido por Santo Annon, que aceitou o decreto de Nicolau II e reconheceu a eleição de Alexandre II; o Duque Godofredo de Lorena foi designado para levar o Papa a Roma, e dar-lhe posse da cidade. A Reforma Gregoriana estava salva.

Esse é um dos inúmeros atos que mostram não só o papel decisivo de Santo Annon numa crise gravíssima, mas também sua astúcia diplomática que repetiu em muitas outras ocasiões.

É lamentável ver como a notícia dessas grandes figuras se apaga. Como ela faria bem num livro de piedade! Como seria interessante ensinar alguém a dizer: “Meu Deus, dai-me a energia e a astúcia de Santo Annon! Santo Annon, rogai a Nossa Senhora por mim, para que eu me pareça convosco!” E rezar essa jaculatória diante de uma imagem de Santo Annon “bon parleur”, de espada na mão, olho de raposa e alma de bem-aventurado, organizando as coisas. Como isso faria bem!

Diferença entre o pecador medieval e o pecador filho da Revolução

Alguns anos depois, a Imperatriz Inês, que se tinha recolhido a um mosteiro, arrependeu-se do que fizera. Um dia a cidade de Roma surpreendeu-se, assistindo a um espetáculo só possível na Idade Média: a Imperatriz apresentou-se às portas da cidade, vestida como penitente, descalça e com uma corda ao pescoço, rogando permissão para entrar e pedir perdão ao Santo Padre por tudo quanto tinha feito. Recebida por São Pedro Damião, este a absolveu de todos os pecados e daí em diante, até a morte do Cardeal, foi seu confessor.

Ela, que tinha sido a grande inimiga de São Pedro Damião, reconheceu ter andado mal criando entraves ao movimento salvador da Reforma Gregoriana. Mas assim era a penitência na Idade Média, época que se poderia caracterizar pela radicalidade:  O indivíduo cometia, às vezes, pecados de arrepiar; mas, quando se arrependia, praticava também penitências de arrepiar.

Esta Imperatriz deixa todas as pompas terrenas, recolhe-se a um convento para cuidar de sua vida espiritual e, meditando, reconhece ter procedido mal. Em rigor, ela não seria obrigada a esse ato público de penitência. Que ela devesse procurar São Gregório VII ou São Pedro Damião para pedir perdão, era inteiramente cabível. Mas podia fazer isso reservadamente. Não, ela quis praticar um ato público de reparação, porque público tinha sido o seu pecado. Apresenta-se, então, às portas de Roma, vestida de saco, com uma corda ao pescoço, e se dirige a uma igreja para pedir perdão.

Depois de ter sido perdoada, torna-se amiga e penitente daquele a quem ela ofendera, confiando sua alma à direção dele. Que beleza há nessa reconciliação!

São Pedro Damião — vendo aquela Imperatriz vestida pobremente, ajoelhada perto dele, e recordando-se do tempo em que ela lhe dava dor de cabeça, introduzida ali como um cordeiro, e encantando, por esta sua atitude humilde, a alma deste santo Cardeal — louvava a grandeza da graça que opera tais transformações nas almas humanas. Isto é Idade Média!

Talvez nunca se tenha falado tanto a respeito do perdão quanto em nossos dias. Fala-se, por vezes, até o abuso. A propósito de qualquer coisa se repete: “Ah, Deus perdoa!”  Mas esse perdão que todo mundo está certo de receber, poucos pedem; e, quando pedem, fazem-no mais ou menos às ocultas. O senso da gravidade do pecado desapareceu. As pessoas perderam este senso, não são lógicas, falta-lhes coerência, não têm Fé viva. Elas só se lembram do pecado para dizer que vai ser perdoado; e só se recordam do perdão para poderem pecar mais tranquilamente. Essa é a mentalidade do homem contemporâneo.

Comparem o pecador medieval com o pecador filho da Revolução, e verão a enorme diferença: um é suscetível de grandes arrependimentos à maneira de Davi; grandes regenerações e, eventualmente, até grande santificação. O outro, se é que tem um arrependimento sério, pede um perdãozinho superficial.

Qual a causa desta diferença de atitude? Em última análise, este é o efeito da Revolução. É ela que exacerba no homem o orgulho, a vontade de não reconhecer a gravidade dos pecados e de não fazer penitência, criando-se o estado de dureza que vemos tão generalizado nos dias de hoje.

Quantos pecados cometidos em nossos dias mereceriam uma penitência pública! Nesses casos, um padre, antes de conceder a absolvição, agiria muito bem se exigisse uma reparação pública.

Entretanto, a debilidade, o liberalismo, tantas vezes até no próprio confessor, criam esse clima crepuscular no qual estamos…

Olhemos para figuras como a de Santo Annon e compreenderemos melhor a verdadeira fisionomia da Igreja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência de 29/3/1974)
Revista Dr Plinio 213 – Dezembro de 2015

O amor ao maravilhoso por meio da admiração aos arquétipos

Um dos melhores modos de preparar-se para a visão beatífica é, já nesta Terra, amar o maravilhoso por meio da admiração aos arquétipos. Que relação tem esse amor com a prática do primeiro Mandamento?

 

Para saber o que é um arquétipo, é preciso saber o que é um tipo: a palavra arquétipo vem de “arqui” e “tipo”.

Definindo o que é um tipo e um arquétipo

Arquibancada é uma bancada por cima de outra. Tal coisa é arqui-conhecida, quer dizer, há uma porção de outras coisas que são conhecidas, esta é mais do que todas as outras; mais do que muitas outras.

Então, cada conhecimento, vamos dizer, cada degrau de uma escada é análogo ao outro, mas o mais alto degrau da escada pode ser mais ornado, com um tapete que deita suas franjas. É o mais importante, porque é o fim da escada. Ele é, de algum modo, o “arquétipo” dos outros degraus.

Na linguagem de nossa comissão de estudos chamamos de arquetipia o fato de que Deus pôs nas criaturas uma ordem, uma relação, pela qual umas são “tipo” das outras e a que está mais no alto é a arquetípica. Quer dizer, é o tipo dos tipos.

Uma rosa, por exemplo: é bonita, agradável de ver. É possível que alguém goste de olhá-la, embora não a ache “tipo”. Mas se ela tem todas as formas de beleza próprias a essa flor, dizemos: “Rosa é isto!” Ou seja, é uma rosa que caracteriza, que resume em si, que apanha as qualidades de todas as rosas. É um tipo!

Fulano é um brasileiro típico. O que quer dizer isto? Que se trata de um brasileiro que reúne em si as qualidades comuns da nação — qualidades e defeitos! —, mas de um modo especial aquilo por onde o brasileiro, nas suas qualidades e nos seus defeitos, é diferente das outras nações. Então olha-se para ele e diz-se: “Aquele é típico”.

Dentro do Brasil há tipos. Pode ser um gaúcho típico, um catarinense, um paranaense, um paulista, um carioca. Percorreríamos toda a lista dos Estados, cada um tem seu tipo. Quer dizer, ele tem os traços que todos têm, mas aquilo por onde, naquele Estado as pessoas são diferentes das outras, ele tem muito marcado. Então, ele é um tipo aquele Estado.

O arquétipo é o tipo multiplicado pelo tipo.

Outro exemplo: “Fulano é um siamês típico”. Quer dizer que ele tem tudo quanto é próprio a alguém que nasceu na Indochina onde havia o antigo Reino do Sião. Ou seja, ele tem tudo quanto é próprio a quem nasceu ali, mas tem de um modo característico que o diferencia dos outros. Quando esse “tudo” que ele reúne é “tudíssimo”, e o que o diferencia, diferencia muito, então ele é um arquétipo. Ele tem aquilo levado ao mais alto grau.

Tipos e arquétipos na Criação

Então, a tese é esta: Deus nosso Senhor criou as coisas de tal maneira que, por exemplo, toda espécie de pedras acaba tendo uma que é arquétipo das outras. Há pedras comuns, pedras “tipos” e pedras “arquétipos”. Podemos imaginar um rubi que um joalheiro pega com uma pinça. Perguntam a ele:

— Que pedra é essa?

Ele analisa, pensa um pouco e diz:

— Será um berilo? Será uma turmalina vermelha? Será uma granada?

Ele pensa mais um pouco e diz:

— Isto aqui é um rubi!

Se lhe dão uma outra pedra, ele olha um pouco e diz:

— Isto é um rubi!

Este é um “tipo”.

O primeiro é um rubi meio apagado, meio que se confunde com outras coisas. O segundo, não. É um rubi típico! Mas se lhe mostram um rubi da coleção dos antigos xás da Pérsia, um rubi multiplicado pelo rubi, ele diz:

— Oh, que rubi!!!

Tomemos outra coisa: um esquilo. É um bichinho tão engraçadinho, e faz coisas que têm muito de engraçadinho.

Entendemos, e há certos fundamentos disso em São Tomás, que todos os esquilos que Deus criou desde o começo do mundo até ao fim do mundo, não são criados a esmo, mas formam uma coleção. De maneira que todo os modos de ser principais, possíveis no gênero esquilo acaba até o fim do mundo existindo. E formam uma coleção de esquilos que morrem. Mas Deus criou essa coleção de esquilos.

Coleção de coleções

Assim tudo está coleções no universo. Mais perfeitas, mais graduadas, menos graduadas, mas tudo forma coleções.

Eu me lembro ter lido uma vez que num lugar do Polo Sul, por debaixo da neve — o Polo Norte é todo feito de água consolidada, já no Polo Sul há terra; terra é um modo de dizer, há corpos sólidos — há cardumes de camarões tão numerosos que através do gelo meio transparente se percebe o róseo passear. Não é bem o róseo, é a cor típica daquele camarão.

Todos os camarões desde o começo do mundo até o fim, todos os camarões, no fim, esgotam uma coleção. De maneira que quem os visse — se fosse possível ver todos os camarões que houve e haverá até o fim do mundo — compreenderia que é uma verdadeira beleza.

Alguém poderá dizer:

“Por que Deus faz isso? Se esses bichos desaparecem e Ele, no entanto, é eterno e tem em Si todas as perfeições, que lucro tem em ver esses bichinhos?

Para dar uma resposta: basta que os Anjos vejam para se justificar. Os Anjos assistem a tudo isso. Eles estão colocados, de algum modo, fora do tempo. Para eles tudo é de algum modo simultâneo; de algum modo, eu estou simplificando. Então, eles têm essa noção, eles cantam glórias a Deus.

Alguém dirá: “Mas quando acabar o mundo acabou isso também”.

Não, porque na recordação deles fica. Fica na nossa admiração, porque nós não vemos como eles e não podemos imaginar como é. Então, é uma bonita coisa, por exemplo, olharmos para o esquilinho e perguntarmo-nos: “Quantas modalidades de esquilo houve e haverá até o fim do mundo? Em cada gênero, quantas espécies? Em cada espécie, quantas famílias? Em cada família, quantos indivíduos? Que riqueza da obra de Deus! Que maravilha há dentro disso!” Dá para uma meditação muito bonita.

Seria interessante um dia, com calma, tomarmos alguns exemplos e analisar. Seria uma coisa muito adequada, muito boa!

Imaginem todas as criaturas, já não apenas cada gênero formando uma coleção, mas todas as criaturas que há ou houve na Terra, formando uma coleção de coleções — notem que os Anjos veem isso assim! — podemos imaginar a variedade.

Depois, em cada pináculo de uma coleção, um arquétipo, que é como o rei e o monarca daquela coleção! Várias modalidades de arquétipo, porque a natureza, vamos dizer, dos esquilos é tão rica que não basta ver um para dar uma ideia do “tipo” de esquilo. Oito, cinco, cinquenta, cinquenta mil arquétipos de esquilos. No fim pode-se imaginar o rei dos esquilos!

Mensagens de Deus

Isto que estou falando é acessível, é fácil de entender. E distrai o espírito. Por exemplo, não dá certo repouso tratar disso? Ora, a matéria é filosófica… Acredito que sendo apresentada a coisa de um modo humano, vivo e não apenas esquelético, as coisas da Filosofia podem atrair, e aqui está um exemplo concreto.

Agora, por que que Deus criou tudo isso? É para os Anjos verem. Está bem. Só para isso? Haverá uma outra razão? Há. É que todas essas coisas exprimem de algum modo a perfeição infinita d’Ele. Cada ser que existe é como que uma mensagem de Deus que nos diz:

“Meu filho, note, Eu também sou isto! O esplendor de todas as auroras, a majestade de todos os meios-dias e a dignidade vitoriosa de todos os ocasos, tudo isto reflete-Me a Mim. E se Eu devesse ser conhecido apenas nesse filme fantasmagórico que representasse todas as auroras, todos os meios-dias e todos os ocasos de todos os lugares do mundo, em toda a História, ainda Eu, nem de longe, estava esgotado para tu teres uma ideia do que Eu sou. Mas enfim, aqui está uma coleção que pode dar uma ideia genérica, global do que sou Eu, debaixo desse ponto de vista.

“Olhe agora para o esquilo! Na sua agilidade, naquilo em que ele faz sorrir, compreenda que há algo por onde Eu sou infinitamente aprazível, atraente, distensivo. Infinitamente… Sendo infinito, Eu tenho também em Mim a matriz infinita daquilo por onde o esquilo é engraçadinho. Poder-se-ia dizer: ‘Eu sou o mino, Eu sou a graça! Eu sou a majestade, Eu sou a bondade. Veja, meu filho, são mensagens que Eu dou!’”

O mais alto cume

Outro exemplo. Há uma imagem muito bonita — aliás, são duas imagens meio parecidas —; uma é a de Notre-Dame, está na fachada da Catedral de Notre-Dame de Paris, é Nossa Senhora com o Menino Jesus nos braços. Ela está complacente, muito materna com Ele que repousa posto nos braços d’Ela com intimidade! Mãe e o Filhinho criança. Ela é régia. O Menino Jesus, Homem-Deus, não terá feito algumas coisas à maneira de criança e com graça de criança para Ela olhar?

Outra imagem parecida é a de “La Virgen Blanca”.. São Luís, rei de França, primo-irmão do rei São Fernando de Espanha, mandou essa “Virgen Blanca” para a Catedral de Toledo, onde é conservada para veneração. É uma obra-prima. Ela tem uma expressão ligeiramente entretenida da reação infantil de Deus em face d’Ela! E Ela que é Filha do Padre Eterno, Mãe do Verbo Encarnado e Esposa do Espírito Santo, que conhece Deus como jamais criatura humana conheceu e que tem a ideia de todas as majestades, todas as grandezas de Deus como nenhuma criatura humana teve, Ela sabe que Deus, da excelsitude de suas perfeições, a está fazendo sorrir.

Sente-se o envolvimento do carinho, da bondade e um incitamento à confiança na misericórdia; tudo isto dá mil ideias sobre Ele, que é o ápice de tudo. É a ponta, o mais alto cume de tudo.

Coluna símbolo de certas almas

Mais: Ele não é só o mais alto cume. É mais do que isso.

Uma vez vi, numa ruína de um lugar de civilização greco-romana da Ásia Menor, no meio do cacareco, uma só coluna de pé! Havia acontecido tudo, mas aquela coluna tinha ficado de pé, sozinha! Eu senti um arrepio vendo-a.  Era uma coluna de ordem coríntia, muito ornada, com as folhas de acanto. Pensei: “Por que razão eu estou tendo essa impressão? Por que chegou a me arrepiar? É porque essa coluna lembra certo tipo de resistências que o homem pode opor, quando tudo em torno dele cai, mas ele continua de pé”.

Havia uma altiva família de príncipes, em Roma, que se chamava Colonna — Colonna quer dizer coluna — e o brasão deles era uma coluna com os dizeres: “Mole sua stat” — por seu próprio peso, por sua própria figura, está de pé.

Aí eu percebi qual era a razão pela qual aquela coluna me tinha arrepiado. Começo por dizer que não me arrepio com arte grega nem romana, não tenho grande interesse. Tem coisas muito bonitas, mas não é para o meu gosto especial. Cada um é lá de um jeito. O meu é este!

Aquela coluna me impressionou, não por ser de estilo grego, mas por estar de pé daquela maneira. Entendi que a coluna lembrava uma ordem de seres, uma categoria de seres muito superior a ela, que é o homem. O fato de lembrar o homem, de indicar que ele transcende a coluna por sua natureza — ele é muito mais! A coluna tem, em pedra ou em tijolo, o que o homem tem na alma. Firmeza de alma. Essa firmeza o homem-coluna tem!

Por exemplo, Santo Atanásio chegou a ser muito perseguido porque combatia os arianos com muito vigor. No tempo do Império Romano do Ocidente e do Oriente, já cristianizado, católico, o mundo inteiro, de repente, ficou ariano e ele quase ficou sozinho na luta.  Foi tão perseguido que em certo momento ele não teve outro remédio, para evitar ser morto, do que entrar na sepultura dos pais e morar ali, escondido. Mas ele lutou contra tudo e contra todos e o Concílio de Niceia, com gáudio enorme, acabou definindo algo sobre a relação da natureza humana e da natureza divina em Jesus Cristo, de acordo com a verdadeira doutrina e contra o que Ario queria. Daí decorria que Nossa Senhora era Mãe de Deus.

Santo Atanásio pode ser chamado a coluna da Igreja. Pobre coluna que eu vi de pé no meio das ruínas… Um terremoto a derruba! Nada derrubou Santo Atanásio!

Ele tinha a graça de Deus que o ajudou. Mas ele correspondeu! A muitos Deus oferece a graça e não correspondem. A ele não, Deus ofereceu e ele correspondeu largamente, generosamente! O nome dele ficou com uma espécie de glória de fogo na História da Igreja.

Santo Atanásio transcende as colunas. Quer dizer, ele é de uma natureza superior. Aquilo que a coluna tem por analogia ele tem com muito mais propriedade, pois está na natureza humana.

Deus é transcendente. O que tem o esquilo, o rubi, a coluna, Santo Atanásio, Deus é tão superior, mas tão superior que Ele transcende a isso. É de uma superioridade que é um abismo entre Ele e nós. Para lá desse abismo está a perfeição d’Ele.

Pelo seguinte: podemos dizer que Santo Atanásio era fiel, era forte. Deus não é nem fiel nem forte, Ele é a Fidelidade, a Força. Todo mundo que é fiel o é por uma participação d’Ele. Ele é o Motor Imóvel. Tudo subsiste porque Ele sustenta. Por cima de tudo está Ele!

Em busca do mais excelente

Para compreendermos essa relação e para se ter uma certa noção da infinitude de Deus, consideremos que Ele criou uma coleção enorme de coleções, de tipos e de arquétipos. O homem não é o arquétipo da coluna; Santo Atanásio está para a coluna numa relação, não igual, mas um tanto parecida com a relação entre Deus e o homem. Deus, não tem ninguém acima de Si, Ele é supremo, perfeito, infinito.

Então o que acontece com a natureza humana? Quando ela é reta, instintivamente procura os arquétipos.

Uma criança deitada no berço, que apenas sabe dizer “maaaaa”, se amarrarem num fio de linha uma bolinha de pingue-pongue, branca e comum, o seu instinto lhe diz que algo existe. E ela procurará desajeitadamente com os braços, pegar a coisa. Quando pega, ela tem o instinto de propriedade. Tenta-se tirar e ela não deixa… Mas há algo que não falha: há bolas bonitas que se põem em árvores de Natal. Eram bonitas, com cores reluzentes, dourado, verde, vermelho, azul, cores lindas! Se suspenderem ao mesmo tempo diante da criança a bolinha de Natal e a de pingue-pongue. Ela tem um movimento para o maravilhoso: ela vai para aquilo que tem mais luz! É uma coisa instintiva!

Ponham para uma criança um instrumento de música que bata: pam! pam! pam! — um só som. A criança se habitua e não nota. Imaginem que se ponha um pouquinho de música. A criança, estando um pouco mais desenvolvida, presta mais atenção. Por quê?

Porque a sua natureza é apetente de maravilhoso, no fundo apetente de Deus! Se de algum modo, nos seus sentidos, ela fosse tocada por Deus, ela inteira se voltaria para Ele. A criança apetente do maravilhoso e no fundo, por isto mesmo, apetente de Deus, ela, quando se coloca diante de algo mais excelente, ela tende para aquilo que é mais excelente. Isso é reto. Pode ser que depois a criança abuse, tenha a mania de ter uma coisa, desordens próprias da natureza humana. Mas, em si, este primeiro movimento é um movimento reto. É um movimento pelo qual o homem quer aquilo que é mais excelente, que lhe convém mais!

“Enorme”, um cavalinho de pano

Por causa disso, a criança tem uma imaginação muito fértil. Ela facilmente atribui aos brinquedos que tem uma qualidade que eles não têm.

Uma vez passei por uma cruel decepção. Eu tinha talvez três ou quatro anos e possuía um brinquedo comum: um cavalinho de pano posto sobre umas rodinhas com eixo de metal e havia um laçozinho pelo qual eu podia puxar o cavalo. Ele, para meus braços, era um cavalo muito grande, tinha até uma certa dificuldade de segurá-lo, então, chamava-o de “Enorme”.

Quando ia brincar, pedia para me darem o meu “Enorme”.

Quando minha mãe adoeceu, fui com ela para a Europa, para ela ser operada, e guardaram num armário o “Enorme” para eu brincar quando voltasse.

Durante a viagem à Europa, de vez em quando eu falava do “Enorme” e quando voltei, eu tinha talvez um ano a mais e nesse período um ano faz uma boa diferença, pedi:

— Quero o meu “Enorme”!

Levaram-me, lembro-me como se fosse hoje, para o quarto do andar térreo da casa, onde havia um armário onde se guardavam os brinquedos de minha irmã, de minha prima e meus. Estava tudo trancado, porque todo mundo esteve fora nesse período. Então, tiraram e me deram o “Enorme”.

A minha primeira reação foi:

— Esse não é o “Enorme”!

Risadas de duas ou três pessoas em torno de mim. Era terrivelmente parecido com o “Enorme”, mas terrivelmente mais “poca” do que o “Enorme”. Qual era a razão?

Em parte eu tinha crescido, o “Enorme” tinha deixado de ser enorme. Em parte, eu via o “Enorme” e notava muito que ele era de pano; quando fiquei mais velho, vi que era um boneco. Quando eu fui viajar imaginava-o quase como se fosse um ente vivo. Eu atribuía ao “Enorme” algumas qualidades que um cavalo deveria ter e que um boneco não podia ter. Estava, no fundo, à procura da arquetipia do cavalo, de alguma coisa que o transcendesse: era o cavalo vivo!

Desejo de coisas mais altas

Coisas dessas são movimentos que existem na alma de todas as crianças. E uma das coisas que faz a maravilha da criança é exatamente isto.

Por exemplo, a árvore de Natal. Não há quem, em criança, não se tenha extasiado diante de uma árvore de Natal. Mas o que é a árvore de Natal?

Podemos imaginar que ela seja a figura de uma árvore como poderia existir no Paraíso terrestre.

O homem como está na terra de exílio, não tem as coisas como as do Paraíso. Nele as coisas são muito mais bonitas. O que no Paraíso é mero tipo, para a terra é um arquétipo não alcançável. Então, o homem imagina a árvore de Natal e a criança se encanta, porque sua alma é desejosa de uma perfeição não existente nas coisas que existem. E ela quereria uma ordem de coisas, quereria uma natureza, quereria outras pessoas, quereria tudo como não existe, porque a sua alma foi feita para coisas maiores e deseja essas coisas maiores.

Agora, porque ela deseja essas coisas maiores acontece que ela tem uma forma de talento por onde ela como que adivinha a perfeição que tudo deve ter. E por causa disso também, a criança tem uma imaginação muito criativa e tem o senso do maravilhoso levado a um alto grau.

Educar catolicamente

Numa educação verdadeiramente católica, os pais deveriam fazer o quê? Lecionar, ensinar às crianças a realidade inteira. Quer dizer, o que tem aqui é isto. É assim porque estamos na terra de exílio, foi cometido o pecado original, depois nós também pecamos, o que merecemos é isto. Isso é muito bonito. Então, o esquilo é muito bonito! Mas se quiser imaginar que haja esquilos se movimentando no Paraíso, como seriam?!

E quando passa, às vezes, um bicho muito extraordinário: uma borboleta azul e prata, um beija-flor, alguma coisa assim, temos a impressão de que se extraviou do Paraíso e foi parar na Terra!

Por isso, quando uma criança que tem uma rede dessas para pegar borboleta, vê passar — diante de si, num parque ou na mata brasileira, ou sul-americano em geral, suponho —, uma borboleta azul e prata voando, a criança fica louca e quer pegar de todo jeito. É algo de maravilhoso que ela quer pegar.

A essa tendência, o pai ou a mãe deveria dizer:

“Olha, está vendo, Deus fez assim o Paraíso. Isso aqui era o ponto de partida. Isto aqui está aqui para você ter ideia de como as coisas poderiam ser e não são. Procure imaginar, olhe para o que Deus fez de maravilhoso, procure prestar atenção, procure imaginar como seria o Paraíso. Procure fazer com que tudo quanto você mexa, você modele, tenha alguma coisa que exprima essa sua tendência para o Paraíso. Rume para a perfeição!

“Mas, pobre Paraíso terrestre em comparação com o Paraíso celeste! No Paraíso celeste não há flores, há Anjos! E os Anjos estão dispostos desta maneira, daquela outra. E por cima de tudo está Nossa Senhora, mais sua Mãe do que é sua própria mãe. Porque Ela te ama mais do que todas as mães juntas amariam o filho único que tivessem. A você! E se você se sente um ratinho para ser amado assim por Nossa Senhora, acredite porque é de Fé, a cada ‘ratinho humano’ Ela ama assim! Creia e confie! Alegre-se e reze! Cuide de servi-la, de batalhar por Ela!

“Mas olhe para os olhos de Nossa Senhora, você verá que no fundo há um “lumen” que vai muito além do d’Ela. Ela está olhando para você, mas Ela, ao mesmo tempo, está olhando para alguém, [esse] alguém é o Divino Filho d’Ela! Há um “lumen Christi”, uma luz de Cristo n’Ela que já vai além do humano. É humano, mas é divino. Mais ainda, Ela está vendo Deus face a face! Olhe para os olhos d’Ela e é como se você olhasse num espelho para ver o Sol: o maravilhoso do maravilhoso do maravilhoso, a perfeição de todas as perfeições!”

Se todos os homens tivessem isso diante de si, o mundo não seria outro? Por exemplo, um sermão sobre isso numa igreja, realçado por algo que tem a palavra do padre que a do leigo não tem: é a graça do sacerdócio. Realçado pelo púlpito, pela dignidade do edifício sagrado e pelas bênçãos especiais que Deus põe nele. Tudo ali reunido e um padre dizendo isso. Não seria de comover? As pessoas não chegariam meia hora, uma hora antes para reservar o lugar para ouvir o sermão?

Assim deveriam ser os homens.

O contrário da formação católica

Quanta gente eu vi em torno de mim, já naquela remota época em que eu era pequeno, em que a formação não era dita assim, mas era isto: “Essas coisas são bobagens de infância, não pense nisso! Tudo quanto é maravilha é sonho. Você perde a partida da vida se você pensar em coisas dessas. Seja prático! E, para ser prático, você precisa das duas coisas: ter saúde e ganhar dinheiro!

“Preocupe-se em saber responder a esta pergunta: ‘Como ter saúde?’ Saiba o que é que lhe fez bem, o que é que lhe faz mal. Faça os seus exercícios. Mova-se de maneira a ter saúde, porque a doença é um horror. Outra coisa, que é preciso ganhar dinheiro. Seja rico! Porque a pobreza é a mais triste das condições. Aprenda como ganhar dinheiro. Saiba sorrir, agradar, bajular, dar rasteiras, dar golpes, avançar, recuar; saiba fazer tudo, contanto que te caia nas mãos esta coisa incomparável: o ouro! Corra atrás do ouro! Não sonhe com as coisas nesta ordem. Que dinheiro te dão? Que saúde te dão? Feche seu horizonte e fique só nisso. Toque para frente na vida! Você terá o prazer, você terá a riqueza!”

Isso é o contrário da formação católica!

A resposta pode vir assim:

Alguém — com A maiúsculo e letras de ouro, que é o próprio Homem-Deus — disse: “Não vos preocupeis, “nolite” esse “solliciti”, olhai os lírios do campo, não tecem nem fiam, entretanto, nem Salomão em toda a sua glória se vestiu como eles… (Mt 6, 28)”… Tecer e fiar eram profissões lucrativas no tempo d’Ele, não tinha máquina, então o trabalhador manual muitas vezes era tecelão, fiava e tecia. Quer dizer: confiai! Confiai, porque isso se arranja. A saúde pode ser recuperada e também a fortuna que se perdeu. Pode ser ganha a fortuna que não se teve. Pode ser obtida a saúde que não se perdeu. É possível — não digo que é certo — mas é possível. Uma coisa não se perde,  não se recupera: é o tempo perdido!

Estado de amor ao maravilhoso

É preciso uma graça muito grande para que uma alma que se tenha deixado trancar nesses horizontes mais baixos volte a compreender e a querer o maravilhoso. É uma verdadeira conversão. Para essa conversão é preciso ter graças muito grandes e muito especiais. Uma graça assim se chama o “thau”!

Então, saibamos compreender o nosso “thau”: esse estado de amor ao maravilhoso, de amor desinteressado ao maravilhoso que é um dos aspectos por onde se vê o amor a Deus — amar a Deus sobre todas as coisas, primeiro Mandamento — esse aspecto, esse amor ao maravilhoso, que é um modo de focalizar o amor a Deus, eu não falei o que é porque o meu tema se tornaria inesgotável. O ver, por exemplo, as grandes figuras históricas canonizadas que refletiram a Deus de um modo, de outro modo, como foi etc. Por exemplo, na Basílica de São João de Latrão, onde mostram, no chão, a laje de pedra sobre a qual estava ajoelhado Carlos Magno na noite de Natal quando o Papa entrou e o coroou imperador, sem ele saber.

Se qualquer um de nós fosse dono dessa pedra, dava até a sua vida para defendê-la. É maravilhoso muito mais do que rubi, do que flor, do que não sei o quê. São duas almas. Carlos Magno, que em alguns lugares é venerado como Santo — a Igreja não se pronunciou — e que deixou um aroma de santidade na Igreja inteira até hoje, e Leão III, Papa, Vigário de Cristo, representante de Cristo na Terra, com o poder de ligar e desligar — “O que ligares na Terra estará ligado no Céu, o que desligares na Terra estará desligado no Céu” (Mt 16, 19) — coroando o Imperador do Sacro Império.

Pobre rubi,  pedregulho engraçadinho diante da majestade dessa cena. Os sinos da Cidade Eterna bimbalhando, o Papa que entra: Carlos Magno majestosamente humilde, ajoelhado naquela laje de pedra para rezar e o Papa que manda trazer uma coroa com a qual ele não contava e o coroa ali imperador do Sacro Império. Funda o Sacro Império! Que beleza!

Que esse Sol volte a iluminar o mundo

Quando uma alma conserva a inocência, ela encontra o “thau”. Mais ou menos como uma flor que está para se abrir encontra, de manhã, o primeiro raio de sol que bate.

Às vezes, chegamos a certa idade com a inocência reduzida a cacos. Mas, oh cacos preciosos! Eles são como aqueles peixes e pães da multiplicação. Bondosamente, Nossa Senhora os toma e os apresenta a Nosso Senhor: “Vede que cacos, Meu Filho” e Ele os recompõe.

Aí temos o ideal católico: Forte, puro, unido e se regozijando com coisas tão espirituais.

Isto tudo nos leva a muito altas considerações, nos leva à ideia de que devemos pedir a Nossa Senhora essa inocência. Devemos pedir para nós, devemos pedir para os nossos irmãos de vocação. Devemos pedir para todas as criaturas de Deus, porque Deus é infinito no seu desejo de bem e quer abarcar com sua grandeza e com sua bondade a criação inteira.

E então compreendemos o seguinte: há uma coisa em nossa época que tem uma beleza comparável à beleza de Carlos Magno sendo coroado por Leão III: É lutar para que esse Sol volte a iluminar o mundo.

Esse Sol é Deus, é Nosso Senhor Jesus Cristo! O vitral por onde entra esse Sol é Nossa Senhora!               v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/10/1985)

Vinde, a Santíssima Virgem vos espera!

Ao contemplar as aparições de Nossa Senhora a Santa Catarina Labouré, Dr. Plinio ressalta o caráter profético de suas mensagens e a afabilidade e a inocência que transparecem nas narrações da Santa.

Devemos começar agora o comentário dos fatos que se relacionam com a aparição de Nossa Senhora a Santa Catarina Labouré.

Ângulo de análise dos fatos precedentes às aparições

Para acompanhar bem o assunto é preciso conhecer a situação geral da França e da Europa naquele tempo, porque se trata de uma série de revelações de caráter profético, neste sentido da palavra: elas se deram em 1830 e Nossa Senhora previu fatos — naquele tempo mais ou menos improváveis — que se dariam em 1870, quarenta anos depois, exatamente.

Os fatos tinham muita relação um com o outro e, debaixo desse ponto de vista, essas aparições interessam de um modo todo particular, porque a revolução de 1830 é apresentada por Nossa Senhora como sendo o primeiro sinal de um conjunto de desordens na França, que haveria de culminar com uma revolução em 1870.

A revolução de 1830 foi liberal. A de 1870 foi a chamada Comuna de Paris, e talvez se possa dizer a primeira revolução comunista na Europa, se não se considerar a Revolução Francesa como uma revolução comunista. Isso é outra questão. Habitualmente não era tida como comunista. Hoje muitos historiadores reconhecem que ela, chegando ao seu auge, tomou o caráter, o espírito comunista pelo menos.

Enfim, deixando isso de lado, é, portanto, a ideia do liberalismo gerando o comunismo que é apresentada de algum modo pelas revelações. Ideia que se relaciona tanto com a RCR e com as preocupações habituais do Grupo, que eu não poderia deixar de realçar isto desde o começo.

Tática revolucionária de Napoleão

Qual era a situação da França e da Europa em 1830? Era a seguinte.

A Revolução Francesa deve ser considerada como um grande movimento revolucionário que começou em 1789, simbolicamente, com a queda da Bastilha e que, verdadeiramente, teve seu fim em 1815, quando Napoleão caiu pela segunda vez.

Napoleão é tido por muitos como o contrário da revolução, porque ele impôs ordem à França quando ela estava no caos e na desordem. Mas a questão é que Revolução não é apenas desordem, caos, é também uma ordem material na qual se impõe que as coisas fiquem de cabeça para baixo. E foi exatamente o que Napoleão fez.

Ele aproveitou a ordem que ele impôs e aproveitou o prestígio das vitórias militares que alcançou para impor à França, de modo estável, uma série de transformações que a Revolução Francesa introduziu, mas que eram mal aceitas pelo povo. Em algumas coisas Napoleão recuou em relação à Revolução Francesa, em outras coisas ele impôs. E isto fazia parte do jogo: ceder algo, mas tornar algo definitivo e irremediável.

Revanche da Revolução

Em 1815 se dá a Batalha do Waterloo, Napoleão é mandado para Santa Helena, e a ordem na França gira: os Bourbons são restaurados e reinam de 1815 a 1830.

A restauração dos Bourbons se deu na pessoa de Luís XVIII, um irmão de Luís XVI. Ele foi sucedido por Carlos X, que reinou de 1824 até 1830, um reinado rápido. Em 1830 houve uma revolução de caráter liberal que destituiu Carlos X, tido como um rei reacionário e ultramontano. Em seu lugar foi colocado um parente deles, o Duque de Orleans, que não tinha direito à sucessão ao trono e que reinaria de 1830 a 1848.

A introdução de um rei ilegítimo, de ideias conhecidamente liberais, representava uma revanche da Revolução. Podemos dizer que a Revolução deu um grande passo para trás com a restauração dos Bourbons; fez meio passo para frente com a implantação da monarquia burguesa de Luís Felipe, e daí para a frente os fatos se foram dando até a Comuna de Paris em 1870.

Carlos X era católico, mas via uma série de coisas muito estrabicamente. Apesar disso, por causa da onda da opinião contrarrevolucionária, a Religião fez muitos progressos na França, restaurou uma porção de coisas, de instituições que tinham caído, foi uma ocasião de re-catolicização.  Nesse período os adversários da Religião também se levantaram e houve motins, agressões, um desenvolvi-mento grande do anticlericalismo. Isso era um bom sinal do ponto de vista religioso, porque sempre que a Igreja é atacada por seus inimigos, quer dizer que ela está fiel a si mesma.

Devemo-nos situar nessa atmosfera para compreendermos o ambiente no qual se deram as revelações de Nossa Senhora a Santa Catarina Labouré, religiosa de São Vicente de Paulo.

As Irmãs da Caridade

O hábito das Irmãs de Caridade era preto, como são os hábitos das religiosas, mas com uma espécie de grande gola engomada branca. A cabeça era adornada por uma toca bretã um tanto estilizada pela inspiração e pelas mãos da Igreja. Naturalmente, um rosário pendente da cintura.

Eu não tive muito contato com essas freiras, mas conheci muitas e muitas delas. Eram, em geral, pessoas robustas, fortes e prontas para o trabalho. Algumas — isso não as desdourava em nada — um pouco camponesas. Olhar límpido, reto, atitude despretensiosa de quem preferia passar despercebida.

Elas eram destinadas muito frequentemente a tomar conta dos hospitais, atender os doentes, e a outras obras de caridade material. Obras de misericórdia temporal, que elas aproveitavam como ocasião para obras de misericórdia espiritual: aproveitavam para chamar um padre para o agonizante, convidavam uma criança para ir ao catecismo da paróquia ou no convento delas. Se encontravam alguém desventurado pela rua, paravam, perguntavam o que queria, ajudavam a pessoa, etc. Enfim, faziam tudo quanto pudessem para atender aos infortúnios, às carências materiais, mas, sobretudo, às necessidades espirituais dos mais variados ambientes por onde elas costumavam se infiltrar.

A elevação desse apostolado que elas realizavam era tão grande e elas eram de tal maneira admiradas por isso que uma irmã de São Vicente de Paulo costumava ser tida como próprio símbolo da Religião numa das suas expressões mais belas e mais comovedoras.

Quando Nossa Senhora deseja…

Catarina Labouré nasceu em 1806. Era filha de um casal de proprietários rurais. Sua mãe faleceu quando tinha apenas nove anos.

Catarina pediu autorização do pai para ser freira. Este se opôs terminantemente e julgou bom, para distraí-la, mandá-la para um lugar de prazer, um emprego onde ela podia se distrair, ter prazeres.

Paris já era, para as proporções da França e do mundo daquele tempo, uma cidade de luxo, uma cidade-turbilhão da alegria, do contentamento de viver mundano. O pai queria conduzi-la até Paris para a vocação desaparecer.

Mas quando Nossa Senhora quer, quer: Catarina acabou indo para Paris, tornou-se freira e recebeu as revelações.

Nos subúrbios de Paris

Catarina Labouré, no ano de 1828 foi posta pelo pai ajudando seu irmão num pequeno restaurante para operários, num dos bairros mais populosos de Paris.

Era um restaurante só de homens. Com certeza estes homens comiam ali porque não tinham tempo de ir para casa comer. Imaginem a beberagem, as conversas imorais, as canções. E a futura santa obrigada pelo pai a servir ali. Vejam o contraste e o “rio chinês” que o desígnio da Providência percorreu nesta ocasião.

Ela tinha nessa ocasião 22 anos, uma idade inteiramente inadequada para esse tipo de serviço. Ela ficava — era a defesa dela — quieta, e durante o serviço nunca descerrava os lábios. Falassem com ela o que fosse, perguntassem o que quisesse, ela servia sem dizer uma palavra. Era o meio de, naquele ambiente, se isolar e proteger a sua própria pureza, a sua piedade.

Ela se sentia supliciada em um ambiente tão livre como esse, onde os gracejos e até os galanteios a ela evidentemente não faltavam.

O operário daquele tempo era, em geral, muito corpulento, porque a indústria era muito menos mecanizada do que hoje em dia, exigia muito mais força no trabalho manual. Imaginem um restaurante pequeno cheio de homenzarrões. Entra uma donzela que não tem outra coisa senão seu Anjo da Guarda para defendê-la e que acaba domando o ambiente. Brincadeira de cá, gracejo de lá, galanteios de acolá. Ela tem apenas a defesa do repúdio e dos lábios cerrados. Ela domina.

Vê-se a virtude dominando o vício, o espírito dominando a matéria. Que bela vitória e como isso nos ajuda a conhecer o perfil moral da santa.

Em Châtillon-sur-Seine

Esse martírio durou cerca de um ano. Em 1829 Santa Catarina Labouré passou a residir com uma cunhada, que mantinha um pensionato para moças em Châtillon-sur-Seine, no departamento de Côte d’Or. Era aí que uma parte da nobreza da Borgonha enviava suas filhas.

Catarina viveu com mais liberdade e pôde melhorar algum tanto sua escrita. Mas a ortografia dela foi sempre muito irregular.

Em janeiro de 1830 ela entrava no hospital de caridade dirigido pelas irmãs de São Vicente de Paulo em Châtillon-sur-Seine.

Ela, que tinha vergado os operários do botequim, vergou também o pai.

Depois de três meses de postulantado, seguiu, enfim, para Paris. E em 1830, no mês de abril, pela primeira vez entrou no noviciado da Rue du Bac, onde as aparições se deram.

Ela era, portanto, noviça quando essas aparições se verificaram.

Junto ao coração de São Vicente

Três dias depois da chegada de Catarina, deu-se a solene transladação dos despojos de São Vicente de Paulo para a capela da Rue du Sèvre, grande cerimônia à qual assistiam o Rei Carlos X e o arcebispo de Paris, Mons. Quélan.

Que cena linda: o arcebispo de Paris com certeza presidindo a cerimônia, é provável que o pálio cobrisse os restos mortais de São Vicente de Paulo e ali fosse o rei também. Tudo leva a crer que antecedendo e fechando o cortejo das relíquias, havia personalidades do clero, da família real, da corte, povo em quantidade, provavelmente tropas apresentando armas, etc. Assim se deu a transladação do corpo de São Vicente de Paulo, que era o fundador da congregação religiosa para onde ela estava entrando e que era, naturalmente, venerado por todo o povo francês.

Santa Catarina, como noviça, frequentou várias vezes a capela de Saint-Lazare, onde foi colocado o corpo de São Vicente de Paulo. Conta ela:

O coração de São Vicente aparecia todas as vezes que eu voltava de Saint-Lazare. Apareceu-me três vezes de modo diferente, três dias seguidos: branco, cor de carne, o que anunciava a paz, a calma, inocência e a união; depois o vi vermelho, cor de fogo o que indicava o incêndio de caridade de seu coração; parecia-me que a comunidade devia se renovar, estender-se até as extremidades da Terra, o que de fato se deu. Por fim o vi vermelho negro, o que indicava tristeza. Vinham-me tristezas que tinha muita dificuldade em dominar. Não sei porque nem como essa tristeza se relacionava com a mudança de governo que havia proximamente na França.

São Vicente de Paulo, como santo, amando a França, a civilização cristã e sobretudo a Igreja, dava a conhecer a ela, antes da queda do governo, que o rei cairia. Exprimia a sua dor profunda fazendo ver o próprio coração nesses coloridos diferentes. Um vermelho quase preto que indicava tristeza, o que iria acontecer? Por que é que ela sabia de antemão?

Para que nós soubéssemos, é claro. Mas também para rezar e para ir pedindo pela causa católica na França antes mesmo da causa ser golpeada, de maneira a conseguir que o golpe não fosse tão grande e alguma coisa sobrevivesse.

Vemos a Providência que permite o golpe, mas prepara também algo que atenua. Vê-se aí a bondade e a misericórdia de Nossa Senhora.

Graças de perseverança

Certo dia uma voz interior disse à vidente: “O coração de São Vicente está um pouco consolado, porque obteve de Deus, por mediação de Maria, que suas famílias não pereceriam no meio dessas infelicidades e que Deus se serviria delas para reanimar a fé”.

Quer dizer, seria normal que o ramo masculino e feminino da obra de São Vicente de Paulo desaparecessem, mas Nossa Senhora obteve e pediu antes da revolução que essas duas famílias — eu interpreto assim, sendo ramo masculino e feminino — sobrevivessem para espalhar a fé pelo mundo inteiro. O que em larga medida aconteceu.

Revolução de julho

Os mais negros e tristes pensamentos ocorreram no dia da Santíssima Trindade, 6 de junho.

A revolução foi em julho.“Nosso Senhor me apareceu como um rei com a cruz sobre o peito no Santíssimo Sacramento. Isto se passava durante a Santa Missa, no momento do Evangelho. Pareceu-me que Nosso Senhor era despojado de todos os seus ornamentos, caindo tudo por terra”.

Isto se relacionava com a revolução que haveria daí.

“Foi então que tive o pensamento que o rei da terra seria despojado de suas vestes reais”.

Foi o que aconteceu nos últimos dias de julho.

“Daí os pensamentos que tive, que não saberia explicar, sobre a perda que se fazia.”

Como ela era uma pessoa pouco culta, não compreendia todo o alcance desse acontecimento, o que a Religião perdia com isso.

Ela estava com o espírito pouco afeito a medir os vais-e-vens da Revolução e da Contra-Revolução, mas Nosso Senhor Jesus Cristo lhe dava a entender uma profunda tristeza com esses fatos.

Aí os senhores têm uma coisa curiosa, que é o relacionamento direto… Eu não me lembro de ter visto uma coisa parecida — talvez houvesse — de uma revelação tão altamente provável, eu no meu foro interno a tomo como certa, com um fato político. Mas assim, um fato político determinado: “A fulano vai acontecer tal coisa, e por isso Deus está triste”. Eu não me lembro de uma coisa dessas, é um fato único — único ao menos para minha memória — e que eu gostaria de ressaltar.

O sobrenatural começa a manifestar-se

Imaginemos a cidade de Paris, naquele tempo enormemente menor do que ela é hoje, silenciosa, tranquila, ainda sem motores. Os automóveis ainda não existiam, o silêncio de toda a população que dormia era apenas de vez em quando interrompido pelas patas de um cavalo que batia sobre a pedra da rua e que ia puxando algum carrinho ou alguma carruagem depressa durante a noite para um lugar.

Não havia ainda luz elétrica e o dormitório das religiosas era iluminado por candeeiros. Todos dormiam, inclusive Catarina. Ali, completamente diferente do mundo fora, o maravilhoso sobrenatural começa a se desenrolar e Nossa Senhora faz a primeira das suas diversas grandes mensagens para o mundo no século XIX.

Vale a pena ler o próprio texto da santa contando o que se passou então. É um pouco longo, mas são suas próprias palavras. Isso fará um desenvolvimento do tema.

“A Santíssima Virgem vos espera…”

Ela diz o seguinte:
“Veio depois a festa de São Vicente. Na véspera, nossa boa Madre Marta nos fez uma instrução sobre a devoção à Santíssima Virgem, o que me deu desejo de vê-La. Deitei-me, pois, com o pensamento de que naquela noite mesmo eu veria a minha boa Mãe. Havia tanto tempo já que eu desejava vê-La.”

A inocência e a ingenuidade desse pensamento e o caráter filial são muito bonitos.

Enfim, às onze e meia da noite… Para aquele tempo era alta noite. “…ouvi me chamarem pelo nome:

‘Irmã Labouré! Irmã Labouré!’. Acordando, olhei do lado de onde vinha a voz, que era do lado da passagem.”

Deveria ser uma passagem no dormitório.

“Corro a cortina e vejo um menino de 4 ou 5 anos que me dizia: ‘Vinde à capela, a Santíssima Virgem vos espera’.

Devemos imaginar um ambiente com uma paz, tranquilidade, todas as freiras dormindo, esse menino aparece — ela depois descreve o menino — e diz: “A Santíssima Virgem vos espera”. Quer dizer, uma afabilidade de Nossa Senhora à espera dela.

“Logo me veio o pensamento: ‘Irão perceber’. O menino me respondeu: ‘Ficai tranquila. São onze e meia da noite, todo o mundo está dormindo. Vinde, eu vos espero’.
Quem é esse menino que diz “eu” aí?

“Vesti-me depressa e me dirigi para o lado do menino. Este tinha permanecido de pé sem avançar além da cabeceira de minha cama. Ele me seguiu, ou melhor, eu o segui, sempre à minha esquerda.”

“Por todos os lugares onde passamos as luzes estavam acesas, do que me admirava muito…”

Naturalmente ninguém via, era milagre. Tudo isso já é dado para causar impressão.

“Porém, muito mais surpresa fiquei quando entrei na capela. A porta se abriu mal o menino a tocou com a ponta do dedo e minha surpresa foi ainda mais completa quando vi todas as velas e castiçais acesos, o que me recordava a Missa de meia-noite”.

Como se fosse a Missa do Galo. “Entretanto, nada vejo da Santíssima Virgem.

O menino me conduziu ao presbitério, ao lado da cadeira de braços do senhor vigário. Ali me ajoelhei e o menino permaneceu de pé todo o tempo. Eu achava o tempo longo e olhava para ver se as vigilantes não passavam pela tribuna”.

No fundo, onde fica o órgão. Ela tinha medo que pudessem perceber, alguma coisa violasse o segredo.

Seria bonita a cena. Ela ajoelhada junto à cadeira do senhor vigário, as luzes todas acesas e pensando o que diria à vigilante sobre essa completa irregularidade.

“Ali se passou o momento mais doce de minha vida”

“Por fim chegou a hora. O menino me preveniu. Ele me disse: ‘Ei-la, a Santíssima Virgem’. Ouvi como um roçar de vestido de seda que vinha do lado da tribuna…

Era o “frou-frou” de quem está com um vestido de seda que, naquele tempo, ia até o chão. Produzia aquele ruído agradável e muito peculiar.

… perto do quadro de São José e que passava sobre os degraus do altar do lado do Evangelho sobre uma cadeira igual à de Santa Ana.

O que seria essa cadeira de Santa Ana?

“Eu estava em dúvida se seria a Santíssima Virgem. Nesse preciso momento o menino que estava ali me disse: ‘Eis a Santíssima Virgem’.

“Ser-me-ia impossível dizer o que senti nesse momento, o que se passava dentro de mim. Parecia-me que não via a Santíssima Virgem.

“Então o menino me falou não mais como uma criança, mas como um homem dos mais fortes e com as palavras mais fortes.

“Nesse momento, olhando para a Santíssima Virgem, dei um salto para junto d’Ela, pondo-me de joelhos sobre os degraus do altar e com as mãos apoiadas sobre os joelhos da Santíssima Virgem”.

Nossa Senhora estava sentada na cadeira do vigário. Santa Catarina apoiou as mãos sobre os joelhos de Nossa Senhora. Vejam a afabilidade dessa aparição, uma coisa extraordinária. Depois, para quem for São Tomé, que pôs a mão no flanco de Nosso Senhor, ela também tocou.

“Ali se passou o momento mais doce de minha vida. Ser-me-ia impossível dizer tudo o que senti. Ela me disse como deveria me conduzir em relação ao meu diretor espiritual, e várias coisas que não devo dizer. A maneira de me conduzir em meus sofrimentos, vir lançar-me aos pés do altar, e me mostrava com a mão esquerda o pé do altar, e ali fundir o meu coração. Aí eu receberia todas as consolações de que tivesse necessidade.”

Quer dizer, quando ela tivesse sofrimentos, não comentasse com ninguém, fosse ao altar e desabafas-se ali, mas num lugar indicado por Nossa Senhora para ela: “Aqui, nesse ponto, você venha”.
Os senhores compreendem quanto ela voltou a esse lugar fisicamente indicado por Nossa Senhora. Uma verdadeira maravilha.

“Então lhe perguntei o que significavam todas as coisas que eu tinha visto e ela me explicou tudo”.

Mas ela não disse o que era. Aqui não está.

“Fiquei não sei quanto tempo. Tudo que sei é que quando Ela partiu não percebi senão que alguma coisa se extinguia. Enfim, mais uma sombra que se dirigia para o lado da tribuna pelo caminho pelo qual Ela tinha chegado.”

“Levantei-me dos degraus do altar e percebi o menino onde o tinha deixado. Ele me disse: ‘Ela se retirou’. Nós retomamos o mesmo caminho, sempre todo iluminado. O menino estava sempre à minha esquerda. Creio que este menino era meu Anjo da Guarda que se havia tornado visível para me fazer ver a Santíssima Virgem, porque havia rezado muito a ele para que me obtivesse esse favor. Estava vestido de branco trazendo consigo uma luz miraculosa, isto é, ele era resplandecente de luz. Tinha a idade mais ou menos de 4 ou 5 anos.

De volta ao meu leito eram duas horas da manhã, pois ouvi tocar as horas.

Não tornei mais a dormir.

Está terminada a revelação.

Um veludo precioso

Não me consta que lá, na Rue de Bac, se indique qual foi o lugar mostrado por Nossa Senhora a ela. Evidentemente, qualquer um de nós que ali estivesse não deixaria de rezar, oscular o chão.

A cadeira está ali sobre um estradozinho e todo mundo que entra vai oscular a cadeira. Quando eu a osculei, deitei o olhar sobre o veludo e este pareceu-me novo. Fiquei desagradado, porque, se é novo, não é o veludo sobre o qual Nossa Senhora se sentou.

Na saída, perguntei à freira:
— Irmã, me faz favor. Esse veludo da cadeira é o próprio no qual Nossa Senhora Se sentou?

Ela disse:
— Não. Nós, há pouco, o substituímos por um veludo novo.

Eu pensei em ficar com o veludo para mim, e disse:
— Irmã, eu não poderia ter esse veludo? Ou ao menos um pedacinho dele?

Ela disse:
— Não.

Não me lembro se ela disse que foi jogado fora ou queimado. Eu não pude conter a minha surpresa e disse a ela:
— Mas, irmã! A senhora já pensou o que seria esse… Se a armação de madeira da cadeira se oscula, por que não oscular o veludo? Por que não guardar? A senhora já pensou que isto é uma relíquia.

— É…
Eu disse:
— A senhora já pensou quantas pessoas viriam aqui para receber das senhoras um pedacinho deste veludo?

Ela ficou assim meio surpresa e eu disse:
— Irmã, eu sou da América do Sul, sou do Brasil. Eu lhe garanto que a América do Sul desfilaria aqui para receber pedaços desse veludo!
— “Nous n’avons guère songé” — nem sequer pensamos nisso.

Uma promessa feita por Nossa Senhora

1830, julho. Colóquio com a Santíssima Virgem.
“Minha filha, o bom Deus quer encarregar-vos de uma missão. Tereis muitos sofrimentos, mas superareis estes sofrimentos pensando que o fareis para a glória do bom Deus. Conhecereis que é do bom Deus e sereis atormentada até que o tenhais dito àquele que é encarregado de vos conduzir. Sereis contraditada, mas tereis a graça e por isso não temais. Dizei com confiança tudo o que se passa em vós, dizei-o com simplicidade, tende confiança, não temais.”

Vemos quanto medo ela tinha do próprio confessor com o qual ela se deveria abrir.
“‘Vereis certas coisas. Prestai conta do que virdes e ouvirdes. Sereis inspirada na vossa oração. Prestai conta do que virdes em vossas orações”.

Os tempos são muito maus. Os males virão precipitar-se sobre a França; o trono será derrubado, o mundo inteiro será transtornado por males de toda ordem — ao dizer isto, a Santíssima Virgem tinha um ar muito penalizado —, mas vinde ao pé deste altar; aí as graças serão derramadas sobre todas as pessoas que as pedirem.

É uma promessa magnífica.

“‘Minha filha, gosto de derramar graças sobre a comunidade em particular. Eu aprecio muito. Sofro porque há grandes abusos contra a regra.’”

Nossa Senhora gostava da comunidade enquanto instituição, mas já naquele tempo havia muitos abusos no cumprimento da regra.

“‘As regras não são observadas, há grande relaxamento nas duas comunidades. Dizei àquele que está encarregado de uma maneira particular da comunidade. Ele deve fazer tudo o que lhe seja possível para repor a regra em vigor. Dizei-lhe de minha parte vigiar sobre as leituras, as perdas de tempo e as visitas’”.

“‘A comunidade gozará de uma grande paz, ela tornar-se-á grande. Momento virá em que o perigo será grande, acreditar-se-á tudo perdido.”

É curioso que este momento não é em 1830. Por que, como vai haver uma grande paz e se corrigirá os abusos, etc., etc., quando ela já está em julho e a revolução foi em julho?

Esses fatos não cabem aí, mas depois.

“‘Eu estarei convosco, tende confiança.
“Mas não se dará o mesmo com as outras comunidades: haverá vítimas — ao dizer isto, a Santíssima Virgem tinha lágrimas nos olhos. Para o clero de Paris haverá vítimas. Mons. Arcebispo — a essa palavra lágrimas de novo.”

Eu creio que não foi Mons. Qué-lan. Talvez aí seja uma profecia de 1870, não sei.

“Minha filha, a cruz será desprezada e derrubada por terra. O sangue correrá, abrir-se-á de novo o lado de Nosso Senhor, as ruas estarão cheias de sangue, Mons. Arcebispo será despojado de suas vestes — aqui a Santíssima Virgem não podia mais falar: o sofrimento estava estampado sob a sua face. “Minha filha, dizia Ela, o mundo todo estará em tristeza.”

A essas palavras pensei quando isto se daria: compreendi bem daí a quarenta anos.

Em 1870, onde realmente o arcebispo foi fuzilado abençoando os revolucionários e duas balas cortaram os dedos dele. Ele morreu abençoando.

Disse-me uma pessoa, muito competente nesses assuntos de História do século XIX, que o arcebispo era de tendência liberal. Ele teve de algum modo um castigo, porque os liberais o fuzilaram. Mas vejam como Nossa Senhora sofreu com o fato porque ele era arcebispo e, na pessoa dele, era a Igreja que sofria uma violência.

Vejam como Nossa Senhora ama as instituições eclesiásticas. Ela ama tanto uma congregação religiosa na qual Ela, entretanto, denuncia graves abusos. E Ela sofre tanto com o padecimento de um arcebispo. É a congregação enquanto congregação, o arcebispo enquanto arcebispo.

Isso deve nos fazer compreender o amor que nós devemos ter às instituições eclesiásticas, por mais que as vicissitudes humanas façam com que dentro delas se passem coisas que são contrárias
ao que se poderia querer.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraido de conferência de 7/11/1980)

Confiança nos impossíveis

Um lema fixado por jovens revolucionários na Universidade de Sorbonne dá ocasião para Dr. Plinio tecer preciosos comentários

 

Alguém me pediu para comentar o seguinte lema afixado na Universidade de Sorbonne durante seus dias de agitação:

“Seja realista, exija o impossível.”

Mesmo defendendo a pior das causas, há nesta frase o inegável talento francês.

Em primeiro lugar, devemos nos perguntar: esse lema é correto ou não?

Em face dele, dividem-se duas famílias de almas: uma constituída pelo espírito geométrico, e outra, pelo espírito de “finesse”.

O espírito geométrico é contra uma afirmação dessas. Para ele, é próprio da utopia exigir o impossível. Logo, é um absurdo dizer: “seja realista, exija o impossível”. Pelo contrário, diria alguém desta corrente, “seja realista, exija o possível”; ou então, “seja realista, e não exija o impossível”.

Porém, as pessoas que têm o espírito de “finesse” compreendem o significado desta afirmação. Ou seja, esta espécie de contradição berrante, que é exigir o impossível, aqui quer dizer o seguinte: esse impossível vem psicologicamente entre aspas.

Impossível para o medíocre… Possível para o fogoso!

Há coisas impossíveis para os indivíduos “pocas”(1), cujos horizontes são limitados e circunscritos, e que por isso facilmente desanimam diante de lances qualificados de impraticáveis, mas que na verdade não o são.

Porém, há homens com inteira noção da realidade, os quais pensam:

“Vocês, moles, pensam ver a realidade, mas na verdade estão apenas na superfície dela. A profundidade da realidade, bem analisada, mostraria haver mil coisas aparentemente impossíveis para os espíritos sem ‘chama’; mas, para os que têm ‘chama’, são possíveis. A ‘chama’ torna possíveis coisas aparentemente impossíveis.”

A História está cheia de exemplos dessa natureza.

Quem vai a Barcelona e visita o fac-símile das naus de Cristóvão Colombo tem um exemplo disso: verdadeiras cascas de noz, com as quais se teria medo de atravessar a represa de Santo Amaro…

Entretanto, eles vieram até a América. E, exatamente no momento em que se planejava uma revolta a bordo — Cristóvão Colombo estava diante de uma revolta dos “pocas” que julgavam impossível atingir o objetivo, porque afinal de contas, nunca se chegava — alguém gritou: “Terra à vista!”

Quer dizer, estava‑se chegando precisamente no momento em que o “impossível” para os medíocres tinha se tornado possível.

Contudo, este é um fato natural.

Impossível até na ordem natural…

Do lado sobrenatural isto é muito mais bonito, muito mais rico. E a riqueza está no seguinte: quando Nossa Senhora quer algo, Ela o realiza contra todas as esperanças e aparências; mesmo o impossível para os grandes homens é possível para Nossa Senhora, porque a oração d’Ela é onipotente, Ela obtém de Deus absolutamente tudo quanto Ela quer.

De maneira que, muitas vezes, nós devemos tentar coisas não só impossíveis para os “pocas”, mas impossíveis também na ordem natural das coisas. Devemos exigir o impossível de nós mesmos, porque Nossa Senhora nos dará.

Mas, como podemos ter certeza se Nossa Senhora dará ou não?

O Livro da Confiança(2) começa com as magníficas palavras: “Voz de Cristo, voz misteriosa da graça, vós murmurais no fundo de nossas consciências palavras de doçura e de paz”.

Realmente, nós temos uma voz interior que não fala, não usa palavras, mas se comunica conosco pelo movimento dos pressentimentos, das virtudes, das consolações da alma, e nos indica o que Nossa Senhora quer de nós.

Muitas vezes esta voz quer de nós algo impossível, mas devemos crer no incrível, abordar o inabordável, meter-nos a transpor o intransponível, porque do outro lado está Nossa Senhora.

“Nunca em minha vida eu fui decepcionado nesta posição interior de alma.”

Como podemos diferenciar o sinal interior dado por Nossa Senhora de uma simples fantasia?

É muito fácil: se um determinado movimento de alma nos leva à virtude; se esse pressentimento de alma não satisfaz o nosso amor-próprio, certamente vem de Nossa Senhora.

Ele pode não se realizar como imaginamos, mas seguramente ele acaba se realizando. E é este o modo pelo qual nós podemos ouvir esta voz de Cristo, voz misteriosa da graça, dizendo a nossas almas palavras de doçura e de paz.

Poderá haver ocasiões em que sobrevenham movimentos de desânimo por estarmos numa situação sem saída. Apesar disso, teremos um pressentimento interno de que Nossa Senhora resolverá a situação.

Nunca em minha vida eu fui decepcionado nesta posição interior de alma. E eu já estou com cinquenta e nove anos e meio. Nunca eu dei crédito a esse movimento interior da alma, e depois tive uma decepção. Nunca, nunca, nunca!

Isto não quer dizer que muitas coisas não tenham demorado além do imaginado por mim; não quer dizer que as circunstâncias não tenham sido diversas das esperadas por mim, mas a substância nunca me decepcionou, e, em geral, foi além de minha expectativa.

Como filhos de Nossa Senhora, nós temos o direito de esperar o impossível, e nós temos o direito de exigir que da nossa ação brote o impossível.

Devemos agir imperativamente, sabendo que aquilo vai dar certo.

Uma provação na linha do desânimo: uma cisão na Ação Universitária Católica

Lembro-me da primeira provação séria que eu tive a esse respeito, a qual me causou uma perturbação tremenda.

Eu tinha uns vinte anos quando consegui aglutinar alguns companheiros de faculdade, para fundar o primeiro núcleo de católicos na Faculdade de Direito. Isto parecia uma coisa completamente impossível.

Eu não sabia como, no interior de minha alma, dar graças a Nossa Senhora pelo que estava acontecendo, sobretudo por prever ser este o primeiro movimento de “chama” em torno do enorme “pavio” que se acenderia.

Pois bem, pode-se imaginar o meu estado de espírito quando nesse embrião da Ação Universitária Católica, contra toda a minha expectativa, arrebentou uma cisão interna, promovida por um indivíduo que queria uma forma de apostolado completamente heresia‑branca(3).

Eu pensei: “Como? Uma cisão entre católicos? Mas que monstruosidade é esta?”

Certo dia, indo para uma reunião, onde esta cisão deveria liquidar‑se, eu estava andando de bonde no Viaduto do Chá, quase só, e ruminando aquela história, com uma pavorosa tentação de desânimo…

Mas, eu senti em mim o que Abbé Saint Laurent chama no Livro da Confiança a voz sobrenatural de Cristo, voz sobrenatural da graça, que murmurava em minha alma palavras de doçura e de paz. Eu pensei então:

“Eu não vou prestar atenção nisto e vou caminhar de olhos fechados em cima desta coisa! Aconteça o que acontecer, eu vou andar para a frente!”

Foi a primeira prova, muitas assim vieram depois.

Todos passarão por circunstâncias onde a voz da Confiança parecerá ter mentido. Não acreditemos, pois ela nunca mente, e sempre acaba realizando o que prometeu.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/8/1968)

Revista Dr Plinio 152 (Novembro de 2010)

 

1) Palavra criada por Dr. Plinio para exprimir algo medíocre, mesquinho.

2) Cfr. Dr. Plinio nº 129, p.25.

3) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.

A fina ponta da esperança

Vejamos como Dr. Plinio discorre sobre a relação entre a esperança e a confiança.

O homem vive de esperanças. Salutares ou — helas! — nocivas, quem não as teve? Ainda quando era improvável tornarem-se realidade, os homens adequavam suas vidas às esperanças que possuíam.

Sim, isso era comum, mas no tempo presente, repleto de inebriantes descobertas da tecnologia, parece ser que a esperança vai, de modo paulatino, cedendo lugar ao anseio pelo imediato, à satisfação de caprichos do momento, a uma visualização que considera a existência humana como voltada somente para o prazer reles e passageiro. Sempre houve quem tivesse essa mentalidade, mas o problema novo é que ela vai se impondo universalmente, como se fosse o único valor a ser buscado.

Até que ponto a enxurrada de novidades contribuiu para este resultado? Não se sabe. O certo é que os homens, em número crescente, vão se desinteressando do futuro e fechando-se sobre si mesmos. “Não me interessa o amanhã, eu vivo cada dia”, dizem. Renunciaram à esperança.

Com isso vai desaparecendo toda forma de grandeza que pressupõe a esperança, ao passo que cada vez mais pessoas sofrem de tédio, depressão e até desespero. Todavia, por mais que sejam adversas as circunstâncias nas quais vivemos, a solução para se recuperar o equilíbrio perdido é simples: fortificar a esperança por uma certeza, acrescida de um novo vigor: a confiança!

Pois como afirma São Tomás: “A confiança é uma esperança fortificada por uma opinião firme”.

Vejamos como Dr. Plinio discorre sobre a relação entre a esperança e a confiança.

Qual é a diferença entre esperança e confiança?

Quando se espera algo, tem-se certa alegria pela perspectiva de que alguma coisa boa acontecerá; porém, quando se confia, não há apenas alegria, mas também certeza.

A confiança é a fina ponta da esperança; ela dá forças a nossas almas e nos faz irmos adiante.

Enquanto a esperança nos dá fundadas razões para termos quase certeza de que nos acontecerá determinada coisa boa, a confiança, entretanto, nos dá a plena certeza.

A virtude da confiança representa a voz de Deus no interior de nossas almas.

Para nós que estamos talvez na orla dos acontecimentos previstos por Nossa Senhora em Fátima, a virtude da confiança se põe nos seguintes termos: estamos diante do perigo, mas sabemos que a Providência quer utilizar-se de nós para vencer esse perigo. Sendo assim, nós temos confiança, ou seja, temos certeza, de que seremos instrumentos da Providência para vencer tais perigos. Essa é a certeza da confiança.

Nessas condições, devemos pedir a Nossa Senhora que em todas as ocasiões difíceis de nossa vida nos dê confiança e não deixe de suscitar no interior de nossas almas o seguinte movimento:

“Se Nossa Senhora me chamou para uma missão, Ela fará com que eu a realize, pois este chamado não poderá ter sido em vão.”

Então, ainda que tudo pareça contrariar minha esperança, eu avanço contra o perigo, em paz, porque confio que vai se realizar tudo quanto Ela prometeu.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/1/1994)