Há 110 anos marcando a História

O acerto e a autenticidade de uma obra podem ser medidos pela sua perenidade. Possui o tempo o condão de ressaltar os aspectos centrais de algo, diluindo o que pode haver de secundário, acidental ou equivocadamente avaliado. As pessoas e os acontecimentos adquirem, assim, sua verdadeira dimensão.

Algo análogo se passa com o Sol que, à medida que se põe, faz com que cresçam as sombras dos objetos de maneira insuspeitada horas antes. Por essa razão, neste 110º aniversário do nascimento de Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, mais nítida e objetivamente se pode avaliar a envergadura de sua pessoa, pensamento e obra. Obrigado, por fidelidade à Fé católica, que ele prezava mais do que tudo nesta terra, a remar tantas vezes contra a maré, até mesmo dentro das fileiras católicas, sofreu ele muitas e dolorosas incompreensões. A História do século XX, como deste em que vivemos, tem confirmado o acerto profético de suas denúncias contra os desvios doutrinários que observara em seu nascedouro no seio da Ação Católica, da qual foi presidente na Junta Arquidiocesana de São Paulo, nos idos de 1940. Por suas posições de fidelidade inteira à Tradição e ao Magistério da Igreja, foi vítima de inexplicável intolerância que o conduziu a um completo, meticuloso e injusto ostracismo. Incompreendido por muitos nas fileiras dos movimentos católicos, não se intimidou e, até o fim de seus dias, batalhou incansavelmente pelas causas que interessavam à Santa Igreja.

Seu nome tornou-se, assim, uma bandeira, e basta ser ele pronunciado em um ambiente mais culto para despertar entusiasmos e rejeições muitas vezes acaloradas. Até mesmo gerações que não o conheceram se dividem a seu respeito. Ou seja, foi um varão que, passados um século e um lustro de seu nascimento, continua a marcar a História. Nesse sentido, ele é, à imitação de Jesus Cristo, uma pedra de escândalo em relação à qual não há neutros. Os textos de sua autoria, por sua profundidade de análise, vastidão de horizontes e originalidade verdadeiramente profética, indicam rumos à humanidade tão desorientada de nossos dias. O passar dos anos foi confirmando inúmeras de suas previsões, projetando a sua pessoa de maneira ímpar.

A respeito de “Revolução e Contra-Revolução”, obra mestra em que Dr. Plinio apresenta a sua visão do processo histórico que desembocou na crise contemporânea, o ilustre teólogo Pe. Anastácio Gutierrez, CMF, na introdução da edição de 1993, assim se expressa: “é uma obra magistral, cujos ensinamentos deveriam ser difundidos até fazê-los penetrar na consciência de todos os que se sintam verdadeiramente católicos […]. Em suma, atrever-me-ia a dizer que é uma Obra profética no melhor sentido da palavra; mais ainda, que seu conteúdo deveria ensinar-se nos centros superiores da Igreja.” E tal abalizado juízo pode, com toda a propriedade, estender-se a todo o conjunto do pensamento de Dr. Plinio. Por certo, se os inúmeros alertas de Dr. Plinio tivessem sido ouvidos, a situação dos movimentos católicos seria outra. E, em consequência, os destinos de nosso País e do mundo ocidental também teriam sido bem diversos.

Os novíssimos do homem

É difícil encontrar quem não se preocupe com o próprio futuro. Entretanto, será que todos olham a realidade de frente?

 

Trataremos hoje a respeito dos novíssimos do homem.

A questão nos interessa no mais alto grau. Diz-nos o Eclesiástico: “Lembra-te dos teus novíssimos, nunca jamais pecarás”(1). Ou seja, se o homem for assíduo, correto e fervoroso na meditação dos seus novíssimos, ele não cometerá pecado.

Não pecarás eternamente quer dizer: irás para o Céu, evitarás o inferno.

O que encerra a vida do homem?

O termo “novíssimos” aqui desconcerta um pouco; ele é tomado não no significado que tem nas línguas vivas de hoje em dia, mas no sentido latino. Em latim, “novissimus” quer dizer as ultimíssimas coisas. E “novissimus dies” é o último dia. Assim, a frase quer dizer: Medita nas últimas coisas que te acontecerão e não pecarás eternamente.

A Igreja, Mãe sábia e infalível, nos ensina: as últimas coisas que o homem encontrará, não tendo por onde escapar, por ocasião do encerramento da sua existência terrena, são quatro: Morte: todos os homens morrerão; Juízo: ato contínuo depois da morte, todos serão julgados; Inferno: para os que morrerem impenitentes, em estado de pecado mortal, ou Paraíso: para os que falecerem na graça de Deus.

Assim se encerra a vida de um homem. Nesta Terra ele será mendigo ou rei, milionário, potentado que enfeixa em suas mãos mais ou menos todos os poderes, o mais deslumbrante ou o mais miserável do mundo; poderá ter a vida mais cômoda, ou a mais cheia de aventuras, de imprevistos.

Mas, quando fechar para sempre os olhos, ele se apresenta diante de Deus: Se foi bom, será aceito, será bom eternamente; se foi mau, será mau eternamente.

E Deus o julgará: “Tu és o contrário do que sou Eu! Tiveste outras cogitações e outras vias! As tuas obras, Eu as reprovo, as rejeito. A tua vida desenrolou-se num sentido oposto ao que Eu queria de ti, e deixei expresso pelos meus Mandamentos. Inferno!”

Ou o contrário: pousando amorosamente o olhar sobre ele, Deus lhe diz: “Tu foste criado à minha imagem e semelhança. Reconheço em ti um espelho vivo de Mim mesmo. Tu és meu filho, senta-te à minha direita.”

Ou seja, à direita de Deus Padre está Nosso Senhor Jesus Cristo, Homem-Deus, e à sua direita ficarão os eleitos. Os réprobos serão mandados para a esquerda.

Se o homem foi bom, praticou os mandamentos exatamente, morreu na graça de Deus, tenha acontecido nesta Terra o que for, sua vida deu certo por toda a eternidade.

Porém, se praticou o mal e faleceu fora da graça divina, a sua vida foi errada, catastrófica. Ele vai para o inferno, não tem por onde escapar.

Quer dizer, tudo se mede pela disposição da alma no momento da morte.

Essas são as ultimíssimas coisas, encerram a vida do homem. Não há mais história para uma pessoa, depois de ter sido julgada e ocupar para todo o sempre o lugar no Céu ou no inferno, que a justiça de Deus lhe determinar. Na eternidade não há mais história; há apenas, para os bem-aventurados, amor e deleite. E para os que forem para o inferno, horror, geena e maldição.

Constantemente andando sobre o fio da navalha…

E, em relação ao homem, Deus dispôs as coisas de tal maneira que, se quisermos olhá-las de frente, estamos o tempo inteiro andando em cima do fio de uma navalha, podendo, a qualquer momento, merecer o Céu ou cair no inferno. Porque o homem, enquanto vive nesta Terra, está entre a virtude e o pecado.

A graça divina opera no seu interior; Nossa Senhora, os anjos, os santos rezam por ele. Nas solicitações da graça, o homem sente apelos para ser bom, e aí está a possibilidade de ele ir para o Céu de um momento para outro. Porque a morte a todos nos espreita e, a qualquer momento, nos colhe.

Imaginemos que no teto deste auditório houvesse um terrorista, o qual dissesse o seguinte: “Eu, de vez em quando, darei um tiro e matarei um dos que estão aqui.”

Com que cuidado, atenção, cada um dos presentes prepararia sua alma para morrer! Poderíamos passar longas horas tranquilas, falando de vários assuntos bonitos. De repente: pam! Alguém cai. Todos então se lembram: “Ah, tem esse terrorista, é verdade!” Afervoram-se de novo.

E alguns podem ir para o inferno. É o que acontece com uma pessoa que cometeu um pecado mortal, não se confessou, não fez um ato de arrependimento perfeito, e a bala do terrorista a atingiu, tendo ela morrido naquele instante.

De certo modo, estamos nessa situação. Porque qualquer um de nós — eu, pela idade, muito mais provavelmente do que todos meus ouvintes — pode falecer de um momento para outro.

A morte bate à porta de qualquer um, mas, às vezes, ela a arromba!

Ao longo dos meus 74 anos e meio de vida, quanta gente deixei pelo caminho e que era mais moça que eu! A morte os colheu devido a uma doença ou, às vezes, de repente: um acidente, uma parada cardíaca, que os médicos não conseguem explicar.

Quantos sustos o indivíduo tem!

Quando vou a um consultório médico, olho para as fisionomias das pessoas que estão, como eu, sentadas na sala de espera e penso o seguinte: Quantas delas têm bem a ideia das incertezas da vida? Realmente, sucede às vezes que o indivíduo diz ao médico:

— Doutor, eu tenho uma dorzinha aqui.

E pensa que o facultativo vai lhe dar um remediozinho. O médico o examina e lhe recomenda:

— O senhor precisa tirar uma radiografia.

Ele vai ao radiólogo. No dia seguinte, este lhe entrega um envelope fechado, destinado ao médico. O indivíduo volta ao consultório se abanando com aquele envelope. O médico o abre e lhe diz:

— O senhor está com uma doença que exige tratamentos… É câncer.

E passa por operações, com poucas possibilidades de sobreviver! E que operações! Tudo começou com uma dorzinha. Pois bem, no consultório ninguém está pensando nisso. Um está lendo uma revista humorística, outro bocejando, dois outros estão cochichando e um outro está fazendo o que se percebe ter feito a vida inteira: nada! Rezando ou preparando-se para receber alguma má notícia do médico, ninguém. De repente, pam! É a morte que bateu na porta: “Vou entrar.”

Mas às vezes ela arromba a porta!

Contaram-me um caso apavorante. Uma pessoa começou a sentir uma pequena perturbação nas vistas e foi ao oculista. O médico assestou aquele aparelho e lhe disse:

— O senhor está com um câncer em cada olho!

Quer dizer, ficaria cego desde logo. Mas, se ficasse só nisso… Esse câncer progride, vai para o cérebro e não adianta cobalto, nem mais nada, mata o indivíduo.

Dos que estavam na sala de espera, quantos pensaram que lhes podia acontecer isto? São pessoas que não cogitam nos novíssimos, nem na facilidade com que a morte as espreita e às vezes as chama, na ocasião em que menos esperam.

O indivíduo está executando um plano, tem um desígnio, possui algo que ele conquistou a duras penas e do qual está começando a gozar. A morte se apresenta e lhe diz: “Venha! Está tudo acabado.”

Quer dizer, nossa situação é parecida àquela em que nos encontraríamos se houvesse um terrorista no teto deste auditório.

Caso a morte tivesse data marcada, a que decadência chegaria a humanidade!

Alguém poderia perguntar: “Mas então o senhor está comparando Deus a um terrorista?”

Eu disse uma coisa bem diferente. Estou considerando a misericórdia que Ele mostrou ao homem, colocando-o nessa situação, de vez em quando colhendo um, com a intenção, entre outras, de que mil se assustem e entrem nas vias da virtude.

A que decadência chegaria a humanidade se não houvesse mortes repentinas! Se todo homem tivesse certeza que a morte só o colheria depois de completar os oitenta anos, quantos pecados ele cometeria antes de atingir essa idade? Incontáveis. Por efeito da bondade de Deus, existe uma espada sobre a cabeça de cada um de nós, para nos dar juízo, nos convidar a pensar na morte e compreender que todas as coisas desta vida só valem alguma coisa na medida em que contribuírem para morrermos bem. Morrendo bem, teremos a eternidade; morrendo mal, também a eternidade, mas que diferença entre as duas eternidades!

Esperada ou repentina, a morte é sempre tremenda!

A morte! Quantas variedades de morte há! Já vi pessoas morrendo aos poucos, com doenças horrorosas; e outras, de velhice. Lembro-me de uma pobre senhora idosa, simpática e respeitável, cujo cérebro estava em condições tão arruinadas que ela era continuamente assaltada por fantasias, as quais não tinham proporção com a realidade. Gemia e gritava; não se sabe o que ela via, mas percebia-se que estava diante de coisas horríveis. Foi preciso amarrá-la com cordas para que não se contorcesse demais e assim morresse.

Essa senhora levou uma vida bastante dura, sempre foi pobre, lutou muito. Por misteriosos desígnios de Deus, teve uma morte mais terrível do que a vida.  Que morrer tremendo! No meio dos delírios e desvarios! Pode ser que nossa morte seja assim…

Houve pessoas que, devido a alguma doença, sofreram diversas cirurgias: foi-lhes cortado um membro, depois outro… Quando atingidas num ponto vital, morreram.

Certa vez fui à residência de um alfaiate a fim de mandar fazer uma roupa. Achei a casa dele atraente, embora modesta, e disse-lhe:

— Que construção interessante, simpática!

Ele então afirmou:

— Eu morava aqui com meu padrasto e minha mãe, que ainda está viva.

Pareceu-me curioso o alfaiate falar do padrasto dele com tanta simpatia. Então, perguntei-lhe:

— Seu padrasto morreu?

O alfaiate respondeu-me:

— Sim, faleceu de uma doença atroz: a cada ano era necessário amputar um novo segmento das suas pernas e assim foi até o seu falecimento.

Já pensaram o que significa morrer desse modo? Ou, então, cair morto de repente?

O que será a dor da alma sendo arrancada do corpo?

Alguém poderia dizer: “Não. Quem morreu repentinamente não sofreu.”

Que ilusão!

Não posso me esquecer da impressão que tive, quando estava estudando no colégio São Luís — eu era menino —, e um padre, que era jesuíta, fez um raciocínio a fim de preparar a mentalidade dos alunos para a morte. Inicialmente, ele disse:

— Nunca ninguém voltou depois de morto para contar o que custa morrer.

Realmente há algo de respeitável na morte, e as pouquíssimas pessoas que conheceram outras que Deus ressuscitou, não consta terem tido coragem de perguntar-lhes: “O que você sentiu enquanto morria? O que lhe aconteceu depois que você morreu?” Há um grande mistério na morte.

E o sacerdote continuou:

— Apesar desse tremendo mistério, uma coisa é certa: a morte causa terríveis dores. Se — vou adaptar um pouco suas palavras — a ponta de um de meus dedos for arrancada, terei dores crudelíssimas. E julgarei que o homem que me causou isso foi um carrasco.

Lembro-me de um fato que li nas memórias de uma mulher, tida como uma das mais vigorosas do século XVIII, Catarina, Imperatriz da Rússia. Ela sentiu uma dor de dente muito forte e, naquele tempo, não havia anestesia. Em suas memórias, nas quais conta os fatos mais importantes da política de seu tempo — ela foi, se assim se pudesse dizer, uma potentada —, Catarina fala também a respeito de sua dor de dente. Tendo o dentista afirmado ser preciso arrancar o dente, ela — que era alemã, e alemã decidida — lhe disse que poderia fazê-lo. O dentista meteu mãos à obra. Ela escreveu que, depois de arrancado o dente, sentiu-se de tal maneira desvairada de dor que acabou sentada embaixo de uma mesa, gemendo e chorando.

São dores ocasionadas por se arrancar do todo humano um dente ou uma falange. Agora transmito o raciocínio do meu jesuíta:

— Imaginaram o que sente o corpo no momento em que a alma é separada dele? Que coisa tremenda!

A dor que a pessoa sente no momento em que sua alma deixou o corpo, embora terrível, não é nada em comparação do que vem depois.

A alma, separada do corpo, vê o próprio cadáver, as pessoas que estão em volta, chorando, pensando na herança, ou contentes por julgar que aquele trambolho vai para o cemitério. Olha tudo quanto deixou e que já não lhe adianta de mais nada: a bonita casa, o bonito automóvel, a aprazível situação, os filhos queridos, o esposo ou a esposa. E não tem mais possibilidade de comunicação, está numa outra esfera, é um espírito.

Diante de Deus, os maiores homens do mundo não são nada!

Naquele instante em que a pessoa expira, sua alma é projetada diante de Deus.

Para se ter uma fraca ideia do que é essa projeção perante Deus, imaginemos que um dos presentes neste auditório fosse transportado de repente, por uma mão misteriosa, a um tribunal constituído pelas maiores autoridades do mundo: o mais sábio, que lhe fizesse um interrogatório para verificar sua cultura e instrução; o mais fino, a fim de saber que espécie de educação possui; o mais elegante e bem vestido, para olhá-lo; o mais capaz, para examinar o que vale; e assim outros componentes desse cenáculo de sumidades.

Ele sentir-se-ia inseguro quando alguém lhe dissesse: “Você está na fila e daqui a pouco será chamado.” E pensaria: “Que sentença eles vão pronunciar a meu respeito? Deixe ao menos eu me arranjar um pouquinho, reavivar minhas noções de Geografia, História e de tudo o que sei, para não parecer tonto demais diante desta gente aqui”.

É chamado e um homem lhe diz:

— Dou-te um raciocínio errado, mas simples; responda onde está meu sofisma.

— Não encontro.

— Imbecil, vai para fora!

Outro personagem, que possui as melhores maneiras do mundo, apresenta-lhe um teorema:

— Imagine um homem que esteja em tal situação e que recebe, nessas condições, uma afronta. Mas essa ofensa lhe é feita pelo seu próprio rei. Como ele deve responder a essa afronta?

— Nunca pensei nisso.

— Tonto, retire-se!

Comparando-se com aqueles que o estão julgando, ele sente sua insuficiência radical, fundamental, a desproporção esmagadora.

Mas, diante de Deus, os maiores homens do mundo não são nada! O Altíssimo, falando a Moisés, definiu-se a Si mesmo: “Eu sou aquele que é.”2 Ele é o Criador do Céu, da Terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. No mistério de sua Santíssima Trindade se desenrolaram eternamente realidades que não posso nem sequer excogitar; Deus é a santidade, a sabedoria, e está acima de mim a perder de vista. E sinto que seus olhos penetram em mim, não escapa nada!

De repente eu morro e me dou conta de tudo quanto tenho de errado e também de certo. Mas o que acho de mim já não interessa. O que importa é o que Ele acha de mim. E, num instante, Ele me julga. Instintivamente meu olhar procura Nossa Senhora. Mas, as cartas estão jogadas.

É possível que, antes de acabar a frase que estou pronunciando, um dos presentes, ou eu, compareça diante de Deus. E o Criador faz assim, para estarmos sempre em ordem, a fim de nos apresentarmos diante d’Ele.

A terrível rejeição que há no inferno

Vejamos agora como são o Céu e o inferno. Talvez seja mais fácil compreender como é o inferno, para depois entender como é o Paraíso.

O primeiro tormento que o homem tem no inferno, o mais profundo de todos, não é o fogo, mas o saber-se rejeitado por Deus. Esse é um tormento irremediável, terrível, maior do que todos os outros tormentos.

Vou dar uma fraca imagem disso. Imaginemos que um dos presentes passe a viver comumente no ambiente onde nasceu, sendo aceito por todo o mundo.

E que, devido a uma razão qualquer, ele fosse rejeitado como indigno por esse ambiente, e depois por todos os homens. E tivesse que habitar numa tribo de selvagens monstruosos, que põem um pedaço de pau circular nos beiços, e dizem coisas elementares; fazem danças e saracoteios horríveis e, de vez em quando, comem uma pessoa.  E ficasse reduzido a viver no meio deles, porque todo o resto do gênero humano o desprezou e não o quis, tomando uma dura atitude, pois ele foi indigno. Fez uma coisa tal que causou horror a todos os homens. Só aqueles indígenas consentem em conviver com ele.

O fato de ele estar nessa situação, isolado de todos pelo horror, lhe é mais penoso do que tudo quanto perdeu, porque foi deslocado do seu ambiente natural.

Se o homem é assim com seu ambiente natural, é incomparavelmente mais com Deus. E quando ele morre, percebe que seu fim, sua ordem, sua bem-aventurança é Deus. Ora, ele rejeitou essa bem-aventurança, por um mau olhar, um mau pensamento, um mau ato, ou qualquer outra coisa, e por causa disso ele não tem mais nexo com Deus. Fica estraçalhado e completamente inexplicável. E no inferno ele tem a dor chamada do dano, percebe que é danado — “damnatus” em latim significa condenado, rompido. E essa ruptura pesa eternamente sobre ele como uma garra.

Local físico e real

O inferno é um lugar material, onde há um fogo material. E esse fogo é tão mais terrível, em relação ao fogo da Terra, que Santo Afonso de Ligório, o grande doutor dos novíssimos, dizia que há uma regra de três.

Considerem uma chama muito bem pintada num quadro; ela produz a ilusão visual do fogo, mas não tem calor. Já a chama de uma vela tem calor. A diferença entre a chama pintada e a da vela é muito menor do que a existente entre o fogo da Terra e o do inferno. Não sabemos que espécie de material alimenta o fogo do inferno. Mas Deus sabe, e isto basta. Quem morre condenado não precisa conhecer o que é esse fogo, porém o sente. E, por um desígnio d’Ele, o fogo dói na alma, se bem que esta seja espiritual. E queima a alma como queima o corpo.

De maneira que as almas atiradas ali sentem aquele fogo inteiramente. E, para usar a expressão de muitos que viram o inferno — São João Bosco é um deles —, a alma está no inferno não como um de nós, por exemplo, que sofresse com uma queimadura de terceiro grau na superfície do corpo, mas como uma brasa; ela é fogo!

Quer dizer, nada haverá na alma que não esteja em combustão com o fogo maldito do inferno. Uma combustão tremenda, que não se apaga, não cessa nem cede um instante. É continuamente terrível.

Segundo algumas revelações privadas, no inferno existe uma movimentação interna com rios e caudais de fogo. E as almas são banhadas em fogos diferentes, que não as deixam nunca. Seriam como brasas atiradas dentro de um fogareiro enorme; depois saem desse fogareiro e são jogadas em outro. E há no inferno — a expressão é figurada — como que lagos de fogo, com ondas de fogo. E, de vez em quando, por ordem de Deus, esses malditos têm que ir para lá e banhar-se nas ondas de fogo, vindas de todos os lados. E isso eternamente.  v

 

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 23/7/1983)
Revista Dr Plinio 153 (Dezembro de 2010)

 

1) Eclo 7, 40.

2) Ex 3,14.

União de alma com o Divino Infante

Na noite de Natal o Menino Jesus possuía o pleno uso de sua inteligência. E já no seu pobre berço, sofria ao prever a incredulidade e a impiedade se espalhando em tantos lugares da terra. Mas, por outro lado, contemplou também todas as almas zelosas da glória e do serviço de Deus, vivendo e batalhando para o triunfo da virtude, sofrendo com os pecados e as ofensas que os homens cometem contra Ele, reparando-as com penitências e espírito de ascese.

Desse modo, a mente e o coração sagrados do divino Recém-nascido voltavam-se para os católicos fervorosos enquanto implorava ao Pai Eterno as forças necessárias para eles perseverarem no bom combate pelo bem.

Acerquemo-nos então do Presépio, e peçamos a Jesus, por meio de Nossa Senhora, de São José, dos Anjos, dos pastores e dos Reis Magos, que aceite nosso desejo de sermos conforme aos seus divinos desígnios. Ofereçamos-Lhe o nosso anelo de nos unirmos às cogitações, meditações e considerações proféticas que Ele fez na manjedoura, a fim de vivermos o Natal em uníssono com Ele.

Imploremos uma inteira união de alma com o Divino Infante, de maneira a que tudo quanto existe no coração d’Ele esteja no nosso, tudo quanto palpite no Imaculado Coração de Maria lateje também no nosso, e que o Natal celebrado por nós reflita exatamente o sentido de tudo quanto Jesus e Maria experimentaram naquela noite mil vezes bendita nas montanhas de Belém.

Plinio Corrêa de Oliveira

Felicidade e temperança

Se esta vida é um “vale de lágrimas”, o homem está fadado a ser continuamente infeliz? Ou deve, pelo contrário, procurar sempre o divertimento? De modo magistral, Dr. Plinio analisa o delicado equilíbrio entre essas duas posturas extremas, em reunião dedicada a comentar o interessante livro de Marcel Brion — “A vida quotidiana em Viena nos tempos de Mozart e de Schubert”.

 

O tema dessa exposição me foi sugerido por este pensamento exarado na obra de Brion: “Uma época que se diverte é sempre, em grau maior ou menor, uma época inquieta, pois a procura  desenfreada  do prazer corresponde, conscientemente ou não, ao desejo de fazer emudecer uma inquietação lancinante”. A meu ver, apesar de excelente escritor e membro da Academia Francesa, algo claudica nessa afirmação de Brion.

Ele deveria dizer que uma sociedade que se diverte desenfreadamente, esta sim oculta uma tristeza lancinante, uma inquietação dolorosa. Esse seria o pensamento verdadeiro. O simples divertir-se, o ter um lazer de vez em quando, não configura uma sociedade triste.

Uma falsa filosofia de vida Creio, porém, haver muita gente adepta de uma filosofia de vida segundo a qual “só o divertir-se é realmente agradável”. Essa gente ou se diverte ou trabalha. Como um trabalho  sério é sempre penoso e, portanto, desagradável, não se pode chamá-lo de autêntica fonte de entretenimento.

Fora dessas duas alternativas, há o repouso insípido, sem nenhuma graça.

De maneira que, para tais pessoas, a única forma de alegria possível nesta vida se encontra na diversão, a qual, quanto mais intensa, mais felicidade proporcionará. Tomadas por essa ideia equivocada, correm malucamente atrás dos divertimentos. Ainda segundo essa concepção, deve-se aceitar a infelicidade por amor ao Céu, por amor a Deus Nosso Senhor, por temor do inferno.

Mas, a vida morigerada, regular, sem maiores folguedos, não é uma vida que traga alegria, pois esta só se acha na diversão. Existe a felicidade neste vale de lágrimas? Podemos nos perguntar se realmente essa mentalidade tem razão de ser, e se o prazer que se alcança nas recreações é idêntico à felicidade.

Para resolver esta questão, não deve alguém se satisfazer com o seguinte pensamento piedoso: “Doutor Plinio, a felicidade não existe neste vale de lágrimas. O homem aqui é perpetuamente infeliz. Ele sai de um infortúnio para cair em outro, e no seu caminho só encontra tristeza, achaques e dores”.

Essa idéia é uma meia-verdade e, portanto, um meio-erro. De acordo com São Tomás de Aquino, o homem precisa ter na sua existência algo, por menor que seja, capaz de lhe proporcionar algum  prazer. Se imaginássemos um homem sem um grão de felicidade, ele morreria.

E a Providência Divina, materna e bondosa, permite duas coisas: primeiro, que a grande maioria dos homens possua ao menos uma parcela de felicidade (não inteira, pois esta não existe mesmo  neste mundo). De outro lado, também dispõe que aqueles aos quais Ela mais ama passem por períodos inteiramente áridos, sem qualquer forma de alegria. São as grandes horas da vida de um homem: quando se faz “noite”, todo contentamento desaparece — inclusive a consolação sobrenatural — e se entra no túnel obscuro, “plumbeamente” pesado de uma infelicidade imensa.

Mas os males críticos, muito agudos, não duram. Ou conduzem à morte, ou passam logo. Assim também é preciso ver essas partes trágicas da existência como permitidas por uma disposição especial da Providência, em geral com pouca duração.

Portanto, em algo o homem precisa ter um fragmento de felicidade. Então, é preciso perguntar se essa parcela de alegria se identifica com o prazer, e qual seria o papel deste na posse daquela. Numa tentativa de resposta, acredito que há fases da história de certos povos, de certas civilizações, em que o prazer é tão excepcional na vida, e o divertimento é tão pouco freqüente, que se diria  não existirem.

São duas ou três festas por ano, de qualquer natureza, e, fora disso, as pessoas não se divertem. Alguém pode ser feliz assim? Pode. Desde que compreenda bem a sua situação, e saiba encontrar a  felicidade que ela lhe proporciona.

A felicidade de um fazendeiro dos antigos tempos

Considere-se, por exemplo, a vida de um fazendeiro brasileiro no tempo do Império (falo do Brasil, mas é evidente que situações análogas se dão em outros povos, em outras circunstâncias). omo era o quotidiano desse fazendeiro e de sua família?

Em geral, vivia numa casa de fazenda confortável, segundo as necessidades e conveniências dele. Estava separado da cidade próxima por algumas léguas de estrada difícil de percorrer, e na qual,  não raras vezes, corria-se o perigo de ser assaltado, sofrer emboscadas dos capangas de um inimigo político, etc. Assim, esse homem tinha tendência a se isolar na própria fazenda, desfrutando ali da placidez de sua existência rural.

Duas ou três grandes diversões por ano lhe bastavam. Havia a festa da Novena do Padroeiro da Matriz, ocasião em que se dirigia com toda a família para a cidade. O evento comportava atos de  piedade de gala, as pessoas se apresentavam trajadas com suas melhores roupas, e nas saídas os encontros tomavam um caráter de reunião, senão necessariamente mundana, pelo menos social. Depois, havia também casamentos de parentes ou algum batizado, dando lugar a mais celebrações e festejos sociais.

Qual era, pois, a felicidade de um fazendeiro nessa vida campesina? Era a alegria de exercer a sua atividade, conferindo a ela os vários caracteres de que toda ação simultaneamente deve estar  cercada. Em primeiro lugar, vinha o interesse e o prazer natural da ocupação  agrícola: o plantio e desenvolvimento da safra, dirigir os homens na colheita, guardar, fazer o plano de uma melhoria  para o ano seguinte, etc. Isso significava, em escala muito pequena, reinar. De fato, o fazendeiro era muito mais rei da sua fazenda do que o prefeito do município onde ela se incrustava. O  verdadeiro soberanozinho era ele.

Ora, esse pequeno papel governativo que o individuo exercia na sua fazenda, era uma função que podia propiciar deleite, por uma vida inteira, a um homem equilibrado, sensato  e temperante. Ao  lado disso, ele tinha o prazer de ser o patriarca do lugar. Quer dizer,  o homem em torno do qual se compõe a vida da fazenda. Era o líder  natural, que, naquele tempo, dava um conselho para a família dos seus subordinados, colonos e administradores, conforme as mais diversas situações: sobre a educação dos filhos, na receita para curar uma doença, sobre o curandeiro que passou, acerca do modo de tratarem das  próprias terras, ou sobre qualquer problema para o qual lhe iam solicitar ajuda. Enfim, para lembrar a distinção que fazem os ingleses, o fazendeiro não governava  apenas, mas também reinava. Ele era a chave de cúpula simbólica da vida da fazenda.

E ser detentor dessa condição naquela comunidade, pelo interesse que tem cada alma para a família humana, era de molde a distrair e causar felicidade a um homem que entendia  bem as coisas.

De mais a mais, naquele pequeno local onde ele existia, o fazendeiro auferia um dos reais prazeres que a vida pode conceder a alguém: o de receber o legítimo respeito e a consideração proporcionais à função que ele desempenha.

Ser acatado não só pelos seus subalternos, mais igualmente pelos seus mais próximos. Com efeito, ele estava cercado por sua família que, dentro da fazenda, constituía um outro reinozinho dele.  Os filhos lhe eram muito obedientes e respeitadores no mais alto grau.

Quando visitava a cidade vizinha, ele entrava na frente, seguido pela sua “corte”. Era o Senhor de tal engenho, o dono de tal fazenda que chegava, e o prestígio que o impunha na metropolezinha, era a repercussão do prestígio que granjeara na sua propriedade. Ora, como as cidades viviam em função do campo e todas elas estavam penetradas pela vida da agricultura, transformavam-se  numa espécie de súmula e ao mesmo tempo de apêndice de todas as fazendas das redondezas. De maneira que o nosso personagem entrava lá “cantando de galo”…

Dirigia-se à casa do compadre (e ser compadre naqueles tempos era algo muito mais sério do que hoje) onde ficaria hospedado, e se apresentava dizendo: “Ó compadre, como vai “Mecê”?”

Propalava-se rapidamente na cidade a notícia de que ele havia chegado. E os importantes do lugar o vinham visitar, cumprimentar, fazer  política — porque ele era dono dos votos dos seus colonos, e, portanto, um inapreciável cabo eleitoral.

Toda essa influência lhe outorgava uma certa autoridade quando ele visitava a capital da Província. Então era ali recebido pelo governador, conversava com algum deputado importante e, se fosse  em São Paulo, com tal professor da Faculdade de Direito que lhe dava audiência. De volta ao seu pequeno feudo, ele não poupava comentários sobre a sua viagem, o que apenas reforçava o seu prestígio local.

Características da verdadeira felicidade

Ora, um homem que sabe compreender essas coisas, sabe degustar o que elas têm de legítimo, e vive dessa degustação temperante. É um homem em cuja vida a felicidade, e não a diversão, ocupa  um bom papel. Ele tem uma forma de alegria que não é a do prazer desenfreado.

Quais são as características dessa felicidade?

Antes de tudo, é sumamente razoável. Em segundo lugar, ela cria e interpõe a temperança, e por isso mesmo só pode ser degustada por um indivíduo temperante. Neste não há as ânsias, os  delírios, as inquietações e agitações que dominam o homem moderno. Os episódios da vida de uma pessoa temperante procedem da calma, e a mantêm serena. Conduzem-na a uma sensação de  harmonia, de equilíbrio, de abastança, e a fazem se sentir segura e tranquila sobre si mesma.

Tome-se, por exemplo, a existência de um pequeno comerciante do início do século [XX]. A ele se poderia aplicar o que dissemos sobre o fazendeiro do tempo do Império, ambos imbuídos dessa  temperante disposição de alma. Figura característica desse homem de comércio, profundamente tranqüilo, sereno e equilibrado seria, a meu ver, o “Monsieur” Martin, pai de Santa Teresinha. Na  modesta cidade de Alençon, de nome lindo como uma música, ele era relojoeiro, vendendo suas peças que não deviam ser lá grandes maravilhas da ourivesaria. Seja como for, com honestidade e   probidade ele reuniu um bom pecúlio. A certa altura da vida encerrou seu comércio, tinha suficiente dinheiro para viver de renda e se retirou da atividade comercial.

Costruiu seus Buissonnets, um poema da graça miúda da pequeno-burguesia, e viveu na tranqüilidade daquela fisionomia magnífica de paz, de estabilidade e equilíbrio de alma que ele tinha.

Ele vivera uma existência na qual o prazer representara pouco. Mas as pessoas eram educadas pelo ambiente para gostar dessa forma de felicidade.

A chave do problema está na temperança

Essa degustação das situações, esse deleite morigerado constitui propriamente a felicidade, da qual não se exclui o prazer como se este lhe fosse contrário. Antes, é como um tempero, um sal que  confere à alegria um certo sabor. Porque uma vida dessas, “à la longue”, pode se tornar um tanto sensaborona. Faz parte da mutabilidade do espírito humano que ele queira, de vez em quando, certa variedade. E é concebível que ele deseje um prazer honesto o qual, portanto, não se opõe à felicidade.

A chave da questão está, então, no problema da temperança. Com efeito, se o indivíduo é temperante,  é capaz de degustar a situação legítima em que se acha e de nela encontrar felicidade. Se é ou  se deixa tornar intemperante, ele corre atrás dos prazeres e das sensações. Correndo atrás destes, ele volta à estaca zero.

É próprio do espírito “hollywoodiano” o ter transformado em uma fonte de prazer intemperante até mesmo as coisas que, de si, não são deleitosas.

O alemão típico, por exemplo, encontra a felicidade no trabalho intenso, mas calmo. O estilo “hollywoodiano” busca o prazer no trabalho agitadíssimo, que produz como que uma embriaguez da  realização. O antigo turista europeu se comprazia numa viagem ponderada, equilibrada, tranquila. O turista americano, segundo a imagem convencional, tem gosto em devorar as distâncias e em se intoxicar de sensações sucessivas que ele não é capaz de digerir.

Febricitação, oposto da temperança e da felicidade

Essa última mentalidade, ao invés  de se caracterizar pela temperança,é marcada pela febricitação. Ou seja, a mania de estar imerso continuamente nas sensações fortes e de não querer viver na placidez de uma vida ordenada e comum.

Essa mania é a extensão lógica da sede do prazer para a apetência de outras sensações em outros terrenos da vida, que criam o estilo do existir contemporâneo. É uma corrida atrás das sensações a  propósito de tudo e de nada. Enquanto o homem temperante se defende delas, o intemperante vive apenas perseguindo-as e tentando sugá-las a todo custo.

Daí nascem, em larga medida, o desequilíbrio da sociedade hodierna, e a pseudo-alegria que uma pessoa do interior encontra quando chega na cidade grande, deslumbrando-se com as sensações fortes que esta lhe promete. Ainda que seja a emoção de quase se ver atropelado num acidente de automóvel.

Ela volta para a sua cidadezinha e começa a contar na praça pública como esteve num lugar onde os automóveis correm tão depressa que ela só faltou morrer debaixo de um. Para  ela, esse perigo   de vida pareceu bonito, e se comprouve não só em senti-lo, como também em contar que o sentiu, para participar a sensação aos outros, como se lhes estivesse oferecendo a degustação de um  vinho capitoso. Essa é a febricitação, da qual o homem do nosso tempo se tornou quase um escravo.

O “Ângelus” de Millet

O contrário desse estado de espírito agitado pode ser compreendido na consideração de uma pintura célebre — o “Ângelus”, de Millet. O que esse grande artista quis exprimir (talvez de modo um  tanto romântico) no seu quadro é a felicidade calma e tranquila, sem as intemperanças do prazer desenfreado.

É a imensa serenidade do campo, do trabalho que terminou, do “Ângelus” que está tilintando no sino da igreja próxima; do casal que reza na castidade da vida agrícola, com os trajes rurais e com  os instrumentos de sua labuta diária. E que, naquela calma bucólica, voltará para casa onde logo o jantar será servido.

Enquanto a mulher se dirige à cozinha, o homem se põe a descansar um pouco, sentindo o cheio da comida que começa a tomar as exíguas dependências do seu modesto lar, observando o teto de  colmo e a fumaça que sobe pela chaminé; ouvindo o barulho de um pássaro que procura um pouso, ou uma criancinha que faz suas últimas piruetas antes  de dormir.

Vem a noite, e com ela aquela segurança dentro da casa, enquanto a existência noturna da natureza impera em volta dela. É a alegria, a felicidade das situações.

Creio que todo homem lucraria muito em inalar essa felicidade, essa tranqüilidade de quem leva uma existência normal, calma, sem sensações,  de uma atividade fecunda, enriquecida pela vida de  oração. Assim como creio que é infeliz o indivíduo intoxicado pela posição de espírito oposta.

Plinio Corrêa de Oliveira

O luminoso caminho dos “flashes”

Evocando marcantes momentos de sua infância, Dr. Plinio prossegue na descrição das graças especiais que, como verdadeiros “flashes”, foram-lhe concedidas para discernir e amar as perfeições de Deus, de Maria Santíssima e da Igreja. Esses dons divinos, insistirá Dr. Plinio, longe de serem um privilégio, estão ao alcance de todos nós: basta que tenhamos o espírito atento para as belezas celestiais e seguirmos a radiosa trajetória que elas nos traçam.

 

Em anterior ocasião, narrei aqui alguns flashes que tive em menino, os quais me levaram a compreender a santidade e a divindade da Igreja.

“Flashes” com a pureza de Nossa Senhora

Também na infância, outras graças dessa natureza me foram concedidas, ao contemplar as imagens de Nossa Senhora Auxiliadora, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, e de Nossa Senhora do Bom Conselho, no Colégio São Luís.

Em ambos os casos não houve milagre, como se as imagens se movessem e se manifestassem a mim de modo extraordinário. Porém, elas me foram ocasião de graças sensíveis, à maneira das que recebemos, por exemplo, diante da imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima( 1), cuja maravilhosa expressividade nos faz ter a sensação de que ela muda de fisionomia, como se quisesse nos dizer algo.

Assim, de modo análogo, junto àquelas imagens tive uma dupla noção, da realeza e da misericórdia de Nossa Senhora.

Poder-se-ia afirmar tratar-se da realeza da castidade. Maria Santíssima é a Soberana de todo esse setor do universo chamado pureza, de tudo capaz de ser considerado casto, com primazia para a alma humana. Nossa Senhora possui a castidade em grau tão supereminente, que todas as purezas abaixo da d’Ela não são senão pálida figura da sua virgindade.

E a pureza tem em si algo que é oposto, não contraditório, com a misericórdia. Porque a castidade é profundamente exclusiva. A pessoa pura constitui em torno dela uma espécie de halo que se chama pudor, uma distância de tudo que não seja casto. Ela é inquebrantável quanto à impureza, mostra-se altaneira em relação a esta e a afasta para longe. Donde entre o puro e o impuro se estabelecer uma situação parecida com a que se poderia imaginar numa cena da Revolução Francesa, entre a Rainha Maria Antonieta e um daqueles ferozes revolucionários. Ela representaria de algum modo a pureza, a ordem, e ele, a revolta, o partidário de toda feiura, sordície e más maneiras.

Tal cena exprimiria de maneira tênue a ideia de que realeza e pureza se casam com toda a intransigência inerente aos conceitos de ambas. Isto de um lado.

De outro, porém, Nossa Senhora possui insondável misericórdia, inclusive e principalmente para com o impuro. Embora faltoso, este continua sendo seu filho, e Ela o considera com seu ilimitado desvelo de Mãe, com sua incansável bondade, desejando perdoá-lo a todo momento, reerguê-lo e tirá-lo da charneca.

Ora, a conjunção de todas essas qualidades da Santíssima Virgem me falou na alma de forma inenarrável. E vi naquelas imagens d’Ela essas várias expressões. Marcou para minha vida inteira a devoção a Nossa Senhora, com a ideia de que Ela é um modelo a ser imitado custe o que custar, um auxílio no qual se deve confiar a todo preço, por pior que seja a situação. A bem dizer, ­duas incondicionalidades: na vontade de imitar, no propósito de esperar o perdão e a clemência.

Um muro de horror ao pecado

A graça de compreender e admirar a realeza da pureza de Nossa Senhora, cuja noção adquiri através desses flashes, veio trazendo dentro de si um verdadeiro muro de horror contra a impureza.

Para se entender essa afirmação, imagine-se uma pérola absolutamente branca. Qualquer grão de poeira que se deposite sobre ela a deprecia, porque macula em algum ponto aquela alvura, quebra sua homogeneidade. Assim, a virtude da pureza imaculada, ilibada, traz consigo o padrão do muro de horror contra a impureza e, por extensão, também contra tudo quanto é erro e mal. Por exemplo, entre o deplorável defeito da inveja e a virtude contrária (isto é, a admiração e a alegria pelos dons concedidos por Deus a outros), há um muro de horror semelhante àquele da relação pureza-impureza.

Essa parede de aversão se repete ao longo de toda a muralha das virtudes, sobretudo no tocante à principal delas, a Fé, face ao pecado que a ela se opõe: a heresia.

Por definição, a Fé é tão casta que, muitas vezes, quando a Escri­tura se refere a alguém que pecou contra essa virtude, afirma ter ele ­caído na impureza. E quando o Antigo Testamento nos apresenta os judeus praticando atos impuros no alto das montanhas, alude com isso ao pecado de apostasia que eles cometiam ao adorar ídolos postos naqueles locais. Ou seja, entregar-se à idolatria é cometer atos impuros, é pecar contra a Fé.

Em contrapartida, a Santa Igreja, guardiã da verdadeira Fé, é a Mãe casta, virgem e reta, a santa, a ilibada, que nos leva à pratica da virtude e à repulsa ao vício.

Certo estou, portanto, de que naqueles momentos dos meus flashes com Ela, Nossa Senhora me concedeu a graça de edificar em minha alma esse muro de horror ao pecado. Muro este que todos devemos procurar desenvolver em nosso interior, em relação a qualquer defeito e pecado que nos afastam do caminho da santidade.

“Flashes” que se desdobram em princípios

A esse propósito, alguém poderia me indagar: “Para se criar esse muro de horror, importa ter tido antes um flash?”

O flash produz necessariamente o muro do horror. Porém, com freqüência este último é obtido através do estudo da boa doutrina, feito de modo sério por uma alma honesta que deteste o vício e o mal, embora não tenha recebido a graça sensível que chamamos de flash. Entretanto, a meu ver, na vida espiritual de uma pessoa é indispensável haver certo número de flashes, a fim de que ela construa de maneira profunda essa muralha de repulsa ao pecado. E para minha cara “geração nova”(2), o flash é uma graça particularmente valiosa, devido à própria contextura de seu espírito.

Agora, os flashes devem se desdobrar em princípios, os quais cumprem ser, não analisados como coisa geométrica, mas amados. Quer dizer, compreendendo uma verdade a partir do flash, é necessário amá-la e detestar o erro oposto. Nesse sentido, lembra-me um Salmo que diz: “Amei a justiça e odiei a iniquidade, por isso Deus me ungiu com seu óleo santo”. Na linguagem da Escritura, a justiça é o símbolo de todas as virtudes, e a iniquidade representa o conjunto dos erros. A unção da qual fala o Salmo seria, pois, o flash que torna a alma articulada, leve, aromatizada, azeitada para a prática do bem.

Trilhando o caminho dos “flashes”

Para concluir essas considerações, é oportuno dizer que cada um, com a peculiaridade de seu espírito e a riqueza de sua personalidade, em relação aos flashes deve ir apalpando e tateando suas impressões, a fim de procurar seguir um caminho análogo ao que trilhei. Esforçar-se em lembrar dessas graças recebidas, explicitar as sensações que causaram, de maneira a saber dizer qual foi sua substância e, posteriormente, estabelecer correlações e princípios.

Assim foi como procedi: recordei meus flashes de menino, explicitei-os, compus com eles um quadro de impressões, de correlações e conceitos: a santidade da Igreja, a realeza da virgindade de Maria Santíssima, etc.

Naturalmente, cada alma realiza essa operação num movimento que lhe é próprio. Não pretendo que façam como eu, mas acredito ser este um bom método para, efetuando as necessárias adaptações, seguir esse luminoso “caminho dos flashes”.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

1 ) Essa imagem verteu lágrimas em Nova Orléans (EUA), em 1972. Em suas peregrinações através do mundo, passou diversas vezes pelo Brasil, sendo aqui venerada por Dr. Plinio e seus discípulos.

2 ) Sendo já homem maduro, Dr. Plinio foi notando entre os jovens com que fazia apostolado uma mudança de modos de pensar, querer e agir. Enquanto as pessoas de igual ou maior idade que ele demonstravam certas qualidades de espírito, esses mais novos apresentavam debilidades, tais como falta de perfeita lógica, de segurança, de direção, de perseverança, etc. Aos primeiros, Dr. Plinio chamava de “geração velha”; e aos últimos, de “geração nova”.

Neve, paz e ventura

Creio não ser uma voz discordante, ao afirmar que o cenário mais harmonioso com as bênçãos natalinas é aquele emoldurado e engalanado pela neve.

Quantas e quantas vezes nossa imaginação de criança (e não apenas de criança!) facilmente se deixou transportar aos belos e cativantes panoramas pintados pelos contos natalinos, alguns deles tão tocantes e tão próprios a despertar no espírito humano as melhores disposições espirituais e morais que o advento do Filho de Deus proporcionou ao mundo.

Aldeias recobertas de uma alvura imaculada, refletindo nos telhados de suas casas, nos caminhos, nas galharias dos pinheiros e das árvores esguias, o brilho de um límpido e diáfano azul, sereno e silencioso, dizendo-nos algo daquela quietude ungida de bênçãos do Céu que envolveu o estábulo de Belém onde o Verbo eterno nasceu para o tempo, revestido de nossa natureza.

A neve nos fala da inocência sem mancha, da beleza virginal e pura que tem o condão de encantar os olhos e os corações. Não sem razão, o Salmista arrependido e penitente, comparou a regeneração de sua alma com a alvura dessa fascinante criatura: “Tu me aspergirás com o hissope e serei purificado; lavar-me-ás e me tornarei mais branco que a neve…” (Sl 50, 9)

Candura nívea, inocência do Divino Infante, nascido da Virgem-Mãe imaculada, sob os desvelos do castíssimo São José — atmosfera natalina, que sempre convida a humanidade a deter, por uma noite, por um dia, a laboriosa rotina de sua existência neste chão de exílio, e a se alegrar, a se reconfortar com as indefectíveis promessas de paz e ventura que nos veio do alto com esse Menino, agora reclinado num presépio…

Plinio Corrêa de Oliveira

Onde o Arcanjo um dia pousou…

Tibre, o velho rio Tibre, corre suavemente por uma das mais pitorescas zonas da Cidade Eterna. Em suas águas tranquilas, deixa refletir os arcos de uma robusta ponte e a silhueta de uma construção monumental, conferindo particular beleza a esse cenário romano.

A ponte, de linhas fortes e traçado muito lógico, foi feita para resistir às vicissitudes e desgastes dos séculos. Nas margens onde ela toca cresce uma vegetação nascida ao léu, com um certo espontâneo e desordenado que a tornam ainda mais atraente. Ao longo de suas balaustradas se erguem, em intervalos regulares, imagens de santos e de anjos, diante das quais os fiéis costumam rezar, enquanto se dirigem para aquele grande edifício que se espelha no Tibre. Esses peregrinos vão visitar o Castelo Sant’Angelo.

***

Os antigos imperadores romanos, pagãos, tinham o hábito de preparar monumentos nos quais deveriam ser enterrados. Por suas características arquitetônicas, esses mausoléus procuravam imortalizar o César ali sepultado.

Mais que um túmulo, era uma glorificação à memória do homem que, por tempo maior ou menor, governara os destinos de Roma e de seus vastos domínios. Um desses perpetuados foi o imperador Adriano, cujos restos mortais descansariam para sempre no monumento que ele mandou construir, próximo às plácidas águas tiberinas.

Na época imperial chamava-se “Mole Adriana”, nome bastante adequado se considerarmos tratar-se de um edifício de grandes e sólidas proporções. De diâmetro colossal, ele impressiona pelo sério, pelo compacto, pelo imenso. É uma afirmação do poder quantitativo, qualitativo e ordenativo de Roma, bem como de seu incontestável domínio sobre extensa parcela do mundo.

Porém, com o passar dos séculos, os ossos desse Adriano se desfizeram e dele nada sobrou. A história não o celebra, apenas o registra, porque ainda permaneceu de pé seu imponente mausoléu. E metida a cidade de Roma nas contínuas guerrilhas e guerras da Idade Média, esse túmulo começou a ser utilizado para finalidades diversas, transformando-se numa importante fortaleza. Seu papel defensivo pode ser notado até hoje, por quem visita a sede do Papado e a Basílica de São Pedro. Visto de fora o Palácio do Vaticano, nota-se em determinado ponto um cor- redor todo coberto, construído sobre arcadas que, mais adiante, atravessam o Tibre e se emendam na antiga Mole Adriana, agora Castelo Sant’Angelo. De maneira que, sentindo-se ameaçado, o Sumo Pontífice podia facilmente escapar por esse corredor e se refugiar entre os robustos muros do velho monumento. Era a suprema defesa do Vigário de Cristo.

Cessados os períodos de convulsões e saques a que se expunha a Cidade Eterna, o Castelo Sant’Angelo passou a ser outro lugar de descanso e recolhimento, à disposição do Papa.

E assim, como tantas outras construções de passadas eras, esse monumento de um imperador pagão foi incorporado às tradições e aos valores cristãos, tornando-se mais um símbolo das grandezas da Igreja.

No alto desse gigantesco castelo paira, sobranceira e protetora, a imagem de São Miguel Arcanjo. Ela é quem deu o novo nome ao antigo túmulo imperial.

Narram as crônicas que, durante a Idade Média, devastadora epidemia se alastrou por Roma, ceifando incontáveis vidas.

Compadecido e angustiado diante de tanta calamidade, o Soberano Pontífice ordenou que se fizessem procissões em toda a cidade, a fim de se alcançar dos Céus o fim daquele inclemente flagelo.

E suas preces foram atendidas. Pouco depois, como sinal da misericórdia divina, viu-se o gladífero Arcanjo pairar sobre a Mole Adriana, numa atitude de quem conjurava a peste.

Roma voltou à vida. E, desde então, a glória de um imperador em pó transformou-se em escabelo para o Príncipe da Milícia Celeste…

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Vitoriosa sobre os demônios

O demônio foi vencido por Maria uma primeira vez quando Deus anunciou que esta mulher esmagaria sua cabeça. Foi vencido quando Ela foi concebida imaculada. Foi vencido quando esta santíssima e augustíssima Virgem deu à luz o Filho de Deus feito homem, Aquele que vinha sobre a terra para destruir, por sua própria morte, o império da morte de satanás.

Ele foi vencido durante séculos, e o será até o fim dos tempos, por Maria, que não cessa de lhe arrebatar suas vítimas, desfazer suas ciladas, e de pôr freio às suas violências. Somente o nome de Maria basta para fazê-lo tremer; uma invocação a esta Rainha toda poderosa, a esta Mãe misericordiosa, basta para obrigá-lo a fugir.

Vitoriosa sobre os demônios, Maria o é, pela mesma razão, sobre todos os inimigos de Deus, porque destes é chefe o demônio, cuja vontade eles executam.

Pe. Zéphyr-Clément Jourdain

Um presente à Santíssima Virgem

Minha Mãe, é Natal! Hoje, mais do que nunca, o que pedirdes a vosso Divino Filho obtereis. Pedi-me de presente a Ele, minha Mãe. Eu sei que não vale a pena. Mas, se Vós quiserdes, valerá. Porque se Nosso Senhor me der a Vós, Ele me encherá de presentes.

Sendo eu maltrapilho e despojado de méritos, simplesmente pelo vosso sim serei revestido pelo Menino-Deus como um príncipe, para assim pertencer-Vos para sempre. Portanto, minha Mãe, pedi-me a Ele.

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 25/12/1987)

Os ódios sapienciais do Imaculado Coração de Maria – I

Maria Santíssima é toda cristalina, feita de suavidade e de pureza, dir-se-ia ser uma alma incapaz de odiar. Entretanto, pelo próprio amor insondável que Ela tem a Deus, é impossível que não odeie o que é contrário a Ele.

 

Nossa Senhora é a Medianeira de todas as graças e o ponto de referência de todos os elogios feitos a Deus. Não podemos conceber um louvor de Deus perfeito que não tenha a Ela como ponto de referência.

O caminhar do espírito humano

O espírito humano caminha para a cognição de “proche en proche” – de próximo em próximo, mas nesse caminhar, qual é o próximo d’Aquele que é eterno, absoluto, perfeito, infinito, transcendente em relação a qualquer criatura? Deus mora, a um título muito especial, no interior das criaturas por Ele amadas. Então, como Ele habita em Nossa Senhora, que é tão especialmente objeto de seu amor?

N’Ela temos o modo de nos tornarmos mais próximos de Deus. Embora Ele seja inacessível, fica ao alcance de nossa mão, porque habita em nossa Medianeira. Sendo Ela o Palácio da Trindade, o Paraíso do Homem-Deus, por meio d’Ela podemos ter com Ele aquele contato sem o qual nada somos.

Por essa razão, para exaltar qualquer perfeição divina, até mesmo a sagrada cólera d’Ele, não podemos tratar disso sem falar a respeito d’Ela.

Quando um indivíduo peca e se fixa irreversivelmente no pecado, torna-se odioso

Como medir a cólera do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria? Como podemos sequer conceber o Sapiencial e Imaculado Coração de Maria em cólera? Parece que as expressões são contraditórias, antitéticas. N’Ela não pode haver cólera, Ela é toda cristalina, toda feita de suavidade, de pureza. A cólera parece uma vibração de indignação, do amor de si mesmo contrariado, do egoísmo vilipendiado. Como se pode conceber disposições de alma tão baixas n’Aquela criatura que é toda Ela elevação?

A quem e como Nossa Senhora odiou? Costuma-se dizer que Ela odiou o pecado. É verdade. Mas o pecado só existe na pessoa do pecador. Não há um pecado tomado em abstrato. Antes de Adão e Eva pecarem, não havia pecado, pois não havia pecadores. Existia uma possibilidade de alguém pecar. Então, poder-se-ia odiar essa possibilidade, mas o ódio não teria como objeto um ser existente. Se Adão e Eva tivessem esse ódio ao pecado, enquanto sendo uma eventualidade, teriam encontrado mais recursos de alma para não pecarem.

Maria Santíssima odeia em todos os pecadores aquilo que é pecado e ama os pecadores, pois ama neles a possibilidade que, por disposição divina, têm de se arrepender. Mas a situação atual do pecador, enquanto permanecendo no estado de pecado, Ela odeia.

Como Ela odeia? Como nós podemos imaginar os ódios do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria?

Tenho a impressão de que com o pecado e com a virtude há quintessências. Alguns pecadores, por assim dizer, levaram tão longe o pecado quanto uma criatura humana pode levar a virtude. E, ao pé da letra, pecaram tanto quanto podiam, isto é, quanto estava na condição deles pecarem. Sendo criaturas muito elevadas, tiveram a possibilidade de pecar de modo muito abominável. Diz o ditado popular: quanto maior é a altura, tanto maior é a queda.

Assim, houve criaturas de uma natureza muito elevada chamadas por Deus a emitir um reflexo magnífico das três Pessoas Divinas. No momento em que pecaram e se fixaram irreversivelmente no pecado, essas criaturas tornaram-se odiosas. Ao ser criada, e tendo tomado conhecimento dessas criaturas e da hediondez do pecado por elas cometido, Nossa Senhora não foi em relação a elas senão ódio.

Maria Santíssima toma em consideração que o pecador forma um todo só com o pecado, assim como a pessoa virtuosa forma um todo só com a virtude. É mais ou menos como a pessoa feia e a feiura; como também a beleza constitui um todo com a pessoa bela. Tanto a beleza quanto a feiura são inerentes ao ser da pessoa.

Assim também o pecado, com a diferença de que este é livremente escolhido pelo pecador; e nisso a pessoa tem exatamente a nota mais humilhante, pois ela viu e aderiu àquilo por sua própria vontade.

O ódio se mede pelo amor

Então, pelo próprio amor insondável que Nossa Senhora tem a Deus, é impossível que Ela não odeie completamente aquele ser ao vê-lo como sendo o contrário do Criador. Para cada pecador a quem a Divina Justiça selou o destino e condenou ao Inferno, Maria Santíssima pode dizer as palavras da Escritura: “Eu te odiei com ódio perfeito!” (cf. Sl 138, 22). É um ódio ao qual não falta nada.

Esse ódio é feito de uma concepção retíssima e nobilíssima de como aquele ente deveria ser, pois Nossa Senhora conhece o modo único pelo qual aquela criatura deveria ser a imagem e semelhança de Deus, e ama muito aquilo. Ao ver que aquele ser rejeitou essa perfeição, transformando-se voluntariamente no contrário, Ela percebe que ele atingiu o requinte de sua própria maldade e o odeia completamente, por amor àquela mesma perfeição que Ela contempla em Deus.

É forçoso que, amando-se algo muito, se odeie igualmente o contrário. O ódio e o amor se acompanham como a figura e a sombra.

Os pés puríssimos de Nossa Senhora calcam os precitos com ódio

Poderíamos imaginar Nossa Senhora na presença de Deus e, diante d’Ela, uma alma que será julgada. Se for uma pessoa virtuosa, Ela a considera com amor e diz: “Filho meu, como te pareces comigo e com os dons que Deus pôs em Mim! Quero oscular-te, meu filho, dá-me tua fronte!”

De repente, aparece a alma de um pecador empedernido, trazendo o sinal do demônio na testa. Evidentemente, toda aquela força de atração se transforma em repulsa, e as palavras de carinho tornam-se increpação: “Eu desvio de ti minha face, tenho horror ao semblante que apresentas, ele causa-Me asco e indignação. Quero calcar aos pés a deformidade que por teu pecado assumiste, como calco a serpente eternamente!”

Poder-se-ia pintar um quadro representando a Santíssima Virgem calcando aos pés cada um dos réprobos que estão no Inferno porque, de fato, sobre eles pesa eternamente o ódio total e implacável d’Ela. E tendo Ela como uma de suas glórias pisar sobre os precitos, poderia dizer a Deus: “Faço-Vos este ato de reparação, meu Criador, que sois meu Pai, meu Filho e meu Esposo! Esses miseráveis quiseram ser o contrário de Vós, por isso meu pé puríssimo, elemento integrante e executivo da mais alta criatura que vossa Sabedoria e vosso Poder engendraram, calca-os com ódio, e Eu entoo o cântico de cólera e de triunfo de todos os justos no Céu e na Terra!”

Ela teve vontade de punir Salomão, que levou à perdição o povo eleito

Dos múltiplos exemplos que se poderiam apresentar, não há nenhum que me cause tanto arrepio quanto Salomão, o filho bem-amado, o rei que recebeu de Davi a coroa e a missão. Davi deixou prontos os materiais e os planos para a construção do Templo, mas foi Salomão quem teve a glória de construí-lo. Salomão, que é o autor do Livro da Sabedoria, entretanto prostituiu-se a ponto de adorar ídolos, transformar-se num devasso e morrer na libertinagem e na apostasia. Como era possível que uma alma de tal maneira decaísse daquele pináculo? Esse homem, que escreveu as palavras ditadas pelo Espírito Santo para serem comunicadas à humanidade, de repente transforma-se nesse vaso de abominação!

Ao ler no Livro da Sabedoria a narração da construção e inauguração do Templo, de que amor a alma santíssima de Maria deveria se sentir cheia! Era um perfeito reflexo do amor de Deus e quanta glória deveria dar a Ele!

Contudo, ao considerar a narrativa da queda de Salomão, como poderia não sentir um ódio tão grande quanto o amor por Salomão na sua justiça? Como não sentir náusea, asco, repulsa, vontade de rejeitar e de punir aquele que de tal maneira se tornou inimigo de Deus, levando à perdição o próprio povo eleito?!

Horror implacável a toda forma de pecado

Sabe-se que houve Santos que, ouvindo os penitentes em Confissão, sentiam o mau odor dos pecados cometidos por aquelas almas.

Quando o mau odor resulta simplesmente da negligência da pessoa no trato do próprio corpo, causa uma particular repulsa. Ninguém tem culpa pelo mau cheiro do corpo provocado por alguma doença, mas ser negligente e não ter horror ao mau odor de si mesmo já é uma forma de conivência que contagia de algum modo a alma com aquele mau odor físico.

Por exemplo, uma pessoa que por negligência nunca escove os dentes e tenha, por isso, um hálito abjeto. Ela sabe que, se escovasse os dentes, o mau hálito cessaria, mas não os escova porque não tem horror ao mau gosto e ao mau odor de sua boca. Somos levados a pensar que essa alma tem conaturalidade com certos defeitos morais, e ficamos com horror ao corpo que leva a um horror à alma, enquanto esta não tem aversão àquilo que para o corpo é horrível.

Ora, o pecador que poderia e deveria eliminar o seu pecado, mas se deixa ficar nesse estado, tem incomparavelmente mais culpa e é mais aderente ao mau cheiro de sua alma do que ao mau hálito de sua boca.

Imaginem Nossa Senhora sentindo o mau odor da alma de Salomão, por exemplo, que Ela, a posteriori, terá conhecido por completo. Salomão, cujas palavras deveriam ter o perfume do incenso ao ser queimado, o aroma dos frutos quando chegam à maturidade, após sua prevaricação ficou com o cheiro abjeto de todas as putrefações.

Se isso é assim, podemos compreender, então, o implacável horror de Nossa Senhora a toda forma de pecado.

Maria Santíssima conhece até mesmo o que é oculto

Assim também a Santíssima Virgem, a Quem nada era oculto, conhecia perfeitamente a abjeção a que tinha caído sua nação no tempo em que Ela nasceu. Ela sabia que o Messias estava por nascer naquela ocasião, mas via a que auge de degradação chegara o povo judeu. Nossa Senhora não podia deixar de ter, com muito mais lucidez do que o profeta, aquela visão de Ezequiel quando foi conduzido para dentro do Templo e viu em seus recintos ocultos os sacerdotes praticando idolatria, porém diante do povo fingiam adorar o Deus verdadeiro.

Ora, Maria Santíssima sabia que a classe sacerdotal se preparava para cair no abismo do deicídio, e seria a promotora mais ativa de todas as calúnias contra Nosso Senhor. O Sinédrio era propriamente a força deicida dentro de Israel.

Devemos imaginar a Virgem Maria menina entrando para o serviço do Templo, aos três anos de idade, e presenciando esta realidade bivalente: a casa de Deus, onde a glória d’Ele habita, os justos vão rezar, seu Divino Filho iria ensinar, ou seja, todo o Templo era uma espera ansiosa do Messias que deveria vir; e, ao mesmo tempo, Ela via, ao lado do culto verdadeiro, o culto secreto, disfarçado, abominável, e a prevaricação de toda a classe sacerdotal.

Alguém objetará:

— Mas Ela só tinha três anos!

Eu respondo:

— Ela era Nossa Senhora…

Não tem outra resposta a dar. Ela já conhecia tudo.

Com que enlevo Ela penetrou na casa de Deus! Qual não terá sido o cântico dos Anjos ao verem se aproximar Aquela de Quem nasceria o Salvador e que era a nova Arca da Aliança, da qual a arca guardada no Templo, com tanto respeito, era apenas uma prefiguração!

Reação das almas diante de Nossa Senhora menina

Podemos imaginar uma ou outra alma boa que havia por ali, quiçá a Profetisa Ana, o Profeta Simeão, e que, por premunições misteriosas, observando aquela criança diriam: “Que grande chamado tem essa menina!” Vendo-A passar no cortejo das outras meninas educadas para o serviço do Templo, talvez percebessem ser uma intercessora incomparável junto a Deus, e a Ela se dirigiam implorando os favores celestes. E a futura Mãe de Deus, por uma dessas correspondências internas da alma, dava a entender: “Eu tenho consonância contigo, tu és um comigo”. E aquela alma se banhava de alegria!

Provavelmente alguns faziam sua vida girar em torno d’Ela. Sabendo nas várias ocasiões do dia onde Nossa Senhora estava, olhavam para um quarto, por exemplo, para ver se Ela apareceria na janela; ou verificavam de que recinto a Menina saíra para poderem entrar lá logo depois, e por esta forma viver em Maria, com Maria e por Maria, que era uma forma antecipada de viver em Cristo, com Cristo e por Cristo.

Assim, deveria haver em torno da Santíssima Virgem almas fervorosas às quais Ela impulsionava ainda mais para o bem, elevando-as a um píncaro de santidade para elas inimaginável. Outras que eram boas, mas postas na mediocridade, a quem Ela convidava a um voo possante rumo à perfeição que deveriam ter atingido, mas não atingiram. A cada uma dessas a presença d’Ela dizia: “Ou tu Me amas, ou te atolas. Tua hora chegou! Vem, minha filha!”

Por fim, havia também os filhos de satanás, abominando qualquer forma de verdade, de bem ou de beleza, e que, ao sentir a presença d’Ela, dentro deles o demônio grunhia, encobria-se, efervescia, tinha medo, sentia a necessidade de abandonar a presa e sair fugindo, mas armava a alma daqueles malditos contra Ela.

Teve ódio e foi odiada

Se um bom católico no mundo de hoje divide, como não supor que Nossa Senhora não dividisse? Não podia deixar de haver no Templo, além dos amigos da Virgem, os inimigos que desviassem d’Ela o olhar, sentissem mal-estar perto d’Ela, A odiassem, tentassem eventualmente caluniá-La ou difamá-La, procurassem de todos os modos ser-Lhe nocivos, invocassem demônios para tentá-La, prová-La, recusassem-Lhe alimentos, enfim, A sabotassem de todos os modos. Salvo por uma disposição especial da Providência, isso deve ter sido assim. E tanto as almas que eram a favor d’Ela quanto as contrárias acabavam se articulando. Portanto, Nossa Senhora, no Templo, fez a Contra-Revolução oposta à Revolução que se preparava contra o Filho d’Ela.

Estas são hipóteses que se constelam em torno da Santíssima Virgem Maria e nos fazem entender o que foi a vida d’Ela, o papel que o ódio representou em sua vida desde a primeira infância.

Levo minha suposição mais longe: creio que Nossa Senhora, quando estava no claustro maternal de Santa Ana, já causava mal-estar nos que eram de satanás. O demônio, a partir do momento em que Maria Santíssima foi concebida, começou a perseguir Santa Ana de um modo especial, surgiram antipatias, ódios, como também venerações e simpatias, antes mesmo de se perceber que ela concebera uma criança. De tal maneira Nossa Senhora é o contrário do demônio, que ele tinha que sentir a irradiação da pessoa d’Ela, instigando contra Ela o ódio daqueles em quem ele habitava. Não é possível que não fosse assim.

Vemos, portanto, que, desde o primeiro instante de seu ser, Ela teve ódio e foi odiada. Essa compressão e descompressão do ódio e do amor representaram a própria trama da existência d’Ela.    v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/7/1980)
Revista Dr Plinio 261 (Dezembro de 2019)