ORAÇÃO A NOSSO SENHOR AGONIZANTE NA CRUZ

Era 10 de março 1988, quando Dr. Plinio, atendendo ao pedido de um jovem que terminara de fazer um  retiro, ditou esta esplêndida oração, plena de amor a Cristo padecente, humildade e filial confiança

Ó Senhor Bom Jesus! Do alto da Cruz deitais sobre mim o vosso olhar de misericórdia, parecendo desejar que, de meu lado, também eu levante os meus para Vos considerar!

Sim, para Vos considerar em vossa infinita perfeição, e no insondável abismo das dores que padeceis… por mim. Pois bem sei que todas essas dores, Senhor, Vós as sofreríeis só por mim ou por outro homem qualquer, se este fosse o único a depender de tais padecimentos para se salvar.

Vós me convidais a Vos fitar, Senhor! Mas Vós mesmo sabeis que não ouso fazê-lo. Não ouso pôr no vosso divino olhar os meus olhos pecadores, pois me é patente que não sou senão um  vermezinho e miserável pecador, como disse vosso grande e glorioso servidor São Luís Maria Grignion de Montfort. Entretanto, sei também, Senhor, que num extremo de misericórdia destes-me por Mãe vossa própria Mãe.

É ela a advogada que instituístes para pleitear minhas atenuantes ante o vosso tribunal, e para me obter a torrente de vossas misericórdias.

Assim, rogo-Vos, Senhor, por Maria Santíssima, Medianeira de todas as graças, favorável acolhida para as súplicas que passo a Vos apresentar.

Conheço, Senhor, quanto os horizontes de minha alma são de “teto baixo”. Isto é, quanto as cogitações para as quais me volto são meramente práticas, sumidas no concreto, de pouca elevação, todas restringidas ao âmbito natural e à vida terrena, cujos aspectos são precisamente os que mais me atraem. E procuro não olhar de frente o que existe de maravilhoso, de grandioso, de admirável, em suma, as criaturas terrenas que melhor refletem vossa supremacia e vossa glória.

Imploro-Vos, ó Bom Jesus, que limpeis de minha alma este, como tantos outros defeitos meus, tão indignos da condição para a qual me chamastes, a rogos de vossa Santíssima Mãe; tão indignos da condição de quem deve viver afastado de todas as coisas terrenas, cogitando destas apenas na medida que estejam ordenadas ao Céu, a fim de preparar neste mundo as condições para que os homens melhor se salvem e Vos deem a maior glória — “nunc et semper et per omnia sæcula sæculorum”. Fazei-me amar, reta e santamente, tudo quanto é grande, maravilhoso, régio e elevado. Dai-me a graça de ser totalmente inapetente das ninharias que até agora me atraem e de ser totalmente apetente das grandezas que me deixam enfastiado. Pois o fastio dessas grandezas, Senhor, acaba redundando em fastio de Vós. Quem é frio e resistente aos apelos que fazeis ao amor dos homens, através do que é santo e maravilhoso na terra, o é também em relação à vossa obra-prima, que é a graça. E o é, outrossim, em relação a todos os infinitos horizontes da fé, que devemos contemplar.

Não Vos peço apenas, Senhor, que esse defeito se atenue em mim, nem Vos suplico somente que dele me cureis. Imploro-Vos mais, muitíssimo mais: que eleveis minha alma ao amor de tudo quanto é grande na ordem sobrenatural e na ordem natural, e que eu a tudo ame com um amor que esteja no extremo oposto da indiferença que até agora me tem dominado.

Pela linfa preciosa que correu de vosso lado, pela Igreja que saiu de vosso flanco, pelo sofrimento de vossa Mãe aos pés da Cruz, peço-Vos, Senhor: perdoai-me todas as minhas infidelidades e fazei de mim o contrário do que sou. Amém.

Castelos de Espanha

Fronte erguida, olhar distante, característico de quem está meditando em horizontes sublimes; a ressequida mão estendida de modo firme, própria do homem que, sem se abaixar nem se rebaixar, assim recorre à caridade alheia: “Se tiver o que me dar e quiser fazê-lo, dê-me por amor a Deus. Porque dEle eu sou filho e, portanto, mereço que me socorram com aquilo de que necessito. Quer me dar uma esmola, pelo amor de Deus?”

Esse perfil do mendigo espanhol, superiormente retratado pelo escritor Antero de Figueiredo, revela muito bem a altivez e a dignidade com que a mendicância tinha lugar na terra do Cid   Campeador e de Santo Inácio de Loyola. É este o mesmo senso da grandeza e da respeitabilidade que permite aos mais subidos nobres espanhóis usarem um belíssimo título: Grande de Espanha.

Quando se ouve semelhante denominação honorífica, tem-se quase a impressão de que seu portador é um ente fabuloso: Fulano de tal, Duque e Grande de Espanha!

Uma alma verdadeiramente católica, que sabe admirar e amar as diferentes qualidades postas por Deus nos diversos povos do mundo, rejubila-se com esse senso da grandeza, tão distintivo dos nobres, dos guerreiros, dos santos e dos mendigos de Espanha.

E dos seus castelos. Sim, essa ideia da própria magnificência se acha presente também nos castelos espanhóis, de tal maneira que, para se referir a alguém que estivesse arquitetando sonhos e inalcançáveis anelos, cunhou-se nos vários idiomas europeus a expressão: “construindo castelos em Espanha”. Quer dizer, edificações formidáveis, miríficas, inexistentes, mas das quais os castelos de Espanha se aproximam de algum modo, dando a ideia de um ambiente onde o tal sonhador quereria viver. Daí alguns imaginarem o castelo na Espanha mais ou menos como os antigos concebiam o Olimpo…

Na verdade, sonhos postos à margem, certos álbuns de castelos da Espanha nos fazem conhecer variados  aspectos da grandeza dessa nação. As fortalezas neles retratadas são tão altivas, tão  altaneiras — e altanaria não quer dizer orgulho, e sim noção do próprio valor e dignidade — são tão corajosas, têm torres tão feitas para avistar ao longe o atacante mouro, que realmente encantam.

É curioso notar que esse modo de ser tem igualmente seu reflexo na vida de família dos espanhóis. Ou seja, a par de um elevado grau de carinho cercando os membros de uma mesma casa, a autoridade paterna conserva algo da supremacia do antigo castelão e senhor feudal junto aos seus vassalos. O pai quer ser inteiramente respeitado, e o filho se compraz em devotar-lhe essa completa deferência. As fórmulas de afeto e de cortesia existem, porém sempre envoltas nesse panejamento de dignidade e de incontestável força paterna, em virtude do que o filho não se atreve a  discutir com o pai, e menos ainda a ridicularizá-lo com algum gracejo.

É o hispânico senso da grandeza, que deste modo enobrece as relações domésticas.

* * *

Trata-se do mesmo senso que envolve de uma aura mítica as antigas fortalezas ibéricas. Ora é um castelo que se diria inexistente. De fato, ele está ali; mas, se fôssemos idealizar uma construção fabulosa, mirífica, imaginaríamos algo como ele. É um castelo cujos vários aspectos são realizações de sucessivos desejos de algo mais belo, mais grandioso, mais extraordinário. Insaciáveis aspirações que, por fim, se concretizam em admirável conjunto: um castelo de Espanha!

Ora são panos de muralha erguidos num ambiente que a natureza lhes tornou particularmente adequado, sob um dossel de nuvens volumosas, inconstantes, e em meio a um cambiante jogo de luz que lhes confere uma aparência fugidia, deixando-lhes partes profundas meio escuras, e outras muito iluminadas.

Por vezes resta apenas uma ruína. Mas, que força maravilhosa tem essa ruína! Em vez de incutir pena, ela sugere a ideia da grandeza que outrora possuiu. Ela faz reviver um esplendoroso passado, tão magnífico que se pode perguntar se essas pedras derruídas não nos levam a imaginar um passado mais bonito do que este foi na realidade.

Entretanto, é o próprio das coisas que tiveram seus dias de grandeza: todo o seu passado permanece como uma espécie de imensa cauda que desce do Céu até elas. É a continuidade histórica, é o que foi e, uma vez extinto, deixou sua lendária memória no espírito humano: “Fui. Não sou mais. Contudo, se eu fui o que deveria ter sido, de algum modo para sempre o serei!”

Quem, pois, não se toma de respeito diante dessas ruínas? Elas também foram, e continuam sendo, castelos de Espanha…

Flor dos vales

Em sua infinita benevolência, Deus adornou certos vales com uma doçura especial, cuja amenidade e poesia contrastam com a majestade e o agreste das montanhas que os circundam.

Neles, a prodigalidade divina dispôs que as flores se apresentassem com rara e envolvente beleza, superando em formosura as que nascem noutras paragens.

É com inteira propriedade, portanto, que a Igreja canta os excelsos predicados de Maria Santíssima, louvando-a como a “Flor dos vales”: quer dizer, o requinte daquilo que há de mais delicado, mais terno, mais esplêndido; o ápice que concentra em si toda a beleza da Criação.

São Cirilo e São Metódio

A vocação dos irmãos Cirilo e Metódio estava intimamente ligada à evangelização e conversão do povo eslavo. Para isso dedicaram inteiramente suas vidas, obtendo assim a glória dos altares.

A respeito de São Cirilo e São Metódio, tenho em mãos o seguinte trecho extraído do “Ano litúrgico”, de Dom Gueranger(1):

Cirilo e Metódio eram filhos de um alto funcionário de Tessalônica.

Metódio obteve o governo de uma colônia eslava, na Macedônia.

Cirilo, depois de ter estudado e ensinado, recebeu as ordens, e se fez monge na Bitínia; posteriormente foi encarregado da missão junto aos cazares, que eram os bárbaros da Rússia meridional, e nessa região ele deveria exercer com seu irmão uma missão político religiosa, em 862.

Tendo o Príncipe da Morávia pedido a Bizâncio missionários que falassem a língua do país, Fócio lhe enviou, em 863, os dois irmãos. Eles compuseram um alfabeto novo, chamado ciríaco — que ainda se usa entre os russos —, e ensinaram os morávios a escrever. Depois traduziram a Bíblia e a Liturgia para o eslavônio, que era a forma de língua eslava falada por aqueles povos, e organizaram numerosas cristandades na Boêmia e na Hungria.

Em 869, chegaram eles a Roma, onde Adriano II os tratou com honra, permitiu que celebrassem a Missa em eslavônio e ordenou-os Bispos. Mas Cirilo morreu logo depois, com a idade de 42 anos. Metódio voltou à Morávia e foi nomeado Arcebispo de Cirinium, na Sérvia, onde ele encontrou uma situação muito perturbada, contrária a ele. Seus inimigos mandaram encarcerá-lo, e o Papa interveio várias vezes em seu favor, tendo São Metódio finalmente triunfado sobre seus adversários. Morreu em 877, com pesar de todos. Seus magníficos funerais foram celebrados em grego, latim e eslavônio. Pio IX autorizou, em 1863, o culto aos Santos Cirilo e Metódio.

Ponto de partida para verdadeiros baluartes católicos

Nessa síntese biográfica, há várias notas muito curiosas. Em primeiro lugar, São Cirilo e São Metódio, como irmãos, fizeram uma obra da Providência que glorifica a instituição familiar. Deus não realiza isto habitualmente, mas, às vezes, escolhe dois irmãos, ou toda uma família, para fazer determinada obra pia. Esses dois foram enviados para uma obra extraordinária: a conversão dos povos de língua eslava, dos Bálcãs, que haveriam de irradiar a Fé, preparando a futura conversão da Rússia.

Por isso a Divina Providência escolheu dois irmãos de certa categoria; um deles foi governador de Província e o outro se tornou monge.

Outra nota curiosa é a seguinte: quem mandou estes dois irmãos fazerem esta evangelização tão extraordinária foi Fócio, precisamente um dos responsáveis pelo Cisma do Oriente; antes de cair em heresia, ele ainda deu esse impulso. O apostolado deles haveria de ser, nos Bálcãs, o ponto de partida de verdadeiros baluartes católicos no Oriente.

Se até hoje há católicos nos Bálcãs, isso se deve exatamente a este “erro” estratégico de Fócio.

Dando expressão escrita à mentalidade de um povo

É interessante acompanharmos o papel desses Santos fundadores de povos, que é uma coisa tão extraordinária. Deus envia homens de sua destra para fazerem obras que constituem um povo. Ou seja, tomam pessoas que são como uma nebulosa, alguma coisa completamente anorgânica, sem vida própria, e as transformam num povo com todos os seus elementos.

Vejamos o que eles fizeram para que nascesse o povo. Primeiro ensinaram os morávios a escrever, compondo para eles um alfabeto novo, chamado ciríaco. Quer dizer, o povo era tão analfabeto que nem tinha formas de caracteres próprios para exprimir a língua que falava. Os dois Santos inventaram os caracteres adequados, e o dialeto se radicou de tal maneira que até o tempo em que foi escrita a ficha lida há pouco era usado na Rússia. Portanto, durante aproximadamente mil anos, mais ou menos, o ciríaco esteve em vigor.

Eles deram a expressão escrita do pensamento de um povo. A nota de fundador vai mais longe: São Cirilo e São Metódio traduziram a Bíblia e a Liturgia para o eslavônio; foi uma grandíssima obra literária, que fez com que aquela língua de um povo tão hostil adquirisse toda a dignidade de um idioma.

Fundadores da Liturgia eslava

Além disso, eles organizaram numerosas cristandades na Boêmia e na Hungria, ou seja, núcleos de povos vivendo como cristãos, que depois haveriam de se irradiar e cristianizar aquelas regiões. Ora, quando se trata de povos semibárbaros, cristianizar equivale a civilizar. Eles estavam dando os fundamentos da civilização — e, já de uma vez, uma civilização cristã — a povos que não ficavam apenas nos Bálcãs, mas entravam pela Europa Central, a Hungria. Vemos, portanto, a graça triunfante da Fé.

Depois eles se dirigiram a Roma para apresentar a sua inteira submissão a Adriano II, o que, naquele tempo de luta entre o Oriente e o Ocidente, era muito significativo. Foram os fundadores da Liturgia eslava, porque obtiveram do Papa a licença para rezar a Missa em eslavônio.

São Cirilo morreu em 869; São Metódio voltou ao Oriente, foi nomeado Arcebispo — é a Hierarquia eclesiástica que começava a nascer — e tornou-se objeto de uma oposição violenta. Vemos isso na vida de quase todos os fundadores: fundam a obra, têm triunfos e de repente estala uma tremenda revolta contra eles. A obra muitas vezes cai, outras vezes não, como sucedeu a São Metódio: ele venceu e morreu cercado de honra.

“Emitte Spiritum tuum”…

Para a glória de sua Igreja, ao longo da História, Nosso Senhor suscitou Santos que agiram nos campos mais variados. Porém, depois que a Revolução começou a triunfar, houve uma retração das bênçãos de Deus, e a civilização católica não prosperou. Toda a ordem temporal ficou afetada por uma espécie de raquitismo religioso; foi um castigo decorrente da Revolução.

Isso continuará até que a Revolução produza os seus últimos e amargos frutos, e a Humanidade tenha comido as bolotas dos porcos. A Providência então restaurará a Humanidade.

Nesta ocasião aparecerão os Santos fundadores que vão fundar o Reino de Maria. E na aurora desse Reino convém lembrar-nos de São Cirilo e São Metódio. Pode nos parecer muito difícil organizar o Reino de Maria; não pensemos nisso, mas procuremos compreender esse ensinamento.

Os varões da destra de Deus podem fazer tudo. São Cirilo e São Metódio não eram sociólogos, economistas, nem psicólogos, porém eram incomparavelmente mais do que isto: Santos da destra de Deus. Eles surgiram e tudo nasceu. Lembremo-nos, então, daquela oração feita ao Divino Espírito Santo “Emitte Spiritum tuum et creabuntur, et renovabis faciem terrae — Enviai o vosso Espírito e renovareis a face da Terra”. Poderíamos dizer: “Enviai o vosso Espírito, presente nos homens de vossa destra, e todas as coisas serão novamente criadas e se renovará a face da Terra”. É isto que devemos pedir.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/7/1965)

1) Cfr. http://www.abbaye-saint-benoit.ch/gueranger/anneliturgique/pentecote/pentecote03/040.htm

Heroísmo, graça e beleza

Ergue-se sozinha, desafiando a vastidão das águas que se abrem à sua frente. Dir-se-ia antes um palácio em forma de torre, espaçoso, amplo, imponente, com seus diversos andares encimados pelo caminho de ronda, ao longo do qual os vigias atentos são capazes de perlustrar todo o horizonte.

Cercada de pátios, patamares e guaritas, fruto de uma concepção corajosa, misto de guerreiro e sagrado, a Torre de Belém é, a meu ver, um dos mais belos monumentos da Cristandade.

Quando a vi pela primeira vez, desde logo tornou-se dos meus maiores encantos. Era a forma de grandeza e de pulcritude que eu desejava conhecer, sem a poder imaginar. Contemplando-a com meus próprios olhos, veio-me ao espírito este pensamento: “Já a pressentia, mas não conseguia colocá-la em palavras; tudo em mim se inclinava para ela, para o desejo que algo assim existisse. Eis a torre que eu tanto esperava!”

Senti, por assim dizer, uma vivíssima consonância que nos unia. Pareceu-me magnífica como dignidade, calma, distinção, majestade. Como vigor, força e, ao mesmo tempo, suavidade e delicadeza, presente naquelas sacadas de onde o rei e a corte assistiam a partida dos valorosos navegantes. Pude imaginar os adeuses de parte a parte, os lenços que se agitavam para marcar a separação e todas as outras manifestações de carinho e amizade para com os que se ausentavam. Tudo isso me veio de imediato à imaginação, porque havia essa consonância da Torre comigo.

Lembrar-me dela é para mim uma fonte de alegria: “Lá está a Torre, e sempre poderei revê-la!”

Extraordinária definição de ousadia, altiva, séria, resolvida a enfrentar os mares, ela nos convida a superiores cogitações. Sua atmosfera é incompatível com a superficialidade, a intriga e as mesquinharias da baixeza humana. Dela emanam aromas espirituais e sobrenaturais, o maravilhoso perfume da graça divina, posto que edificada por almas movidas de espírito católico, cuja inspiração artística sublimou-se por uma espécie de carisma e dom celestial para atingir aquele esplendor de realização.

Obra do passado, ela nos fala de futuro. Suas pedras de alvura reluzente nos transporta para o mundo dos contos de fábula.

É o próprio símbolo do heroísmo, da graça e da beleza.

Tenho para mim que certos lugares e monumentos que não possuem um significado diretamente religioso, mas constituem uma expressão cultural definida muito católica, devem ser admirados por amor à Igreja. A Torre de Belém é um deles.

Eu lhe devoto tanto apreço porque amo a Esposa Mística de Cristo. E quando a elogio, faço-o com uma emoção religiosa: porque a graça me toca a alma ao vê-la, e ao perceber nos seus encantos os reflexos dos sentimentos cristãos que levaram os navegadores, os missionários e os conquistadores lusitanos a empreenderem uma epopeia que traçou indelével sulco nas águas da História.

Maria Santíssima nos ama porque somos seus filhos

A correspondência às graças recebidas de Nossa Senhora é um elemento a mais para Ela nos amar. Mas isso não significa que, se não correspondermos, Ela não nos ame. Mesmo quando não correspondemos, Maria Santíssima nos ama com uma ternura que temos dificuldade em imaginar.

A maior prova de que o amor materno não depende da reciprocidade é o amor de uma mãe por sua criancinha que ainda não fala. Qual é a correspondência que aquele bebê está dando? Nenhuma. Entretanto, basta alguém mexer nele para que a mãe logo se mova a defendê-lo, porque ela quer aquela criança de um amor natural gratuito.

A Santíssima Virgem é nossa Mãe com mais realidade do que nossas mães terrenas, por melhores que sejam ou tenham sido. Assim, ainda que não mereçamos o seu amor, Ela nos ama porque somos seus filhos.

Portanto, o fato de não correspondermos à graça não quer dizer que Nossa Senhora não esteja transbordando do desejo de nos dar favores e benefícios de toda ordem. E porque Ela transborda desse desejo devemos rezar a Ela com confiança.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/11/1989)
Revista Dr Plinio 263 (Fevereiro de 2020)

“Unum” de Veneza e do mar

Entre os belíssimos monumentos de Veneza, cidade cuja conjunção com o mar atrai turistas do mundo inteiro, destaca-se a Catedral de São Marcos, poema construído em torno da Santa Missa, onde a Pala d’Oro, com sua feeria de esmaltes e cores, concorre não apenas para a cultura artística, mas principalmente para a formação religiosa do povo de Deus, o que faz dessa obra de arte um verdadeiro tesouro.

 

Estando em Veneza, em minha última viagem à Europa(1), tive a oportunidade de transpor de lancha um braço de mar, saindo de Veneza em direção a duas ilhas que ficam em frente: São Jorge e Giudecca.

Conclave que elegeu Pio VII

À medida que nos distanciamos de Veneza, vamos tendo uma mudança de panorama que mereceria ser comentada, e que é a seguinte: quando a lancha está a uma distância ainda pequena da cidade, não se goza tanto da proximidade do mar porque a atenção fica inteiramente absorvida pelos monumentos. Ademais, o ser humano não consegue fixar bem a atenção na conjunção monumento-mar, porque o mar é muito largo, o monumento muito bonito, e ora um ora outro biparte a atenção do homem.

Com a distância, pelo contrário, vai-se formando um “unum” de Veneza e do mar, pelo qual, num primeiro momento, trata-se de considerar como a cidade é bonita vista a partir do mar. Bem mais longe, a cidade vai ficando ao fundo do panorama e o mar atrai mais a atenção. Por fim, Veneza torna-se apenas uma moldura distante para o mar, cuja beleza é ressaltada ao ser emoldurado por ela.

A Ilha de São Jorge é toda tomada pela basílica e o mosteiro do mesmo nome. É, portanto, uma ilha-mosteiro. Em fins do século XVIII, quando o Papado parecia destroçado, o Papa Pio VI, muito doente, foi arrastado à força pelos revolucionários franceses e levado prisioneiro para a França.

Ao chegar à cidade de Valence, o povo queria vê-lo, aglutinado do lado de fora da casa onde o Pontífice estava. Ele se arrastou até o terraço para evitar uma agressão do povo e apresentou-se dizendo “Ecce homo – Eis o homem”, que foram as palavras com as quais Pôncio Pilatos apresentou ao populacho revoltado Nosso Senhor flagelado, coroado de espinhos, com o manto da ignomínia e a cana de bobo na mão. Pio VI, para significar como estava reduzido a quase nada, disse de si mesmo que estava como Nosso Senhor. É uma coisa que um Vigário de Cristo pode dizer, quando se encontra nessa situação tristíssima.

Quando ele morreu, muitos tiveram a loucura de pensar que não haveria mais papas e a Igreja Católica iria sumindo aos poucos. O Imperador da Áustria era senhor de Veneza naquele tempo e resolveu realizar um conclave para os cardeais elegerem um novo pontífice. O soberano proporcionou todas as condições para que o conclave se realizasse nessa ilha, e ali foi eleito Pio VII como papa.

A partir da Ilha de São Jorge, a distância de Veneza se faz sentir menos do que da Ilha Giudecca. Portanto, não é ainda verdade dizer que a cidade serve de mera moldura ao mar. Pelo contrário, Veneza e o mar se completam, um embeleza o outro.

Para melhor avaliar a beleza desse panorama, imaginem que uma empresa colossal resolvesse propor ao Governo italiano, por razões de transporte, desviar esse braço de mar, e construísse em cima disso uma avenida de asfalto. Podemos imaginar a feiura que isso teria? Por outro lado, se estourasse uma guerra que destruísse Veneza, por causa desse mar valeria a pena ir ali? Entretanto, a conjunção Veneza-mar atrai turistas do mundo inteiro.

Triunfo da Cruz sobre o crescente do Islã

Temos uma vista da Praça de São Marcos que pode ser melhor admirada em horas em que está menos tomada por turistas. Notem a enorme diferença de estilos existente entre o campanário e a basílica. Contudo, vejam que variedade agradável isso ocasiona. É uma verdadeira beleza! Como o jeito, à maneira de bengala, dessa torre dura, forte e alta contrasta com o rendilhado gracioso, amável, da basílica! Cada coisa realça a beleza da outra e forma um conjunto lindíssimo.

A “Torre do Relógio” é um dos monumentos mais famosos de Veneza. Ele se compõe de um corpo central onde se encontra o relógio que dá o nome ao edifício, e dois andares laterais bonitos, mas muito mais discretos, deixando todo o realce ao prédio principal, servindo-lhe de moldura, pois ainda que não houvesse essas edificações em volta, essa parte já constituiria uma torre.

O relógio é muito bonito. O quadrante é de um azul bem escuro com desenhos em dourado e os números estão inscritos em círculos de pedra. Em cada ângulo encontra-se uma pequena circunferência vazada.

A torre é fundamentalmente uma homenagem a Nossa Senhora. Na parte mais visível dela está a Santíssima Virgem com o Menino Jesus. Por ocasião do Natal, entram em cena os Reis Magos precedidos por um Anjo – movidos por um sistema mecânico –, e passam diante da Virgem-Mãe com seu Divino Filho para reverenciá-Los.

Na construção da torre, Veneza não se esqueceu de si própria e colocou num lugar menos central, mas bastante evidente, o emblema da cidade: um leão alado, símbolo do Evangelista São Marcos, sob cujo patrocínio está a Sereníssima República.

Esse é um prédio destinado à vida civil comum, não se trata de uma igreja. Entretanto, vejam como é impregnado profundamente de Religião, de maneira a encontrarmos em quase todos os motivos decorativos uma alusão religiosa. Até mesmo em cima, os mouros que estão batendo no sino. Veneza possuía escravos mouros aprisionados durante as guerras, as quais, em geral, eram por motivo religioso. Os venezianos eram católicos e os mouros maometanos. Os escravos deviam servir os seus senhores; então estão representados ali os escravos mouros batendo o sino. Ou seja, é o triunfo da Cruz sobre o crescente do Islã.

Cavalos que parecem conversar

Os famosos cavalos de Veneza, na realidade, pertenciam ao Império Bizantino, tendo sido trazidos de Constantinopla como presa de guerra. São considerados como verdadeira maravilha no gênero, porque representam com uma vitalidade e naturalidade assombrosas quatro cavalos que vão numa marcha um pouco viva, mas não em disparada. É muito interessante o inter-relacionamento entre eles. Cavalo não conversa; contudo, estes estão como que conversando. Notem o movimento de cabeça do primeiro para o segundo e do terceiro para o quarto. Percebe-se isso nos animais, às vezes: estão como que convivendo, quase como se conversassem. Considerem a discrição do movimento das patas, em nada forçado. É a marcha comum de cavalos numa rua, mas animais de categoria.

Napoleão, que era um grande ladrão, levou-os para Paris. Quando ele caiu, o rei legítimo da França, irmão de Luís XVI, Luís XVIII, restituiu a Veneza esses cavalos roubados. O rei legítimo não queria ser dono ilegítimo de um tesouro desses. Então foram reinstalados.

Mais recentemente descobriu-se que o ar do mar e outras circunstâncias estavam deteriorando os cavalos. Para evitar isso, que seria uma perda irreparável, foram feitas cópias exatíssimas, as quais ficam expostas às intempéries, enquanto as originais permanecem num lugar onde estejam a salvo dos fatores de deterioração.

Um poema construído em torno da Santa Missa

No interior da Basílica de São Marcos nota-se uma série de arcos que culminam num último, fechado numa espécie de semicírculo todo cravejado de mosaicos preciosos. O corpo da igreja é formado de tal maneira que possui arcos até o fim. Nos lados, os arcos se interrompem em certo momento para recomeçarem depois, deixando um espaço vazio.

A catedral é construída em forma de cruz. O Corpo sagrado de Nosso Senhor estaria ao longo da nave central, e nas laterais os braços, cujo principal, para onde se inclinou a cabeça sagrada do Redentor na hora da morte, fica à direita do altar. Então a ideia da Cruz, do sacrifício, da morte e, portanto, da Redenção infinitamente preciosa de Nosso Senhor Jesus Cristo, e de que a Missa renova de modo incruento o Santo Sacrifício do Calvário, fica simbolizada muito adequadamente por essa disposição.

No primeiro plano vemos uma cruz disposta de maneira a ser observada por quem entra e por quem está nas naves laterais. Portanto, em qualquer lado que se esteja vê-se o símbolo de nossa Redenção, indicando o significado central da catedral, que é de ser o lugar onde se celebra a Missa, ato supremo da piedade católica. Assim, essa basílica é todo um poema construído em torno da Santa Missa.

Para além dessa espécie de vedação com colunatas, feita de pedras lindíssimas, que separa o altar-mor do corpo da catedral, vemos à direita e à esquerda os púlpitos de onde os sacerdotes e diáconos leem as Sagradas Escrituras e cantam o Ofício sagrado.

O solo em Veneza é de tal maneira úmido que apresenta resistências desiguais aos pesos que carrega. Então, há partes do chão que são um pouco mais afundadas, outras mais salientes, e é necessária certa atenção para não se perder o equilíbrio e cair de repente. Mas esse piso é feito de tal maneira que em nenhum lugar esse movimento de terreno prejudicou os mosaicos. Estão todos perfeitos.

Pala d’Oro

No alto desta espécie de divisão estão as imagens de Nossa Senhora, São João Batista e dos doze Apóstolos, reunidos em torno da Cruz. Notem a beleza dessa divisão e como ela marca bem a diferença entre o sacerdote e os fiéis. O sacerdote é o ministro de Deus, escolhido por Ele para representar os fiéis diante d’Ele. É ele quem tem o poder de celebrar a Missa, e por suas palavras se opera a transubstanciação. Nós, os fiéis, não temos esse poder. Porém, essa separação tão categórica é toda feita com amor, e por causa disso vemos como a Igreja enfeita e orna essa divisão e acentua nela a hierarquia estabelecida por Nosso Senhor Jesus Cristo.

O retábulo do altar-mor é a famosa Pala d’Oro. Examinando esses esmaltes, vemos como cada um é uma verdadeira maravilha. Mas diz o Gênesis que Deus, tendo concluído a obra da Criação, no sétimo dia repousou e, contemplando o que tinha feito, viu que o conjunto era muito bom. É bem verdade, o conjunto das coisas excelentes tem mais beleza do que a mera soma das excelências que o constituem, individualmente consideradas. É uma regra de harmonia.

No centro, vemos um esmalte representando Jesus Cristo rodeado dos quatro Evangelistas. Em cima, à esquerda, São Marcos; à direita, São João. Embaixo, à esquerda, São Mateus; à direita, São Lucas.

Nessa obra de arte encontramos, numa feeria de esmaltes e cores, um grande número de cenas, pessoas, fisionomias. E no primeiro golpe de olhar consideramos uma beleza feita da mistura indefinida e multiplicada das cores, formas e figuras, muito deleitável à vista, mas também muito conveniente à piedade, porque os olhos ficam atraídos a se deterem sobre temas santíssimos, cristianíssimos; o que concorre, em primeiríssimo lugar, para a formação religiosa e, em segundo, para a cultura artística do povo de Deus. Tudo isso faz da Pala d’Oro um verdadeiro tesouro.    v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/12/1988)
Revista Dr Plinio 263 (Fevereiro de 2020)

 

1) Nessa viagem, Dr. Plinio esteve em Veneza de 30 de setembro a 5 outubro de 1988.

 

Vale de lágrimas no meio de montanhas cujos picos tocam no Paraíso – II

Viver para um ideal é o melhor remédio contra os problemas da vida espiritual ou os desequilíbrios nervosos. Entretanto, isso só é possível se este ideal está constantemente voltado ao amor à transesfera, que é o início, a orla do amor de Deus.

 

Certa ocasião caiu-me nas mãos uma fotografia minha tirada em menino. Eu estava no último período dessa fase, antes de encontrar a Revolução e ter que começar a pensar nela.

Brisas e cores absolutas que não existem nesta Terra

Entrei no Colégio São Luís pelos dez anos de idade, e aí começou outra fase. Fui tirar uma fotografia, porque naquele tempo, de quando em quando, as pessoas punham uma roupa melhor e se faziam fotografar, o que depois ficava no balaio das recordações da família. Balaios esses que a minha geração jogou todos no lixo. Em casa se conservou porque mamãe guardava.

Nessa fotografia eu estava vestido não com traje de gala, mas com a roupa que um menino fino punha para ir passear, tomar um lanche numa confeitaria, umas coisas assim.

Lembro-me perfeitamente do estado de espírito com que me encontrava naquela ocasião. Eu estava inundado de cogitações destas e fui para o fotógrafo, o qual me olhou e percebeu que eu permanecia inteiramente alheio a ele, à “Fräulein” e a tudo mais, e que não estava, portanto, com “cara fotográfica”. Então, ele me recomendou:

— Tome uma atitude.

Eu fiquei em pé e disse:

— Estou aqui!

— Não, não. Uma atitude viva!

— Mas eu não sei tomar uma atitude viva.

— Olhe, fique bem perto deste sofá, ponha seu pé aqui, sua mão no queixo…

Eu executei o que ele quis, mas pensando em outras coisas. Ele me fotografou nessa situação.

No que eu pensava? Era um meio-pensar e meio-sentir. Nessa minha idade, não podia ser uma especulação filosófica, abstrata, nem eu tinha talento para fazer isso. Era algo quase prosaico, mas assim: sempre gostei enormemente de toda espécie e grau de vento: brisa, ventinho, ventania, tufão… Lembro-me de que naquele dia soprava sobre mim uma brisa ligeiramente tendente para fresca, e eu estava vestindo uma roupa muito arejada. Sentia-me, assim, inundado pela brisa, leve, refrigerado, e a claridade do dia parecia ter uma reversibilidade com o frescor discreto da brisa. Parecia-me haver um nexo, mas não sabia qual, entre todos aqueles prazeres e um lado invisível onde havia brisas e cores absolutas, como esta Terra não tem.

Naturalmente, nesta comparação entram as características minhas. Portanto, sendo eminentemente colorista, as cores, brisas e temperaturas falam-me muito.

Então, por exemplo, um nácar, num dia como aquele, mais do que em outros, levava-me a ideia para um nácar perfeito, mas que me parecia ter um parentesco com uma porção de outras cores perfeitas simbolizadas pelas cores contingentes que eu via em torno de mim. Isso eu percebia vagamente, não tinha inteligência para formular, mas a minha sensibilidade era como se esse nácar perfeito fosse meio vivo, ou habitasse numa terra, fosse de uma zona onde as cores eram bem vivas. De fato, não era assim, mas uma sensação do absoluto e de Deus, e de que, com a ajuda de Nossa Senhora, eu chegaria até lá.

Eu mantinha o olhar voltado para essa zona de modo permanente, mas com graus de intensidade muito desiguais. No dia dessa fotografia, não sei por que, era muito maior. Entretanto, quer nos dias maiores, quer nos menores, mais ou menos eu percebia o nexo disso com milhares de outras coisas que formavam uma transesfera(1).

A parte mais rica, produtiva e fina da inteligência de um homem

Parece-me que isso tem certa relação com o discernimento dos espíritos. Quando se tem isso muito fino, percebe-se melhor nos outros qual é o estado de alma. Sobretudo, a primeira nota que se toma a respeito de alguém, e que dá a clave em função da qual essa pessoa deve ser interpretada, é ver como ela está em relação a essas riquezas de alma. Sem isso as correlações não se fazem.

A meu ver, essa é a parte mais rica, mais produtiva e fina da inteligência de um homem. Não é inteligência universitária. É um pensar, sentir, querer, onde a reversibilidade entre essas três potências da alma se nota melhor.

O amor a essa transesfera é o início, a orla do amor de Deus. Para esse amor, o homem se volta por interesse ou desinteresse? Esta é uma pergunta fundamentalmente mal feita, porque aí o interesse e o desinteresse se fundem num píncaro mais alto. Aí está o verdadeiro amor de Deus. Exatamente, a dissociação entre interesse e desinteresse põe-se num nível menor. Se eu tiver que renunciar a um interesse para conservar isso, eu o farei. Mas nisso há uma coisa que supera o interesse e o desinteresse. É o movimento inteiro de minha alma; por todas as razões de meu desinteresse e de meu interesse eu pendo para lá.

Não sei quantos problemas há na vida espiritual em que nós passamos dez, quinze, vinte anos remexendo inutilmente; e quanto mais remexe, mais desgasta o terreno e mais o cobre com a poeira das decepções, porque a solução não está ali, mas sim no que estou dizendo. Como também problemas de desequilíbrio nervoso. Então, toma um remédio para se equilibrar. Eu até sou favorável ao remédio quando o desequilíbrio chegou a tal ponto que não tem outro jeito. Mas esta é uma contemporização necessária, não a solução. A solução é isto de que estamos tratando. Seria até a nossa resposta à Psiquiatria contemporânea. O absoluto é melhor do que a Psiquiatria. Viver para um ideal resolve problemas de nervos.                v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/5/1984)

Revista Dr Plinio 263 (Fevereiro de 2020)

 

1) Termo criado por Dr. Plinio para significar que, acima das realidades visíveis, existem as invisíveis. As primeiras constituem a esfera, ou seja, o universo material; e as invisíveis, a transesfera.

 

Súmula contra os erros contemporâneos

O apostolado verdadeiramente fecundo é aquele no qual a verdade não só é dita inteira, mas com ufania, bem argumentada e com uma audácia santa. Nada nos deve deter, precisamos seguir impávidos para a frente anunciando a verdade e o bem como eles são, segundo o exemplo de Santo Avito.

 

Temos para considerar alguns traços da biografia de Santo Avito(1), Bispo de Vienne, na França, no tempo do Rei Clóvis.

Direitos da Religião verdadeira contra as falsas religiões

Vienne fazia parte do Reino da Borgonha, cujo rei era Gondebaud. Santo Avito, a quem Gondebaud dava provas de confiança, esforçava-se por conduzi-lo ao Cristianismo. Um dia, instou tão vivamente com ele, que o rei ariano, não mais resistindo à evidência da verdade lhe rogou o reconciliasse secretamente mediante a unção do santo crisma.

Respondeu-lhe, todavia, Santo Avito: “Se verdadeiramente acreditais, por que temeis confessar a Jesus Cristo diante dos homens, como Ele nos ordenou? O temor de uma sedição dos vossos súditos vos detém, quando se trata de obedecer ao Criador de todas as coisas? Sois rei, e temeis os súditos? Não sabeis que mais cabe a eles seguir-vos, que vós conformar-vos à fraqueza deles? Vós sois o chefe do povo, e não o povo o vosso chefe. Quando partis para a guerra, sois o primeiro em marchar e os soldados vos seguem. Fazei a mesma coisa no caminho da verdade: mostrai-a aos súditos entrando nele primeiro, e não os seguindo nas estradas do erro”.

A doutrina contida aqui é eminentemente anti-moderna, contrarrevolucionária. Mais propriamente há três doutrinas contidas nesse texto. A primeira diz respeito aos direitos da Religião verdadeira contra as falsas, e é a seguinte:

Todos aqueles que têm meios de conhecer a Igreja Católica, vivem num ambiente onde a Igreja existe e se fala dela, recebem a graça suficiente para desejarem conhecê-la e, correspondendo a essa graça, conhecerem-na e amarem-na de fato, vindo assim a se converterem. De maneira que não tem desculpa a pessoa que, dentro de um tempo e com uma idade razoável, embora havendo nascido fora da Igreja Católica Apostólica Romana, não acabe percebendo ser ela verdadeira.

Deus não recusa a ninguém a graça sobrenatural da Fé, e todas as pessoas precisam corresponder a esse dom. Naturalmente isso não se diz exatamente assim das pessoas que vivem em países onde nunca se ouviu falar da Igreja, ou se ouviu falar tão vagamente que não existe esse atrativo para conhecê-la mais de perto e, portanto, para amá-la e aderir a ela. Mas em países onde ela é bastante conhecida, todos recebem a graça necessária e suficiente para se tornar católicos. Assim, o herege que não se torna católico é culpado disso.

Nem se poderia conceber de outra maneira porque, se Nosso Senhor Jesus Cristo disse aos seus Apóstolos: “Ide e ensinai a todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”, acrescentando que quem crer será salvo e quem não crer será condenado (cf. Mt 28, 19; Mc 16, 16), nós não podemos imaginar que as pessoas não tenham graças para entrar na Igreja. Seria uma brincadeira ou uma contradição se Ele dissesse: “Aqui está a Igreja, todo mundo deve entrar nela, mas a graça indispensável para isso Eu não dou senão a alguns.” Mas a obra d’Ele, sendo sapientíssima e perfeitíssima, tem de atingir naturalmente a sua finalidade. E sendo essa finalidade que os homens entrem para a Igreja, lhes é dada a graça suficiente para isso; e quando a recusam, eles têm culpa.

Na época da Civilização Cristã, as igrejas heréticas não podiam ter forma exterior de templos

Mais culpa ainda tem o herege que foi católico e abandona a Igreja Católica, porque esse recebe com o Batismo a graça infusa da Fé e, por meio do pecado mortal mais grave que se possa cometer, que é o de apostasia, ele abandona a Santa Igreja.

Portanto, dizer que um católico abandonou a Igreja sem culpa: “Coitado, ele não entendeu tal argumento, conversou com um pastor protestante que o convenceu, mas estava de boa-fé”; isso não vale. Todos têm graça suficiente para permanecer na Igreja Católica. E se uma pessoa sucumbe aos sofismas de um pastor protestante, de um agitador comunista ou de qualquer outro herege, há uma responsabilidade própria.

Embora ninguém tenha o direito, propriamente dito, de fazer o mal e professar o erro, a Igreja sempre recomendou que não se obrigasse uma pessoa a mudar de religião, mesmo porque não adiantaria nada. Se digo a um herege: “Você crê ou morre”, para não morrer ele dirá que acredita, mas por dentro continua a não crer. Seria, portanto, uma estupidez. De maneira que a Igreja sempre recomendou que se tolerasse – mas tolerar é muito diferente de permitir – que os hereges praticassem o seu culto.

Isso tem como consequência que, nos tempos da Civilização Cristã, as igrejas que não eram católicas não podiam ter forma exterior de templos. Ainda na época do Império no Brasil, igreja protestante ou qualquer outra tinha que funcionar numa casa comum. Esse é um princípio que nós vemos lembrado aqui.

O Estado deve ser a força material a serviço da Igreja

Outro princípio é o seguinte: o Governo existe não principalmente para o bem dos corpos, mas para ajudar a Igreja na salvação das almas. Por isso o Estado deve reprimir as heresias, os pecados, e ser a força material a serviço da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Logo, o papel normal dos reis é abraçar a verdadeira Fé e levar os povos a aceitá-la.

O terceiro princípio é o contrário da soberania popular pleiteada por Rousseau(2), que exatamente inverte a ordem: é a doutrina da Revolução Francesa, por onde os que governam são dirigidos por aqueles que são governados. Um rei não é feito para fazer o que o povo quer, mas o povo deve ser governado pelo seu rei. O monarca é responsável pelo povo e prestará contas dele perante Deus.

Ora, nessa biografia de Santo Avito notamos a afirmação destes três princípios. Ele estava em face de um rei herético, ariano. O santo prelado dirige-se, então, a ele e consegue convertê-lo. Mas o soberano, com medo de uma insurreição de seus súditos que eram arianos, pede que sua conversão seja secreta. Então Santo Avito lhe diz: “Eu não concordo com isso. Por que essa conversão precisa ser secreta? Ela deve ser pública e sua função é de, pelo seu exemplo e autoridade, exterminar o arianismo no seu reino, e não ficar quieto diante dele. Quem manda sois vós, o povo vos deve obedecer. Assim como na hora da guerra vós sois o primeiro a sair em combate contra os inimigos, assim também na hora da paz deveis dar o exemplo e os vossos súditos vos devem acompanhar”.

Não é naturalmente que o rei deva obrigar pela força os outros a se converterem, mas ele deve dar o exemplo que os outros, pelo prestígio da majestade real, precisam seguir.

Esses três princípios lembrados por Santo Avito constituem uma pequena súmula contra os erros contemporâneos, os quais afirmam que o Estado nada tem a ver com os cultos e nada deve fazer para levar os povos à prática da virtude.

Constatamos, assim, o quanto as nossas posições ideológicas têm santas e augustas raízes no mais remoto passado da Igreja Católica, pois esse prelado tinha a autoridade de santo para fazer essas afirmações. Ele era um bispo, mas há mais do que isso: quando a Igreja o canonizou, apontou-o como exemplo para todos. Ao canonizar alguém, a primeira coisa que a Igreja diz é: “Ele praticou em grau heroico as virtudes teologais da Fé, Esperança e Caridade, e as cardeais da Justiça, Fortaleza, Temperança e Prudência. Com base no exame da vida e das obras dele, eu, Papa, afirmo que ele está no Céu. Tais milagres confirmam as conclusões desse inquérito.” Além disso, a Igreja declara que o Santo é o modelo dos fiéis. E a canonização equivale a dizer: “Imitai-o, inspirai-vos no exemplo dele, pensai e agi como ele!” Logo, inculcando que se deve lutar contra esses erros, seguimos augustos exemplos de inumeráveis Santos que agiram da mesma maneira.

Devemos ser almas indomáveis, intrépidas, piedosas, sobrenaturais

Poderia parecer que esses santos do Império Romano cristão e da Idade Média agiram assim porque todo o ambiente lhes era favorável. Entretanto, eles lutavam contra inimigos tremendos, ferocíssimos. O arianismo produziu na Europa devastações incontáveis.

Eles venceram, quando tantas vezes os católicos não vencem, como sucede atualmente. Mas por quê? Porque os católicos de hoje são moles, contentam-se com as meias afirmações, com as meias verdades, gostam da confusão entre a verdade e o erro, entre o bem e o mal, e por isso não têm as bênçãos de Deus. O apostolado desses é tantas vezes estéril, embora disponham de meios de ação prodigiosos. Nós vamos ver quem os seguem… ninguém.

Que rádio, que televisão tinha Santo Avito? De que imprensa ele dispunha? Nada; ele contava apenas com o púlpito e sua autoridade de bispo santo. Ele fazia seus sermões e esses tocavam o coração de um rei. Isso porque o apostolado fecundo é o apostolado franco em que a verdade não só é dita inteira, mas com ufania, bem argumentada e com uma audácia santa.

Pode ser que às vezes aconteça o que ocorreu com São João Batista ou Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas eu pergunto: Então Nosso Senhor Jesus Cristo e São João Batista fracassaram? Ou, pelo contrário, o Divino Redentor, derramando seu Sangue, salvou a humanidade? O sangue de São João Batista não terá subido ao Céu como o de Abel, clamando vingança contra Herodes e Herodíades, e misericórdia para tantos homens que estavam esperando naquele tempo a luz da verdade?

Por certo, nessa tática da energia encontramos reações tremendas. Às vezes acontece de morrermos. Mas se um católico julga que morrer na defesa da Fé é um desastre, então ele deveria recomeçar tudo, precisaria nascer de novo, pois o contrário é a verdade: o martírio, o sofrimento conduz à glória e à fecundidade do apostolado.

De maneira que nada nos deve deter, precisamos seguir impávidos para a frente anunciando a verdade e o bem como eles são, segundo o exemplo de Santo Avito. Homens assim, um morria, dez venciam. Aquele que morria assistia à vitória desde o Céu. Foram bispos, papas, leigos desse modo que constituíram o fermento o qual deu origem à Idade Média.

Quando vemos restos magníficos da Idade Média, catedrais imensas, castelos maravilhosos, vitrais, o canto gregoriano, quando pensamos na Cavalaria, nas Cruzadas, no feudalismo, em tantas recordações que a Idade Média deixou e que são uma luz no meio das trevas deste mundo, devemos nos lembrar de que há no alicerce de tudo isso quanta coragem, quanta ousadia, quanto senso de sacrifício, quanta confiança na graça como elemento decisivo de toda vitória e quanta segurança de que andando para a frente, com a graça de Deus, o homem é invencível. Isto fez germinar a Idade Média.

Peçamos a intercessão de Santo Avito para que nos obtenha as graças a fim de sermos as almas indomáveis, intrépidas, piedosas, sobrenaturais das quais o Reino de Maria deve nascer.              v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 4/2/1966)

Revista Dr Plinio 263 (Fevereiro de 2020)

 

1) ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. v. III, p.14.

2) Jean-Jacques Rousseau (*1712 – †1778). Filósofo, teórico político e escritor suíço. Considerado um dos principais filósofos do iluminismo, cujas obras impulsionaram a Revolução.

A seriedade em luta contra o relativismo

Relembrando o momento trágico de seu acidente automobilístico, no qual viu-se entre a vida e a morte, Dr. Plinio tece profundas considerações sobre a seriedade da vida e o mal do relativismo. Que sinistra a vida de um homem que se entrega para um ideal e o serve com mediocridade!

 

Ao receber um pedido filial para tratar a respeito do período que se seguiu ao desastre(1) e da operação a que fui submetido no dia 6 de fevereiro de 1975, eu não poderia me recusar a atendê-lo. Entretanto, não saberia o que dizer, porque todo esse período se passou dentro de uma semiconsciência. Lembro-me confusamente de que eu emergia, de vez em quando, da subconsciência para a consciência. Assim, percebia por momentos gotas claras e grandes da realidade, mas fugidias, que rolavam pelo abismo das circunstâncias pós-operatórias.

A morte é a mais augusta tabeliã que há sobre a Terra

Nessas condições, eu não tinha ideia do que de fato estava se passando comigo. Mas, entre outras coisas, digamos que tenha ali expiado as minhas faltas. Se expiei as faltas daqueles que seriam meus discípulos, como o dou por bem empregado!

Em meio àquilo tudo eu não me dava conta de que uma coisa estava fazendo: tanto nos momentos de inconsciência, quanto nos de consciência, eu estava ajudando a fortificar na posição contrarrevolucionária os dois enormes olhos escuros e sevilhanos que me acompanhavam a todo o momento(2).

Porque eu vejo pelas repercussões posteriores que ele, com piedade filial, prestou atenção em tudo, analisou e tirou conclusões de tudo. Nossa Senhora foi servida em que ele ficasse edificado com o que viu. Até que ponto essa edificação poderia ter concorrido para depois ele ter realizado o que fez? Em medida talvez não pequena. E se assim foi, fica inteiramente de pé que nesse momento eu estava sofrendo e ajudando a ele para trazer tantos e tantos outros.

Há certas coisas de que eu tenho certeza que só se ensinam ou se sancionam pelo exemplo no momento em que a morte está próxima. É a mais augusta tabeliã que há sobre a Terra. O que se passa em presença dela raramente é a fraude, porque ela avança e desmascara tudo! É o juízo que está atrás dela; ela não faz senão servir de arauto ao juízo. E ao ouvir os passos do grande Juiz que vem, é preciso ser quase satânico para não ter medo e não pedir perdão!

Tenho assistido a muitos enterros em minha vida. Como é natural, está na ordem das coisas, um bom número deles de pessoas perfeitamente insignificantes. O primeiro homem que eu vi morrer em minha vida era um coitado. Lembro-me de tê-lo visto esticado num jardim, com os braços para trás, lívido, com os olhos vidrados. Podia ser a imagem, a personificação do homem insignificante. Mas ao olhá-lo às voltas com a morte, a tragédia da vida humana aparecia e a grandeza da morte também; e por detrás disso, a grandeza d’Aquele a quem a morte prenuncia.

Naquele momento pude compreender a forma de grandeza de que aquele pobre coitado era capaz, embora não a tivesse realizado. Veio-me, então, uma reflexão que nunca mais abandonei em minha vida: Se esse coitado é capaz de tanta grandeza, todo homem é grande, desde que seja fiel!

A verdade é que na presença da morte as coisas tomam essas dimensões.

Se houvesse em minha alma alguma superficialidade…

Se ver a morte por detrás de mim pode vos ter ajudado, como dou por bem empregado, como isso me contenta, como fico alegre! Como considerar o que naquele momento se me apresentou? Imaginem que eu tivesse uma certa superficialidade de alma e nessa hora ela aparecesse. Que efeito isso causaria?

O desastre ocorreu em 1975, quando eu tinha sessenta e seis anos. Com essa idade já foi para trás uma vida. Todos conhecem bem o meu passado. Posso dizer que aos olhos dos homens – não ouso dizer aos olhos de Deus – é um passado solidamente estruturado, coerente, lógico, limpo, rumando contínua e abnegadamente para um mesmo fim.

Senti um frêmito quando, em mocinho, li numa das conferências da “Université des Annales” que Bayard, o cavaleiro do tempo de Francisco I e de Carlos V, era chamado “le chevalier sans peur et sans reproche”(3). Volto a dizer: eu não ousaria afirmar isto de mim aos olhos de Nossa Senhora, mas aos olhos dos homens, sim. Os nossos adversários não têm coragem de negá-lo! A respeito do meu passado, os lábios deles que só destilam a calúnia ficam em silêncio. Porque se me inculpassem, eu lhes perguntaria: “Quando me viram ter “peur” e quando me puderam fazer um “reproche”? Apontem!” E por saberem que esta seria a resposta, ficam quietos.

Na realidade, se houvesse em minha alma alguma superficialidade, apesar da continuidade dessa obra, ela apareceria aos olhos do filho, do amigo, do discípulo. E se aparecesse, poderia causar uma insegurança – não creio que fosse a dúvida – quiçá um empenho menor, em algo o impulso diminuiria. E decrescendo na alma dele, diminuiria em todos aqueles que deveriam estar sob sua orientação. O menor impulso equivaleria a um minguamento quantitativo e qualitativo, o que por sua vez significaria um minguamento de minha obra aos olhos de Deus, dos Anjos e dos homens, uma risota da Revolução e um vexame a mais a pesar nas costas cansadas da Contra-Revolução.

Eu me levantaria do desastre com a impressão de ter cumprido o meu dever, e ele sairia edificado, porque não tomaria consciência do que faltou e do que deixei entrever. Mas na hora do julgamento – e é por isso que falo da justiça de Deus e da grandeza da morte – eu seria interrogado:

— Presta as tuas contas!

Eu olharia para Nossa Senhora e A veria gélida. Só não me desintegraria porque o poder de Deus não me daria meios para isso. Se Nossa Senhora está fria comigo, acabou.

— Por exemplo, em tal hospital… – continuaria o Divino Juiz.

— Senhor, eu estava inconsciente!

— Agora Eu vou te explicar. Em tal ocasião Eu te dei tal graça, depois tal outra, porque te queria de tal maneira. Queria que fosses isto. Tu respondeste e passaste por essa ocasião de modo insuficiente. Não manifestaste a tua alma como ela deveria estar. Não tinhas culpa naquela hora, tinhas culpa na causalidade. O efeito era tua culpa porque a causa era tua culpa. Estava em ti aquela graça mal correspondida. Agora presta contas! Aconteceu isto e aquilo, deixou de acontecer isto e aquilo. A culpa é tua. Em última análise, teu espírito deveria ter sido mais absoluto, mais categórico, ter sabido chegar com mais ímpeto às últimas consequências e vê-las mais claramente. Ficaste a oitenta, a noventa por cento do caminho, a cem não chegaste, e era nos cem que Eu te esperava. Terás a minha misericórdia, mas experimentarás antes o meu desagrado.

O que teria faltado? Superficialidade foi a causa. O espírito não foi a fundo, não aderiu, não se persuadiu como devia porque não prestou atenção e não se enlevou como devia.

Até que ponto devemos lutar contra o relativismo?

Deus continuaria:

— Houve um momento primeiro em que o “lumen rationis”(4) acendeu em teu espírito tal conclusão que o discernimento interno dado por Mim te fez ver. Aquilo tu deverias ter amado. Porém, por causa de tal bagatela, de tal egoísmo, de tal outra tolice fizeste exatamente o contrário. Resultado: todo o ritmo ficou prejudicado. Dei-te depois outras graças, tu as recusaste de tal maneira. Aqui está a tua história. Olha para os teus passos; pode ser que ao longo do caminho até tenham saído estrelas, mas uma sombra também se projetou. Eu estou aqui para te pedir contas dessa sombra.

Por que digo isto com esta ênfase? Pela saturação de ver, desde nem sei quando, espíritos superficiais pensarem que cumprindo o dever mais ou menos, às pressas, sem aprofundamento, sem adesão inteira da alma, por trivialidade, cumprem-no completamente, e julgam bastar a ação externa para que a obra esteja inteiramente boa. Pensam eles: “Se não fiz externamente tais atos, se não consenti internamente em tais coisas, estou perfeito.” Para manter o estado de graça, eu creio bem que sim. Mas basta manter o estado de graça quando se é chamado para uma vocação como a nossa? Até que ponto está firme no estado de graça uma alma que acha bastar-lhe estar em estado de graça? Eis a pergunta. Até que ponto devemos lutar contra essa fraude a nós mesmos, que é o relativismo?

O que é o relativismo propriamente?

Quando as graças do Batismo vão se tornando a nós conscientes e vamos vendo no ímpeto de nosso senso do ser, vamos imaginando desde logo as coisas com toda a perfeição possível – intuitivamente, mas tão verazmente – e nossa alma voa para aquilo; nós vemos coisas magníficas e nossa alma tende para o magnífico, para o grande, com todas as forças. Isso nos dá uma certeza e um contato com algo de paradisíaco, maravilhoso, verdadeiramente arrebatador.

Isto está provado não apenas pela voz dos católicos, mas até dos ímpios. Poucos homens experimentaram triunfos maiores do que Napoleão. Para não falar de outra coisa, a coroação dele, quando trouxe um Papa acorrentado de Roma a Paris para coroá-lo na presença de toda a Cristandade, naquela Catedral de Notre-Dame para cuja magnificência a humanidade sacudida pela Revolução Francesa começava de novo a abrir os olhos, na presença de representantes de reis da Europa inteira, de todas as sumidades que a França tinha naquele tempo. Pois bem, ele se fez coroar naquela ocasião. Que gáudio para aquele homem vaidoso, orgulhoso e vitorioso! Perguntaram uma vez para ele: “Qual foi o dia mais alegre de tua vida?” Pensavam que ele falasse do dia de Austerlitz, ou de Marengo, ou da coroação dele. Sua resposta, sem nenhuma dúvida, foi: “O dia da minha Primeira Comunhão”.

O que esse homem teve no dia de sua Primeira Comunhão que deixou de lado tudo o que veio depois? Tudo aquilo que para obter ele remexeu céus e terras não era comparável à alegria que tivera por ocasião da Primeira Comunhão. Como se explica isso?

Cada um de nós pode dar esse depoimento. Se não foi matematicamente no dia da Primeira Comunhão, houve, entretanto, momentos de uma alegria, de um enlevo, de um estado de alma que não se pode repetir. Na infância, quantas vezes isso se dá!

Uma velha harmonia enriquecida com tonalidades marciais

Para dar outro exemplo, aqui no Brasil, o nosso Casimiro de Abreu escreveu: “Oh, que saudades eu tenho da aurora de minha vida, da minha infância querida…” Era a inocência que ele tinha perdido e que cantava gemendo. Ele fugiu de dentro dela, saltou para as coisas do mundo, onde o ambiente brasileiro o glorificou, é bem verdade. Mas o que ele vendeu por isto! Que coisa horrorosa!

Nós, mais ou menos, desviamos os olhos desse senso do ser que nos apresenta as verdades primevas, e com elas algo que seria como que a matriz de todas as verdades iluminadas pela Fé. Muitos de nós chegamos a pecar, às vezes até reiterada e gravemente.

Entretanto, em certo momento, tivemos a impressão de que todas as alegrias da “Primeira Comunhão” se renovaram para nós, ainda mais intensas, com mais definição, com tonalidades mais ricas, porque eram elas mesmas, analisadas com as maturidades adquiridas ao longo do tempo, mas, sobretudo, porque vinham com graças muito insignes.

Aparece-nos de repente e nem percebemos. Antes, porém, passamos por um processo: começamos a nos desagradar de tudo quanto o mundo oferece. O fútil, o vazio, o sórdido de tudo começa a nos saltar aos olhos. Observamos em torno de nós os amigos que parecem alegres e julgávamos que eram felizes, e damo-nos conta de que a alegria deles é nada. Eles riem, saltam, brincam, gastam, fazem-se bajular, mas não estão felizes, não há paz neles. E concluímos que isso tudo está errado e precisa ser mudado. Mais ou menos quando a alma chega a este ponto, toca no fundo do horizonte dela uma velha harmonia enriquecida com tonalidades marciais: “Como se explica que eu tenha me deixado levar por isso? Se este mundo pagão deve vir abaixo, qual é o mundo que eu quero?”

Então, uma luz brilha aos nossos olhos e nos atrai. É a vocação, e com ela tudo renasce. Às vezes com embates duros. Que belas batalhas as da emenda da vida! Como elas são diferentes daquela escorregadela horrível por onde uma alma cai na impureza! Batalhas acirradas, difíceis, mas, afinal de contas, as graças vêm e a alma recupera a virtude. São novos horizontes, a pessoa se põe a combater e pensa: “Agora compreendo! Os que se entregam ao mundo pensam que a felicidade consiste em não ter desventuras nem lutas. Tontos! Nesta vida sempre as teremos. Mas há um recanto da alma onde paira uma felicidade, uma convicção, uma segurança, uma certeza, uma saúde que vale muito mais do que a saúde do corpo, do que o dinheiro e tudo mais. Esta eu tenho, e vou para a frente!”

Composição típica de um medíocre

Contudo, se no primeiro momento o homem não se enlevou como devia, mas conservou um pouco de concessão ao estado de espírito que ele tinha abandonado, aquilo vai minando-o lentamente. Em pouco tempo ele inventa uma composição: “Em linhas gerais eu cumpro meu dever, mas em tais pontos vou fazer mais ou menos. Minha consciência não fica chocada, não rompo com esse arcabouço sagrado onde me sinto realizando a vontade de Deus, mas não renuncio a umas “vontadinhas” que não extirpei e às quais estou apegado. Faço uma composição”.

Eu tenho vontade de dizer: “É verdade. Um copo d’água com três gotas de veneno, essa é a tua composição. Medíocre! Se eu fosse comparar a tua alma a um copo que só tem veneno, mentiria. Mas mentiria ainda mais se dissesse que sua água é cristalina. Entretanto, são só três gotas que tu consentiste que se pingassem ali dentro. Ainda que fosse uma gota, aquilo já não é mais a água que imaginas. Medíocre, o veneno está em ti.”

Se há venenos que fulminam, existem outros que matam aos poucos. Por exemplo, se alguém nos servisse, todos os dias, água um pouco envenenada não nos mataria imediatamente, mas vergaria a nossa saúde. Depois viria a morte. Assim também na nossa alma, as águas da mediocridade vão nos envenenando, intoxicando aos poucos.

Há pessoas que perderam a memória de tudo quanto a verdadeira saúde de alma lhes dava e se julgam saudáveis, até o momento em que o Médico Divino apareça e faça seu diagnóstico…

Fomos suscitados contra o relativismo

Isto posto, volto à pergunta: o que é o relativismo? É a atitude de alma por onde diante daquilo de belo, bom e verdadeiro que nos falou pela Fé, pela razão, pelos sentidos da alma e, às vezes, até pelos sentidos físicos, e que pedia de nós um brado de adesão, de devotamento e dedicação, nós nos movemos um pouco, dizendo: “Talvez, é possível. Daqui a pouco eu vou. No momento, quero saber sobre esse automóvel, como deu trombada no outro, ou tal coisinha como aconteceu; desejo uma bagatela, porque quero permanecer no mundo das bagatelas, reservando para elas pelo menos uma parte de minha alma”.

Esse é um pacto ilusório, uma esperança de que a graça presente em nós consinta em ficar íntegra quando deixamos entrar na alma o demônio. Seria mais ou menos como imaginar que uma casa onde more uma mãe de família pudesse ser habitada, ao mesmo tempo, por uma prostituta que ali exerce seu ofício. Alguém diria: “Bem, elas estão em quartos diferentes. No total, a mãe de família não nota.” Não é possível. Onde está uma, a outra só fica em estado ultrajado e diminuído. Diante do relativismo, a graça só fica em estado coarctado e humilhado.

Nossa Senhora deu-me a graça de odiar o relativismo com toda a minha alma. Porque no pecado declarado perdem-se os ruins, no relativismo se perdem os bons. Sempre me pareceu tremendamente triste, sinistro que um homem desse a sua vida para um ideal e o servisse mediocremente. E depois tivesse um resultado pífio. Então ele viveu para o pífio? Isso é viver ou é agonizar a vida inteira, sem glória e na lama?

Se há uma coisa que nossa vocação não permite é o relativismo. Assim como a Companhia de Jesus foi constituída contra o Protestantismo, os franciscanos contra o espírito de corrupção do uso das riquezas terrenas, os dominicanos contra as heresias, e daí por diante, assim fomos suscitados contra o relativismo. Logo, habitar uma gota de relativismo em nossas almas não é um erro, é uma aberração!

Essa seriedade que chega às últimas consequências é nossa vocação. Nossa força de impacto está no grau em que tenhamos deixado longe de nós o relativismo. Concessão ao relativismo dá em tibieza, apostolado estéril.

O que diríamos de um jesuíta semiprotestante? Ou de um franciscano que guarde moedas ocultas debaixo de seu burel? Ou de um dominicano meio cátaro? É um absurdo! Pois bem, uma concessão ao relativismo que habite em nossa alma é pior do que isso.

Necessidade de ter a consciência em estado de exame

Sugiro fazer um exame de consciência centrado no ponto do relativismo: “Sou inteiramente sério para esperar que aquilo que eu faça seja totalmente coroado do êxito esperado?” Que êxito é esse? Se sou sério, não é um êxito de imediato, mas profético, cheio de vaivéns, de problemas, em face dos quais tudo sai errado, exigindo que eu confie na Providência, reze, peça o auxílio de Nossa Senhora e, afinal de contas, mais cedo ou mais tarde – por vezes muito tarde… – acaba-se conseguindo. Então a coisa vai bem. Mas é preciso fazer um exame de consciência sério, do contrário não vai.

Aliás, mais do que isso é preciso ter uma seriedade viva, de maneira que qualquer coisa que destoe desse estado de espírito a seriedade nota. É uma consciência em estado de exame, não é só um exame de consciência. Eis o que nós devemos desejar.

Talvez um ou outro pensará: “Onde encontrarei a energia, o espírito de sacrifício para ser assim? Eu não consigo”.

A este eu teria vontade de dizer: “Meu filho, eu passei por isso. Saia como creio que saí, rezando ‘Salve, Regina, Mater misericordiæ, vita dulcedo et spes nostra, salve!’” Onde eu percebo que sou tão inconsistente que não dou um passo, devo olhar amorosamente para Nossa Senhora e pedir: “Minha Mãe, vede onde me deixei cair. Mas sinto o convite para me integrar nesse voo que passa diante de meus olhos. E se é verdade que não quero, ao menos, por vossa intercessão, é verdade que eu quereria.”

Lembro-me de ter rezado assim e até ter dito: “Minha Mãe, eu quereria querer. Nem tenho coragem de Vos pedir que eu queira mesmo. Mas atendei a esse meu anseio de que eu quereria querer. Fazei-me querer e depois ser: ‘Salve, Regina, Mater misericordiæ’…”

Truculência e confiança na misericórdia

Quantos de nós, embora tendo às vezes a alma pugnaz, decidida, combativa, possuímos algum recanto que a preguiça nos retém no chão! Para sanar esse lado de alma que é ruim, diga um “Memorare”: “…gemendo sob o peso de meus pecados, me prostro aos vossos pés…” Portanto, o pecador, gemendo sob o peso da sua própria preguiça, pode ajoelhar-se diante de Nossa Senhora e dizer: “Minha Mãe, eu não conseguirei nada enquanto não me ajudardes. Ajudai-me!”

O demônio gostaria de sugerir este pensamento: “Se Dr. Plinio conhecesse meu estado de alma, ele me excluiria com horror. Portanto, não posso dizer isso a ele. De outro lado, não posso me corrigir porque sou mole mesmo…” Então, vergonha, má consciência, tapeação.

Nada disso! Quantas vezes, ao ver alguém nessas condições, eu gostaria de dizer o contrário: “Meu filho, ânimo! Nossa Senhora é Mãe de misericórdia, Ela tem pena dos pecadores. Peça mais, porque está dito no Evangelho: para quem bater, abrir-se-á”. Logo, a quem pedir dar-se-á. Isso que diz respeito, na aplicação mais direta, às graças materiais, Nosso Senhor afirmou, sobretudo, para os dons espirituais, para situações, por exemplo, como esta.

Assim, esta reunião que passeou pelos píncaros da truculência, termina num ato de confiança na misericórdia.

Alguém dirá: as duas coisas não são contraditórias? Eu afirmo que não. Uma prepara a outra. Porque só pede mesmo misericórdia quem está convencido de que é devedor. Quem não reconhece o próprio estado não pede misericórdia. Procura tapear.

São duas posturas diferentes: uma é a do devedor que tem uma escrituração limpa, sabe quanto deve, procura o credor e diz: “Tenha pena de mim, não tenho dinheiro para lhe pagar. Não achincalhe o meu nome e não confisque meus bens. Vou trabalhar e pretendo pagá-lo no momento oportuno. Agora, lembre-se de que hoje o necessitado sou eu, amanhã poderá ser o senhor. E o senhor quererá que tenham consigo uma misericórdia que o senhor terá se tiver comigo. Faz favor”. Outra situação é a do tapeador que falsifica contas, nega que está devendo, pede testemunhas, etc. Esse é um ladrão.

A qual dos dois o credor tem mais vontade de perdoar: ao ladrão ou ao devedor probo? Evidentemente ao segundo. Assim é Nossa Senhora conosco. Ela tem mais facilidade em obter para nós o perdão quando nossa alma está limpa.

— Mas, Dr. Plinio – objetará alguém –, além de ser mole, minha alma não é limpa.

— Meu filho, comece por pedir a Nossa Senhora a limpeza de alma, por onde você tenha ideia clara de seus pecados. Qualquer ponto é bom para começar desde que na outra ponta do caminho esteja Nossa Senhora.

Estas são reflexões feitas à margem da minha operação. Apresento-as com o desejo de que façam bem às suas almas. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/2/1982)

 

1) Em 3 de fevereiro de 1975, Dr. Plinio sofreu grave acidente de automóvel, que o obrigou a usar muletas e depois cadeira de rodas até o fim de sua vida.

2) Dr. Plinio se refere a seu secretário pessoal e fiel discípulo, João Scognamiglio Clá Dias, hoje Monsenhor.

3) Do francês: o cavaleiro sem medo e sem reproche.

4) Do latim: luz da razão.