Oração: Faça-se a vossa vontade

Ó Mãe do Bom Conselho, tende compaixão de mim nos desacertos e nas perplexidades em que minha alma culpada se encontra. No meio de todas as minhas misérias, vossa graça me dá a convicção de que é melhor qualquer padecimento a continuar como estou. Portanto, se a condição para deixar o estado infeliz em que me encontro é que Vós me façais sofrer, peço-vos a força para suportar o sofrimento que me enviardes. Com os joelhos dobrados em terra e as mãos unidas, de toda a alma, ó minha Mãe, peço-vos o sofrimento necessário para eu ser totalmente vosso.

Entretanto, se for possível unir-me inteiramente a Vós sem esse sofrimento, suplico-vos que afasteis de mim esse cálice. Mas, a exemplo de vosso Divino Filho, digo: Faça-se a vossa vontade e não a minha! A vossa vontade, Mãe de misericórdia, pois Vós sois o conduto necessário, por desígnio de Deus, para subirmos a Ele e para que as graças venham até nós.

Mãe do Bom Conselho, uma vez mais vos peço, tende piedade de mim!

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 252 (Março de 2019)

Santo Edelberto, Rei de Kent

A história da conversão e santificação do primeiro rei católico inglês oferece a Dr. Plinio oportunidade de nos aconselhar a prática da prudência e da sabedoria semelhantes às exercitadas por Santo Edelberto, pelas quais seremos sempre capazes de escolher o bem e rejeitar o mal.

 

No dia 24 de fevereiro a Igreja celebra a festa de Santo Edelberto, Rei de Kent, na Inglaterra. Segundo nos relata o Martirológio, foi o primeiro dos príncipes dos anglos que se converteu ao cristianismo, pela evangelização do Bispo Santo Agostinho, em Canterbury, no ano de 616.

Os missionários do Papa recebidos com procissão

Sobre Santo Edelberto, diz Rohrbacher, na sua Vida dos Santos:

Em 596, o Papa São Gregório Magno enviou, sob a chefia de Santo Agostinho, um grupo de missionários à Inglaterra, então pagã. Aportando à ilha, os apóstolos fizeram saber ao Rei Edelberto de sua chegada e que lhes traziam uma mensagem de vida eterna. O soberano, que por intermédio de sua esposa já ouvira falar da religião católica, prometeu recebê-los numa entrevista pública.

Os monges chegaram em procissão, trazendo como estandarte uma cruz de prata e a imagem do Salvador pintada num quadro, entoando ladainha a Deus em prol da salvação deles e do povo pelo qual haviam se dirigido à Inglaterra. Mandou o soberano que se sentassem e eles começaram a lhe anunciar o Evangelho.

Prudente atitude do Rei Edelberto

Respondeu Edelberto: “As vossas palavras e promessas são belíssimas. Mas por serem novas e incertas, não me é dado aquiescer e deixar o que tenho observado há tão longo tempo com a nação dos ingleses. Todavia, como viestes de longe e como se me afigura perceber que desejais participar-me aquilo que julgais ser mais verdadeiro e melhor, em vez de vos opor obstáculo, vos recebemos bem e vos damos o que é necessário à vossa subsistência. Não vos impediremos de atrair para vossa religião todos quantos puderdes persuadir”.

Protegeu os cristãos, converteu príncipes e edificou igrejas

Cedeu-lhes, então, um abrigo na ilha que receberia, no futuro, o nome de Cantuária. Algum tempo depois, impressionado com o exemplo dos monges e com sua doutrina, o rei converteu-se e foi batizado. E dos vinte anos em que ainda viveu, dedicou-os à propagação da fé entre seus súditos, apoiado e exortado pelo pontífice Gregório Magno.

Protegeu os cristãos, levantou templos, fez leis admiradas e imitadas durante séculos, aplicou-se também à conversão dos príncipes vizinhos e conduziu dois deles ao cristianismo.
Faleceu Santo Edelberto em 606. Seu exemplo frutificou, pois nunca nação alguma deu à Igreja tantos reis santos quanto a Inglaterra.

Grandes figuras de fundadores da Idade Média

Aparecem-nos aqui duas grandes figuras de impulsionadores da Idade Média. Por essa breve e bela narração, podemos conceber o encontro de um insigne missionário, que é Santo Agostinho da Cantuária, com um extraordinário monarca fundador, Santo Edelberto.

Refiro-me a ele como fundador, porque da Inglaterra anterior à conversão pode-se dizer não passava senão de uma nação ainda em seus primórdios. Não havia uma civilização britânica, nem uma Inglaterra propriamente dita. Existiam apenas os germes da futura Inglaterra que, em contato com Santo Agostinho, floresceram e deram na nação em que ela se tornou posteriormente.

Magnífico preâmbulo de evangelização

A solenidade que o historiador nos descreve é, na verdade, maravilhosa. Podemos imaginar aquele rei e seus guerreiros semi-bárbaros, congregados na clareira de uma floresta, e, admirados uns, céticos outros, vêem chegando ao longe, entoando cânticos e ladainhas, Santo Agostinho com os seus monges e seguidores. Os enviados do Papa São Gregório Magno se aproximam, cumprimentam-se, são convidados a se sentar e começam as conversas entre apóstolos e futuros convertidos.

Sabedoria e simpatia

Percebe-se claramente a atitude ao mesmo tempo sábia e simpática do Rei Edelberto. Com efeito, embora se veja o coração dele tocado pela doutrina e exemplos de Santo Agostinho, ele responde com muita liberdade de movimentos e de palavras, dizendo: “Tudo o que vós nos dizeis é muito belo, mas não posso mudar de ideia tão depressa, abandonando as crenças que herdei de meus maiores. Desejo estudar melhor essas novidades que nos trazeis”.

Porém, ele o disse com notória benevolência e inclinação para aceitar o Evangelho, pois em seguida, ele agradece a Santo Agostinho e aos que o acompanhavam por terem vindo de tão longe para lhes falar, oferece-lhes um bom abrigo e lhes concede liberdade para pregarem e converterem à religião deles quantos o quisessem.

Ou seja, a posição dele em relação a Santo Agostinho revela um primeiro passo de sua alma em direção àquela verdade cujo precônio ele estava ouvindo naquele momento.

Confirmando essa sua intenção, ele facilita todas as coisas para a missão apostólica de Santo Agostinho, e este logo dá início à tarefa de evangelizar o povo e instaurar a religião católica na Inglaterra. Santo Edelberto, depois de examinar devidamente a nova doutrina, como homem consciencioso que era, abraçou-a de toda a alma. Converteu-se, tornou-se um modelo de soberano cristão, edificou igrejas, trouxe para o catolicismo outros príncipes ingleses e protegeu os súditos que foram acolhidos no grêmio da Santa Igreja Católica.

Pela ação da graça, discernimos a religião autêntica

O exemplo da conversão de Santo Edelberto nos faz deitar a atenção sobre um ponto que merece ser considerado. Trata-se de que, as condescendências primeiras que manifestamos em relação a alguma doutrina, revelam nossa simpatia: boa, quando para o bem; má, se tende para o mal.

Assim, quando alguém, de bom espírito, estranho à religião católica toma contato com esta, ver-se-á sob uma especial ação da graça, pela qual lhe é dada a possibilidade de vislumbrar — de propósito não afirmo que é dada uma certeza absoluta, mas um vislumbre — que ela tomou conhecimento da religião verdadeira. Donde, será bom todo movimento que essa pessoa faça no sentido de abraçar essa religião.

Pelo contrário, quando um católico trata com uma religião falsa, tem todos os elementos para se saber em presença de uma doutrina errônea. E, por conseguinte, todo movimento de simpatia para com tal doutrina será ruim.

Peçamos a Nossa Senhora, pelos rogos de Santo Edelberto, que nos conceda uma prudência e uma sabedoria semelhantes àquelas de que ele nos deu exemplo, e saibamos desse modo sempre escolher o bem e rejeitar o mal.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 23/2/1966)

O belo e o prático

Na sociedade deve haver uma hierarquia harmônica e proporcionada, a qual se manifesta, entre outras coisas, nos meios de transporte, que precisam ser belos e práticos. As carruagens existentes no Museu Nacional dos Coches, em Portugal, são exemplos característicos dessa verdade.

Tendo sido exposta, de modo muito sumário, a doutrina sobre o prático e o belo, é o momento de comentarmos algumas carruagens(1) que se encontram no famoso Museu Nacional dos Coches, em Lisboa.

A parte nobre do corpo do homem deve aparecer mais que a inferior

Logo à primeira vista notamos como o chão dessa carruagem tem uma superfície menor do que a do teto; este se alarga, enquanto o chão é estreito. De maneira que se considerarmos como chão apenas a parte onde está a porta central, ele é minúsculo em comparação com o teto. A razão de ser disto é que, em tudo quanto o homem faz, há uma vantagem para ele em que a parte nobre de seu corpo apareça mais, e a parte inferior apareça muito menos.

Temos, assim, uma arquitetura que, para visar o belo, é altamente prática porque, a partir da parte baixa dos cristais até em cima, o que se vê do homem é a parte nobre, em que ele aparece como um busto. Imaginem que este carro não tivesse na parte de baixo o quadro pintado na porta, nem esses ornatos, mas tudo fosse vidro até embaixo. Perderia enormemente.

Porque ver pernas cruzadas, pés trançados que se agitam nervosamente, tudo isto é muito menos bonito do que ver os bustos elevados, a cabeça alta, do homem ou da dama, em atitude monumental, escultural.

Harmonia entre as diversas partes da carruagem

O carro tem duas partes bem diversas: uma é a que transporta, e outra a que é transportada. A parte que transporta são as rodas e a boleia onde senta o condutor. Atrás, entre as rodas grandes, há uma espécie de chãozinho para ficarem de pé os dois lacaios, de maneira que quando o carro para, imediatamente eles descem e vão correndo abrir as portas e pôr um banquinho embaixo — que já vem dentro do próprio carro —, para que o passageiro não seja obrigado a dar um pulo. Já pensaram como ficaria feio uma rainha idosa dando um pulo de lá para baixo?

Os lacaios, vestidos em geral de damascos, sedas, com chapéus de veludo com penas, já sabem fazer uma cortesia muito grande com a porta aberta; e, não havendo um fidalgo para dar a mão à senhora que desce, o lacaio lhe oferece o braço. Ela desce de um modo elegante, e sai.

Com o carro aberto pode-se olhar dentro e ver as sedas e os damascos nos assentos. Esta é a parte dos que são transportados.

Notem a diferença de construção das rodas da frente com as de trás. As rodas da frente são pequenas e mais robustas. As rodas de trás são mais leves, altas e elegantes. A razão disso está ligada ao equilíbrio e conforto dos passageiros. Desde a boleia até a cabine, de ambos os lados, há umas peças que suspendem e mantêm a carroceria alta, garantindo o equilíbrio entre a parte de trás e a da frente enquanto o carro sobe ou desce, de maneira que os passageiros não sejam jogados para frente ou para trás. Sem dúvida, fica muito elegante. É uma série de providências práticas que são muito belas.

O prático disfarçado pela beleza

Está posta uma situação digna de nota, em que o prático existe desde que se preste atenção, mas é preciso saber vê-lo, porque ele está de tal maneira disfarçado pela beleza, que quem observa não diz: “Oh, que sabedoria prática!”, mas exclama “Oh, que beleza!”

As molas mantêm a cabine numa posição tal que ela não se inclina demais e, sobretudo, não toma solavancos do solo, o que poderia tornar mais desagradável o trajeto.

Até mesmo a altura que vai do piso da carruagem ao calçamento está calculada para a perfeita comodidade das pessoas que se encontram no interior da cabine.

Em geral, cabem seis passageiros nesse carro, dispostos frente a frente nas poltronas. Encostado à porta, há o banquinho utilizado quando as pessoas descem. Estas, conforme o caso, farão o percurso em silêncio e numa atitude de grande solenidade, ou conversando amavelmente. O povo tem o direito de vê-las numa dessas atitudes, e faz parte do dever delas apresentar esta beleza, pois as instituições políticas devem ornar os povos. O mais belo ornato de um povo é a sua instituição política.

As carruagens e a hierarquia existente numa sociedade

Analisemos agora outro veículo que é, sem dúvida, inferior ao anterior. Entretanto, não se pode dizer que seja um carro feio. É um carro bonito. Ele é lindo?

Em comparação com as coisas de hoje, ele é lindo, mas se comparado com o primeiro carro, não; ele é apenas bonito.

Pergunto: Então é uma baixa de nível fazer um carro assim?

Não, porque toda sociedade, qualquer que seja a forma de governo, deve ter uma hierarquia. E é preciso que essa hierarquia seja harmônica; quer dizer, não haja um tombo entre o primeiro carro e depois apenas liteiras. Convém que essa hierarquia seja por degraus. Este não é um carro para rei, mas para príncipes.

Por causa disto, ele é distinto, mas notem que a presença do ouro nele é muito menos abundante: o teto dele é muito menos ornado e de uma cor comum. As formas das janelas são muito menos fantasiosas e mais retilíneas, mas a justaposição de vermelho e ouro é bonita. Esse carro tem tudo o que o outro possui, mas de modo menos excelente.

Essas carruagens são do museu dos coches da corte, mas se houvesse um museu dos coches da burguesia, outro dos coches do clero, etc., simplesmente pelos coches teríamos uma ideia da ordem hierárquica daquela sociedade.

Até as liteiras bem mais modestas, que mães de famílias da classe popular tinham para se fazer transportar, eram interessantes. É a hierarquia social em que cada elo ama o elo de cima, e se faz respeitar pelo elo de baixo. E constitui uma boa organização social.

Vale a pena, a esse respeito, ler os discursos famosos de Pio XII sobre a nobreza e o patriciado romanos, para se ter uma ideia do que se deve pensar a este respeito.

Ósculo entre o belo e o prático

Considerem um pouco o prédio do museu e notem como a sala dos coches é muito bem calculada. Vistas num conjunto, todas as coisas belas apresentam uma beleza maior do que a simples soma delas. E por isso é bonito ver os coches no seu conjunto. Então foi feito um salão bem alto, com uma grande galeria em cima, para que o conhecedor possa percorrer os vários lados e analisar os coches no seu conjunto.

Para guardar bonitos coches tudo foi bem preparado. Quadros a óleo, provavelmente do tempo, representando cenas que se passaram neste ou naquele coche. O teto todo pintado e trabalhado. Tem-se vontade de haver ali no fundo, onde há uma cortina, um órgão para serem tocadas músicas extraordinárias, celebrando o passado de Portugal.

Vamos terminar pelo lado “pedestre”: foi gasto muito com esses coches. Eu pergunto: Não é um elemento de grande valor para o prestígio atual de Portugal? Notem que é uma glória de Portugal. Em geral, as nações que foram colônias se revoltam contra as metrópoles, e rompem à mão armada. Portugal até hoje tem, em Angola e Moçambique, gente que está lutando para que essas nações voltem à união com Portugal. Eu lhes garanto que muitos angolanos, moçambicanos que visitaram esse museu, levando álbuns com visões de coisas destas para Angola e Moçambique, deram o sabor da cultura portuguesa, e concorreram para esta união de Portugal com os seus súditos. Nós, de origem portuguesa, nos alegramos em dizer isto aqui. Mais uma vez o belo e o prático se osculam, se encontram. Era preciso termos chegado a este século descabelado e sujo para que se imaginasse esse dissídio entre o belo e o prático.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 4/10/1986)

1) As fotografias que ilustram esta seção não são as mesmas comentadas por Dr. Plinio.

Profundamente católica

“Quem não viu Sevilha, não viu maravilha”, afirma o conhecido dito popular. E eu tive a oportunidade de comprová-lo pessoalmente.

A cidade é marcada pela presença do Hotel Alfonso XIII, numa linda praça pública, porém não é o seu edifício mais imponente. Antes dele, ergue-se a bela catedral com a famosa Torre da Giralda, reminiscência do estilo mourisco e de um esplendor extraordinário.

Igualmente célebre, levanta-se ali perto a Torre do Ouro, que desde menino me encantara, quando eu folheava as páginas da enciclopédia ilustrada Larousse e, no verbete “Sevilha”, o S inicial aparecia incrustado numa vinheta desse monumento. Uma torre octogonal, às margens do Rio Gualdaquivir, cuja vista me fez recordar aqueles entusiasmos infantis com os quais a admirava num evocativo desenho.

Entretanto, o que me cativou em Sevilha não foram apenas essas construções magníficas, mas também — e quiçá com maior intensidade — o perceber na cidade uma população sobremodo inteligente, de espírito muito variado, capaz de se mover em todas as direções à maneira do ágil espírito brasileiro. E, por isso mesmo, dados a conjugarem com facilidade aspectos e conceitos diversos, tirando deles uma síntese da qual resultava uma composição maior entre a Espanha católica e seu passado mozárabe. Sevilha é, de fato, profundamente católica.

Uma de suas belezas próprias colhe o visitante, de modo particular, quando se passeia pelo bairro velho da cidade, onde aspectos do passado ainda dominam, junto com uma forma de pobreza-riqueza pouco habitual para pessoas que habitam grandes centros urbanos.

Trata-se de um bairro constituído de casas no máximo com dois pavimentos e com ruas muito estreitas, cujo charme está precisamente no fato de não serem retilíneas. Entortam-se e caminham em ziguezagues não calculados, dão “vueltas y vuelteretas” as mais surpreendentes, inesperadas, e desembocam onde não se imagina. Nada possuem de comum com as largas e previsíveis avenidas cosmopolitas. As ruas sevilhanas serpeiam e, a todo momento, topa-se com uma esquina.

Por vezes aparece um cruzamento, e a ruazinha em que vamos dobra-se tanto que já não se sabe qual a nossa, qual a outra, não fossem as placas pitorescas que nos indicam a continuação do caminho desejado. Em tudo, até mesmo nas ruas, paira portanto um certo ar de reserva e de mistério que aumenta nossa admiração.

Curioso notar que, apesar de o espanhol ser tão expansivo, mormente o andaluz — Sevilha está na Andaluzia — a cidade não é nada ruidosa. As casas se conservam em discretos recolhimentos: batidas de sol, as janelas se acham semi-fechadas, veladas por cortinados leves, deixando o interior imerso numa suave penumbra. E a gente percebe, por detrás das venezianas e dos voiles, grandes olhos pretos, alertas, vivos, perspicazes, emoldurados por grossas e escuras sobrancelhas, que observam e acompanham o visitante em seus passos pela rua sinuosa. Como se quisessem avisar ao vizinho do lado ou da frente: “Lá vai o estrangeiro!”

Na verdade, a fachada da casa sevilhana não é a sua parte importante, como se a concebe na maioria das cidades contemporâneas. Ela é quase o fundo da moradia, pois a existência naquelas habitações transcorre, sobretudo, nos seus pátios internos, para os quais abrem-se as melhores salas, os quartos, as varandas, e é todo um eixo vital que cruza por eles. A ideia é de se subtrair às indiscrições dos turistas, dos que não são da família. Daí as janelas e portas voltadas para dentro, à maneira de um claustro.

Peculiaridades e encantos dessa Sevilha: quem não a viu, não viu maravilha…

 

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Beato Fra Angélico, o São Tomás da pintura

“Minha maior glória foi pintar a ti, ó Cristo!” — Assim reza um dos epitáfios do Bem-aventurado Frei Angélico, cujo incomparável talento logrou estampar, em luminosos afrescos, as maravilhas celestes. Neste mês de fevereiro, Dr. Plinio nos convida a conhecer a vida e a arte deste filho de São Domingos.

 

Uma das mais altas expressões da piedade e do bom espírito na pintura e iconografia católica, retratista exímio de Nossa Senhora e dos santos, o bem-aventurado João de Fiesole, chamado Beato Angélico, é festejado pela Igreja no dia 18 deste mês. Dele possuímos alguns traços biográficos, que compõem de forma tocante sua figura de artista e varão virtuoso.

Um santo de genialidade inimitável

Guidorino di Pietro nasceu por volta de 1387, em Florença. Aos 20 anos, tendo ouvido numa noite de Natal um sermão do grande dominicano Fra Giovanni, decidiu ingressar na Ordem dos Pregadores, tendo sido admitido como noviço no convento de São Domenico, de Fiesole, e mudado seu nome também para Giovanni.

O jovem já demonstrava grande aptidão artística, mas julgou dever sacrificá-la a Deus. Seus irmãos de hábito dissuadiram-no da ideia, encorajando-o a desenvolver seus dons. Para isso, o prior ordenou logo que ele ornasse os livros de horas da biblioteca conventual.

Sua vida, inicialmente tranquila, foi alterada cerca de três vezes por mudanças de mosteiro. Na primeira ocasião por motivo do Cisma do Ocidente, pois o superior de Fiesole, o beato Jean Dominici não aceitava o Papa que a república de Florença admitira. Essas mudanças, contudo, contribuíram para o enriquecimento espiritual e artístico de Fra Giovanni, principalmente o período passado em Foligno, perto de Assis, que o santo frade visitava com freqüência.

Como bom dominicano, tinha um grande entusiasmo pela obra de São Tomás de Aquino. Conhecia-a perfeitamente, com ela nutria sua piedade e sobre a mesma, inconscientemente, lançava os fundamentos de sua própria obra futura. A “Suma Teológica” o levara a descobrir sua nova razão de viver e seu ideal estético.

É preciso três qualidades para se ter a beleza, dizia São Tomás. Em primeiro lugar, a integridade, pois as coisas inacabadas, como tais, são deformadas. Depois, a proporção de harmonias entre as partes. Enfim, a claridade, posto considerarmos como belas as coisas de cores claras e brilhantes.

E Fra Giovanni fez desta lei sua regra de ouro. Em 1418, os dominicanos de Fiesole voltaram ao seu convento e o santo frade entregava-se agora, cheio de satisfação, à sua arte. Sua primeira grande obra foi um quadro destinado à cartuxa de Florença. Seguem-se outras, cada vez mais numerosas. Os monges estão cheios de admiração. “Fra Giovanni não pinta, ele reza”, diz um deles. Sua arte com efeito era cântico, prece. Jamais tomava seus pincéis sem invocar o Todo-Poderoso, e é em estado de graça que ele colocava seus anjos nos jardins floridos do Céu. Seu anjos, tão belos e puros, dir-se-ia executarem uma música que se difundia em notas cristalinas sobre as arcadas do convento, enquanto ele lhes dava vida.

De tempos em tempos, um velho frade abria a porta da cela do pintor, olhava maravilhado e voltava sem rui­do, escondido em seu capuz. Foi esse admirador secreto e esquecido que lhe deu o nome de glória: o de Angélico. Um único religioso, antes dele, fora digno de usá-lo: São Tomás, seu guia e mestre. A partir desse dia, Fra Angélico só teve um cuidado na Terra: merecer o epíteto divino e tornar-se o São Tomás da pintura.

Em 1435, Fra Angélico foi encarregado de pintar os afrescos do velho convento de São Marcos, em Florença. Entregou-se de corpo e alma ao trabalho e, todos os dias, antes da aurora, um espetáculo tornou-se familiar aos monges de São Marcos. De pé, sobre o andaime que o fazia tocar no teto da estreita cela, um especial penitente recitava seu rosário: Fra Angélico rezava antes de começar a pintura. Ajoelhados no solo, dois jovens monges oravam também. Três pobres lâmpadas a óleo iluminavam a casa, fazendo tremer as sombras e brilhar as tonsuras. Depois, o pincel do Angélico, que se diria feito com cabelos de anjos, começava a correr e a colorir. Seu azul era inigualável. “Pinto como o céu do Paraíso”, costumava dizer sorrindo.

Fra Giovanni obteve em Roma a estima e a amizade do Santo Padre. Um dia, este o julgou digno do arcebispado de Florença, que estava vago. Mas o Angélico suplicou ao Pontífice que designasse em seu lugar um dos irmãos de sua Ordem, seu amigo, religioso cheio de ciência e humildade. E foi assim que Fra Angélico nomeou um arcebispo que seria canonizado cem anos mais tarde, Santo Antonino.

O humilde religioso, que se tornara um dos artistas mais célebres de seu tempo, ainda estava em Roma quando a doença veio surpreendê-lo no convento dos frades pregadores de Santa Maria Sopra Minerva. À tarde do dia 18 de fevereiro de 1455, o mosteiro estava envolto por um silêncio cortante. Cada religioso esperava, seja em sua cela, seja no coro, o instante em que o sino soaria para anunciar o último suspiro de Fra Angélico. Às 8 horas da noite, o breve e doloroso sinal tocou. Em alguns minutos, a cela e o corredor encheram-se de monges ajoelhados. A melodia da Salve Regina elevou-se no silêncio, enquanto o rosto de Fra Giovanni se iluminava com um calmo sorriso.

A lenda conta que, neste momento, uma lágrima deslizou sobre a face de todos os anjos dos quadros pintados por ele, sem saber que trariam a auréola de seu inimitável gênio e de sua santidade.

Uma civilização de “Angélicos”…

Trata-se de uma linda ficha biográfica, pois se refere a uma belíssima vida, tornando-se difícil até selecionar algum aspecto dela a ser comentado.

Antes de tudo, é bonito notar um dos princípios da civilização católica que aqui se afirma: o da reversibilidade dos planos.

Com efeito, toda forma de ordem, beleza e virtude que existe num plano é suscetível de ser revertida num outro. Assim, se houve um Tomás de Aquino no âmbito da filosofia, da metafísica, devem existir outros no campo da pintura, da música e demais artes.

O resumo biográfico observa muito bem que São Tomás de Aquino e o Beato Giovanni de Fiesole foram chamados, respectivamente, o Doutor e o pintor Angélicos. Seja nos dado considerar que, não fosse a Idade Média interrompida prematuramente em sua caminhada rumo a um esplendor de realizações católicas, teríamos tido “Angélicos” em vários terrenos. Pois houve guerreiros angélicos como São Luís IX e São Fernando de Castela, assim como estadistas angélicos, etc. Surgiria, então, uma ordem Angélica no mundo, sobrenatural, luminosa, coerente, profundamente lógica, que seria a da Civilização Cristã e da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Uma ordem mais própria para anjos do que para homens, conduzindo estes ao Paraíso.

Sabedoria e desejo das coisas harmônicas

Por trás de tudo isso existe algo que cumpre mencionar, embora não diga respeito diretamente à obra de Fra Angélico, mas do qual esta é uma fulguração. Quer a produção de Fra Angélico, quer a de São Tomás de Aquino são manifestações da virtude da sabedoria, por onde o homem apetece a coerência e a profunda harmonia interior das coisas, muito mais do que as trivialidades ou bens menores do existir humano. Primeiro, porque sua natureza encontra plena expansão nessa harmonia. Porém, há outra razão, mais alta: essa consonância exprime algo de inefável, total, que é a melhor representação de Deus.

O Criador é simbolizado nessa harmonia de todas as coisas. E quem a ama, ama o símbolo e, portanto, o próprio Deus, predispondo assim sua alma para o Céu.

Convém ressaltar que essa harmonia não é igualitária, mas hierárquica, tendo seu cume no sublime, no ponto supremo da ordem criada, do qual todas as harmonias derivam.

Nosso Senhor e Nossa Senhora, ápices da harmonia

Assim, na ordem meramente criada, essa harmonia se revelou de forma mais perfeita em Nossa Senhora. Ela é a mais excelente entre as simples criaturas, pois, segundo essa concepção, o expoente é aquele que contém em si as qualidades de todos os outros inferiores, por ele capituladas, compendiadas e contidas. Nossa Senhora, portanto, reunia em si todas as formas e graus de perfeição de todas as meras criaturas, n’Ela elevadas a um grau de sublimidade sem paralelo.

Quer dizer, entra a Virgem Maria e nós não há somente um abismo insondável, mas uma série deles, de tal maneira Ela sobrepuja o resto dos homens.

Claro está, Nosso Senhor Jesus Cristo, em sua humanidade santíssima, é o único acima de sua Mãe. Aliás, algumas revelações de Sóror Maria de Ágreda a respeito de ambos, nos dão a conhecer aspectos tocantes. Segundo a vidente, o Divino Redentor era sumamente parecido com Nossa Senhora, cujo rosto seria a transposição para um semblante feminino do semblante masculino de Jesus. Então, a perfeição de todas as perfeições tinha de ser, forçosamente, a Sagrada Face de nosso Salvador.

Por quê? Pelo olhar e fisionomia, Ele espelhava todas as formas e graus de excelência de alma possíveis no homem, além de sua natureza divina inefável. Por outro lado, sendo perfeito, o que Nosso Senhor deveria ter de mais sublime era a face, pois esta é a condensação de todas as riquezas do corpo.

Certo estou de que se alguém conseguisse conhecer essa Face em seu estado normal (não, portanto, desfigurada pelas torturas da Paixão), na sua integridade, compreenderia que as proporções de seus traços tinha de conter as regras de harmonias do universo, cuja beleza nos seria dado decifrar, em se estudando o mesmo sagrado semblante.

Uma preparação para a visão beatífica

Assim como entenderíamos outra coisa, tão raramente encontrada unida à beleza: a graça, o charme, o encanto. Freqüentemente se acham modalidades de encanto, mas separadas da verdadeira beleza. Ora, em Nosso Senhor essas qualidades se uniam na sua plenitude. E como Ele era atraente! Era a majestade mais empolgante e arrebatadora aliada à graciosidade mais meiga, afável, acessível, capaz de se fazer pequena e nos acariciar; era o charme incomparável por trás da beleza perfeita, somado à expressão de uma inteligência infinita e uma santidade transcendente. Tudo isso nos faria ter a ideia da esplendorosa fisionomia d’Ele.

No fundo, o que São Tomás entendeu e escreveu, o que o Beato Angélico discerniu e pintou, é o que no Reino de Maria se verá. Contemplar-se-á através de todas essas harmonias, algo que nos faça pensar no semblante imaculado, sacratíssimo, régio, maternal e meiguíssimo de Nossa Senhora. E naquilo para o qual não há palavras, cessam os adjetivos, tudo é silêncio e adoração reverente: a Face de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Compreendendo essas harmonias nos preparamos para entender a Sagrada Face e para a visão beatífica, por toda a eternidade.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Misericórdia

Na gloriosa corrente constituída pela Santíssima Trindade, Nossa Senhora e o Papado, este último vem a ser o elo menos vigoroso: porque mais terreno, mais humano e, em certo sentido, estando envolto por aspectos que o podem menoscabar.

Costuma-se dizer que o valor de uma corrente se mede exatamente pelo seu elo mais frágil. Assim, o modo mais excelente de amarmos essa extraordinária cadeia é oscular o seu elo menos forte: o Papado. É devotar à Cátedra de Pedro, em relação à qual esmorecem tantas fidelidades, a nossa fidelidade inteira!

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Senso da hierarquia e da Contra-Revolução

A Ordem dos Servitas é uma das mais antigas entre as especialmente fundadas para propagar a devoção à Mãe de Deus. O título de Servos ou Escravos de Maria, que os sete fundadores quiseram dar a esta Ordem, prenuncia a devoção de São Luís Grignion de Montfort, que é a da escravidão a Nossa Senhora. Quer dizer, um despojamento completo de todos os bens materiais e espirituais, e até dos méritos de nossas boas obras, presentes, passados e futuros para serem postos nas mãos da Santíssima Virgem.

Com a canonização dos sete fundadores e a aprovação desta Ordem, a Igreja indica que, em relação a Nossa Senhora, devemos ser servos.

Peçamos aos Santos Fundadores dos Servitas que intervenham na Terra e ajudem a estabelecer uma verdadeira devoção a Maria Santíssima entre os homens, e com ela o senso da hierarquia e da  Contra-Revolução.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/2/1965)

Revista Dr Plinio 215 – Fevereiro de 2016

Cátedra de São Pedro

Uma lenda antiga nos conta que à beira de certo lago havia um rochedo que crescia à medida que as ondas o acometiam, de sorte a nunca ser submergido, ainda nas maiores tempestades. Hoje em dia, este rochedo é a Pedra, é a Cátedra de Pedro, que tem avultado com as revoluções, zombando das heresias, crescendo em vigor à medida que seus adversários crescem em rancor.

Há já vinte séculos, ela vem espargindo água benta sobre os adversários prostrados no caminho. (…) Neste mar revolto do século XX, naufragam homens, idéias e fortunas. Só ela continua e será “via, veritas et vita”, devendo ser aceita pela humanidade, para levantar um voo salvador sobre o próprio abismo que ameaça tragá-la…

Plinio Corrêa de Oliveira (Do “Legionário”, nº 130, de 15/10/1933)

Escravidão de amor a Nossa Senhora

Eis a conclusão das palavras dirigidas por Dr. Plinio a um grupo de jovens que acabavam de fazer a consagração a Nossa Senhora, pelo método de São Luís Grignion de Montfort. Dr. Plinio lhes  explicara inicialmente o contexto no qual esse Santo explicitou e desenvolveu suas doutrinas.

 

Em seu “Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem”, São Luís Grignion estabelece vários princípios que justificam a nossa consagração a Ela como escravos de amor.

Medianeira desejada pela Providência

O mais importante deles é a mediação universal de Nossa Senhora. Ou seja, o fato de que Ela é a medianeira entre Deus e os homens para a obtenção e a distribuição de todos os dons divinos que  pedimos ao Céu.

De tal modo essa intercessão de Maria é querida pela Providência que — ensinam os teólogos — nada do que os fiéis pedem a Deus seria alcançado, se a Santíssima Virgem não rogasse também  por eles. Pelo contrário, se Ela sozinha fizer a mesma oração em seu favor, será atendida.

Compreende-se. Escolhida para ser a mãe do Verbo encarnado, sempre imaculada e cheia de graça, a união que Nossa Senhora tem com Jesus é a mais alta que uma simples criatura humana pode ter com Deus. Em virtude desse vínculo extraordinário, Nosso Senhor nada recusa à sua Mãe, o que faz d’Ela uma intercessora onipotente junto a Ele. Esse é o princípio ensinado por São Luís Grignion e reconhecido pela Igreja.

Passemos a outro ponto.

Co-redentora do gênero humano

Quando foi decidido pelo Pai Eterno que Jesus Cristo deveria morrer para expiar nossos pecados, quis Ele ter o consentimento da Santíssima Virgem, o que representou para Ela um golpe  espantoso. Pensemos em nossas mães. Se alguém lhes dissesse: “Quer me dar seu filho, para que ele sofra blasfêmias, seja ridicularizado, perseguido, preso, entregue ao desprezo e ao ódio do povo, flagelado, coroado de espinhos, obrigado a carregar sua cruz até o Calvário e morra de modo atroz?” — nenhuma delas cederia o filho! Não há mãe que queira isso para aquele que ela trouxe ao mundo.

Porém, Nossa Senhora sabia ser necessário esse holocausto para a redenção do gênero humano. Ela deu seu consentimento, e com isso sofreu uma dor intensíssima, como se um gládio Lhe  transpassasse o coração. Daí vem a devoção a Nossa Senhora das Dores, e a imagem d’Ela com o coração aparente, atravessado por uma espada.

É uma evocação do sacrifício que Ela fez.

Nos seus eternos desígnios, Deus quis que esse padecimento de Maria fosse unido ao de Nosso Senhor para resgatar os homens, e por essa razão Ela é chamada pela Igreja de Co-redentora do  gênero humano.

Nossa Senhora é nossa arqui-mãe

Em conseqüência dessa participação de Nossa Senhora na redenção do mundo, podemos dizer, com inteira  propriedade, que Ela é nossa mãe: sem o auxílio e o consentimento d’Ela, não teríamos  nascido para o Céu e para a vida da graça. Ela aceitou e quis o sacrifício de seu Divino Filho por todos e cada um dos homens, até o fim dos tempos, e é, portanto, mãe de todos e cada um de nós.

Mãe a um título mais alto que simplesmente o de mãe natural, posto ser mais alta a vida sobrenatural para a qual Ela nos gerou. Em certo sentido, Ela é a nossa arqui-Mãe, a Mãe das mães. E tem, então, para conosco, uma tal misericórdia, que São Luís Grignion de Montfort não hesita em afirmar que Maria ama cada um em particular mais que todas as mães somadas amariam seu filho  único. Daí, diga-se de passagem, a entranhada confiança que devemos depositar na clemência d’Ela.

É louvável que nos consagremos a Nossa Senhora

Ora, se Nossa Senhora nos deu de tal maneira seu sacrifício, sua alma, se Ela nos amou a tal ponto, se é tão autenticamente nossa mãe, se Ela nos ofereceu seu Filho, o Filho de Deus, se O imolou por nós, se nos cumulou de tantos bens, é justo e louvável que nos consagremos a Ela por completo. Eis a tese de São Luís Grignion.

Pertencemos a Ela, de direito, pelo que Ela fez por nós. O santo autor diz muito bem que, quando um rei (ele se referia aos monarcas absolutistas) conquista um povo, torna-se senhor desse povo.

Nossa Senhora nos comprou e nos conquistou por seu sacrifício, e por isso Lhe pertencemos. Mas, como somos seres inteligentes e livres, é preciso que, por uma deliberação nossa, nos  entreguemos a Ela. Com nosso consentimento, essa união se torna completa.

De fato, não pode haver dom mais proporcionado ao que Nossa Senhora nos fez, do que a doação de nós mesmos a Ela, como seus devotíssimos escravos. Quer dizer, a escravidão de amor à  Santíssima Virgem Maria como Mãe de Deus, como nossa Co-redentora e nosso celestial amparo.

Características dessa escravidão

Por essa escravidão consagramos nossa vida nas mãos de Maria Santíssima, e Lhe entregamos todos os nossos méritos para que disponha deles como melhor quiser. Convenhamos, não é um  muito bom negócio para Ela… Que são os pobres méritos dos homens em comparação com os que Ela alcançou! Mas, se é este o desejo d’Ela, deixemos que Nossa Senhora use de nossos méritos  como Lhe aprouver, em benefício de terceiros, em tal intenção da Igreja, etc., etc. São Luís Grignion, entretanto, procura nos fazer ver a inestimável vantagem dessa entrega, aplicando à  generosidade de Nossa Senhora uma expressão francesa muito interessante: “Em troca de um ovo, ela nos dá um boi”. Ou seja, damos diminutos méritos e, em retribuição, Ela nos concede uma  torrente de graças.

Devemos, pois, fazer tudo o que Nossa Senhora deseja que façamos, quer dizer, cumprir a lei de Deus e procurar sermos perfeitos. Em outras palavras, tudo o que sabemos que seja o melhor para  os interesses da Igreja, segundo a moral e a perfeição cristã. Em compensação, Ela nos toma sob sua proteção de modo especial, e nos torna beneficiários de méritos superabundantes.

Eis no que consiste essa consagração de amor à Santíssima Virgem.

 

Doçura em nossas aflições

Maria Santíssima, mais que qualquer um de nós, mostra-se sensibilizada e generosa diante do infortúnio e apuro do próximo.

Ela sabe dizer a palavra amiga, oferecer o suave lenitivo de seu amparo ao coração atribulado, desejoso de encontrar doçura na ajuda alheia. Ela não poupa nada de sua inesgotável clemência, compaixão e misericórdia para com os que se acham em toda espécie de aflições: removendo-as, se pode fazê-lo sem com isto diminuir o benefício espiritual que a provação traria para o socorrido; ou alcançando para este redobradas forças, manifestando-lhe de modo particular a doçura de sua insondável solicitude materna.

Daí o acertado pensamento de Santo Ildefonso: “Ó Virgem Maria, sois clemente em nossas necessidades, doce em nossas tribulações, boa em nossas angústias, pronta a nos socorrer em nossos perigos…”