Impressoes sobre a Semana Santa

Para Dr. Plinio, a principal época do ano era a Semana Santa. Não apenas pela recordação, em si, da tragédia do Homem-Deus, morto e sepultado, mas também pelo ambiente salutar e santificante que dela emanava.

Na Sexta-feira Santa, a cerimônia que mais me tocava era esta: a cruz exposta numa espécie de mesa, com Nosso Senhor morto, e o povo fiel que passava para oscular-lhe os pés. Desfilavam aquelas pessoas às centenas. Nas catedrais, esse cortejo para a veneração da cruz era encabeçado pelo bispo, e foi durante uma dessas celebrações litúrgicas que contemplei, pela primeira vez, a simbólica beleza do báculo.

Estávamos na Igreja de Santa Efigênia (pois a Catedral da Sé ainda se achava inacabada), quando o velho Arcebispo D. Duarte entrou para a cerimônia, revestido dos trajes próprios aos ritos da Paixão: batina amplíssima, de um roxo quase violeta, prolongando-se numa grande cauda, levada por um ou dois caudatários, em geral seminaristas. Ia sem mitra, com uma cobertura na cabeça lembrando em algo o barrete dos doges venezianos. Não sei a razão dessa peça no paramento episcopal, mas o adornava de modo muito adequado.

Com todos os fiéis quietos, tendo já deixado um espaço aberto no corredor central para o prelado passar, este vinha caminhando sem sapatos, deixando ver as meias violáceas. Estava descalço em sinal de penitência, e ia como bispo diocesano, o primeiro, pedir perdão pelos seus próprios pecados e pelos do povo.

Essa cena causava uma impressão de realidade — e o era — de que, diante do trono de Deus, naquela hora, comparecia com o bispo a diocese, e cada um dos que estávamos ali, na pessoa do Pastor,  pedia perdão por seus pecados, responsáveis pela morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. A liturgia começava a entoar um cântico que exprimia e corroborava esse sentimento, enquanto Dom Duarte, com ar grave e recolhido, em grande estilo se aproximava do Senhor morto para Lhe oscular os pés. Em seguida, saía pela sacristia, e tinha início a longa procissão de fiéis.

Ao presenciar essa cena, eu me rejubilava: “Ah! Esta é a Igreja Católica!”

A cidade se tornava austera e séria

Outros lindos aspectos das celebrações da Paixão me encantavam igualmente. Por exemplo, a transladação do Santíssimo, que havia sido consagrado, para o chamado monumento ou sepulcro.

Então, o celebrante — que podia ou não ser o próprio bispo — envolvia o cibório com uma capa da cor de luto e o conduzia ao seu destino, precedido pelos toques das matracas: “plec-plec, plec-plec, plec-plec, plec-plec”… Quer dizer, não havia mais música nem alegria. Era tudo tristeza e tudo pranto, por causa de nossos pecados, porque o Filho de Deus morrera. O cortejo se dirigia a um altar lateral, mais afastado, para que o maior espaço a ser percorrido pelo povo conferisse certa pompa e extensão à cerimônia.

Descia-se uma urna, na qual depositavam o Santíssimo, trancavam-na à chave e esta era entregue ao pároco. Até o Sábado Santo não havia mais comunhão naquela igreja, porque o Senhor estava  morto. Era um luto pesado, uma tristeza profunda.

O povo se dispersava silencioso e recolhido. Caminhavam todos para suas casas, naquela época antiga, ainda usando trajes escuros. Os homens se vestiam de preto, e as senhoras portavam sinais  de luto, faixas ou véus negros, etc. As próprias crianças se apresentavam com algo de preto. E assim, pelas ruas tranquilas da cidade, as pessoas voltavam para suas residências. Iam fazer a sua   refeição de jejum e abstinência, mantendo-se na piedosa e compungida quietude daquele dia de dores.

A cidade tornava-se tão austera, tão séria, que se tinha quase a impressão de que, quando ela voltasse ao normal, já estaríamos vivendo no Reino de Maria. Ou seja, naquela época histórica  prevista por São Luís Grignion de Montfort e outros santos, durante a qual a Santíssima Virgem ser á a Rainha dos Corações e da sociedade.

As alegrias da Ressurreição

Terminada a Sexta-Feira Santa, os espíritos se voltavam para as esperanças e as alegrias da Páscoa.

Certa vez, quis ver a cidade de São Paulo no seu conjunto — eu tinha uns 20 anos — festejando a Ressurreição. E a Igreja, naquele tempo, o fazia no Sábado de Aleluia, ao meio-dia. Acompanhado de um amigo, subi então até o último andar da torre do santuário Coração de Jesus, onde ficamos à espera do festivo momento.

Quando chegou meio-dia em ponto, ouvimos o timbre do bonito carrilhão da igreja que começava a tocar.

Depois do silêncio sacral e sepulcral da Semana Santa, ecoavam os repiques dos sinos. E como não havia quase arranha-céus naquela época, o som se propagava, trazendo aos nossos ouvidos os tangeres dos sinos das mais variadas igrejas, a diferentes distâncias, bimbalhando festivamente junto com o sino fortíssimo do Coração de Jesus. Era um júbilo, um triunfo pascal com grandeza bíblica.

Logo a alegria da Páscoa começava a se espalhar sobre a cidade. Soltavam-se rojões, e a molecada ia pelas ruas levando o judas para ser enforcado em árvores, em postes, espancado até cair e, finalmente, queimado.

Já nas casas de família, as mães acendiam velas bentas diante das imagens de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, para celebrá-los, e reuniam as crianças para rezar.

Enfim, tinha-se a impressão de que até a natureza se rejubilava quando, ao meio-dia do Sábado Santo, soavam os sinos da Ressurreição. O Apóstolo diz esta palavra, que tudo resume: “Absorta est mors in victoria”. A morte foi tragada pela vitória!

Plinio Corrêa de Oliveira

As Catedrais: Símbolos do Paraíso

As Catedrais podem ser analisadas sob diversos pontos de vista. Comentando o excerto de uma obra do historiador Marcel Aubert, Dr. Plinio aponta o prisma mais elevado pelo qual elas podem ser consideradas.

Gostaria de comentar uma breve ficha tirada de Marcel Aubert(1), a qual trata a respeito das catedrais como sendo um símbolo do Paraíso.

Para bem iniciar esta explanação, antes de tudo, é preciso não considerar as catedrais apenas como um recinto fechado, onde se pode, ao abrigo das intempéries, prestar culto a Deus. Além desta finalidade material, a qual é evidentemente indispensável, as catedrais devem ser consideradas acima de tudo como um símbolo e, portanto, uma imagem e antegozo do Paraíso. Eu as considero verdadeiras obras-primas de simbolismo, nas quais tudo tem uma reversibilidade.

Jerusalém: prefigura da Igreja

Assim diz o autor: A catedral é figura da Cidade de Deus, da Jerusalém celeste, imagem do Paraíso(2).

Um dos aspectos do significado simbólico das catedrais examinado pelo autor está contido no fato de estas serem a casa de Deus, à semelhança do Paraíso Celeste, no qual Deus aguarda os homens, enquanto os que lá já estão O contemplam.

O que devemos compreender por Jerusalém? Jerusalém é a cidade santa do Antigo Testamento, uma representação material do que viria a ser no futuro a Igreja Católica, Apostólica e Romana, o Reino de Deus na Terra.

O povo eleito do Antigo Testamento era uma prefigura dos católicos batizados. Sendo Jerusalém a capital do povo eleito no Antigo Testamento, ela prefigurava, portanto, a Igreja Católica. Portanto, à Igreja Católica cabe o título de Jerusalém terrestre. Se bem que tal título possa ser aplicado a toda ordem civil quando conforme aos ensinamentos divinos.

Por conseguinte, a denominação “Jerusalém celeste” é aplicada à cidade de Deus, que é o Paraíso.

Simbologia do edifício sagrado

Continua a ficha:
As paredes laterais são imagens do Antigo e do Novo Testamento.

Os pilares e as colunas são os profetas e os apóstolos que sustentam a abóbada, a qual, por sua vez, representa Cristo, a sua chave.

Quão poucos são os que, ao entrar numa igreja, têm presente a ideia de que suas paredes laterais representam o Antigo e o Novo Testamento!

Como seria bom se ao avistar uma igreja as pessoas considerassem esta magnífica realidade de que em suas paredes estão representados o Antigo e o Novo Testamento, bem como em suas colunas os Profetas e os Apóstolos, sobre as quais se apoia a abóbada, imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo, a chave da Igreja.

O esplendor dos pórticos

As janelas translúcidas que nos separam da tempestade e derramam sobre nós a claridade, são os doutores da Igreja.

O portal é a entrada do Paraíso, embelezada pelas imagens em pedra, pelos baixos-relevos pintados e dourados e pelos suntuosos batentes de bronze.

As portas das catedrais são, portanto, uma imagem das portas do Céu. Elas são, geralmente, feitas de carvalho trabalhado, e ornadas de bronze lavrado a fim de que seu esplendor participe de alguma forma da beleza do Portal Celeste.

As imagens dispostas em torno da porta da catedral devem constituir uma recordação de que um dia as portas do Paraíso se abrirão para nós, e assim vamos penetrar na glória de Deus, gozando da companhia dos bem-aventurados. Ao penetrarmos no pórtico da Jerusalém Celeste seremos recebidos pelo harmonioso canto dos Anjos à semelhança dos Doutores talhados em pedra que nos recebem no pórtico da Catedral.

Luz que dá beleza a todas as coisas

A casa de Deus deve ser iluminada pelos raios do sol resplandecente da caridade como o próprio Paraíso, porque Deus é a Luz e a luz dá beleza às coisas. Assim também se deve aumentar a iluminação interior da catedral, abrindo janelas tão grandes quanto possíveis, dos vértices das grandes arcadas às próprias abóbadas.

Sendo Deus a Luz, convém à catedral ser iluminada, não pela claridade comum do dia, mas pela luz matizada que filtra pelos vitrais, os quais devem ser tão grandes quanto for possível. Por isso, consistiu o grande desafio da arquitetura gótica fazer com que as janelas fossem cada vez maiores, sem prejuízo à estabilidade do edifício. Daí chegou-se a realizar um edifício como a “Sainte Chapelle” de Paris, verdadeiro escrínio cujas paredes são todas de vitrais. O que nela há de pedra são algumas esguias colunas que sustentam o teto; quanto ao mais, é toda feita de luz. De tal modo que ao penetrar nela tem-se a impressão de estar numa caixa de cristal, na qual as cores e a luz brincam formando desenhos maravilhosos, fazendo lembrar a eterna luz do Paraíso.

Penetrando na igreja com esperança das alegrias celestes

Como eu gostaria que esta ficha fosse publicada, para aos poucos as pessoas adquirirem o hábito de se recordar destas maravilhas sempre que entrassem numa catedral.

Ao penetrar no edifício sagrado deveríamos ter a seguinte convicção: “Agora transponho este pórtico; um dia penetrarei pelas portas do Céu, onde poderei ver os Profetas e os Doutores, tais como aqui os vejo representados nessas imagens de pedra. Lá serei inundado pela luz de Deus, assim como agora me banha esta luz que penetra por todos os lados deste templo santo”.

O fato de entrar numa igreja deve aumentar em nós a alegria e a esperança do grande triunfo que teremos no Céu. Quanto mais nesta Terra nos sintamos opressos, perseguidos ou odiados, tanto mais devemos voltar nossos olhos ao Céu e ansiar por ele. Lá, todas as misérias deverão acabar, cedendo lugar à perfeita alegria. No Céu não apenas gozaremos de todas as alegrias possíveis, mas também teremos algo indispensável para a perfeita alegria: a noção de que ela nunca acabará.

Se considerarmos uma pessoa no Céu, radiante de felicidade, à qual alguém prevenisse de que ela corre o risco de, passados alguns milhares de anos, perder tal felicidade, tendo de voltar à Terra, essa pessoa passaria estes milhares de anos com uma sombra de infelicidade, porque no Céu — tão mais deleitável do que a Terra —, a simples ideia de deixá-lo macularia a felicidade que nele se goza. Pois, quanto maior é o bem que se tem, tanto maior é o desejo de conservá-lo. Portanto, é elemento essencial à alegria celeste que ela seja eterna.

Este gáudio eterno espera a todos quanto forem fiéis nesta vida. No Paraíso Celeste, ao lado dos bem-aventurados, estaremos imersos num mar de felicidade, constituído antes de tudo pela contemplação de Deus face a face.

Esta é a esperança que devemos ter ao entrarmos no recinto sagrado de uma catedral.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 4/3/1974)

1) Marcel Aubert (1884 – 1962), historiador francês. Entre suas principais obras destacam-se: La Cathédrale de Senlis e La Catedral de Notre-Dame de Paris.
2) Não possuímos a citação exata da ficha usada por Dr. Plinio nessa ocasião.

Modalidades de sofrimento

Os sofrimentos da alma, por serem os mais penosos, podem levar a pessoa a buscar refúgio na irrealidade que, ao invés de aliviar os padecimentos, agrava-os, tornando o ser humano escravo de suas próprias mentiras.

A respeito do sofrimento da alma haveria ainda algo a acrescentar e que é o seguinte:
Sendo esta Terra um vale de lágrimas, a vida humana passa-se de maneira a fazer o homem sofrer tanto do ponto de vista físico, material, como do espiritual, conforme as várias formas de sofrimento de que tratei.

Dores causadas pela realidade e pela irrealidade

Na existência do homem o jogo de seus anseios, a finalidade a que ele se propõe ou para a qual Deus o destina — na medida em que ele conhece, segue, deseja ou não essa finalidade — fazem com que, para todo ser humano, viver acabe sendo uma batalha terrível.

Porque há uma irremediável desconexão entre o que ele quereria como satisfação, como prazeres de alma, inclusive legítimos — não estou me referindo apenas aos ilegítimos —, e aquilo que de fato a vida lhe dará. E ele tem que sorver o cálice duríssimo na vida que é o enigma de cada homem.

Adivinhar isso em outro homem é extraordinariamente difícil. E, em geral, o homem carrega esse seu problema de tal maneira que os outros imaginam que ele tenha todos os problemas, menos aquele que realmente tem. Quer dizer, ele carrega isso no isolamento.

Essa é propriamente uma dor de alma e não do corpo. A dor do corpo pode aumentar a da alma. É muito pior ter aborrecimento acrescido de uma dor ciática, do que ter só o aborrecimento. A dor ciática pode agravar muito. Mas, de fato, o aborrecimento é tanto mais, que a dor ciática não é nada em comparação com ele.

Nessa dor de alma entram os sofrimentos que a vida impõe por causa da realidade, e depois as dores que vêm para o homem por motivo da irrealidade.

Quando o homem não quer ir para onde Deus deseja, ele se põe a fazer imagens erradas das coisas e forma uma ideia irreal da vida. E ruma para uma meta que não é aquela para a qual ele deveria caminhar, e que não é realmente a dele. E se faz uma espécie de vida de mentira dentro dele e em torno dele, que o atormenta enormemente mais do que a realidade que ele seguiria, cheia de contradições, de absurdos, de fricções, etc. Mas, de outro lado, ele se convence cada vez mais de que ele não aguenta esta vida tão dura, a não ser carregando as mentiras. As mentiras que são uma causa potentíssima do sofrimento, ele julga que, se não as carregar, não suporta.

Então, ao mesmo tempo ele aguenta a causa do sofrimento e esta lhe produz efeitos pelos quais ele se julga necessariamente preso à causa. Isso forma um círculo vicioso que leva o indivíduo não se sabe até onde.

São Gregório VII: semelhante a um toureiro que investe contra o touro

Uma figura histórica pela qual tenho um respeito enorme é São Gregório VII. O que mais gosto nele é ver como ele viveu dentro da verdade. Isso é também assim nos outros Santos, mas nele esta característica fica particularmente clara aos meus olhos.

Se ele não visse inteiramente de frente a situação na qual se encontrava, poderia se tapear, levar uma vida mais ou menos cômoda como Papa, e até iludir-se, fazendo várias coisas boas. Mas ele não teria cumprido o seu dever.

Empolga-me e acho uma maravilha vê-lo à maneira de um toureiro que entra diretamente na arena e faz aquele lance com a capa e a espada por cima do touro, como a dizer:

“O caso que eu tenho é um só: com o Império(1). O próprio assunto dos sarracenos se resolverá se eu solucionar o caso do Império. Como seria agradável se eu pudesse combater os meus inimigos ostensivos. Tenho inimigos pendurados em mim e que são os meus filhos. E este meu filho a vários títulos primogênito, o Imperador do Sacro Império Romano-Alemão, está querendo me assassinar! Irei de encontro a ele e sustentarei a batalha. Verei o perigo inteiro como é, e lançarei a ele o contrário do que ele quer, de tal maneira que entre mim e ele não haverá paz possível.”

Vê-se nele um homem que em nada procurou iludir-se, em nada buscou um caminho que não era o seu, mas que olhou de frente.

Ele pediu auxílio para defender-se contra Henrique IV, e depois morreu exilado. Consta que, parafraseando o Salmo que diz: “Amas a justiça e odeias a iniquidade, por isso Deus te consagrou com o óleo da alegria”(2), São Gregório teria afirmado: “Amei a justiça e odiei a iniquidade, por isso morro no exílio!”

É o princípio axiológico(3) quebrado. Mas é um homem que não teve falsas dores de espírito em nada. Viu a coisa de frente!

Nosso Senhor Jesus Cristo fez exatamente isso: foi de encontro aos que O podiam matar e levar a obra d’Ele para a ruína. E Ele os enfrentou, ainda que desse embate saísse a solução anti-axiológica. Nisso estava a axiologia d’Ele.

Exemplo perfeito de amizade: os sete santos fundadores dos Servitas

Façamos agora a relação de tudo isso com almas muito especialmente chamadas. Ou essas almas avançam por cima de sua própria anti axiologia, e com coragem, ou não têm nada feito.

Quer dizer, devem compreender que, em vários episódios de sua vocação, esta vai lhes parecer anti axiológica, e precisam, apesar disso, continuar a avançar de qualquer jeito, mesmo para o absurdo e para a catástrofe, colocando sua confiança em Deus.

A alma que conserva qualquer nostalgia de tal alma irmã, no fundo espera de outra criatura o que ela só pode receber de Deus! Seja no terreno alma irmã homem-mulher, seja no terreno mais inocente, e por isso menos carregado de veneno, amigo a amigo. Não conseguirá! Ou Deus dá, ou não terá…

Para mim, o exemplo perfeito de amizade, que estou me lembrando no momento, é São Filipe Benício, um dos sete santos fundadores da Ordem dos Servos de Maria. Todos eles foram enterrados juntos, e as suas cinzas se misturaram. É uma coisa extraordinária!

As relações entre eles eram realmente admiráveis, mas não nesse sentido de uma alma que encontrou em outra o seu complemento. É algo diferente. É Deus que estava presente numa alma e vendo-Se também presente na outra, formou o amor que o Altíssimo tem a Ele mesmo. É outra coisa.

Esperar encontrar noutra criatura uma espécie de paraíso de contemplação em que a alma tem esse deleite, é inútil. Ou acha ali dentro Deus, então está certo, ou se encontrar apenas outra alma, deparou-se com um blefe. Garrafa vazia… É preciso compreender bem isso.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/11/1983)

1) Dr. Plinio se refere à contenda entre o Papa São Gregório VII e o Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Henrique IV. Esta luta, motivada pela questão sobre se as investiduras eclesiásticas poderiam ser conferidas pelo poder temporal, teve como alguns de seus pontos culminantes a excomunhão do Imperador, sua peregrinação ao castelo de Canossa para pedir perdão ao Papa e a posterior invasão de Roma, por Henrique IV, para tentar remover São Gregório VII e substituí-lo por um antipapa.
2) Sl 45, 8.
3) Termo derivado de “Axiologia”: ramo da Filosofia que estuda os “valores”, isto é, os motivos e as aspirações superiores e universais do homem, as condições e razões que dão rumo à sua existência, para os quais ele tende por insuprimível impulso da sua natureza.

Que mãe dá uma serpente ao filho que lhe pede pão?

Nosso Senhor incitava seus discípulos à oração e à súplica, afirmando: “Qual é o pai a quem o filho pedindo um pão, dá-lhe uma pedra?”

Não se poderia imaginar outra atitude do pai para o filho, senão conceder aquilo que lhe é solicitado. Entretanto, se um pai não nega uma súplica filial, muito menos a negará uma mãe. Qual é a mãe que diante do filho que lhe pede pão, dá-lhe uma serpente? Se uma mulher tomasse esta atitude, não seria digna de ser chamada mãe.

Nossa mãe é Nossa Senhora! Ela é um oceano insondável de excelências morais e modelo de misericórdia inconcebíveis pela mente humana. Por isso deve-se ter a convicção de que se receberá o que se pediu, pois a seu Divino Filho Ela apresenta os pedidos que lhe são feitos. E pedindo, Ela obtêm!

Esplendor do equilíbrio

Interpretando falsamente o princípio de que a virtude está no meio, muitas pessoas chegam a defender os erros mais crassos, contrários à Doutrina Católica.
Dr. Plinio elucida sapiencialmente esse tema, com base na razão e apresentando belíssimos exemplos.

São Francisco de Sales, grande Doutor da Igreja, chegou a identificar o equilíbrio com a virtude, dizendo que a virtude está no meio. Ora, o meio é exatamente o equilíbrio entre dois extremos, a considerar as coisas do ponto de vista geométrico. Assim, se a virtude está no meio, chegamos à conclusão de que a verdade se encontra no equilíbrio. Portanto, não há razão para julgar o equilíbrio como sendo algo insípido, estúpido; nele deve estar a verdadeira sabedoria.

Noção de equilíbrio

Contudo, é preciso ver bem o que nas conotações da palavra “equilíbrio”, na linguagem brasileira, entra de fundamentalmente sem sabor, fazendo com que uma coisa tão eminente como o equilíbrio possa dar uma impressão tão desagradável.

O equilíbrio, afinal, o que é? É uma excelência das coisas por onde elas — nos seus aspectos contrários — se compensam, se harmonizam, de maneira tal que se reúnem em torno de uma nota suprema, a qual abarca uma porção de notas colaterais. Poderíamos dizer, por exemplo, que um edifício, com uma torre no centro e duas alas iguais de uma amplitude harmônica com o tamanho da torre — ou seja, quanto mais alta a torre, mais largas as alas —, tem equilíbrio. Essa ideia de equilíbrio abrange uma grande variedade de aspectos, e nós começamos a entrever através disso, de um modo mais vivencial, quanto o equilíbrio é uma coisa boa.

Entretanto, no Brasil se chama homem equilibrado, não aquele que tem uma ideia ou princípio central, em torno do qual ele traça a circunferência de todos os aspectos possíveis, mas um simplório que não tem nenhuma ideia central; e sempre que é atormentado por dois extremos opostos, o equilibrado se coloca simplesmente no meio-termo, pensando que com isso resolveu as coisas.

Por exemplo, entre um comunista e um fascista, o equilibrado seria um burguês. Entre um indivíduo que quer o divórcio e outro que deseja o amor livre, o equilibrado quereria um divórcio muito evoluído; entre um homem que é favor da alopatia e outro da homeopatia, o equilibrado gostaria de uma mistura sem sentido entre essas duas coisas incompatíveis. E daí para a frente.

Pensamento seletivo, ordenativo, vigoroso

Então, o verdadeiro equilíbrio não é uma mistura ininteligente de coisas incongruentes, mas a força de um pensamento central, com o leque das consequências que em todos os sentidos dele se podem tirar.

Assim, toda beleza é necessariamente equilibrada. Mas há certas formas de pulcritude nas quais o que brilha à primeira vista não é o equilíbrio, mas é quase o desequilíbrio.

Tomem a Catedral de São Basílio, em Moscou, por exemplo, com aquelas torres pequenas — encimadas por cúpulas em forma de cebola — que sobem com uma espécie de ascensão frenética para o céu: a nota daquilo é de um misticismo que parece não dar lugar ao bom senso e à razão. Em substância dá, mas parece que não. É uma nobre e pseudo unilateralidade, no fundo da qual existe um equilíbrio.

Encontraremos, assim, várias formas de beleza. Mas a forma de beleza francesa — sobretudo nos áureos tempos da França, na Catedral de Notre-Dame, por exemplo — é o equilíbrio. Mas é um equilíbrio cheio de gosto, de sabor, de classe, de estilo — não o equilíbrio abobado entre duas opiniões das quais, tratando-se irenisticamente, se obtém o meio-termo “pro bono pacis”(1) —, porque é um pensamento seletivo, ordenativo, forte, vigoroso, que agrupa em torno de si os respectivos elementos, e faz disso propriamente uma maravilha.

O equilíbrio francês cheio de sabores

Temos um exemplo neste panorama que vemos aqui. Eu o considero de uma alta categoria. Onde está a beleza do quadro que contemplamos?

Analisem elemento por elemento. A grama é de um verde-esmeralda que nos nossos trópicos não se encontra. No meio da grama, a coisa mais comum do mundo: um caminho inteiramente reto. Bem no fundo, um castelo.

O que tem esse castelo propriamente de maravilhoso? Na fachada, não se vê uma estátua e quase nenhum ornato. Não se nota no castelo nada que deslumbre. Não é uma construção cara; custa preço alto apenas porque é grande, tem muito tijolo, material com que se faz qualquer casa. Entretanto, eu acho que seria um absurdo não reconhecer a isto a nota do equilíbrio, do maravilhoso. Mas qual é o maravilhoso? É o maravilhoso do equilíbrio, da coisa bem pensada, bem estudada, e feita com categoria: aqui está o esplendor do equilíbrio. E é o equilíbrio francês, cheio de toda espécie de sabores. Observem primeiramente o prédio, depois o resto.

A graça dominando a força

O prédio é composto de uma espécie de torreão central, que não é uma coisa “bojudona”, fazendo assim o papel de um tórax, de um abdômen, perto do qual o resto são duas asinhas. Pelo contrário: é uma coisa fininha, esguia, terminada, para acentuar a ideia do fino, por um teto pontudo. Mais ainda, de um lado e de outro há duas chaminés altas que realçam ainda mais a ideia do pontudo, porque elas terminam em ponta; e no alto uma espécie de campanariozinho — um mirantezinho, uma pequena cúpula — suportado por coluninhas. E essa ponta termina numa janela com uma ponta, tendo do lado duas pontas. Essa parte central do prédio é toda leve, esguia, fininha; mas está de tal maneira no centro, é tão bem pensada, que ela não faz o papel de raquítica, de nenhum modo, em relação aos dois extremos atarracadões e bojudos que se encontram num ponto e no outro.

O governo, a linha “rectrix” do prédio está bem no centro. É a graça dominando a força, Jacó reprimindo Esaú, as coisas pesadas coordenadas em torno da leve.

Não sei se percebem o alto pensamento, a afirmação da superioridade do espírito que há por detrás disso: é o triunfo da graça sobre a força, a faculdade ordenante da inteligência sobre as coisas da matéria.

Alta categoria

Entretanto este contraste entre a parte central e os dois extremos é equilibrado — porque todo contraste equilibrado deve possuir termos intermediários harmônicos — por dois corpos de edifícios iguais, nem tão esguios nem tão bojudos, mas que ficam entre uma coisa e outra, preparando a transição. As fachadas laterais são mais largas que a central, os cimos mais esparramados e não terminam em ponta, mas em cones truncados. No alto, há uma janela só no centro, e três janelas nas partes laterais.

Usa-se nas gerações mais novas uma expressão um pouco popular, mas que às vezes tem uma certa força de significado: “Que coisa bem craniada!” Porque é preciso ter crânio para fazer isso.

Esse castelo não foi feito por bobo, nem para bobo, porque é muito discreto. É como quem diz: “Se tu não me percebes, eu não te digo. Sou para quem tem quilate; diante de mim há mata-burro.” Ou então: “Se tu me julgas banal, eu te julgo trivial. Os eleitos, os seletos venham a mim. Eu sou feito para poucos.”

Vemos que tudo isso é de alta categoria, realizado por cabeça superiormente orientada.

O gênio francês

Nos extremos, observamos a coisa curiosa. Esses corpos de edifícios são atarracadões; não tanto atarracados porque possuem três janelas — porque os laterais também têm —, mas devido ao espaço maior entre as janelas, e, sobretudo, pelo teto pesadão e grandão, que constitui uma tampona. Mas o muito pesadão horrifica o gênio francês, e por causa disso, no meio do pesadão há algumas coisas que o equilibram.

Imaginem que pesadelo seria essa tampa grande se não houvesse essas janelinhas pequenas em cima, redondinhas! Como elas dão um sorriso que compensa a carranca dessa imensidade de ardósia do teto! Por detrás, as chaminezinhas e os campanariozinhos evitam que isto tome a aparência de um calcanhar achatando a ala do castelo. Apesar de tudo, isso é pesadão, a parte intermédia é meio leve, e o centro é levíssimo.

A altivez do castelo está no que ele tem de mais gracioso. É como quem diz: “Forte eu sou, mas, sobretudo, eu me prezo de ser inteligente. Em última análise, eu sou completo, porque tenho tudo. Tenho muita força, mas tanta inteligência que, em mim, a inteligência domina a força. Eu sou equilibrado”.

Isso é um equilíbrio de primeira categoria, é degustação, porque se degusta isso como um prato saboroso! Isso é turismo! Viajar pela Europa quer dizer ir percebendo essas coisas. Não basta ouvir o que um guia fala, mas é preciso ver o que o artista diz, o que o ambiente que inspirou esse artista tinha a sofreguidão de contemplar.

Vemos aqui uma aplicação da noção de equilíbrio. Quando São Francisco de Sales afirma que no meio está a virtude, pensem nesse torreãozinho e encontrarão a explicação. Não é um equilíbrio sensaborão, mas sim cheio de sal; é o gênio francês.

Esse gênio francês, muito discretamente, se faz sentir noutra coisa: é o quadro. O castelo é, talvez, um pouco discreto demais. Então, ele é realçado pela perspectiva: um grande parque. Ele é tão simples nas suas linhas e nos seus enfeites que, se houvesse canteiros com muitas flores e esguichos, ele ficava pobre; então, ele tem um simples, mas esplêndido tapete de esmeralda para lhe servir de apresentação, e arvoredos formando, um pouco longe dele, moldura. Dir-se-ia que ele sai de dentro de um mundo de delícias e de mistérios que essas árvores encobrem; ou a clareza e a lógica cercadas de imponderáveis. Outra forma de equilíbrio. Eu acho isso maravilhoso.

Perceber essas maravilhas é um dos prazeres da vida

Os caçadores! Notem a posição deles! Tenho a impressão de que é uma fotografia tirada espontaneamente, mas a pessoa que fotografou o fez tão bem, que se um encenador devesse colocar esses caçadores numa posição bonita, ele os poria assim. Querem uma coisa mais sem graça do que, por exemplo, todos andando na mesma linha? Estragaria o quadro. Ou um cavaleiro aqui, outro ali, outro lá, outro acolá, etc., seis manchas de vermelho, sem sentido… Aqui não. Há um misto de distância e proximidade, fantasia e ordem dentro da distribuição deles, que faz com que sejam deliciosos de ver.

Observem, por outro lado, o estilo. Os caçadores estão parados, tranquilos, de uma tranquilidade pronta para a ação. E a ideia da efervescência da caçada não é dada pelos homens, mas pela cachorrada: um ferver de cães famintos, dispostos para correr. E os caçadores sólidos, mas elegantes — porque são homens elegantes —, montados em cavalos que não têm nada de espetacular, mas espetacularmente proporcionados ao conjunto. Com toda a distância psíquica(2), os homens se preparam para uma caçada que vai ser feroz, por vales e por montes, tocando cornetas etc.; a “demarragem” é equilibrada.

Não é verdade que para degustar um dos prazeres da vida, que tornam a existência humana digna de ser cristãmente vivida, é preciso perceber essas coisas? Mas perceber com o rumo ao Céu.

Reflexo da Igreja Católica

Esses valores de espírito são assim porque essa civilização foi cristã. Porque há o precioso Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, a graça, o Batismo, a Igreja Católica dentro disso. Isso é, no fundo, um reflexo da Igreja Católica. Se não fossem as virtudes cristãs, isto não teria sido assim.

Então não é um puro gáudio dos olhos, nem da inteligência que se tira daí, mas acima disso é um gáudio superior do espírito, considerando uma ordem transcendente de coisas, onde existe um Deus pessoal, sobrenatural, que nós contemplaremos face a face, e no qual todas as formas desse equilíbrio se realizam de um modo tal que isto é uma imagem do Criador. Mas Deus é tão mais do que isto, que Ele até não é nem um pouco assim. Isto se encontra n’Ele de um modo insondável e incapaz de ser imaginado por qualquer criatura. Assim é a Terra como a bênção de Deus a fez, como a civilização cristã a modelou. Esta é a figura do Céu para o qual nós vamos.

Temos aqui um termo religioso para uma meditação sobre uma coisa profana.

Alguém me diria: “Dr. Plinio, falta um cruzeiro diante desse castelo para ele ter a nota cristã.” Eu responderia: Em todos os lugares onde se queira colocar um cruzeiro, eu exulto. Mas dizer que a coisa fica falha sem cruzeiro, não concordo. O espírito católico está aí até sem o cruzeiro. Esse castelo é católico em si; tal equilíbrio sem a graça não se consegue. É uma tradição constituída por homens que em certo momento receberam a graça e tiveram esses valores. Aqui está o equilíbrio católico.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/5/1969)

1) Do latim: para o bem da paz.
2) Expressão utilizada por Dr. Plinio para significar uma calma fundamental, temperante, que confere ao homem a capacidade de tomar distância dos acontecimentos que o cercam.

Instintos e amor ao maravilhoso

O homem possui instintos nos quais, devido ao pecado original, há algo de desordenado. Para se conseguir a ordenação natural dos instintos é necessária uma espécie de educação e propensão pelo maravilhoso. Essa é propriamente a via pela qual as almas caminham no amor de Deus.

 

Por ser um animal racional, o homem tem dois jogos de instintos: os do corpo e os da alma. Os instintos da alma são muito mais nobres do que os do corpo, embora estes exerçam uma influência sobre aqueles. Basta ver, por exemplo, o instinto de conservação, como ele existe no bicho e no homem.

Os instintos do corpo se conjugam com os da alma

Ao ter notícia de uma coisa que lhe é nociva, o bicho foge ou avança. Isso é muito menos nobre do que faz o homem que conhece por que aquilo é nocivo, e estuda o modo de avançar ou de recuar.

No homem, por causa de nossa natureza espiritual e animal, os instintos do corpo se conjugam com os da alma formando um movimento harmônico, mas composto de elementos diversos. Não é, portanto, como se fosse um só tipo de instinto.

Comecemos por estudar os instintos do corpo para depois analisar o efeito disso nos da alma. Em seguida, consideraremos a relação deles com a temperança e a intemperança.

Conosco passa-se um fenômeno que com os animais não se dá. Por não ter sido atingido pelo pecado original, o animal tem instintos sempre harmônicos. Não se conhece um animal – exceto se estiver louco – que proceda de um modo contrário aos seus instintos. Estes são sempre equilibrados e, quase se diria, mecânicos, enquanto que no homem os instintos são desequilibrados e difíceis.

Tomemos como exemplo, num homem, a tendência ao repouso. Esse instinto existe de maneira diferente nos diversos corpos humanos, de tal maneira a se poder dizer que em cada homem há uma determinada peculiaridade, por onde o modo de repousar nunca se repetiu nem se repetirá em nenhum outro homem, o que corresponde às apetências e, neste sentido, aos instintos de seu corpo, como também, por conexão, aos instintos da alma.

Conheci um indivíduo com uma natureza, por alguns aspectos, tão plácida que ele não se movia durante o sono a noite inteira. Ele me disse ter feito várias experiências de, antes de se deitar, à noite, pegar uma parte do lençol, formar um tufo e segurar na mão. Na manhã seguinte, quando ele acordava, o mesmo tufo estava intacto. Quem o conheceu notava isso muito presente em várias maneiras de ser dele. Enquanto ele dormia, era um instinto animal que estava imperando, exclusivamente. Mas algo disso correspondia à alma, por onde ele levava uma vida muito calma, tranquila, metódica, com modos e gestos pacatos. Vê-se que o corpo tem um certo jogo de instintos diferente, mas condicionado ao da alma.

Repressão ou estímulo a certas apetências

Em função disso, algumas coisas podem causar bem ao instinto do corpo porque o estimulam, e outras por lhe fazerem contrapeso servindo de corretivo. Por exemplo, é possível que um homem exageradamente fogoso, por instinto, seja propenso a frequentar ambientes com penumbras, a tomar muito sorvete, a vestir-se com colarinho bastante largo. Por outro lado, alguém muito indolente pode receber uma “chicotada” tomando determinado tipo de bebida. Assim, para um, o instinto pede a penumbra, para outro, o licor.

Entretanto é possível acontecer que, para corrigir uma carência ou estimular alguma apetência, o instinto induza a pessoa a um exagero, o qual pode levá-la à intemperança, ou já constitua, de si, uma ponta de intemperança.

Posso admitir, por exemplo, que uma pessoa muito débil, obrigada a enfrentar condições de vida difíceis, sinta-se muito estimulada tomando “Cointreau”. Ora, pode-se conceber que um homem, sentindo-se dignificado e mais varonil depois de ter tomado um gole de “Cointreau”, fique viciado nesse licor, a partir disso. Não se trata apenas do bêbado pelo gosto de beber, mas é por uma razão mais complexa, mais delicada: um bom movimento por onde ele procura completar-se no “Cointreau”. Esse bom movimento leva-o a exagerar a dose.

Temos assim, ao contrário do animal, instintos nos quais sempre alguma coisa é desordenada e pede uma repressão ou um estímulo. Por conseguinte, o recurso a determinados agentes para reprimir ou estimular determinadas apetências dá ao homem um deleite no uso desses agentes, que o gosto pode conduzi-lo ao exagero.

Sem dúvida, muitas vezes o indivíduo adquire um vício daquilo que sua natureza não precisa. Por exemplo, numa roda de meninos fica bem fumar, e ele é o único que não fuma. Então, começa a fumar. A partir desse momento, ele se habitua ao deleite proporcionado pelo cigarro, para o qual, até então, não tinha apetência. Trata-se, portanto, de uma pura degustação a que ele se habituou inutilmente por um ato de servidão ao ambiente onde estava. Nesse caso não notamos nada de nobre na origem desse vício.

Contudo, creio que em muitos casos, quando se fala do mero bêbado, talvez se pudesse afirmar a existência de algo razoável na origem da bebedeira; mas, por se ter destemperado e desfeito o elemento razoável, entrou o mal.

Há instintos mais atingidos pelo pecado original

Isso tem o seu efeito prático: se vemos que um homem caiu na intemperança por um motivo originariamente bom, é uma ajuda para ele explicar-lhe o que se passou. Não é, portanto, a pura descompostura: “Seu bêbado, seu cretino, seu nojento!”, mas sim um auxílio.

Qual a vantagem dessa ajuda para ele?

Como percebe que nem tudo quanto estão recriminando nele é mau, ele guarda uma espécie de reserva contra a descompostura que está levando, como quem diz: “Vocês não compreendem bem, mas isso é bom por um lado. Logo, não posso aceitar essa descompostura por inteiro.” E por não poder aceitá-la inteiramente, ele toma isso como pretexto para continuar no seu vício.

Quem o ajude, deve tirar-lhe o pretexto dizendo: “Por esse lado, isso seria bom; mas você se desviou e por isso chegou a tal ponto…”

Acontece que em nós, seres humanos, há um ou mais instintos especialmente atingidos pelo pecado original. À medida que o homem peca nesses instintos, vai desequilibrando todos os outros, por via de consequência.

O jogo temperamental do homem é como um móbile

Há uma espécie de ornato de origem chinesa, chamado móbile, que se pendura nos lustres, constituído de um sistema de pequenas alavancas e hastezinhas, feitas com material delicado imitando cristal. Esse adorno é calculado de tal maneira que um vento, batendo num pontinho qualquer desse sistema de alavancas, move todas as hastes e inicia-se uma “dança” sempre diferente da anterior.

O jogo temperamental de um homem é como um móbile. Se em algum ponto ele consentiu que fosse puxado, todas aquelas partes do móbile começam a se mexer. E, por um consentimento a um instinto desordenado, entra a ciranda de uma espécie de desequilíbrio total.

Dizer que, ao contrário, a experiência demonstra haver pessoas equilibradíssimas em certos pontos, mas desequilibradas em outros, não corresponde à realidade. Podem existir alguns pontos menos desequilibrados do que outros; mas, onde se instalou um desequilíbrio, o sistema corrosivo de todos os desequilíbrios começa a estalar. E, à maneira de uma infecção que se instala em um membro, mais cedo ou mais tarde, se não é debelada, acaba gangrenando todo o corpo.

O problema é ter a integridade, eu quase diria, a pureza de não consentir em nada. Porque num ponto onde se consinta num desequilíbrio, todo o mecanismo se altera. Então, começa uma batalha para conservar o equilíbrio aqui, lá, acolá. Seria mais ou menos como um homem puxando um móbile, e eu querendo segurar com a mão todas as outras partes para não se moverem. Não vai! Enquanto estiver um homem mexendo ali, não há mão que segure todas as outras hastes.

Então, ou o indivíduo está num estado em que exerce sobre os instintos uma vigilância completa, ou, mais cedo ou mais tarde, ele começa a rolar para intemperanças progressivas que podem tomar, e muitas vezes tomam, proporções assustadoras.

Equilíbrio implícito dos instintos

Diante dessa descrição a pessoa se sente mais ou menos desconcertada e diz: “Não seguro isso. É desejável segurar e é uma miséria que eu não o faça; reconheço ter culpa em não segurar, mas não me peçam isso porque é um trabalho tão heroico, hercúleo e constante, que não tenho forças.”

Ora, a alma fortemente habituada a considerar as belezas metafísicas, trans-esféricas(1), voltada fortemente para o Absoluto e o sobrenatural tem uma atitude – instintiva também – de oposição aos desequilíbrios. Isso oferece ao indivíduo a possibilidade de não fazer de cada repressão ao instinto uma caçada consciente, mas lhe dá uma atitude de equilíbrio implícito, que é o primeiro equilíbrio diante do primeiro desequilíbrio. Dou um exemplo:

Imagine um homem viajando a bordo de um navio que está balançando muito. Se ele tem seu jogo de instintos bem feito, mesmo estando em pé e conversando com alguém sobre uma notícia no jornal, é só o navio começar a se mover que seu corpo vai fazendo contrapeso sem ele estar pensando nisso.

Nessa situação, vindo um movimento mais forte, o qual lhe exija mais atenção, ele já está muito mais adiantado na repressão ao tombo do que um homem que só se dará conta da sacudida do navio quando quase tiver ido para o chão. Isso porque, neste segundo caso, a tendência dos instintos para o equilíbrio é muito frouxa, está habitualmente como uma trouxa de carga. Resultado: até se mobilizar, ele não aguenta.

Assim, o equilíbrio moral e o psicológico comportam essa posição. Um é o homem dotado de senso do maravilhoso, diante de quem tudo que o desequilibra instintivamente toma essa postura; e ele tem uma prevenção contra o desequilíbrio mais forte e sério, que é uma condição de vitória. Pelo contrário, o homem largado, não voltado para o maravilhoso, tem uma condição prévia de preguiça para se entregar e, portanto, resistirá mal à força do jogo dos instintos.

Outro elemento a considerar – uma coisa muito mais adquirida do que inata – é a boa educação. Ao se tornar instintiva, a boa educação leva o indivíduo a notar logo quando não está agradando e, espontaneamente, tomar uma posição acertada diante da pessoa com quem ele trata para agradá-la. Pelo contrário, quem não tem essa formação, vai desagradando, cometendo gafes, fazendo besteiras, e se lhe disserem:

– Preste atenção no que você disse!

Ele responde:

– Não consigo! Ou trato do tema de que estou falando, ou cuido de suas “bonequices”, do modo de pegar os talheres, etc. Tratar de uma coisa séria e, ao mesmo tempo, manusear com distinção e elegância uma xicarazinha de café ou cortar bem um bife, não faço. Não é possível.

Mas por quê? Porque o jogo dos instintos não foi bem afivelado. Em última análise, porque o gosto do maravilhoso, do transcendental, do absoluto não dominou a alma dele. Se dominar, tudo isso, por um movimento espontâneo, vai tomando posição.

Ordenação natural dos instintos e senso do maravilhoso

Nós deveríamos conhecer o jogo dos nossos próprios instintos a partir da posse habitual, do interesse maior, do gosto pelo maravilhoso.

Quando a alma se dá ao maravilhoso, o efeito próprio dele é fazer voltar a apetência de todos os instintos – que de algum modo se satisfazem no maravilhoso – para esse ponto maravilhoso. De maneira que só naquilo que os instintos têm de baixo é que são incompatíveis com o maravilhoso. Em tudo o mais não são.

Tomem, por exemplo, um menino com o senso do maravilhoso muito desenvolvido e que, tendo recebido objetos feitos de madrepérola, está brincando encantadíssimo. Se alguém quiser puxar com ele uma conversa muito banal sobre mecânica, isso não fará mal à sua alma porque ele está tão voltado para coisas mais altas que poderá ouvir aquela conversa por amabilidade, por afabilidade, e até pôr duas ou três perguntas sobre o assunto, mas seu coração não estará naquilo. Se lhe sugerirem renunciar a brincar com suas madrepérolas para assistir a uma corrida de automóveis, aquela torcida pela velocidade não lhe diz nada, porque ele prefere o gosto de ver as madrepérolas.

Isso porque, ao conhecer algo muito maravilhoso, somos levados a amar, por conexão, ou estar abertos para uma série de outras coisas maravilhosas que não conhecemos. É um universo. Essas maravilhas de tal maneira desdobram nossas apetências harmônica e ordenadamente, que a tendência para as coisas mais baixas decai muito.

É uma ordenação natural dos instintos, mas que vem do amor ao maravilhoso. Essa espécie de educação e propensão pelo maravilhoso, antes de tudo pelo maravilhoso moral, mas também pelo artístico e por todas as formas de maravilhoso, por assim dizer, chumbando o homem no maravilhoso, é propriamente a via pela qual as almas caminham no amor de Deus.                v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/4/1986)

Revista Dr Plinio 240 (Março de 2018)

 

1) Relativo a “transesfera”. Termo criado por Dr. Plinio para significar que, acima das realidades visíveis, existem as invisíveis. As primeiras constituem a esfera, ou seja, o universo material; e as invisíveis, a transesfera.

 

Divina seriedade de Nosso Senhor

Os algozes fizeram terríveis brutalidades contra Nosso Senhor, por ódio à virtude que n’Ele transparecia de modo tão magnífico. Quem chegasse perto do lugar onde Jesus estava sendo flagelado, ouviria lancinantes brados de dor, entretanto, mais harmoniosos e belos  que os sons de qualquer orquestra.

Se considerarmos Nosso Senhor ao longo da sua peregrinação durante os três anos da sua vida pública, de um lado para outro pregando às multidões, quer no primeiro ano  que foi gaudioso, em que a obra d’Ele iniciou-se e mais ou menos encantou todo o povo de Israel; quer no segundo, quando as dificuldades começaram a aparecer; quer no  terceiro, o qual foi dramático, chegando até o Gólgota e o “Eli, Eli lammá sabactâni” (Mt 27, 46) – Meu Deus, Meu Deus, por que Me abandonaste? –; em quaisquer desses  anos, como imaginaríamos Nosso Senhor?

Majestosa e serena tristeza de Nosso Senhor

Andando alegre de um lado para o outro, satisfeito, com a fisionomia contente, comentando despreocupadamente e de modo agitado os aspectos engraçados das coisas? Ou  com um fundo de tristeza amenamente presente na sua personalidade, marcando seus divinos olhares e tudo quanto Ele dizia e fazia, exprimindo-Se aos homens em termos de um tratamento afável, doce, bondoso, mas também com um fundo de tristeza não dramática, nem lancinante, mas habitual, estável – para empregar uma comparação  que não me satisfaz inteiramente, mas que diz algo –, um olhar que tivesse algo de luminoso, resplandecente, de tristonho como o luar?

Sem dúvida, esse olhar assim tristonho, mas resignado, atento, afável, bondoso, exprimiria o fundo da alma d’Ele.

Trata-se de saber por que essa majestosa, serena, imensa, afável tristeza de Nosso Senhor enchia de tal maneira  a alma d’Ele. Começo por me perguntar que relação há entre esse olhar e a seriedade, e concluo ser esta a própria seriedade do Redentor. Não havia outro modo de ser sério. Ora, se era essa a seriedade d’Ele, não deve ser também  essa a nossa seriedade?

Se isso é assim, devemos nos indagar qual a razão pela qual sua tristeza era tão grande quanto a amplidão de suas vistas.

Na divindade d’Ele não podia haver tristeza. Deus é de tal maneira perfeito, excelso, admirável, que n’Ele não cabe consternação. Havia tristeza na humanidade santíssima de Nosso Senhor. Mas essa natureza humana estava ligada hipostaticamente à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, constituindo uma só Pessoa continuamente na visão  direta de Deus, no oceano de suas perfeições e de sua felicidade infinita e imperturbável por todos os séculos dos séculos sem fim.

Logo, essa tristeza não poderia vir de Deus, mas só do Homem. Porque Nosso Senhor veio à Terra como Redentor e se encarnou para nos resgatar, morrendo na Cruz como   Homem-Deus e fazendo, portanto, que um Homem oferecesse um sacrifício infinitamente precioso que perdoasse o pecado original e os pecados posteriores, e abrisse o Céu.

Então, torna-se claro que esse sofrimento só poderia vir do Homem. Como um Ser que era Deus, e de tal maneira participava dessa felicidade infinita do Onipotente, podia ter tanta infelicidade, tanta tristeza a propósito dos homens que são tão menos do que Deus?

Dir-se-ia que seria mais ou menos como se eu – vou falar em termos mundanos – recebesse de repente de herança uma fortuna inestimável, imensa, e no mesmo dia, ao  partir uma fruta, corto um pouquinho o dedo. Aqui está um pequeno incômodo que coincide com uma causa de felicidade extraordinária, mas nem se pensa nele. Se à noite   o dedo estiver molestando, começa-se a dar conta de que nele houve um corte de manhã, porque se pensou o dia inteiro na felicidade e na alegria em ter ganho uma fortuna.

Com a devida reverência aplicada à comparação, poder-se-ia dizer que a tristeza causada pelos homens em Deus seria pequena perto de sua infinita jubilação. Isso se explica  da seguinte maneira: Deus ama os homens com amor infinito, e por causa disso Ele quer ter o amor dos homens. Um amor deseja a paga, a retribuição, e quando não é  retribuído sofre de um padecimento tão profundo, que chegava a penalizar desta maneira o Verbo de Deus encarnado. Ele possuía um conhecimento direto, imediato de  todas as coisas. Olhava para todos os homens e conhecia – nem sei se se pode chamar discernimento dos espíritos – os estados de espírito deles.

Ponto de gravidade em torno do qual todos os homens devem girar

Deus via essa atitude dos homens que era de não O amarem: o povo eleito voltado completamente para as abominações que conhecemos; os outros povos para idolatrias e  pecados que enchiam todo o mundo de então. E Ele se sentia não retribuído no seu amor infinito, que não é o sentimento comum, por exemplo, de um professor que se  dedica muito aos alunos e vê que estes não reconhecem.

É uma coisa muito diferente. Sendo Deus, Ele era infinitamente digno do amor dos homens; e estes, recusando o amor do Redentor, ficavam péssimos, totalmente  recusáveis, porque o ponto de gravidade em torno do qual todos os homens, e cada homem em concreto, devem  girar é Ele, que é infinitamente bom, infinitamente santo, e  em função do qual todos nós devemos fazer gravitar a nossa vida. Ele é o Astro divino, o Sol divino. Nós somos os planetas que satelitizam em torno do Sol, e não olhamos  para Ele, nem queremos olhar. Vendo assim as criaturas que Nosso Senhor ama tanto, chega a causar n’Ele essa tristeza.

É uma tristeza por ver a falta de virtude; dos homens o Criador só quer virtude. O homem pode ter o que quiser, se não possuir virtude, por assim dizer, não interessa a Deus. E se Ele toma posição face ao homem é apenas com desejo de que se torne virtuoso e semelhante a Deus para se amarem. Ele rejeitado, a sua tristeza enche a Terra, mais ou  menos como  a luz do luar cobre de tristeza o céu.

Devemos querer que tudo seja semelhante a Jesus Cristo

Isto é um dos traços da divina seriedade de Nosso Senhor Jesus Cristo. E nós vamos ver que os Apóstolos, os mais chegados a Ele, antes de Pentecostes estavam cheios de  coisas destas.

Prestavam atenção em coisas terrenas, humanas, e tendo entre eles Nosso Senhor Jesus Cristo, levaram um tempo enorme para perceber e reconhecer que Ele era o  Homem-Deus, simplesmente porque não tinham apetência daquelas virtudes, não as amavam, e por isso seu entusiasmo não era ascendente, alpinístico, não escalava os cumes. Mas era um entusiasmo dos charcos, dos pântanos. Por exemplo, quando os Apóstolos caminhavam com Jesus para o Horto das Oliveiras, é possível que Ele os tenha  repreendido, dizendo: “Daqui  a pouco iremos orar e vocês vão dormir, enquanto o Filho de Deus começará a padecer.” Naturalmente, os Apóstolos, ligados a   brincadeiras e coisas semelhantes, dormiram. Depois, o resto nós conhecemos… Vamos transladar isso para nós.

Somos meras criaturas. Não temos, portanto, a união hipostática com Deus, mas fomos batizados e em consequência do Batismo começou a viver em nós a graça, que é uma participação criada na própria vida incriada de Deus. E há alguma coisa que não deixa  de ter vaga semelhança com a união hipostática. Nós somos os templos do Espírito  Santo. Isto posto, a grande preocupação nossa na vida é de notar na Igreja Católica, nos  Santos que Ela gerou, nos seus Institutos, nas páginas luminosas de sua História, aquilo que é santo e, portanto, lembra a Deus, a Nosso Senhor Jesus Cristo, porque nós amamos o que é parecido com Ele. Isso é o mais importante de nossa existência, como para Ele o centro da vida terrena era viver  na união hipostática e querer que os   homens recebessem a graça e O adorassem como Homem-Deus.

E, portanto, a nossa grande alegria – se somos fiéis ao nosso Batismo e coerentes na nossa Fé – deve ser ver que os homens estão amando Nosso Senhor, e que tudo no  mundo se passa de acordo com o Espírito, a Lei d’Ele, como se Jesus estivesse presente. Não queremos para nós outra coisa: que tudo seja semelhante a Ele.

Devemos ter um fundo de seriedade luminosamente triste

Sem dúvida, eu admiro Paris, descontados todos os aspectos mundanos. Porém, se me dessem para escolher entre viver naquela cidade, onde o pecado deixou tantas marcas e o amor de Deus algumas coisas tão maravilhosas – a Catedral de Notre-Dame, por exemplo –, ou numa localidade habitada pelo povo mais vulgar, mais desvalido, mais inculto da Terra, mas onde todos  amassem verdadeira e sinceramente a Deus, eu preferiria viver naquele povo, e sairia de Paris voando.

Porque, embora Paris seja tudo quanto é, e Notre-Dame signifique tanto para mim, prefiro ver almas e não apenas pedras, inteiramente segundo Deus, que amam o Criador em espírito e verdade, e tratando com elas tenho a impressão fundada e viva de discernir o Espírito Santo presente em cada uma. Por isso, quero ir para lá ainda que as  pessoas só usem uns tecidos grosseiros feitos de palmeira, comam apenas uns peixes ordinários que se pescam no rio local. Se nelas estais Vós, meu Senhor e meu Deus, é lá que eu quero estar!

Não sei se cada um de nós teria a mesma reação, e se faz assim de Deus o sol de sua própria seriedade.

Mas o fato concreto é que na alma do católico deve haver um fundo de seriedade, vaga e luminosamente triste pelas condições abjetas, altamente censuráveis do mundo  contemporâneo. Nós devemos nos sentir censurados, rejeitados, detesta odiados, e – oh, dor! – não porque é nossa pessoa, que pouco vale, mas porque rejeitam o Espírito  Santo que está em nós, recusam em nós a condição de membros do Corpo Místico de Cristo, que é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Se conhecessem os meus defeitos e me rejeitassem por essa causa eu os amaria, mas eles têm conhecimento de minhas qualidades e me recusam; então eu me sinto rejeitado no que é mais internamente  meu, naquilo por onde sou mais eu e pertenço a Nosso Senhor como ente batizado e que tem Fé, membro da Santa Igreja Católica. E então há em mim um fundo constante de tristeza, de seriedade triste.

Em Jesus, a seriedade não excluía, por exemplo, que Ele fosse de vez em quando à casa de Lázaro para tomar alguns dias de sossego, de tranquilidade, de bem-estar, de sentir o amor por Ele. Santa Maria Madalena O adorava, como sabemos, Marta O queria, Lázaro O amava e isso Lhe enchia a alma. Mas por toda parte, assim como a lua acompanha os passos do homem que anda pela noite, via-se a tristeza enluarada: “Os homens não querem a Mim porque não amam a Deus. Isto é uma espada que Me vara de alto a baixo.”

Gemidos de Jesus por causa de nossa indiferença

Se nós, uns nos outros, procurássemos apenas o amor de Deus e nos regozijássemos sempre, pensando nesse amor que há em nós, e quando notássemos em alguém uma falta de amor de Deus nos entristecêssemos, como Nosso Senhor, de uma tristeza cheia de amor, de vontade de extravasar- se para aquele a fim de trazê-a Deus; se assim   agíssemos, como a atmosfera em nossas Sedes seria, então, mais próxima do ideal de seriedade que tomamos quando nós participamos de um Retiro, como compreenderíamos mais completamente o que é a seriedade!

Não é porque desejamos que queiram odiassem, eu lhes oscularia as mãos e os pés e lhes agradeceria, porque  execro os meus defeitos. Mas essa gente, que tem a proibição de escrever o meu nome num jornal, odeia o que eu tenho de bom; isso me faz sofrer, me indigna. Não por mim, mas por Nosso Senhor, porque é Ele que estão rejeitando.

Aqui está a matéria-prima, a tintura- mãe de nossa seriedade. Entrando agora na Semana Santa,  contemplaremos as brutalidades, a injustiça, a crueldade que tiveram para com Ele, e teremos presente o tempo inteiro que fizeram isso por ódio à virtude que em Nosso  Senhor transparecia de um modo tão magnífico.

De maneira que, por exemplo, se algumas pessoas chegassem perto do lugar onde Jesus estava sendo flagelado, ouviram lancinantes gritos de dor d’Ele. Mas esses gritos eram mais  harmoniosos e mais bonitos que os sons de qualquer orquestra, mais atraentes que as exclamações de qualquer orador, por mais famoso que fosse.

Ele naquela púrpura de seu sangue, jorrando sobre todo o seu Corpo sagrado, era mais majestoso do que um rei na púrpura de seu manto real. Os carrascos viam isso e O  flagelavam porque queriam a vulgaridade, a indecência, a imoralidade. Então mais flagelavam, e Jesus gemia. Gemia por seu Corpo sagrado – um homem geme quando  sente isso –, porém muito mais por causa das almas tão ruins que O açoitavam, como Ele via o que aconteceria até o fim dos séculos.

Nosso Senhor nos olharia passando a  Semana Santa indiferentes aos gemidos, às dores d’Ele, e diria: “Até vós, a quem Eu chamei para um amor especial? Vós ouvis os meus gemidos, Me contemplais coroado de espinhos, como em outros episódios da minha Paixão, e também sois indiferentes!” E Jesus dando brados e gemidos por causa de nossa indiferença.

Maria Santíssima, fixai em mim as chagas do Crucificado!

Pensem na tristeza de Nossa Senhora diante disso. Provavelmente Ela sofria porque tinha algum conhecimento do que se passava com Jesus. Em suas santas intuições,  contemplando cada brado, cada gemido d’Ele, cada pedaço de carne que os açoites arrancavam e jogavam no chão – a união hipostática continuava com aqueles pedaços de  carne –, Ela, completamente transida de dor, sabia como seria a nossa Semana Santa. Quantas vezes, no lugar onde deveria estar o amor a Ele está o amor a outras coisas, ou quiçá a outras pessoas. Para pegar exemplos que não sejam amizades e afetos de si pecaminosos, suponhamos um amigo de quem gostamos porque é engraçado; de outro  porque é prestigioso e nos prestigia; de um terceiro porque nos admira. São essas as razões pelas quais se deve gostar dos outros, ou é porque eles se parecem com Nosso Senhor?

São Tiago era, por uma razão natural de parentesco intencionada por Deus, muito parecido com Nosso Senhor. De maneira que quando os algozes tiveram medo de errar na escolha e pediram para Judas indicar quem era, ele disse: “Aquele que eu oscular, esse é o Homem” (cf. Mt 26, 48).

Por isso, após a morte de Nosso Senhor havia quem percorresse distâncias enormes para ver o Apóstolo que se parecia com o Redentor. Ora, nós temos a Ele presente na  Sagrada Eucaristia… É Semana Santa. O que fazemos? O que isso arranca de nossas almas? Nós rezamos a Nossa Senhora pedindo- Lhe que ponha em nós as disposições de  alma d’Ela para vivermos a Semana Santa como deveríamos viver?

Há um hino da Liturgia que diz: “Sancta Mater, istud agas, crucifixi fige plagas” – Santa Mãe, fazei isso, prendei em mim as chagas do Crucificado. Isso nós deveríamos  afirmar durante  a Semana Santa. E quando chegar as três horas da tarde de Sexta-Feira Santa e adorarmos a Nosso Senhor na Santa Cruz, pensemos na seriedade e  procuremos sentir fixas em nós as chagas do Divino Redentor. Então peçamos a Nossa Senhora que faça de nós homens que vivam da tristeza de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/3/1988)

Revista Dr Plinio 240 (Março de 2018)

 

 

São Romão, doçura e força de oração

Pregar apenas a misericórdia e silenciar a justiça é tão errado quanto fazer o contrário, pois ambas as virtudes são necessárias para as almas. Dois irmãos santos, Romão e Lupicino, nos deram significativo exemplo de como a justiça e a misericórdia se harmonizam.

 

Em 28 de fevereiro, comemora-se a festa de São Romão, abade. A ficha biográfica que irei comentar é tirada do Pe. Édouard Daras, “Les vies des Saints”(1).

Chuvas de pedras cortantes provocadas pelo demônio

São Romão, nascido em 399 na Borgonha, foi fundador de um famoso convento na região do Franco Condado. Desde jovem retirou-se para a solidão, sendo mais tarde seguido por seu irmão, São Lupicino. Conta-se que levavam uma vida que consideravam de paz e felicidade, quando o demônio resolveu interrompê-la. Cada vez que se punham de joelhos para rezar, o demônio fazia cair sobre eles uma chuva de pedras cortantes, que os feria e impediam de continuar. Ambos resistiram por algum tempo, mas vendo que nada conseguiam decidiram abandonar o retiro. Ao chegarem a uma aldeia, foram hospedados por uma pobre mulher, que lhes perguntou de onde vinham. Não sem alguma vergonha, narraram toda a verdade.

“Vós deveríeis, disse a mulher, lutar corajosamente contra o demônio e não temer os embustes e ódio daquele que tão frequentemente foi vencido pelos amigos de Deus. Se ele ataca os homens, é por medo de que eles, por suas virtudes, subam ao lugar de onde a perfídia diabólica os fez cair.”

Ao saírem dessa casa, consideraram a sua fraqueza e quão pouco haviam combatido. Voltaram sobre seus passos e, com orações e paciência, venceram o inimigo.

Dois métodos diferentes no trato com as almas

Mais tarde, tendo já fundado numerosos mosteiros, os dois irmãos visitavam essas fundações com frequência. São Lupicino era severíssimo, não perdoando o menor deslize. São Romão, ao contrário, era bem mais misericordioso.

Aconteceu que São Lupicino, visitando um convento na Alemanha, encontrou na cozinha excessiva quantidade de legumes e peixe. Escandalizado com aquilo, fez cozinhar tudo junto para castigo dos monges. A comida saiu tão repugnante que doze religiosos deixaram a casa, não suportando a penitência. São Romão teve uma visão sobre esse acontecimento, e quando Lupicino voltou, disse-lhe:
— Meu irmão, é melhor não visitar as ovelhas do que ir vê-las para dispersá-las.

Resposta de São Lupicino:
— Não tenhais pena, meu caro irmão. Não é preciso purificar o campo do Senhor e separar a palha do bom grão? Os que foram eram doze orgulhosos em quem o Senhor não mais habitava. São Romão concordou. Mas daí em diante chorava tão profundamente, magoado com a partida dos monges, que Deus, atendendo suas preces, reconduziu mais tarde os doze recalcitrantes ao convento. E a ele se apresentaram voluntariamente para fazer penitência.

Num ambiente sereno, surge a provação

Aqui há uma série de fatos interessantes para considerar, e cada um deles, portanto, vai ter um comentário à parte. Em primeiro lugar, nos encontramos em face dessa admirável floração de santos, depois da queda do Império Romano do Ocidente. Vemos aqui dois irmãos que levam uma vida de grande santidade. E aparece esse episódio deles residindo no ermo, sem amolação nenhuma, sem ver nada das coisas da cidade, nem do mundo, numa natureza amena, bucólica, vivendo felizes.

Então podemos imaginar, nas horas de oração, os irmãos ajoelhados bem direitinho, um ao lado do outro — assim é que os representaria uma iluminura —, e rezando a Nossa Senhora que aparece no alto, sorrindo para eles. Esse seria o primeiro ato. É o ato da felicidade eremítica e bucólica desses dois irmãos que vivem numa atmosfera terrena, encimada por um céu parecido com o ar diáfano daqueles céus azuis de Fra Angelico, o qual poderia perfeitamente ter pintado essa cena.

Vem depois a provação. O demônio tem ódio deles e o modo de castigá-los também é muito interessante: a chuva de pedras cortantes. Sobre eles, tão bonzinhos, tão direitinhos, cai uma chuva medonha de pedras cortantes que os molesta. Os irmãos então procuram rezar direito, mas afinal de contas as pedras caem em tal quantidade que eles resolvem sair.

Lição de uma virtuosa mulher

Por fim, surge uma mulher, a qual é, naturalmente, uma boa mulher, que habita no campo, numa choupana. Ela perdeu o marido e tem apenas um filho, que é monge e reside num lugar distante, e de quem, de vez em quando, recebe uma carta; essa mulher é reumática, tem uma perna inchada, mas reza o tempo inteiro e vive só para Deus. Assim poderíamos imaginar a mulher, pois esse era o ambiente pitoresco da época, o modo pelo qual a graça operava. Não é lenda. É o estilo da ação de Deus naquele tempo.

Então a mulher, provada em dores e cheia de sabedoria, recebe os dois. Naturalmente, primeiro oferece a eles alguma coisa para comer. Ajuda a curar alguma ferida provocada pelas pedras. Depois pergunta o que há. Fora está chovendo torrencialmente, eles estão abrigados na casinha da mulher e contam para ela o ocorrido. A mulher suspira, põe os olhos num Crucifixo e diz: “Irmãos, mui errados andais!” E fala a verdade.

Compungidos, eles passam a noite em prece. Na manhã seguinte, voltam para o ermo e vão lutar contra o demônio. São dois cavaleiros, dois guerreiros contra o demônio, que emergem dessa atmosfera azul-claro, rosa-claro, ouro-rutilante, e que a partir desse momento se transformam em lutadores varonis. É a formação deles que assim se enuncia.

Severidade e brandura

Depois se saltam vários anéis intermediários, e eles nos aparecem numa posição pomposa, majestosa. São dois santos veneráveis, cuja fama de santidade reuniu em torno de si vários monges que lhes obedeciam. Eles são patriarcas, provavelmente já de barba branca, mais sábios e mais provados na vida do que aquela mulher, derrotaram os demônios, enfrentaram os adversários, fizeram viagens perigosas passando por lugares onde havia feras, pontes mal construídas, bandidos, tempestades, tudo enfrentaram por causa de Deus Nosso Senhor. Os dois estão no zênite da vida deles. Porém, mais uma vez, um episódio entre eles se dará.

Há certa medida de severidade e de brandura que deve ser utilizada de acordo com o sopro da graça, e com o modo pelo qual Deus Nosso Senhor quer conduzir os espíritos. Existem certos espíritos que só sabem fazer bem por meio da severidade suma, e realizam um bem admirável. Há outros espíritos que, dentro da medida do razoável, quase se diria que estão no extremo oposto: são muito brandos, muito suaves, e fazem bem pela sua brandura e suavidade. Uns imitam mais Nosso Senhor enquanto expulsava os vendilhões do Templo; outros O imitam mais enquanto perdoava Santa Maria Madalena.

De qualquer forma, ei-los que começam a governar esses mosteiros. E um deles, São Lupicino, muito severo, muito duro, vai ao mosteiro e faz o que todos os instintos de minha alma me pediriam para fazer, se estivesse em situação análoga: “Isso aqui não está direito? Está bem, eu vou ensinar.” É reto, rápido, não faz os outros perderem tempo, resolve as coisas diretamente e resolve mesmo. Erradica e põe fora. Está acabado.

Mas exatamente a Igreja é multíplice, e São Romão, o qual tinha o espírito diverso, começa a lamentar o que fez São Lupicino.

Notem a sutileza e o conteúdo teológico interessantíssimo do fato: São Romão começa a lamentar o que realizou São Lupicino e lhe faz uma censura. Este dá uma resposta à sua maneira, esplêndida, e explica tudo. São Romão dá um suspiro e concorda, teve boa-fé. Isso é verdade.

A justiça e a misericórdia se oscularam

Mas a Providência quis que a misericórdia não saísse derrotada. E onde São Lupicino tinha feito bem em expulsar, São Romão fez bem em pedir que os monges voltassem. Este se pôs a chorar. Vê-se, então, o velho com as barbas brancas numa atitude enternecida, pensando naquelas almas, as lágrimas cristalinas de olhos cristalinos que correm ao longo de uma face alva e emaciada, chegam a cair no chão e enternecem o Anjo da Guarda, encontram eco diante de Nossa Senhora, a qual, por sua vez, tem sempre eco diante de Deus. E Maria Santíssima pede pelos monges.

Resultado: o pessoal, que São Lupicino com tão boa vassoura varrera, volta. Mas não regressa como era quando foi varrido. Volta emendado por uma ação excepcional da graça, uma ação que está para além das vias normais da graça; que não é o corretivo de São Lupicino, mas é uma bela superação desse santo. A graça conseguiu a conversão daqueles que a justiça, a tão bom título e tão oportunamente, tinha castigado.

A justiça e a paz se oscularam, diz o Salmo(2). Aqui se poderia dizer que a justiça e a misericórdia se oscularam. E termina assim, num encantador “happy end”, esta ficha.

Que São Romão nos consiga um pouco dessa candura de alma; que no interior de nossas almas haja um pouco desse rosa-claro, desse verde, desse florilégio que é tão extraordinariamente agradável para carregarmos a virtude. E que tenhamos a compreensão dos métodos de São Lupicino, e não apenas a ternura para com os modos de agir de São Romão. Que ambos nos façam parecidos com eles. Que São Lupicino nos dê toda a sua braveza. E São Romão nos conceda sua doçura com sua força de oração; porque, sem sua força de oração, nada faria com sua doçura.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/2/1967)

1) Cf. DARAS, Édouard. Les vies des Saints. Volume II. 7ª edição. Paris: Louis Vivès, 1872. p. 465-471.
2) Cf. Sl 85, 11.

A obediência e o espírito de epopeia

A virtude da obediência faz com que o homem vença a si mesmo. Quem pratica essa virtude na perfeição adquire o espírito de epopeia, pronto a enfrentar os maiores obstáculos.

Temos para comentar uma ficha tirada do livro de Emanuel Dalzon, “La Vie des Saints”, a respeito de São Dositeu.

Conversão a partir de uma terrível ameaça do Inferno

Este santo, cuja vida é pouco conhecida, viveu nos primeiros séculos da Idade Média, sendo um exemplo perfeito de santidade conquistada pela renúncia à própria vontade. Educado de forma mundana, talvez tivesse se desviado do reto caminho se um acontecimento não o levasse à conversão.

Percorrendo um dia a Palestina, viu em Getsêmani um quadro que representava o Inferno. Contemplava-o aterrorizado, quando uma Senhora de surpreendente majestade e beleza lhe apareceu, explicando-lhe o que via. Impressionado com a terrível ameaça do castigo eterno, Dositeu perguntou à desconhecida o que ele deveria fazer para nele não cair.

“É preciso — respondeu a Senhora — fugir do pecado e rezar”. E desapareceu.

O jovem buscou o mosteiro dirigido por São Sérido, um dos mais florescentes da Palestina. O abade entregou o neófito a um de seus melhores religiosos, São Doroteu. Este percebeu logo que o  noviço não fora chamado para acompanhar as austeridades do convento, então decidiu inspirar-lhe o sacrifício completo da vontade.

Começou por ensinar-lhe o jejum gradativamente. Depois, encarregou-o da enfermaria. Nesse trabalho, Dositeu irritava-se às vezes com os enfermos.

Era então tomado de enormes escrúpulos. Ia para a cela chorar, e aí permanecia dias se São Doroteu não aparecesse e o acalmasse. Imediatamente o santo confiava na palavra do diretor e  reiniciava o trabalho, afastando suas dúvidas.

São Doroteu nunca lhe impôs rudes penitências corporais, mas o repreendeu continuamente, humilhava- -o sempre que podia, e o obrigava a renunciar às menores coisas.

Aprendendo a renunciar à própria vontade

Um dia em que Doroteu visitava a enfermaria, o noviço perguntou-lhe: “Estais contente, meu pai, com os leitos dos doentes, em ordem e limpos?”

— É verdade — replicou o religioso — que vós sois bom enfermeiro. Mas não sei se sereis um dia bom religioso. Quando nosso Santo precisava de uma roupa, seu mestre dava-lhe o tecido para fazê-la. Mas quando ele a terminava, obrigava-o a dá-la para um de seus irmãos, e fazer outra para si.

Em certa ocasião, um monge deu a São Dositeu uma faca que ele achou muito boa para seu trabalho na enfermaria. Ao pedir permissão para usá-la, o diretor respondeu: “É assim que colocais  vossa satisfação na posse dessas bagatelas?

Quereis ser senhor de uma faca ou servidor de um Deus? Não vos envergonhais, Dositeu, de fazer de um objeto o senhor de vosso coração?”

E o obrigou a desfazer-se do presente. São Dositeu gostava muito de ler as Escrituras, e sua alma muito reta fazia com que compreendesse trechos muito obscuros. Mesmo assim, quando tinha dúvidas, recorria a seu superior que não perdia ocasião de repreendê-lo rudemente e não responder às suas perguntas. Um dia, em vez de atendê-lo, enviou-o a São Sérido. O abade, já prevenido, olhou o discípulo severamente.

“Não vos compete — disse — ignorante que sois, falar sobre coisas tão elevadas. Refleti antes em vossos pecados e na vida mundana que levastes.” E o despediu com duas bofetadas. E Dositeu,  após essa humilhação, voltou tranquilamente ao seu trabalho.

Após cinco anos de noviciado, o Santo adoeceu gravemente dos pulmões. Recebendo a visita de São Barnassufo, um dos religiosos mais eminentes do convento, como estivesse sofrendo demais, implorou ao visitante:
“Meu pai, ordenai-me que morra, porque não posso mais”.

“Tenha ainda paciência” — respondeu o ancião. Após alguns dias, pediu novamente Dositeu: “Meu pai, não posso mais viver”.

E o religioso respondeu: “Ide então agora em paz, meu caro filho, apresentar- vos ante o trono da Santíssima Trindade”. Então, diz a vida dos Padres do deserto, esse bem-aventurado filho da  obediência adormeceu o sono dos justos, no seio desta bela virtude que fora como sua mãe no caminho da perfeição.

Modo errôneo de escrever hagiografias

Creio que para a grande maioria dos meus ouvintes essa vida deve ser rica em conotações um pouco estranhas. Com efeito, vemos aqui um jovem que olha para um quadro representando o Inferno, e temos a impressão de um rapaz um pouco embasbacado, tímido, que se assusta com qualquer coisa. Vem uma linda Senhora e aparece para ele. Extasiado e perplexo, ele fala com a  Senhora que, em seguida, desaparece. Então, o jovem, todo tímido e fugitivo,  vai correndo para um convento e se mete ali dentro.

Não é um homem que enfrenta a vida. No convento, ele se introduz num casulosinho, numa coisinha, numa vidinha que é a vidinha interna do convento. E vai tratar de doentes.

Então há uma transposição da vida que ele levava para uma vida muito suave, muito tranquila… Toda manhã ele entra na enfermaria, onde os doentes esticados na cama o olham com alegria. Então vai dar papinha para um, remedinho para outro; ele os agrada e todos o agradam também, deixando- o tão contente! Quando acaba o serviço, ele fica esperando o almoço, alegrinho,  satisfeito até à tarde.

Depois trata de mais uns doentinhos e acabou-se. Ele tem, é verdade, uns superiores que assustam um pouco. O episódio das bofetadas, por exemplo, é um pouco desconcertante. Mas também é verdade que aquilo entra um pouco nas regras do jogo, ele sabe que os superiores são muito bons, que fazem aquilo para quebrar sua vontade; ele então ficou com a vontade quebradinha, um  bobinho que a gente leva pela ponta do nariz.

E depois, na hora de morrer, pediu licença para expirar; deram a licença, ele foi para o Céu e está acabado. Orientarei meus comentários no  sentido de mostrar que essas conotações são erradas,  mas não em sua globalidade. A questão é que o modo pelo qual certas hagiografias são redigidas, de fato suscita essas conotações.

Trata-se de uma biografia que não tem nada de errado, exceto o seguinte: o essencial, o essencialíssimo, aquilo que explica todo o resto e lhe confere sua beleza e sua verdadeira grandeza, vem  contado tão de passagem, quase de contrabando, que se o leitor não atinar bem para isso, a perspectiva toda da vida do Santo fica errada.

Todo verdadeiro católico deve ser pessoa de profunda reflexão

Como diz a ficha, embora fosse um rapaz de poucos estudos, São Dositeu se interessava muito pela Sagrada Escritura e considerava os seus mistérios, a ponto de, às vezes, interpretar trechos   muito obscuros com uma sabedoria que espantava, porque mesmo os melhores especialistas na Bíblia não tinham alcançado aquela interpretação.

Aqui está a chave dessa alma e a explicação dessa vida religiosa. O resto é muito bonito, mas o é por causa disto, e encontra sua explicação nisto. Isto ilumina todo o resto. O que isto quer dizer? Interpretar a Sagrada Escritura retamente, penetrando nas suas profundidades,  encontrando um sentido que não ocorre muitas vezes a exegetas, cientistas experimentados, é um carisma. Para que a pessoa tenha esse carisma, é preciso um alto grau da virtude da contemplação.

Quer dizer, que seja um espírito muito profundo, sempre voltado para a cogitação das coisas elevadas e  profundas, e cuja mente está, portanto, sempre posta a considerar tudo quanto faz do modo mais elevado, a não pensar principalmente no que realiza, mas nas grandes verdades eternas e ter o seu espírito fixado nelas.

Quer dizer, devemos antes de tudo ver nele uma pessoa que, depois de ter fixado a sua atenção num quadro representando o Inferno e ter recebido uma visão de Nossa Senhora que o confirmou na virtude do temor de Deus — que São Bento considera o começo de toda sabedoria —, com um ato de reflexão lucidíssima, compreendendo quanto as coisas do mundo são traiçoeiras, quanto elas podem levar o homem para o Inferno, resolveu, por um chamado especial, abster-se de todas as coisas da Terra para levar uma vida de contemplação.

E entrou nesse mosteiro para ser eminente e fundamentalmente um homem de contemplação como, aliás — é preciso que notem bem —, deve ser todo religioso e, acrescento mais, todo bom  católico. A vida interior de que D. Chautard fala é uma vida de contemplação, de reflexão sobre as verdades eternas e sobre as coisas desta Terra à luz das verdades eternas. E todo religioso, todo sacerdote, deveria ser, antes de tudo, um homem deste tipo de reflexão, um homem de contemplação neste sentido da palavra. Todo verdadeiro católico praticante, em qualquer função, deve ser  primeiro um homem de profunda reflexão.

No nosso caso concreto, temos uma vocação diferente da de São Dositeu e, consideradas as circunstâncias, os matizes individuais que possa haver, devemos ter continuamente diante dos olhos as verdades eternas, o problema da Revolução e da Contra-Revolução. Precisamos saber ver a virtude e o pecado; quer dizer, a Lei de Deus e a violação dessa Lei, as vias de Deus e as vias do demônio  em todos os fatos que nos cercam, desde uma nova forma de microfone até uma chuva que cai e o simbolismo que a chuva tem na ordem do universo. Tudo isso devemos considerar em meditações que não são obsessiva e exclusivamente sobre a Revolução e a Contra-Revolução,

mas que, quando se fixam sobre as coisas terrenas, têm como polo natural, espontâneo, harmônico de atração a Revolução e a Contra-Revolução.

Uma vida de altíssima contemplação

São Dositeu era um homem assim. E por causa disto ele, no convento, tratando dos doentes, levava uma vida de altíssima contemplação. E, com certeza, mil e mil vezes, cuidando dos enfermos, ele teve ocasião de refletir a respeito do simbolismo moral das várias doenças, como as enfermidades do corpo simbolizam as da alma; como, de outro lado, a saúde do corpo simboliza a da alma, qual é o valor penitencial da doença  para a formação espiritual do homem; como ela pode enobrecer, formar os caracteres, e mil outras coisas desse gênero; como as almas dos doentes, ou dos monges, se iam santificando; como eles eram chamados, quer os doentes, quer os monges, a irem se transformando para cada vez mais ficarem semelhantes a Deus, obedecendo ao preceito dado por Nosso Senhor Jesus Cristo: “Sede  perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48).

Tudo isso povoava o espírito de São Dositeu. E enquanto ele desempenhava a mais humilde das funções, como dar um remédio, trocar um travesseiro, aprontar uma cama limpa, não devemos  imaginá-lo monoliticamente absorto nisto, mas fazendo  tais trabalhos na perfeição, não desdenhando esta função, mas achando-a muito bela porque era uma obra de misericórdia. Contudo, longe de ficar só nisto, elevava-se aos mais altos graus da cogitação e da meditação, unindo-se com Deus Nosso Senhor.

Então, o verdadeiro perfil moral dele não é o de um bobinho que ao ser agradado fica tão contentinho, mas é o de um espírito recolhido, interior, em cujo olhar se perceberia todo um universo de  pensamento, e que, ao fazer as menores coisas, tinha em vista a grandeza a que essas coisas se dirigem, como elas de algum modo estão ordenadas a algo de mais nobre, de mais nobre, de mais  nobre, até a última perfeição que é Deus Nosso Senhor.

E é assim que devemos imaginar, na sala ou dormitório dos doentes desse convento, nosso Santo passando como uma espécie de turíbulo queimando um incenso perfeitíssimo, que elevasse todas as almas para o Céu. Assim ele deixava um sulco de recolhimento, de piedade, de vontade de sofrer, de generosidade, de conformidade com as intenções de Deus, em todos os doentes.

É desse modo que precisamos considerar este homem. Assim também o devemos observar na hora da obediência. Quando se leem essas histórias, tem-se a impressão de que são historietas. De fato são coisas sublimes. Porque não se trata de um ato isolado, de uma vez na vida de um homem um superior dizer-lhe que faça tal coisa, a qual ele não tem vontade de fazer. Estas são pequenas amostragens de uma vida inteira vivida sob a obediência, e a obediência de superiores sábios, que sabem, por causa disso, ser necessário contrariar a vontade do homem naquilo que o afasta de  Deus.

Creio ter sido São Nicolau de Flue, um santo suíço, que rezava uma jaculatória que outrora comentamos juntos: “Ó meu Deus, dai-me tudo que me une a Vós e tirai tudo que de Vós me separa.”  Esta é a obediência. O superior verdadeiro, que tem a felicidade de mandar no súdito verdadeiro — porque não basta só o superior verdadeiro —, deve a toda hora afastar do súdito as coisas que o separam de Deus, e aproximá-lo das coisas que o unem a Ele.

Despojar-se completamente do apego a si mesmo

Alguém dirá: “Mas, Dr. Plinio, haverá uma bagatela maior do que uma faca? Que importância tem tirar uma faca de um homem?” Tirar facas de um homem a vida inteira, ou coisas à maneira de  faca, de modo que sempre que se percebe que um homem tomou, ou pode vir a tomar, capricho por uma coisa dizer-lhe: — Fulano, venha cá! — Pois não, Padre Superior, o que deseja? — O que você iria fazer agora?

— Tal coisa.
— Está bom, então faça o contrário: se ia subir, desça! Embaixo eu lhe dou instruções sobre o que deve fazer.

O homem fica cinco horas embaixo esperando, sem receber as instruções, mas recolhido e sem resmungar.

Passa o Superior por lá e diz, para prová-lo:
— Oh, é verdade, você está esperando aqui! Não preciso mais de você, faça agora outra coisa.
— Pois não, Padre Superior. E sobe a escada…

Qual é o valor disso? O valor é exatamente a pessoa praticar o seguinte ato contínuo: subir ou descer, esperar ou não esperar, ter a faca ou não ter a faca, são coisas boas na medida em que me unem a Deus. E se a vontade de meu superior, que é a voz de Deus para mim, me manda fazer uma coisa, eu, que não tenho vontade própria, fazendo a de meu superior, me uno a Deus.

Quando um homem destes se levanta de manhã, ele sabe que o dia inteiro lhe vão mandar executar coisas que ele não quer. Mas ele sabe também que é Deus que está querendo.

Porque Deus o chama para o estado sublime de não ter vontade própria. E de, por causa disso, a toda hora conhecer a vontade de Deus. Isso, evidentemente, é uma verdadeira maravilha, porque significa despojar-se completamente do apego a si, e estar vivendo apenas para a vontade de Deus.

Mas, para aguentar isso, é preciso ter um espírito elevadíssimo. Não ver nisso as birras e manias de um superior, mas o desígnio da Providência, e obedecer constantemente, constantemente, constantemente.

Encontramos um exemplo admirável disso em Santa Teresinha do Menino Jesus, com aquela obediência contínua aos superiores, e uma superiora como a Madre Maria de Gonzaga… Para obter  uma licença dela, era preciso agradar o seu gato.

Santa Teresinha não agradava o gato. Mas é para compreenderem quanta injustiça de um superior é preciso aguentar, de vez em quando. Porque não é só o superior santo para o discípulo santo, mas o bonito às vezes é ver o superior não santo ridicularizando o pobre discípulo santo, e com isso crucificando o discípulo santo e levando-o para o Céu.

Há nisso uma trituração de si mesmo e um exercício de energia e de força de vontade, que tempera os homens mais fortes.

Homens capazes de derrotar a Revolução

Alguém me dirá: “Mas, Dr. Plinio, isso tem alguma relação com o espírito de epopeia que o senhor tanto admira?

Não seria muito mais razoável que esse homem fosse fazer apostolado, saísse às ruas, enfrentasse os adversários?” A única coisa razoável seria que  ele fizesse o que Deus lhe mandou fazer. E se Deus lhe deu uma atração santa e verdadeira para a vida contemplativa, é porque Ele queria que aquele homem, na contemplação, ensinasse aos outros, fizesse aos outros o admirável apostolado que é de alguém ver que alguns renunciam a tudo. Não podemos ter ideia do bem que faz a alguém, que é apegado, ver que alguns renunciam palpável e materialmente a tudo, e vivem numa vida  de renúncia contínua. Isso é um verdadeiro guindaste que leva as almas para o Céu!

Tenho notado este fato curioso: vão pessoas conversando pela rua e quando passam em frente a um convento, muitas vezes não olham; e nem dá muito para observar porque o muro é alto; e,  exceto na hora de passar diante da porta, só se vê o alto do prédio.

Mas há uma influência qualquer que parece obrigar todo mundo a falar mais baixo, a andar mais devagar, a se recolher até chegar ao outro lado. Quer dizer, há uma irradiação, uma graça que vai e volta daquilo tudo, e que unge as cercanias. Todas aquelas almas levam uma certa quietude nas paixões agitadas, depois de terem passado ali por perto.

E é apenas a carcaça, o vulto externo de um prédio que abriga uma Ordem religiosa que não se conhece, mas que se têm razões para recear que genericamente sofra dos males de que tantas outras Ordens sofrem.

São Dositeu recebeu esta vocação; portanto, era levado a cumpri-la. Mas — e isto é o que acho capital notarem —, sendo um Santo, é fora de dúvida que se a vontade de Deus exigisse a saída dele do convento para lutar contra o respeito humano, contra o mundo, contra a Revolução — que, aliás, naquele contexto histórico ainda não tinha aparecido — para lutar contra o pecado, para  batalhar de armas na mão, como um cruzado contra os maometanos, ele o faria como os homens mais vigorosos o fazem.

Como tenho certeza de que, se Nossa Senhora tivesse querido que Santa Teresinha saísse do convento para capitanear uma sublime “Chouannerie”, ela não teria estado atrás de Joana d’Arc nos  êxitos militares. Porque a alma capaz de, com profundidade de espírito, com enlevo, dominar-se a si própria, ela é capaz de tudo. E são os homens capazes de tudo que têm capacidade de derrotar a Revolução.

O espírito de epopeia nasce da vitória do homem sobre si

Por que afirmo isto? Porque quando um homem não consegue fazer o que deve, não é porque o obstáculo foi grande, mas porque ele não conseguiu vencer em si os obstáculos proporcionados àquela obra. Tomem um homem que não consegue subir uma montanha: se é um homem normalmente constituído, ele não sobe a montanha porque é alta, mas porque sua preguiça é alta. Porque se ele tem pernas e vontade de subir, sendo normalmente constituído, ele chega ao alto.

Isto se dá também com as batalhas e com as lutas de toda ordem. “Ah! eu fiquei muito acabrunhado e não pude lutar… Sabe como é… o ambiente era muito contrário…” Então me diga direito: você  não lutou, não contra o ambiente, mas contra o respeito humano que estava dentro de você, não lutou contra seu apego, sua vaidade, seu egoísmo. O segredo de sua luta era você, e como não quis lutar contra si, você diz que o adversário foi forte. Não seja hipócrita, e diga pelo menos a verdade: o adversário foi forte porque você foi fraco. A sua fraqueza é a causa de sua derrota.

Se você soubesse vencer-se com o auxílio do sobrenatural, se rezasse — e não rezou por preguiça, por espírito naturalista de que tem culpa —, se confiasse como deveria confiar, se você lutasse  contra si seria tudo completamente diferente.

O espírito de epopeia não se realiza por meio de arrancos: o indivíduo que, de repente, dá a louca e faz uma coisa extraordinária. Isto é epopeia decadente do século XV. O espírito de epopeia nasce da vitória do homem sobre si. E esta vitória o homem alcança por esta via. Deveríamos compreender bem o que é não fazer a vontade própria desde a manhã até a noite, não ter ideias esdrúxulas nem caprichos: “Agora, vou deixar esse serviço para tal hora; deram-me recado pelo telefone, mas eu esqueci porque não anotei; tal serviço deixarei para o dia seguinte…”

Por quê? Vem a resposta com a boca mole, miolo mole, dedo mole: “Ah! É porque eu achei que dava tempo…”

Precisamos estar adestrados à ideia de que devemos fazer sempre e imediatamente o dever inteiro, nunca deixá-lo para depois porque pode não dar tempo, porque pode haver preguiça. Devemos saltar como um leão em cima das obrigações desagradáveis, e fazê-las logo, desde que elas sejam inevitáveis, porque, do contrário, podemos perder o ânimo e a coragem de cumpri-las. Não se adia um trabalho só porque não se teve vontade de fazê-lo; isso é uma concessão para a preguiça. Só se adia um trabalho por causa de oração ou de saúde.

A vontade daquele que dirige os serviços aos quais estamos sujeitos é para nós a vontade de Deus. Ainda que ele esteja errado, Deus quer que obedeçamos a ele. Se compreendêssemos isto, o nosso Instituto Secular nasceria como um lírio magnífico pode nascer de um terreno abençoado. Mas, sem esse espírito de obediência, que é um espírito de luta abrangendo tudo — porque não fazer a  vontade própria é lutar em todos os campos —, estar radicado em nós, não estamos à altura do sublime ideal de um Instituto Secular. Por quê? Porque para isto não estamos ainda prontos.

Muitos me falam em preparação para os castigos prenunciados em Fátima. Se todos fôssemos homens de estar sempre nos perguntando só isto: “Qual é o sentido mais alto daquilo que devemos fazer? No que serve à causa da Revolução e da Contra-Revolução?”

E depois fizéssemos tudo por amor à causa da Contra-Revolução, e por ódio à Revolução. Se compreendêssemos que todo ato de obediência quebra o poder do demônio, lhe arranca as garras,  facilita a descida dos Anjos e transforma o aspecto da Terra, se fôssemos duros conosco no cumprimento da vontade de nossos superiores, estaríamos inteiramente preparados para os  acontecimentos  futuros. Porque o adversário jamais poderá com um punhado de homens inteiramente recolhidos e obedientes, inteiramente sobrenaturais. Esses são os homens invencíveis.

A vida de obediência faz do homem um herói

Montalembert, no prefácio da “Vida de Santa Isabel da Hungria”, conta um fato que já comentei várias vezes: um  daqueles maometanos, preso durante as guerras de Cruzadas e outras, viajando pela França, começou a observar as catedrais com aquelas torres magníficas e altivas e perguntou quem construía  esses edifícios.

Responderam que eram os irmãos  leigos de tal convento. Ele os olhou… eram homens tão humildes… E perguntou: “Mas como podem construir monumentos tão altivos homens de alma tão humilde?”

Esse maometano não tinha acertado com a solução, mas tinha compreendido o problema. A altivez perfeita, a altaneria completa e sacral como a torre de uma catedral ou de um castelo gótico dos grandes estilos, esta altaneria só as almas que  têm essa forma de humildade são capazes dela. Esses são os verdadeiros heróis das verdadeiras epopeias.

Aqui está um dado a mais para compreendermos o espírito de epopeia. Por detrás ou dentro do conceito “tempo inteiro e alma inteira”, há o seguinte elemento: vontade inteira, sem divisão, que não hesita e não vacila; que se entregou uma vez com firmeza e que frutifica na direção em que ela se deu. Esta é a raiz do espírito de epopeia. Quando se tem vontade assim não se recua diante de nada. Aquela frase de Santa Teresinha: “Para o amor nada é impossível”, diz o seguinte: Para uma alma que quer mesmo — porque amar é querer; amor não é sentimento — e a quem Deus ajuda,  nada é impossível.

Isto é o suco da epopeia. São Dositeu praticou a mais absoluta e heroica obediência, o que também é um modo de adquirir a força de vontade própria aos verdadeiros heróis das verdadeiras  epopeias.

Fazer continuamente a vontade de outros, ou seja, dos superiores para obedecer a Deus, é desapegar-se continuamente de manias, fobias, venetas e caprichos, o que supõe uma força de vontade  sobrenatural.

A vitória de um homem contra obstáculos é, principalmente, uma vitória contra si mesmo, ou seja, contra todos esses defeitos. Quando um homem não leva a cabo uma tarefa que Deus quer dele,  não é porque o obstáculo foi grande, nem porque o inimigo foi forte, ele é que foi pequeno.

Conclusão: a vida de obediência faz do homem um herói porque, vencendo-se a si próprio, com o auxílio de Deus, não há o que ele não vença. No dia em que tivermos essa plenitude de orientação   de espírito para a Revolução e a Contra-Revolução, a escravidão a Nossa Senhora, saberemos obedecer como São Dositeu, e estaremos preparados para todas as epopeias.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/2/1972)

Considerações sobre o Brasil Império – I

O reinado de Dom Pedro I, príncipe romântico, impulsivo, tumultuoso e inconstante, inquietou e deslumbrou pacatos brasileiros, desorientou combativos portugueses, deixando um sulco na alma e na formação psicológica do Brasil

 

Ao fazer uma exposição sobre a História do Brasil, se eu fosse começar por mencionar as capitanias, os governadores, pondo num quadro-negro a lista deles todos, datas em que tomaram posse e deixaram seus cargos, a história das bandeiras, era muito pouco provável que despertasse a apetência de meus ouvintes.

O verdadeiro numa formação intelectual e, sobretudo, espiritual é alargar o campo do interesse, de maneira que os ouvintes tenham amplos horizontes. Não ficar tratando como especialista de um tema, por exemplo, de que doença morreu Fernão Dias Pais Leme. Não sou médico, nem contemporâneo dele, não me interessa saber do que ele faleceu, isso não é tema para mim. Mas alargar os horizontes, isto sim é formação.

Dois modos tipicamente brasileiros de interessar-se pela História

Nas anteriores reuniões sobre História do Brasil fui jogando no ar dados com alguma conexão entre si, mais ou menos como um piloto a bordo de um navio que, entrando num porto, vai atirando sondas para saber por onde sua embarcação deve rumar. Fui lançando sondas para ver quais eram os temas que interessavam mais. E acabei percebendo que um assunto que interessa muito ao feitio do nosso povo e, aliás, corresponde à mentalidade e ao ambiente brasileiro diz respeito à seguinte temática:

Cada chefe de Estado que passa é uma figura; ele governa e pode-se fazer a história do seu governo. O governo dele é o conjunto de atos de caráter político, diplomático, econômico, administrativo com os quais ele dirigiu o Estado brasileiro durante certo período, seja um monarca, seja um presidente da República, seja um ditador. Esta é uma faixa na qual se pode estudar a História de um povo.

Mas há outra faixa que me parece muito mais brasileira. Um chefe de Estado consegue ou não projetar a sua figura aos olhos do povo, de maneira a ser uma personalidade que marque por sua presença a vida psicológica, intelectual, afetiva do povo. Se ele consegue isto, o período de governo dele é uma era na História. E quando ele sai, o colorido da História muda.

Tem pouco a ver com a diplomacia, as finanças, a guerra e tudo mais. É a apresentação e a ação que toda pessoa exerce sobre outra quando estão juntas.

Tomem dois homens num gabinete dentário, por exemplo, esperando a hora de serem atendidos. Eles não se conhecem, olham-se vagamente e um não se interessa pelo outro, se rejeitam. Dir-se-á que não exerceram influência um sobre o outro. Não é verdade. Naquela mútua rejeição cada um afirmou alguma coisa de si que o outro recusa. E naquilo eles se acentuam em alguma coisa.

Todo contato humano exerce uma influência afirmativa ou negativa. Mesmo quando essa influência é neutra, ou seja, fecha o guichê, ainda aí há uma afirmação.

Dom Pedro I, um verdadeiro herói de romance

Um chefe de Estado tem sua presença muito mais realçada do que um particular. Então, pergunta-se: essa presença não exerce um efeito sobre toda a nação? Exerce. Qual foi o efeito pessoal de Dom Pedro I? E o de Dom Pedro II? Como eram eles? Como o Brasil os recebeu? Como foram os primeiros presidentes da República Velha? São temas de que se poderia eventualmente tratar. Parece-me que nesta faixa interessaria muito mais do que o estudo de finanças, por exemplo. Então, vamos expor um pouco sobre isso.

Dom Pedro I era um príncipe romântico por excelência. A Europa estava sob o signo do romantismo, do qual fazia parte uma sentimentalidade opulenta, ligada a um gosto pela aventura e a uma certa ponta de heroísmo pessoal. Sem isso não se era um verdadeiro herói de romance.

Modelado pela época, Dom Pedro I foi um verdadeiro herói de romance. Os heróis de romance têm muito de romance e pouco de herói. Eles não merecem ser chamados heróis, a não ser num certo sentido da palavra, porque aquilo não é heroísmo. Satisfazer seus impulsos não é heroísmo. Dirigi-los segundo a Lei de Deus, isso é o heroísmo!

Ele era um homem eminentemente impulsivo, e toda a sua vida, que poderia ter sido uma série de êxitos brilhantes, foi uma sucessão de fracassos. Porém, esses fracassos foram brilhantes, porque ele conduzia suas derrocadas com a virtuosidade de um herói de teatro. Essa teatralidade fez dele uma pessoa que inquietou os pacatos brasileiros, mas um pouco os deslumbrou. Agitou os portugueses de então – pouco pacatos e muito combativos –, mas os desorientou. Assim, ele marcou a fundo as duas nações.

Dom Pedro I era um homem, em certo sentido da palavra, brilhante. Muito vistoso, com muita vitalidade, tinha um todo verdadeiramente aristocrático que ele conduzia com ideias democráticas e acessos de absolutismo, dependendo da veneta dele. Ele era fundamentalmente “veneteiro”.

Uma “Commonwealth” luso-brasileira

O que teria sido o êxito de Dom Pedro I? Se considerarmos o assunto do ponto de vista meramente da ambição pessoal, na situação em que ele estava como homem ambicioso, o que poderia ter feito?

Ele declarou a independência do Brasil e o fato ficou consumado. A partir desse momento ele rachou os Estados do pai dele, que eram muito amplos e compreendiam: Angola, Moçambique, Guiné e outras possessões na Índia, o que constituía um império muito vasto. Mas a maior esmeralda ou rubi desse império caiu da coroa no momento em que o Brasil se separou de Portugal.

Com efeito, quando se separou, o Brasil deixou de ser colônia para se tornar reino unido a Portugal. O que vem a ser um reino unido?

Antigamente, os reis de Portugal recebiam este título: Rei de Portugal e dos Algarves. Algarves é a parte sul de Portugal, assim chamada por causa do sentido de uma palavra moura “algaribe”, que designava terras onde habitavam mouros. Como a dinastia portuguesa conquistou os Algarves para Portugal, o monarca ficou sendo Rei de Portugal e dos Algarves. O Algarve não ficou uma colônia, mas um reino bem menor do que Portugal, com suas leis, seus costumes próprios, como hoje em dia são a Inglaterra e a Escócia. A Escócia não é uma colônia da Inglaterra, é um reino irmão geminado com ela, o qual tem seus hábitos, estilos, sua autonomia, embora constitua um todo com a Inglaterra.

O Rei de Portugal, Dom João VI, tinha declarado o Brasil reino unido a Portugal. Esse reino foi separado por Dom Pedro I e declarado Império. Mas não estava dito que o imperador do novo Império não pudesse herdar a coroa de Portugal; nem que, separando uma monarquia da outra, Dom Pedro I não pudesse herdar a velha monarquia e reconduzir à união. A meu ver, se ele olhasse para sua ambição pessoal, a jogada inteligente dele seria levar as coisas de maneira a sossegar os brasileiros quanto à animosidade deles contra os portugueses. Assim, quando morresse Dom João VI, Dom Pedro I deveria tentar reunir os dois reinos.

Nessas circunstâncias, ele teria uma linda tarefa para executar que corresponde a um problema muito bonito a resolver. O mundo português do lado de lá do Atlântico tem o pequeno peso de uma economia metropolitana e de um território também pequenos, mas o peso enorme de uma História gloriosa, de uma longa tradição, de uma ligação afetiva muito grande com o Brasil, além do peso considerável de todo o império colonial que Portugal ainda possuía, e com o qual o Brasil perdeu o nexo quando se tornou independente. Não seria inteligente ter proposto aos brasileiros e aos portugueses uma “Common­wealth”, à maneira da Inglaterra, com todos esses Estados? Era evidente que o Brasil ficaria tão grande que, em certo momento, não seria mais governável a partir de Lisboa.

É como o Canadá e a Inglaterra. O Canadá não é governável a partir da Inglaterra. Os ingleses tiveram o bom senso de ir dando uma certa autonomia ao Canadá, para não pesar demais num cetro que acabaria se quebrando. Fizeram um regime um pouco parecido com a velha monarquia austro-húngara, em que os imperadores da Áustria eram reis da Hungria, da Checoslováquia, duques de tal e tal lugar na atual Iugoslávia. Tinham todas essas coroas e iam tocando essa política juntos.

Fracassos de Dom Pedro I

Os reis de Portugal tinham pensado em transferir a sede da monarquia portuguesa para o Pará e fazer uma monarquia amazônica, a pouca distância de Lisboa, portanto governável meio de Lisboa e meio do Pará e, através deste, exercer sua influência sobre todo o Brasil. A meu ver – se consultasse a ambição dele – Dom Pedro I deveria ter dirigido sua política no sentido de constituir uma monarquia bipolar: Pará-Lisboa. E quando os meios de comunicação fossem mais rápidos, passar o governo ao Rio de Janeiro. Mas esperar e deixar maturar a história. Ele não fez isso. Chegou ao Brasil, brigou com os brasileiros, foi para Portugal, abriu uma questão e brigou com os portugueses. Acabou morrendo prematuramente tuberculoso em Portugal, vítima da doença de que os heróis de romance achavam bonito morrer.

Como se deu isso? Ele declarou a independência, foi coroado e entronizado como Imperador do Brasil. Aliás, a coroa dele é bonita e está no Museu de Petrópolis.

Ele recebeu uma monarquia absoluta, como vigorava em Portugal. Entretanto, começou um movimento para transformá-la em monarquia parlamentar, com a convocação de um Parlamento e uma Constituição que limitasse os poderes dele.

O que fez Dom Pedro I? Disse que sim, mas com uma condição: a Constituição seria concedida por ele, que inauguraria o Parlamento. Mas quando ele quisesse fecharia o Parlamento e revogaria a Constituição.

Compreende-se que essa hipótese de nenhum modo agradaria os liberais, pois aquela era uma liberdade condicional. Na hora em que o Imperador franzisse a sobrancelha, cessaria a liberdade. Disseram-lhe, então, que não aceitavam, e saiu daí uma tensão medonha que acabou dando em sua partida para Portugal, porque ele não podia mais governar o Brasil.

Guerra entre absolutistas e liberais

Dom Pedro I embarcou num navio para Portugal com a sua segunda esposa, Dona Amélia de Leuchtenberg, e com a filha que ele tivera da Marquesa de Santos, a Duquesa de Goiás.

Chegando a Portugal, encontrou a seguinte situação: Dom Miguel, irmão mais novo de Dom Pedro I, tinha se candidatado ao trono português. Morreu Dom João VI, Dom Pedro I tornara-se Imperador do Brasil e se descolara de Portugal. Logo, argumentava Dom Miguel, uma vez que ele traíra a nação, separando dela uma parte, não tinha mais direito a ser Rei de Portugal. E afirmava: “O rei sou eu!” Dom Pedro I dizia o contrário: “Eu não renunciei, e agora que deixei o Brasil quero governar aqui em Portugal!”

A isso somava-se uma complicação de caráter ideológico: também os monarquistas portugueses estavam divididos pela mesma questão que dividira as opiniões no Brasil. Aliás, era a grande questão daquele tempo: saber se uma monarquia deveria ser absoluta, à maneira do “Ancien Régime”, ou parlamentar, como vigorou após a Revolução Francesa.

Os partidários de Dom Miguel eram monarquistas absolutistas, enquanto os de Dom Pedro I eram a favor da monarquia parlamentar. Ele que no Brasil tinha sustentado o princípio da monarquia absoluta, com o direito de fechar o Parlamento quando quisesse, em Portugal chefiou o parido liberal.

A guerra entre esses dois partidos dividiu Portugal a fundo. Quase todas as boas famílias de Portugal tiveram antepassados lutando ou do lado dos “miguelistas”, ou de Dom Pedro I, ou de sua filha, Dona Maria da Glória, a quem ele deixou os direitos quando morreu.

Morto Dom Pedro I, sua imagem apagou-se na recordação dos brasileiros como fato político, mas permaneceu como fato lendário-histórico. E ficou como a de um príncipe tumultuoso e inconstante.

Muito curiosamente veio parar em mãos de minha família uma espada pertencente aos partidários de Dona Maria da Glória, filha de Dom Pedro I. Era uma espada em forma ligeiramente curva à maneira das espadas turcas, em cuja copa estava esculpida em marfim uma cabeça de turco, com turbante e tudo. Na espada vinham gravados os dizeres: “Viva Dona Maria I”. Era, portanto, uma arma com a qual tinha combatido algum homem graduado, provavelmente nobre – a julgar pelo tipo da espada –, a serviço de Dona Maria I. Quer dizer, a favor da causa constitucionalista.

Infelizmente, quando se dividiram os bens de minha família, isso ficou com outro ramo e não sei que fim levou. Assim, não pude reter essa espada que era uma curiosidade.

Como o voo aloucado de uma arara

Apesar de tudo, há alguns lances brilhantes da vida de Dom Pedro I, como o casamento dele com a Princesa Leopoldina d’Áustria, a Proclamação da Independência do Brasil. Além disso, o fato de ele ser um homem cheio de repentes e aventuras, e o próprio caso da Marquesa de Santos, deu um certo colorido à sua vida – um colorido vivaz, mas nem sempre limpo… Trata-se de uma pessoa cuja biografia se compreende, por exemplo, que uma revista publique porque é uma coisa interessante.

No total, a recordação dos brasileiros é positiva. Vê-se, por exemplo, uma coisa curiosa em Brasília, a cidade moderna projetada por Oscar Niemeyer. Na sala do Presidente da República – que é um recinto inteiramente do estilo da cidade –, atrás da cadeira de despacho dele, colocaram um quadro representando Dom Pedro I como Imperador do Brasil, com todas as suas condecorações.

Pode-se bem compreender o que isto representa no sentir de toda a Nação. Não foi um homem qualquer, mas um chefe de Estado hábil que mandou pendurar o quadro lá, por saber que causava bom efeito em todos os visitantes do exterior e do interior que ali chegassem e encontrassem a recordação daquele homem, com aquele passado.

Imaginem uma arara que voasse de modo meio aloucado, ora quase caindo, ora subindo novamente, mas que durante seu voo nada bonito desse a oportunidade de se ver, em vários aspectos, suas lindas penas coloridas. Este foi o reinado de Dom Pedro I e o sulco que deixou na alma e na formação psicológica do Brasil.

“Meu Imperador e meu filho!”

Dom Pedro I tinha um ministro com quem conviveu numa amizade adversária e numa adversidade amiga: José Bonifácio de Andrada e Silva. Os três irmãos Andrada eram inteligentíssimos e tinham feito excelentes estudos em Coimbra. José Bonifácio viajou por vários países da Europa e se tornou amigo de muitos dos homens que haveriam de trabalhar depois na Revolução Francesa. Mas ele era caracteristicamente um aristocrata brasileiro.

Havia no Brasil duas espécies de aristocracia: uma era a aristocracia dos nobres de Portugal vindos para cá, nomeados pelo rei; outra, nascida da terra. Famílias que vieram para cá, não aristocráticas, que se constituíram aqui, tiveram larga descendência e uma longa série de gerações de proprietários rurais, exercendo seu domínio sobre extensões enormes.

Essas pessoas tomavam um ar, uma tradição e um jeito aristocráticos e descendiam, em geral, dos fundadores do lugar onde viviam. Eram reconhecidas pelas leis coloniais do Brasil como aristocratas, e não menos autênticos do que os portugueses. Era uma aristocracia nascida da terra. Isso se deu largamente no Brasil e de uma delas era José Bonifácio. Homem muito inteligente, cortês e representativo.

Com a partida de Dom Pedro I, os acontecimentos políticos no Brasil poderiam ter transcorrido de tal maneira que com ele fosse exilada para Portugal toda a sua descendência. Entretanto tal não se deu, e isso assegurou a unidade nacional. Porque o Brasil era grande demais para não se fragmentar, como ocorreu com as colônias espanholas quando ficaram independentes. A única coisa que podia torná-lo unido era um chefe de Estado não originário de nenhuma das Províncias brasileiras, mas que pairasse acima do Brasil como um símbolo.

Assim, mantiveram-se aqui os filhos de Dom Pedro I, órfãos de Dona Leopoldina e já então órfãos de pai também, porque este ia para longe, para outra vida com outra esposa. Eles ficavam sem nada… Dom Pedro I deixou como tutor de seus filhos o próprio José Bonifácio, como o mais capaz de educá-los, orientá-los.

Narra-se que, quando Dom Pedro I partiu para Portugal, José Bonifácio foi ao Palácio Imperial tomar contato com as crianças, e apresentaram-lhe, deitado numa almofada, o Imperador Pedro II. Ele tomou com ternura a almofada com o pequeno monarca e disse: “Meu Imperador e meu filho!” O que é uma exclamação muito brasileira…

A reverente compaixão nacional pousou sobre essas crianças órfãs e isoladas, a bem dizer pupilas do País inteiro, e por cuja salvaguarda, educação, saúde, casamento sentia-se responsável a Nação inteira também.

Desabrochava, assim, um vínculo filial e afetivo em torno da figura de Dom Pedro II, de todo o seu reinado e de sua família, constituindo uma espécie de relação familiar que vinha desse berço de onde renascia a monarquia. E fez com que Dom Pedro II, ao longo de sua vida, se tornasse pai e depois avô do Brasil.      v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/11/1985)

Revista Dr Plinio  252 (Março de 2019)