São João Evangelista

Como diz muito bem o Abade Dom Guéranger, “São João Evangelista era parente de Nosso Senhor segundo a carne, e enquanto outros foram Apóstolos e discípulos, ele foi amigo do Filho de Deus”, a quem Jesus tributava um sentimento mais próximo e íntimo que aos demais.

Na última Ceia, São João reclinou-se sobre o peito do Mestre e ouviu as pulsações do Sagrado Coração: naquele instante, pulsações de amor, mas também de dor e angústia, diante dos abismos de sofrimentos que d’Ele se acercavam.

Alma eminentemente virgem e unida a Nosso Senhor, predileta e devota do Sagrado Coração de Jesus, São João mereceu como recompensa um tesouro sem preço: aos pés da Cruz, recebeu por Mãe a própria Mãe do Redentor, Maria Santíssima. Mais do que isto, abaixo d’Ele, Deus não lhe poderia dar…

São João Evangelista

São João Evangelista, discípulo amado do Divino Mestre, devemos pedir que nos alcance uma piedade semelhante à dele, toda imbuída de confiança e de intimidade em relação a Nosso Senhor Jesus Cristo e Nossa Senhora; que nos obtenha, portanto, uma devoção à Santíssima Virgem e um amor a Deus como ele os manifestou, marcados ao mesmo tempo por suprema veneração e por filial ternura.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 27/12/1966)

O olhar de Nosso Senhor Jesus Cristo

Se numa noite sem luar contemplarmos com espírito de Fé o céu estrelado, ele produzirá grande efeito sobre nós. E nos fará lembrar algo infinitamente superior: o olhar do Redentor, no qual há galáxias de santidade, de virtudes que pousam sobre nós como uma abóbada protetora.

 

Quando a pessoa se porta ordenadamente face à ordem do universo, pelo fato de seu próprio senso do ser procurar o maravilhoso nas coisas que constituem o universo que ela procura conhecer, tende ela a ver muito mais os aspectos espirituais do que os materiais nas criaturas que a circundam.

O sentido da vida terrena

Então, no exemplo tantas vezes utilizado da criança que busca o maravilhoso na teteia dourada, vermelha, azul, verde, etc., à medida que a criança vai se desenvolvendo, se ela tem, por exemplo, uma boa mãe, quando esta lhe oferece sorrindo a teteia, em certo momento, ela percebe estar querendo mais bem à mãe do que à teteia. Porque tomando contato, ao mesmo tempo, com dois seres excelentes — um relacionado mais diretamente ao corpo, como a teteia; outro dizendo respeito à alma, que é o carinho da mãe —, por aspirar ao mais maravilhoso, a criança deseja o carinho da mãe.

Ai da mãe que não tem com a criança esse carinho, e que não a ajude a sobrepor esse valor moral ao material! Porque essa é a missão de uma mãe, e ela tem obrigação de cumpri-la.

Mas ai também dos familiares que não criam em torno de seus pequenos um ambiente robusto, suculento e benfazejo de manifestação de qualidades do espírito, no qual a criança vá entendendo desde logo que esse convívio de alma é o fundamental da ordem do universo!

Este é um ponto muito importante, porque as criaturas de uma ordem mais elevada têm uma função normativa e orientadora em relação a todas as inferiores. E os espíritos são o que há de mais alto no universo. Conhecendo-os e estando voltados para eles, conhecemos melhor o que está abaixo.

Então, ser sensível às almas e querer encontrar para si uma ambientação, na qual o nosso senso do ser, do maravilhoso, nosso senso católico se sintam como o navio que atracou no cais e ali está na serenidade, longe das tormentas, este é o sentido da vida terrena.

O ambiente da Igreja do Sagrado Coração de Jesus

A alma encontra este sentido superior da existência quando é tocada pela graça a propósito de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Nossa Senhora e de toda a ordem celeste propriamente dita. Quer dizer, ela “vê” espíritos — sobretudo um valor de alma —, almas de uma categoria, de uma beleza, de uma maravilha tais que ela fica compreendendo ser este o verdadeiro ponto em torno do qual tudo gravita, longe ou fora do qual tudo gira errado, e que a vida está em compreender e desejar isto, ou seja, mais especificamente, o Sagrado Coração de Jesus e o Imaculado Coração de Maria.

As descrições que tenho feito do Sagrado Coração de Jesus, como deve ser visto, amado, dão inteira e linearmente isto. Ele é divinamente superior a qualquer consideração, por um lado. Por outro lado, na sua superioridade, Ele habita em nós mais do que nós mesmos. Ao mesmo tempo em que está no alto de um Céu inatingível por nós, Ele habita no fundo de cada um de nós e tem a possibilidade de tomar contato conosco, fazendo estremecerem cordas de nossas almas que não sabíamos existirem. Assim é Ele!

Para minha sensibilidade — não digo nem um pouco que seja uma coisa obrigatória —, o ambiente da Igreja do Sagrado Coração de Jesus traz isso. Existem na Europa milhares de igrejas de um valor artístico incomparavelmente maior do que o dela, mas há uma coisa qualquer nessa igreja por onde, estando lá, tenho a impressão de que os seus divinos olhos estão pousando sobre mim naquele momento, e me delicio em sentir-me visto e envolvido pela serenidade afetiva, doce e cheia de sabedoria de Nosso Senhor, mas ao mesmo tempo pelo império d’Ele, segundo o qual Jesus aceita quem for assim e rejeita quem não o for. E o pior que pode haver é ser rejeitado por Ele.

Mais alvos do que a neve

Tudo isso junto, formando um panorama que paira por cima. A sensação de grandeza que se tem, às vezes, quando se olha para o céu muito estrelado não é nada em comparação com essa impressão dos olhos de Nosso Senhor Jesus Cristo — que eu imagino castanhos quase claros — pousando sobre nós, olhando-nos a fundo, e nos fazendo entrar nessas imensidades de serenidade, de força e de tudo o mais que há n’Ele, e que são verdadeiramente incomparáveis!

Para quem não tenha haurido isso tão fundamente na alma que, a bem dizer, quase nem precise ir à Igreja do Coração de Jesus, aconselho irem, e procurarem rezar ali, impregnar-se daquilo, porque há qualquer coisa ali que não é propriamente o olhar de Nosso Senhor para São Pedro, mas é um olhar d’Ele. Nessa igreja, todos os mistérios da devoção ao Sagrado Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria vêm à tona.

Por exemplo, quanto nós gostaríamos de nos ver fisicamente olhados por Ele! Tenho a impressão de que “asperges me hyssopo et mundabor, lavabis me et super nivem dealbabor”1; o olhar de Nosso Senhor lavar-me-ia completamente, e eu ficaria mais alvo do que a neve!

Ali, diante do olhar d’Ele, eu diria: “Anima Christi, sanctifica me!” Eu estaria tendo o que desejo, o ideal de minha vida! Aquele olhar meio interrogativo, ligeiramente reprobatório, enormemente amoroso, envolvente e, para dizer mais, encomiástico, no seguinte sentido: não há barreiras, venha; elogio é isto!

E tocando, não o grosso bordão dos sinos de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas o sino leve e alegre de Nossa Senhora, a alegria do perdão. Ela põe junto dessa seriedade infinita de Nosso Senhor Jesus Cristo uma nota qualquer de louçania que fala em perdão, em esperança, em alegria, que a completa admiravelmente. Tudo isso está e tem fundamento n’Ele, mas Nosso Senhor é grande demais para, num olhar só, podermos abarcá-Lo. Então, olha-se para Maria Santíssima, e Ela diz: “Meu filho!” Porque ao cabo de algum tempo aquela imensidade nos faz sentir tão pequenos, tão pequenos, tão pequenos, “petit vermisseau et misérable pécheur”2, que se tem vontade de dizer: “Senhor, não me esmagues de tanto me amar!” Mas entra Ela e dá um repouso, uma distensão, está feito tudo na perfeição.

Portanto, não é que exista n’Ela e não n’Ele; mas é alguma coisa que existe n’Ele e, através d’Ela, se explicita melhor.

Conhecimento por conaturalidade

Esses estados de alma constituem o afeto que devemos procurar na vida. Não tendo esse afeto, não adianta nada, porque nenhuma forma de afeto é autêntica sem isso.

Por exemplo, se alguém me informar: “Fulano de tal quer muito bem a você porque foi educado com você desde pequeno…”, diz-me pouco, porque se nossas almas são diferentes nesse ponto, o que fazer?

Entretanto, alguém que eu tenha conhecido, procedente de Chandernagor, em quem, olhando, percebo esse estado de alma no fundo, minha vontade é de abraçá-lo e dizer:

“Meu irmão ou — conforme a idade — meu filho, há quanto tempo nos esperávamos! Há quanto tempo nos pressentíamos!”

Eu falava há pouco do céu estrelado. Ele produz efeito muito grande, não tem dúvida. Mas se eu, ao contemplar esse céu estrelado, lembrar-me do olhar de Nosso Senhor Jesus Cristo pousando sobre mim, é algo infinitamente superior ao céu estrelado, mas que tem certa analogia, cujo analogado primário é o Céu, a partir do qual, na imensidade de suas virtudes e qualidades, Ele olha para mim. Há n’Ele galáxias de santidade, de virtudes que pousam sobre minha cabeça como uma abóbada protetora!

A partir daí vem o desejo da boa amizade segundo Deus, amar o próximo como a si mesmo por amor de Deus, podendo dar origem a um relacionamento humano que, com tal plenitude, creio eu, talvez não tenha sido tão frequente na própria Idade Média.

Suponho que se a Idade Média tivesse continuado, o Sagrado Coração de Jesus teria revelado essa devoção de qualquer forma. A grande maravilha d’Ele foi perdoar as rupturas da Idade Média e, apesar disso, chamar para essa devoção.

Infelizmente, essa devoção, de modo geral, foi muito rejeitada ou aceita de uma maneira sentimental, completamente errada.

Quando me refiro à sensibilidade em relação ao ambiente da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, às graças, etc., entendo a sensibilidade reta, pela qual o homem tem um conhecimento por conaturalidade.

Em geral, quando se fala de conhecimento, tem-se em vista somente o racional — tão nobre, elevado, digno —, entretanto, julgo necessário frisar o conhecimento adquirido pela sensibilidade para entender que nesse conjunto — razão e sensibilidade — encontra-se a cognição completa. O querer bem é, portanto, ver e entender outrem assim, por conaturalidade. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/2/1986)

Revista Dr Plinio 213 (Dezembro de 2015)

 

1) Do latim: Asperge-me com o hissopo e serei purificado, lava-me e ficarei mais alvo do que a neve.

2) Do francês: vermezinho e miserável pecador.

A hierarquia na criação

Desde um grão de poeira até o mais elevado dos anjos, toda a criação saiu das mãos do Onipotente numa esplêndida harmonia que rege o relacionamento entre as criaturas. Separado desse  conjunto hierárquico, nada é perfeito no universo. Dr. Plinio nos comenta um belo texto de São Tomás de Aquino, o Doutor Angélico.

 

Em anterior exposição tratamos da errônea concepção de um universo como algo fechado, do qual estariam ausentes a intervenção divina e a assistência dos anjos.

Ora, São Tomás condena essa visão, que muitos têm de modo subconsciente, ao discorrer sobre o papel dos espíritos angélicos nos planos de Deus. Pergunta ele se os anjos foram criados antes do  mundo corpóreo, e responde com argumentos tais que deles se espargem centelhas de luz.

O anjo mais elevado se relaciona com a menor coisa na Terra

Assim, afirma: Sobre o assunto, dupla é a opinião dos santos doutores, sendo mais provável a que ensina terem sido os anjos criados simultaneamente com a natureza corpórea. Não  simultaneamente com o homem, porque este foi criado depois da natureza corpórea. A razão:

Pois os anjos fazem parte do universo. Quer dizer, há um só universo e não dois, que nunca se tocam e são alheios um ao outro, como o ensino corrente insinua.

Não constituindo um por si, mas concorrendo, com a criatura corpórea, para a composição do mesmo universo. Portanto, a coisa mais simples na Terra — uma bandeja, por exemplo, como a que  se acha ao meu lado durante esta exposição — constitui um só universo com o mais alto dos anjos que está diante de Deus e O contempla face a face.

Que significa “constituir um só universo”? Os seres existem em cadeia, em inter-relação constante e formam uma única e bela ordem. Por mais admirável que seja o Serafim, a beleza da ordem que há nele é realçada, por exemplo, pela existência da bandeja. Ainda que esta fosse feia, o realce se daria por contraste. Vemos, então, como a idéia da separação dos dois mundos é falsa.

Separado do todo, nada é perfeito no universo

Prossegue São Tomás: O que bem se verá, considerando a ordem de uma criatura em relação à outra, pois a ordem das coisas entre si é o bem do  universo. Portanto, toda criatura se relaciona com outra, e essa correlação entre todas constitui a beleza e o bem do universo. Ora, a bandeja e o anjo são criaturas; logo, a maior beleza não está  nem somente neste, nem apenas naquela, mas na relação anjo-bandeja, que talvez não seja facilmente compreensível por nós, porém o é por Deus, e essa formosura O encanta.

Ora — diz São Tomás — nenhuma parte do universo é perfeita separada do todo.

Há pessoas que consideram o Apolo do Belvedere ou a Vênus de Milo, por exemplo, como tendo rostos perfeitos. Imaginemos o nariz de Apolo ou o de Vênus, esculpido numa parede… Um nariz  absoluto é um monstro absoluto. Ele será bonito por causa de sua harmonia com o conjunto da face. Ninguém dirá de um nariz cortado e lançado no chão: “Que lindo nariz!”, nem de um olho que   foi arrancado de um semblante: “Que linda cor tinha esse olho!”. Isolados, nariz e olho causam horror, enquanto que podem causar admiração quando vistos no todo de uma face.

O pensamento de São Tomás assim se explica: se todas as coisas estão agora nessa relação, o perfeito é que sempre tenham estado, porque a obra de Deus é perfeita.

Logo, Ele criou o mundo angélico e o corpóreo ao mesmo tempo.

A necessária desigualdade entre os seres

Outros argumentos há pelos quais essa sentença se demonstra.

Segundo a opinião de São Tomás de Aquino, a direção dos astros, por exemplo, corresponde aos anjos. E tal fato ocorre por uma necessidade que está na ordem das coisas estabelecida por Deus. Noutra parte, São Tomás explica ser próprio daquele que é mais governar quem é menos. E quando o superior não tem junto de si o inferior, essa ausência lhe é de algum modo prejudicial. Consideremos alguns exemplos.

É próprio de um professor ensinar. Aposentando-se bruscamente, ele sofre por falta de alunos. Não só o mestre é necessário ao discípulo, mas este é necessário àquele. Um músico se apresenta em  oncertos, não apenas por interesse financeiro, pois se fosse rico, ficaria em casa, tocando para si mesmo. Ora, é próprio do homem que sente algo, precisar de alguém a quem comunique seu sentimento. E quem sente mais coisas excelentes, deseja transmiti-las aos que sentem menos e de modo menos perfeito. Essa é a ordem adequada das coisas.

Suponhamos que esse músico fosse o único homem a ouvir, numa humanidade que ficou surda. Só ele apreciaria suas melodias. Resultado: o artista começaria a fenecer e morreria vinte anos mais cedo que o normal, porque ninguém compartilharia com ele os sentimentos e os enlevos pelas suas composições.

Ora, diz São Tomás, os anjos inferiores são espíritos excelentes feitos para mandar nos homens. E o universo angélico seria mal construído se não houvesse pessoas sob a direção dele. Portanto, devemos compreender, com alegria, que somos necessários para nossos anjos da guarda, assim como estes o são para nós. Essa relação se repete entre os seres animados. Os homens precisam dos  animais e dos vegetais para exercer seu mando. E faz parte da natureza animal a necessidade — material, instintiva e não espiritual — de vegetais para se alimentar. Os vegetais, por sua vez,  precisam dos minerais; e estes não necessitam de outros seres para existirem, pois constituem o andar térreo onde o universo se fecha.

Em tudo isso vemos a sabedoria de Deus, cuja obra criadora pode ser comparada a um belíssimo colar: cada um de nós, sendo fiel à graça, é uma pedra preciosa intermediária nessa jóia.

Sentindo a ordem do universo no ato de pisar

Falamos em pedra, e nosso pensamento, por uma natural associação de imagens, evoca a ação do homem de pisar no solo. Recordo-me de que, certa feita, ao visitar a capela de uma fazenda, senti  particular comprazimento em tocar a terra e a vegetação rasteira do campo, o que há tempos não me era possível fazer devido ao desastre de automóvel que me tolheu alguns movimentos.

Naquela  ora, porém, senti esse gosto em pisar no chão, dizendo para mim mesmo: “Como é razoável e de acordo com a ordem do universo esse prazer meio indefinido que sinto”. Eu caminhava  em espírito de meditação, e cada passo que dava me fazia sentir essa ordem, incutindo maior alegria em minha alma ao entrar na capela.

Um hino à boa ordem

Nessa linha, lembro-me ainda de outro fato. Em uma de minhas viagens à Espanha pude acompanhar uma apresentação de sapateado, e admirei de modo especial um artista que dançava e pisava  firme no chão. Pensei: “Curioso, mas esse espanhol faz do solo um instrumento de percussão. Assemelha-se a um passarinho saltitando sobre a membrana de um tambor. O chão é o tambor dos  sapateadores espanhóis.”

A própria castanhola que ele tocava dava a impressão de ser o barulho do piso multiplicado com as mãos. Era um homem magro e de peito largo, e seu estilo de dançar era muito atraente. 

Continuei a elucubrar: “Gosto do sapateado desse artista; ele toca música com os pés. Sinto em mim uma consonância agradável como esse talento. Como pode o contato dos pés com o chão  produzir essa impressão musical, essa coisa borbulhante, cheia de vida?”

Saí do espetáculo levando em minha mente esse problema. Mais tarde, cogitando sobre o assunto, percebi que o ritmo com o qual ele dançava era agradável de se ouvir, e os instrumentos eram os  pés batendo no chão. Se fosse sobre um tambor, não haveria graça. O imprevisto do saltitar era o que conferia aquela sensação de leve, de infatigável, de desafiante: o artista pisa, repisa, salta, com a noção subconsciente de que todas as coisas devem ser ordenadas. Aquela dança, no fundo, é um hino à boa ordem.

Em última análise, como acima consideramos, isso tem uma explicação tomista. Sendo o chão o mais elementar na criação, foi feito para ser calcado. E ao pisá-lo, o homem exerce sua vontade de  governar, próprio de todo ser superior em relação ao inferior, por amor à boa ordem.

A alegria de todo ser está em cumprir seu fim último

Para concluir essas reflexões, voltemos nossa atenção para um outro ponto.

Quando eu estudava no Colégio São Luís, um professor jesuíta levantou a seguinte questão, relacionada com o tema aqui abordado. Dizia ele: “Todo mundo tem alegria em realizar sua própria  finalidade. Ora, a finalidade de certos animais é servir de alimento para o homem ou para outros animais. Pergunta-se: se uma galinha raciocinasse, na hora de ser morta e deglutida, ela se sentiria  eliz?”

Reconheçamos que esse professor apresentava questões sutis… Ele não respondeu, o que, aliás, no bom sentido da palavra, acho muito jesuítico. Parece-me que, às vezes, pode ser pedagógico  fazer perguntas que despertem curiosidade no aluno, com nobre apetite de conhecer a solução, dizendo-Lhe: “Leve essa questão para casa e venha me falar disso daqui a um mês, se quiser.” Seja  como for, o assunto da galinha ficou-me na cabeça e resolvi não perguntar ao padre, mas tentar encontrar a resposta. Cheguei à conclusão de que ele havia construído uma hipótese absurda, porque um ser intelectual não pode querer ser comido. E senti que essa resposta causava bem-estar à minha alma.

Segundo o raciocínio normal, haveria duas soluções: ou a ave teria horror ou gostaria de ser tomada como alimento. À primeira, poder-se-ia objetar: ela não está realizando seu fim? E à segunda: então a galinha está radiante de contentamento…? Percebe-se que qualquer dessas soluções, especialmente a segunda, causa mal-estar. Porém, a partir do absurdo do ente intelectivo ser comido,  compreende-se que, sob certo aspecto, ele poderia gostar.

Por exemplo, o homem não gosta de morrer, porque a morte é um castigo, mas pode falecer contente pela certeza de obter o Céu. Assim, também o chão, se fosse capaz de pensar, ficaria feliz de  ser calcado pelos pés do sapateador espanhol, pois realizaria sua finalidade de ser pisado.

Perguntar-se-ia: o ser intelectivo gosta de ser pisado? Ele foi feito para ser guiado, e isso lhe agrada, não porém para ser pisado, pois seria um domínio com brutalidade, contrário à sua nobreza.  Daí se compreende nossa alegria de termos a Igreja que manda em nós, nossa felicidade por existir uma hierarquia que nos governa.

Consideramos, assim, um importante aspecto da ordem do universo, abordando o papel dos anjos como guias dos homens e de outros seres corpóreos. E quero crer que um conhecimento de  ciências naturais seria incompleto, nem atingira toda sua beleza e pulcritude, se não chegasse ao ponto em que, de algum modo, se percebesse o “sinal digital” do anjo sobre a matéria.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 10/8/1979)

Revista Dr Plinio 117 (Dezembro de 2007)

O Sacerdote perfeito

Do amor indescritível pela Igreja Católica, derivava naturalmente, na alma de Dr. Plinio, um entusiasmo respeitoso e admirativo pela mais alta das missões que um homem possa ter neste mundo: ser ministro dessa Igreja, representante de Deus na terra. Numa conferência pronunciada em maio de 1973, ele analisa sob diversos prismas a excelsitude dessa vocação, para chegar ao arquétipo  do sacerdote: Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

Após os cânticos de amor e de entusiasmo que acabo de ouvir nesta sessão jubilar, toca-me a mim fazer uma conferência, cabe-me apenas falar. Dura tarefa, malcompensada pelo que tem de realmente formoso o assunto, uma vez que devo entreter os vossos espíritos durante um tempo que terá o mérito de ser breve a respeito de um tema que, a ser bem analisado, contém em si todas as belezas da terra. Eu devo falar a respeito da plenitude do sacerdócio.

Adão no Paraíso, príncipe do mais belo dos reinos

E esta consideração me leva à noite dos tempos, a uma digressão histórica que pega o homem no período, talvez, mais crucial e mais duro de sua história. Nós imaginamos ho-

je que estamos aos bordos, talvez, de  uma  catástrofe sem precedente. Não nos lembramos de que uma catástrofe houve maior do que todas as catástrofes, uma catástrofe houve que marcou logo, desde o início, a história do gênero humano. Aquela catástrofe narrada pelo Gênesis, da desobediência do homem que, tentado pela mulher, tentada pela serpente, duvidou de Deus, revoltou-se contra Ele, não quis seguir os destinos que Deus lhe assinalara e por isso foi expulso do paraíso.

Príncipe do mais belo e mais encantador dos reinos, colocado como senhor de toda a natureza visível cujos segredos ele conhecia perfeitamente e sobre a qual exercia um misterioso império; confortado pelos dons preternaturais que lhe asseguravam, entre outros (benefícios), a imortalidade, Adão pecou, Eva pecou, saíram do paraíso, deixaram aquela terra de bênção e de eleição onde, segundo diz o Gênesis, Deus passeava com Adão, comentando todas as belezas que Ele havia criado.

Saíram daquela terra de eleição e entraram para a terra do exílio. Os dons preternaturais deles se retiraram. A natureza humana, desamparada diante de um ambiente sobre o qual não tinha mais governo, que não mais dominava, sentiu-se apoucada, diminuída, ameaçada pela justa cólera de um Deus que tinha sido ofendido. E com o homem, na terra do exílio penetraram a apreensão, a dor, o sofrimento, a incerteza, seguida, não tanto tempo depois, da imagem terrífica da morte.

O fratricídio de Caim

Adão e Eva que se sabiam, então, destinados à morte, antes de morrerem passaram por esta tragédia terrível de ver o filho da bênção, o filho da predileção, Abel, o doce Abel, o justo, o magnífico, prostrado no chão, morto! Eles nunca tinham visto um morto! Não tinham a idéia plena, talvez, do que fosse a morte, porque aquilo que não se vê, não se conhece inteiramente. E morto por quem? Morto por um outro filho. O fratricídio ignóbil derramando no solo o sangue do justo que, segundo diz a Bíblia, subia até o céu bradando a  Deus por vingança.

E nós podemos imaginar o trágico do primeiro funeral na terra: Eva soluçando, Adão batendo no peito, Caim desvairado sumindo ao longo dos caminhos, os outros filhos abrindo em qualquer lugar a esmo, na terra, uma cova. Fechase a sepultura, encerra-se a história de Abel…

Faz-se o vazio na terra imensa, e a humanidade começa a sua enorme peregrinação, com este sentimento duplo: de um lado, o da própria finitude, o homem vai morrer, morrerá como morreu Abel, será um cadáver como foi Abel, a terra o devorará como está sendo devorado o cadáver de Abel; de outro, o sentimento de precariedade, de incerteza, a natureza revoltada, os animais que agridem, as trovoadas que caem, o alimento difícil de extrair do chão. Tudo somado, dá ao homem uma dificuldade de se orientar na vida, que marca a fundo a existência da humanidade dos filhos de Adão ao longo dessa trajetória que nos conduziu de tragédia em esplendor, de esplendor em tragédia, de esperança em frustração, de frustração em vitória que se arrebenta em novas frustrações; conduziu-nos até este século XX, ápice, ele mesmo pelo menos a seu modo de esplendores, de frustrações e de tragédias.

Diante da infinitude e do mistério, a noção de sacerdócio

Essa posição de finitude e de incerteza do homem diante da sua vida terrena acendeu duas concepções distintas de sacerdócio. Concepções estas que nós encontramos em duas famílias diversas de religiões pagãs.

Em primeiro lugar, as religiões ditas religiões sem mistérios, que correspondem, quiçá, a uma família de almas do gênero humano: as almas mais voltadas para esta terra, que não negam diretamente a existência de uma outra vida, e nem dela se desinteressam, mas que de tal maneira se deixam impressionar pelo dia de amanhã, que o centro de suas preocupações se volta para os afazeres terrenos.

Então os senhores têm, talvez correspondendo a essa família de almas, o aparecimento das religiões ditas sem mistérios. Religiões em que o sacerdote aparece como um mediador entre os deuses e o homem é esta, sempre, a nota característica da noção de sacerdote: é um intermediário entre Deus e os homens -, mas de um mediador que, embora com os olhos voltados para o céu, tem missões caracteristicamente terrenas.

Quais são as missões do sacerdote nas religiões pagãs sem mistérios?

O sacerdote é revestido de poderes mágicos por onde faz crer que ele tem o poder de curar, de matar; tem o poder de, por meio de encantamentos e de sortilégios, governar os trovões, aplacar as feras, etc.

O sacerdote resolve, portanto, problemas humanos: ele executa curas, ele pratica mortes, sendo instrumento de vingança, ele governa os elementos.

Vemos aí uma vaga saudade que o gênero humano tem, nesta decadência, daquele domínio que ele exercia sobre a natureza, quando Adão ainda não havia caído. A nossa natureza pede esse domínio. E os sacerdotes do paganismo, da gentilidade, para satisfazer a esta necessidade de domínio, assim se apresentavam aos homens.

E daí o tipo de sacerdotes exorcistas que enxotam os espíritos malignos capazes de atrapalhar o homem na sua faina diária, de arruinar as colheitas, de espalhar doenças, de fazer fugir o gado, etc.

É também o sacerdote sacrificador, o sacerdote que imola, o sacerdote que diante da vista do homem pecador toma uma vítima um animal, uma fruta, que sei eu? infelizmente, muitas vezes uma vítima humana e a imola para assim aplacar a cólera de um deus que o homem sente irado, brigado com ele, do qual ele tem medo, e por isso deseja de algum modo tornar-lhe propício.

Aqui aparece, então, a figura do sacerdote antigo, segundo o tipo dessa mentalidade mais voltada para os bens terrenos.

O sacerdócio comunicador da vida divina

Mas há uma outra família de almas, talvez mais rara, certamente mais elevada. É a dos homens que vivem compreendendo que, por mais importantes que sejam os problemas terrenos, eles não passam de logística; por mais importantes que eles sejam, não é para resolvê-los que o homem está na terra. São os homens que compreendem não ser a fome o problema central da vida; são os homens que sabem pensar, que param para refletir, e que, abrindo um intervalo nas justas atividades da faina diária, de vez em quando se perguntam:

Que sentido tem isto? Que sentido tem esta vida? Por que nasci? Para onde vou? Depois que eu morrer, o que será feito de mim? Não sei! Preciso indagar.

Essas questões supereminentes dominam a vida humana a qual, sem elas, é inexpressiva.

Para atender às perguntas desse gênero de espírito, a própria gentilidade, embora nos seus desvarios e nos seus erros, levada por um misto de bom senso e de tradição que ela nunca chegou a perder completamente, elabora o tipo de sacerdote de religiões de mistérios. São religiões que praticam em geral às ocultas e em geral para um número relativamente pequeno de crentes ritos que devem operar este efeito extraordinário: algo da vida da divindade passa para o sacerdote, e algo do sacerdote deflui para o público, de maneira que uma certa vida divina circula entre os que praticam e os que presenciam o rito. Vida divina esta que lhes dá mais força nas agruras desta existência, lhes dá mais luz à mente, lhes dá mais energia à vontade. Vida divina esta que se manifesta também pela magnífica promessa de que ela não terá fim. Ela veio do além, ela se insere no homem, ela criam eles não cessa com a morte do homem.

A promessa de uma outra vida, existente de modo menos categórico também nas outras religiões, afirma-se mais definidamente nessas religiões de mistérios. E as almas sequiosas de uma natureza melhor que esta, sequiosas de uma explicação mais alta para seus problemas, de uma orientação para a vida mais profunda do que simplesmente a preocupação de obter o ganho necessário para não morrer de fome, ou para satisfazer ambições e vaidades, esse tipo de almas se encaixa nessa série de religiões.

E assim, vagamente, confusamente, no meio de ritos idolátricos, por vezes abomináveis, e até satânicos, podemos discernir o filão de uma tradição preciosa, o filão do bom senso humano, como também o filão de uma esperança.

Numa noite em Nazaré, fazse a paz entre o Céu e a terra

Com efeito, todas, ou pelo menos muitas dessas religiões, eram animadas pela esperança de que um dia a paz se faria entre o Céu e a terra, um momento chegaria em que os tempos teriam a sua plenitude, e um eleito de Deus, perfeito, amado, haveria de vir ao mundo para restaurar a ordem que o pecado de nossos primeiros pais -lembrado em tantas religiões antigas nos tinha tirado.

Em determinado momento, numa meia-noite, no silêncio absoluto de uma cidade hebraica, uma Virgem tênue, delicada, cândida, trazendo nos olhos uma infinitude (de reflexos celestiais), rezava. Os tempos tinham maturado, o grau de sofrimento e de degradação da humanidade tinha chegado a um ponto tal, que a misericórdia de Deus criara esta Virgem para que Ela, imaculada, conseguisse o que nenhum homem pecador conseguiria: pedir e alcançar a vinda do Messias. E Ela pedia precisamente que viesse o Salvador e que regenerasse todos os povos. O Messias previsto pela raça judaica, que deveria nascer de alguém da estirpe de David, da estirpe de que Ela mesmo nascera, e a que pertencia o seu casto esposo José. Ela rezava na calada da noite, pedindo que esse Messias viesse, e pedia segun-

do piedosas tradições que fosse Ela a escrava, a servidora da mulher bem-aventurada de que esse Messias haveria de nascer.

De súbito, se produz pelos ares um movimento misterioso; algo como um bater de asas, como uma movimentação, como uma vibração diáfana, como uma cintilação da lua marca o ambiente. Ela olha e ouve as palavras tão conhecidas: “Ave, cheia de graça”…

Nasce o Sacerdote perfeito: Nosso Senhor Jesus Cristo

Apenas nós sabemos que depois de Ela ter dito: “Faça-se em mim segundo a palavra do Senhor, sou a servidora d’Ele”, o Verbo se encarnou e habitou entre nós. E veio à terra Aquele que, por excelência, no sentido mais pleno da palavra, no sentido arquetípico da palavra, seria o sacerdote: Nosso Senhor Jesus Cristo.

Sacerdote no sentido pleno da palavra, porque se é verdade que é inerente ao sacerdócio ser um vínculo, ser uma ligação entre os homens e Deus, ninguém o poderia ser de modo mais perfeito, mais magnífico, do que Aquele que era ao mesmo tempo homem e Deus, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnada, que ligava a natureza humana à natureza divina. Nosso Senhor Jesus Cristo é sacerdotal por sua própria natureza, porque Ele é o elo, Ele é o vínculo, Ele fundou o sacerdócio verdadeiro, o sacerdócio pleno, o sacerdócio cristão, o sacerdócio católico!

A paz da noite de Natal

Após ter assistido a uma representação da história do menino do tambor, Dr. Plinio explica que, por ocasião do Natal, o Menino Jesus não só recebe aqueles que O visitam na manjedoura, mas vai à procura de todos os homens, de todas as idades, línguas, condições sociais, e lhes diz alguma coisa que de um modo especial lhes toca o coração.

A lindíssima apresentação que tivemos aqui, desses reis magos poéticos, com seus turbantes, desse menino tão mais poético do que os reis magos, com seu chapeuzinho de cone truncado, lembrando um pouco o chapéu de São Charbel Makhluf, daqueles arenais imensos e sem fim, daquelas montanhas que não têm nome, porque o vento as faz e as desfaz. Panorama mutável do deserto, no qual se passa a infância séria, equilibrada, um pouco triste, mas profunda e alegre, daquele menino que, conforme a narração, foi educado pelo seu velho e pobre pai, pois perdera a mãe; portanto na orfandade dos carinhos que não recebeu, e na solidão dos companheiros — muitas vezes, maus — que não teve.

A realidade histórica e a realidade sobrenatural

O menino só conhecia o seu velho pai e a grandeza dos arenais do deserto; retinha um só presente que recebera do progenitor, mas fora galardoado pelo seu pai por um presente muito maior do que todos que poderia ter: a capacidade de alma de se alegrar com um só presente; isso vale mais do que ter mil presentes! E dessa situação ele tirou para si a condição de compositor. Um menino que brinca em produzir ritmos e melodias, que maravilha!

Como é bonita a figura desse menino, bem como a solução dada para o seu caso! Ele, afinal de contas, sabe do Menino Jesus e vai tocar o seu tamborzinho para o Divino Infante. É tocante imaginar o Menino Jesus, para quem os anjos, no mais alto dos Céus, estão cantando sinfonias inapreciáveis, e diante do Qual chega um menino rufando um tamborzinho. O Divino Infante abre os olhos e, com misericórdia, ouve aquele toque, se agrada e atrai aquela alma. Seria, talvez, o primeiro amigo do Menino Jesus. Que vocação maravilhosa!

Tudo isso é muito emocionante, mas se considerarmos um outro aspecto do assunto, talvez nos comovamos ainda mais. Nós temos o hábito de pensar no Menino Jesus, que estava na manjedoura, e as pessoas iam até Ele para adorá-Lo: os Reis Magos, os pastores — bem entendido, Nossa Senhora e São José —, e outros que terão passado por lá. Essa é a realidade histórica.

Mas há uma realidade teológica, uma realidade sobrenatural, que não se dissocia dessa, e é tão mais comovedora e não menos real: o Menino Jesus que, de um modo invisível, na noite de Natal, sai, digamos assim, tocando o seu tamborzinho pelo mundo afora à procura de almas, pedindo a esta, àquela, àquela outra que venham a Ele, que O amem, O conheçam, sejam d’Ele. O Divino Infante tem muito mais do que um tamborzinho para atrair os homens e encantá-los: são as sagradas e inefáveis pulsações de seu Coração.

Ao que corresponde isso de real?

Nosso Senhor se manifesta particularmente para cada um

Se deixarmos a metáfora e formos diretamente ao fato, isso tem de real o seguinte: Considerem as diversas imagens de Nosso Senhor Jesus Cristo; a que mais me toca — já entra nisso alguma coisa de subjetivo, de pessoal —, é o próprio Santo Sudário de Turim.

Não é Jesus Menino, mas Nosso Senhor morto. Não está nos braços de Nossa Senhora, amorosamente carregado, mas jacente no sepulcro. Todas as chagas da Paixão estão n’Ele representadas. Quando eu olho o Santo Sudário, a graça toca a minha alma — como a de todos os católicos. E, em função da minha mentalidade, da forma de virtude que nos planos da Providência devo ter, a graça me toca de um modo especial, de maneira a ver em Nosso Senhor, no seu Santo Sudário, este, ou aquele aspecto.

Então eu O aprecio, O analiso com a objetividade de uma mente, graças a Deus, sã e que vê a realidade como ela é. E aquilo tudo se ressalta de um certo modo, com certa fisionomia, certas características, que foram feitas para que eu as considerasse; de maneira que para mim, homem concebido no pecado original, o Santo Sudário apresenta uma certa forma de beleza, de atração que não mostrará para nenhuma outra alma do mundo, porque Nosso Senhor se manifesta sob um aspecto especial para cada alma.

Nenhuma alma é igual à outra, e cada uma delas, por mais humilde e modesta que seja, em um certo sentido é suprema e tem qualidades que Deus não deu a mais ninguém. Podem ser qualidades do tamanho de um centésimo da superfície de uma ponta de alfinete; mesmo assim o Criador deu somente a ela.

Assim também Nosso Senhor se manifesta a cada alma em consonância com aquilo que lhe deu, de maneira que ela ame a Deus daquele jeito. Portanto, cada homem que passe pela Terra tem a missão de adorar a Nosso Senhor Jesus Cristo, vendo um certo aspecto de sua Pessoa divina, sua santidade inefável, insondável e perfeita. Se tivéssemos aqui uma imagem d’Ele, todos estaríamos vendo a mesma imagem, mas focalizando alguma coisa, condicionada à santidade que Deus quer de cada um.

O Menino Jesus vai à procura de todos os homens

Ora, é noite de Natal. Nosso Senhor está numa manjedoura. E numa cidade católica se encontraria em todas as igrejas um presépio, e também em outros locais, em oratórios, em lugares públicos, numa vitrine de uma casa comercial especialmente adornada etc.

E um homem, que vai andando por meio de todas essas representações de Nosso Senhor Menino, é, de repente, tocado por uma delas mais especialmente destinada a ele, a qual se fixa em sua alma; ele para e diz: “Meu Senhor e meu Deus!”

Às vezes, entretanto, não é no momento. O homem para, olha e depois vai para casa. Em determinada hora, digamos, à noite, ao se preparar para dormir, lhe vem à memória aquela figura. Ele reza: “Meu Senhor e meu Deus!”

E isto mais ou menos se dá para cada homem. Numa noite de Natal aparece, de modo inteiramente definido, este aspecto de Nosso Senhor. Isto é mais subtil, mais complexo, é uma realidade de fundo. A realidade de superfície é menos marcada. A pessoa vê em quatro, cinco Natais, de quatro ou cinco anos consecutivos, uma mesma imagem, ou duas, três, ou cinco imagens diferentes. Em certo momento, na memória, essas imagens se sobrepõem e, de repente, a pessoa observa uma que tem tudo aquilo que ela sentiu nas outras; então, diz: “Ah! Meu Senhor e meu Deus! Aí está Jesus Cristo Nosso Senhor, como eu amo especialmente”.

Isto equivale a afirmar que o Menino Jesus, pela graça, visita todas as almas. E Ele faz o papel não mais daquele que recebe a visita, mas de quem vai atrás de todos os homens, de todas as idades, línguas, condições sociais, e os procura nessas noites. E lhes diz alguma coisa que lhes toca o coração de um modo especial.

Ao dar à luz, Nossa Senhora se encontrava num êxtase altíssimo

Há uma prova curiosa disso na canção “Stille Nacht, heilige Nacht”. Todos conhecem como esta melodia nasceu. O vigário da igreja de uma cidadezinha do interior da Alemanha e um professor compuseram a letra e a melodia dessa música, que exprimia a emoção deles diante da manjedoura. A Providência tinha preparado na alma deles uma emoção de Natal, que era para o mundo inteiro.

Stille Nacht! Heilige Nacht! Alles schläft, einsam wacht. Stille Nacht: Noite silenciosa. Heilige Nacht: Noite santa. Alles schläft: Tudo dorme. Einsam wacht: Fica sozinho acordado, isolado. Nur das traute hoch heilige Paar. O venerável e altamente santo casal.

Quem é o venerável e altamente santo casal? Quando se aproximou a meia-noite, Nossa Senhora e São José estavam em oração. Uma coisa admirável!

A Santíssima Virgem devia estar num êxtase altíssimo, como talvez místico nenhum na Igreja jamais tenha tido, quando bate nos relógios dos anjos a meia-noite. E, de um modo virginal, sem dor nem sofrimento para Ela, o Menino Jesus vem ao mundo: “Stille Nacht! Heilige Nacht”! De Nossa Senhora, virgem antes, durante e depois do parto, nasce o Menino Jesus!

Como a Santíssima Virgem e São José viram o Divino Infante

Como Ele se apresentou para Maria Santíssima? Se para cada homem Jesus tem um aspecto, como era o aspecto d’Ele para sua Santa Mãe? E para São José? São perguntas que se podem pôr. Evidentemente, eu creio não ser temerário afirmar que para Nossa Senhora, à Qual nenhuma outra criatura pode ser comparada, Ele deve ter aparecido, ao mesmo tempo, com todas as majestades, venerabilidades, todos os encantos, doçuras e afabilidades que teve para todos os homens, desde aquele momento até o fim dos tempos. Era a Mãe d’Ele, concebida sem pecado original e que nunca deixara de dar uma correspondência perfeita a cada uma das graças que havia recebido.

É claro que a Santíssima Virgem O viu e O entendeu completamente, como ninguém antes, nem depois; e que Ela O adorou totalmente. A adoração somada de todos os homens até o fim do mundo, a de todos os anjos, não dava a adoração de Nossa Senhora.

Se pudéssemos ver a São José adorando o Menino Jesus naquela noite, talvez ficássemos instantaneamente santos. Ele era o esposo de Nossa Senhora, o que mais se pode dizer? É possível haver honra maior do que ser o esposo, o alter ego, o outro eu mesmo de Nossa Senhora, o pai adotivo do Filho de Deus?

Pode-se imaginar o que nos ocorreria na alma só de ver, por uma fresta das pedras da gruta, São José rezar? Acho que qualquer um de nós podia se converter e tornar-se um grande santo. Acho que só de ouvirmos o respirar de Nossa Senhora, e sentirmos que seu Coração Sapiencial e Imaculado pulsava mais forte porque ali estava o Menino Jesus, nós nos converteríamos. Cada pessoa é chamada a adorar o Menino Jesus de um modo especial

Pois bem, se foi assim para Nossa Senhora, para São José, em proporções menores é para todos os homens. E nos dias que precedem o Natal, que já vêm ungidos com uma alegria natalina, a graça começa a nos trabalhar.

Ouvindo o Stille Nacht, vendo tal ou qual imagem do Menino Jesus, sentimos de um modo um pouco diferente. É Ele que vai atrás do coração de cada um de nós. E, sem percebermos, diz pela voz da graça no fundo de nossa alma: “Meu filho, assim sou Eu para você. Adore-Me, porque desse modo nenhum outro homem Me adorará.”

Percebe-se a beleza que há nisso, e como Nosso Senhor pode ser comparado àquele menino do tambor, neste sentido: o menino foi atrás d’Ele; Jesus vai procurar todos os homens, meninos ou velhos, grandes ou pequenos, sábios ou ignorantes, pecadores — e às vezes pecadores imundos —, e toca seus corações dizendo a cada um: “Meu filho, não queres vir a Mim? Pelo menos desta vez, neste instante, deixe-Me te comover um pouco! Aqui estou Eu à tua procura, no interior de tua alma.”

Esse é o sentido profundo da noite de Natal. Aquele palpitar das almas nessa solenidade é uma manifestação da graça obtida por Ele. E é por essa graça, a qual devemos pedir por intermédio da Virgem Maria, que nossas almas pulsam de um modo especial na noite de Natal.

Eu imagino o Menino Jesus apresentando-Se ao olhar de Nossa Senhora e de São José já com os braços abertos em forma de cruz. Podemos ver nisso o prenúncio não só do santo sacrifício do Calvário, mas das Missas incontáveis que, na noite de Natal, pela Cristandade inteira, e por toda a Terra, se celebra e as pessoas que vêm porque Nosso Senhor as atraiu, falando-lhes na alma de modo especial e que depois voltam para casa com algo que não percebem claramente, mas que é uma especial mensagem do Menino Jesus para elas.

Reúnem-se em torno de uma mesa, e todos estão de acordo, em harmonia entre os vários aspectos do Menino Jesus, que estão presentes na alma de cada um. Forma uma espécie de sinfonia, e esta é a paz da noite de Natal.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/12/1984)
Revista Dr. Plinio 177 – Dezembro de 2012

Meditação sobre o Natal – I

Em épocas de decadência, a ânsia pelos prazeres lança no desvario as pessoas que buscam neles a finalidade de suas vidas. No Presépio de Belém, o Menino-Deus nos dá três lições fundamentais para alcançarmos a santidade. Dr. Plinio as medita, na primeira parte desta sua conferência, seguindo a escola de Santo Inácio de Loyola.

Estamos nas festividades que lembram a infância de Nosso Senhor Jesus Cristo, das quais a principal é o Natal, e dentro de cuja atmosfera se passam todas as outras. Assim, parece-me muito apropriado meditarmos hoje sobre o Natal.

Vou apresentar duas meditações distintas para depois perguntar que modo de considerar o Santo Natal lhes fala mais, porque eu gostaria de analisar como se comportam os espíritos nas gerações que sucederam a minha.

A primeira meditação tem uma altíssima autoridade, pois é tirada de Santo Inácio de Loyola.

A sede de delícias, riquezas e honras

Nos períodos de decadência, como era a época em que Nosso Senhor nasceu, os homens, em sua grande maioria, vivem para si e não para Deus, e o egoísmo deles propende para um destes três objetivos: delícias, riquezas e honras.

Como delícias, Santo Inácio entende todos os prazeres que os sentidos podem dar. Primeiramente, os prazeres sensuais, mas também os da degustação, da vista, do olfato, do ouvido, enfim, tudo quanto a vida de luxo possa proporcionar de agradável, de gostoso.

Por riquezas ele entende a simples posse do dinheiro. É a avareza daqueles que procuram o dinheiro, não por causa dos prazeres que este pode trazer, pois neste caso o que os move é a sede dos prazeres para cuja obtenção o dinheiro é apenas um meio. Mas são aqueles que têm a mania do dinheiro, querem ser ricos por serem ricos, mesmo sem tirar muito proveito de suas fortunas, e vivem, às vezes, de um modo muito obscuro, apagado, banal, e até miserável, para terem a alegria de se sentirem continuamente de posse de uma grande quantia.

Depois há os prazeres da honra: pessoas que não procuram tanto o dinheiro nem a vida agradável quanto a consideração dos outros. Querem ser objeto de grandes homenagens, de grandes atenções, de grandes reverências, procuram o prestígio.

Esta classificação é perfeitamente bem feita. Em última análise, o egoísmo dos homens tem um desses três objetos, e todos poderão notar em torno de si — e talvez em si mesmos, fazendo um exame da consciência — que se cada um se deixasse levar pelas próprias inclinações, correria atrás de uma dessas três coisas.

Alguém me dirá: “Mas Dr. Plinio, esta classificação está muito esquemática, porque uma pessoa pode ir atrás das três coisas ao mesmo tempo: gostar muito do dinheiro, das delícias e do prestígio”. É verdade, mas é próprio ao espírito humano, necessariamente, que a pessoa goste de uma dessas coisas muito mais do que das outras, a ponto de, tendo experimentado todas, acabar se fixando numa delas e fazendo desta a finalidade de sua vida. Como ensina São Tomás de Aquino, há uma coesão no ser humano pela qual este é levado também a possuir uma unidade de objetivo; e quando um homem não procura a Deus como seu fim último, acaba buscando sua finalidade em um desses três prazeres.

Uma meditação para um católico coerente

Santo Inácio considera como Nosso Senhor Jesus Cristo veio ao mundo para provar aos homens que esses prazeres não valem nada. Evidentemente, esta prova só vale para os católicos, pois tem como ponto de partida a convicção de que Nosso Senhor Jesus Cristo é Homem-Deus e que, portanto, toda lição dada por Ele é infinitamente sábia e verdadeira. Um ateu não aceitaria essa prova. Mas como fazer uma meditação de Natal para um ateu, uma vez que ele nega os pressupostos do Natal?

Esta é, portanto, uma meditação para um católico. Não para um católico qualquer, mas para um católico com algum fervor, capaz de se impressionar, pelo menos em alguma medida, com as coisas da Religião. Os exercícios espirituais inacianos supõem um católico que tenha a possibilidade de se sensibilizar pelos temas da Religião, algum desejo de ser coerente com sua Fé, de maneira a tirar dos princípios religiosos consequências para seu procedimento, e que considera insuportável haver incoerência entre sua própria conduta e sua Fé.

O Criador de todas as riquezas quis nascer pobre

Santo Inácio começa por perguntar de que valem as riquezas deste mundo. Afinal de contas, Nosso Senhor Jesus Cristo, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, sendo Deus, criou o Céu e a Terra, porque as operações divinas são conjuntas da Santíssima Trindade, e por isso foram as três Pessoas da Santíssima Trindade conjuntamente que criaram o universo com todas as riquezas que ele contém.

Portanto, tudo quanto há na Terra de maravilhoso e capaz de fundamentar a prosperidade de um homem, foi Deus que criou. Ninguém pode ter uma riqueza comparável à d’Ele que, além de ter criado todas as riquezas existentes, possui o poder inesgotável de criar quantas queira, e sem o menor esforço, porque é onipotente e exerce sua onipotência com uma perfeitíssima facilidade. Basta olharmos as estrelas do céu para compreendermos que riqueza representa cada uma delas, e entendermos com que facilidade Deus cria tudo. Ademais, Ele é rico na sua essência, muito mais do que simplesmente por aquilo que criou.

Ora, esse Deus infinitamente rico quis vir à Terra como pobre. Ele quis ter como pai jurídico um carpinteiro; quis nascer de uma mãe que, como qualquer outra, executava serviços domésticos; quis ser deitado numa manjedoura, ou seja, no lugar mais pobre que se possa imaginar, tendo como aquecimento apenas o bafo de alguns animais e as roupinhas feitas por Nossa Senhora para Ele; e por asilo, não uma residência de homens, mas de bichos, porque a gruta onde Ele nasceu era o lugar aonde os animais iam para comer. Aí que nasceu o Verbo de Deus! Ele quis mostrar, desse modo, o quanto o homem deve ser indiferente às riquezas quando se trata de compará-las com o serviço de Deus, e, portanto, deve viver antes de tudo não para ser rico ou ter grandes cabedais, mas para servir, amar e louvar a Deus nesta Terra, para depois adorá-lo no Céu por toda a eternidade.

Suponhamos o homem mais rico do mundo cuja relação dos bens ocupasse um catálogo do tamanho de uma lista telefônica. O que seria isso em comparação com Deus Nosso Senhor? Absolutamente nada!

Então, todos esses homens que correm desenfreadamente atrás do dinheiro, fazendo da obtenção da fortuna a única preocupação de suas vidas, e das conversas sobre finanças seu tema predileto; que colocam toda a felicidade na ideia de possuírem dinheiro e nunca ficarem pobres; esses homens procedem como verdadeiros insensatos, pois calcam aos pés e não compreendem a lição que Nosso Senhor Jesus Cristo nos deu no presépio: que o homem pode desejar adquirir e conservar as riquezas, desde que não faça disso o objetivo supremo de sua vida, mas sim a glória de Deus e, portanto, a glória da Igreja Católica.

Renunciar às delícias pela glória de Deus e por amor às almas

Quanto às delícias, se Nosso Senhor Jesus Cristo quisesse, teria mandado reunir no Presépio as sedas mais deliciosas do universo, ordenado aos Anjos introduzirem no lugar onde Ele nasceu os perfumes mais agradáveis, poderia ter para ouvir uma música mais agradável do que todas as melodias existentes na Terra, porque se os Anjos cantaram para os pastores ouvirem, quanto mais cantariam para o Menino Jesus! E não há música terrena que, de longe, se possa comparar à música angélica. O Menino Jesus poderia ter tido agasalhos supereficazes, ter sido nutrido desde o começo pelas melhores comidas que há no mundo, em uma palavra, Ele poderia ter-Se enchido de delícias logo no primeiro momento de sua vida terrena.

O que Ele fez foi o contrário: quis nascer deitado sobre palha, material cujo contato não dá nenhum regalo para o corpo. Ele quis estar num estábulo, onde o cheiro normalmente não é bom, por mais que Nossa Senhora e São José tenham limpado o local antes. Ele quis estar tiritando de frio, nascendo à meia-noite de um mês em que, na região onde Ele nasceu, é inverno. E quis ter como música apenas o mugido dos animais que estavam junto a Ele.

Portanto, o oposto de todas as delícias que se possam imaginar. Ele quis assim para mostrar aos homens o quanto é uma loucura fazer das delícias a principal finalidade da vida. Desde que seja para o bem das almas e para a glória de Deus, devemos nos desfazer de todas as delícias, procurando apenas aquilo que possa favorecer a causa católica, embora com muito sacrifício e com muita renúncia.

A loucura da vaidade

O que vem a ser o desejo de honras? Segundo esta concepção de Santo Inácio, é o fato de alguém procurar ser objeto de reverências por possuir qualidades superiores aos outros, como por exemplo, ser mais inteligente, mais jeitoso, mais engraçado, mais diplomático, mais interessante, mais simpático, ou por qualquer outro predicado que a pessoa tenha ou imagina ter. Por causa disso julga-se no direito de receber dos demais uma atenção especial.

Por vezes, tal é a miséria humana que o homem se envaidece até das coisas próprias a não causar vaidade. Conta-se que o famoso São Paulo Eremita, tendo ficado muito velho e vivendo sozinho no deserto, em certo momento considerou que ele seria, provavelmente, o homem mais velho da Terra. Ora, o homem mais velho da Terra é o que está mais perto da sepultura, num estado físico — e às vezes mental, também — em maior desagregação. Realmente, não dava para ficar vaidoso!

Entretanto, ele teve que lutar contra a tentação de pensar: “Ah, eu sou hoje o homem mais velho, o maior anião de toda a Terra!” Se ao menos se julgasse a pessoa mais madura, que atingiu, embora efemeramente, o ponto de maior conciliação entre o que a idade pode dar e a juventude conservar, já seria errado, mas haveria um fragmento de lógica dentro disso. Mas envaidecer-se por ser o mais velho da Terra, é simplesmente um disparate! Mas até com isso um homem pode ser tentado a ter vaidade.

Nosso Senhor Jesus Cristo quis nascer despido de tudo o que pode envaidecer. É fato que Ele era príncipe da Casa de Davi, mas é fato também que veio ao mundo tendo por Pai jurídico um carpinteiro; nasceu, como eu dizia, de uma Mãe que fazia serviços domésticos, numa época em que a Casa de Davi tinha perdido seu poder político, seu prestígio social, seu dinheiro, e em que Ele não era absolutamente nada na ordem terrena das coisas. E nasceu como um pária, fora da cidade, porque nesta ninguém quis dar abrigo a seus pais. Eles iam de casa em casa pedindo lugar, mas não havia hotéis, hospedarias, e não os acolheram. Ele quis nascer numa manjedoura para provar até que ponto são loucos aqueles que conservam uma ideia fixa de parecer mais do que os outros; e que ao invés de procurarem servir a causa católica, fazem dessa vaidade o fim de suas vidas.

Aplicações à vida espiritual

O modo pelo qual um católico deve aproveitar esses raciocínios é fazer uma aplicação aos outros. Quando ele vê que alguém, que não vive segundo a Lei e para a glória de Deus, mas exclusivamente para sua própria vantagem — tal amigo da família, tal vizinho, tal colega de profissão —, que tem prestígio ou que leva uma vida deliciosa, ou que possui muito dinheiro, se ele tiver a tendência de admirar aquele homem só por isso, ele deve dizer:

“Não, este procedimento é censurado por Nosso Senhor no Evangelho. Nosso Senhor, que é Rei e a Sabedoria eterna, ensinou o contrário. Essas coisas são secundárias e esses indivíduos, pondo nelas todo o empenho de suas vidas, agem de um modo irracional e serão condenados por causa disto no último dia. Pelo contrário, bem-aventurados serão aqueles que renunciarem à riqueza, aos prazeres, às honras; ou tiverem riquezas, prazeres e honras, mas sempre na disposição de renunciar a qualquer minuto se a causa católica assim o pedisse. A esses, do partido da renúncia, eu vou admirar; aos outros vou desprezar, não vou me permitir ter admiração por uma pessoa que não vive como deveria viver.”

Depois aplicar a si mesmo também. Nas relações com os outros, o que eu procuro? Ser considerado pela minha riqueza, pela vida regalada que levo, por algum título de superioridade que eu tenha? Então, não valho nada, porque eu devo almejar não que os outros me considerem, mas que amem a Deus; encaminhá-los para o amor de Deus, e não fixar a atenção sobre mim, pois senão estarei roubando aquilo que é devido a Deus. Devo apenas me preocupar com a dedicação inteira de minha alma a Nosso Senhor, a Nossa Senhora e à Santa Igreja Católica.

Necessidade da oração

Então, segundo a escola de Santo Inácio, que é uma escola verdadeira, nós devemos ter, dia e noite, essas considerações diante dos olhos, e eliminar de nossas almas, com energia como quem arranca a erva daninha, as considerações mundanas que levam a adorar o dinheiro, os prazeres e as honras.

Isto supõe, naturalmente, muita oração, porque o homem não cumpre este propósito de pensar sempre nisso apenas com um ato de força de vontade. Este é um pensamento tantas vezes penoso para o homem, que ele tem dificuldade de tê-lo sempre em vista. E mesmo que o tenha, sentirá muita dificuldade de renunciar a esses prazeres. Ele necessita de oração, da graça, ele precisa mortificar-se para conseguir fazer isto. Mas se agir por esta forma, ele conseguirá e assim poderá agradar a Deus.

Então, o programa é ter esta meditação diante dos olhos e orientar as suas orações, o seu Rosário, a sua Comunhão, sobretudo as Missas a que assista, os atos de piedade ou de apostolado que faça; deve orientar tudo segundo esta ideia: desapegado do dinheiro, dos prazeres e das honras.

Aqui está uma meditação feita segundo a escola de Santo Inácio de Loyola.

(Continua)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/12/1973)

Revista Dr Plinio 189 – Dezembro de 2013

A bondade de Dona Lucilia

Em Dona Lucilia havia uma apetência de espírito para o sobrenatural, porque ela queria ter sua principal relação com Deus, e todos os outros afetos dela eram decorrentes desse primeiro afeto. No fundo, quem ela mais amava era Nosso Senhor Jesus Cristo. A bondade dela a conduzia a considerar as pessoas com muita elevação, envolvendo-as de doçura e afeto.

 

Dona Lucilia foi a última semente da árvore da Idade Média que, ao cair no solo, fez germinar o futuro. Ela é uma alma profundamente medieval, mas não apenas enquanto uma síntese do passado. Era chamada a ser, sobretudo, esse começo do futuro.

Uma bondade que ultrapassa a medieval

Por exemplo, no tocante à bondade. Não se pode dizer que a bondade dela fosse estritamente medieval. A Idade Média está ali dentro, mas é uma bondade que ultrapassa a medieval, é um desenvolvimento da que existia naquele período histórico. A bondade de Dona Lucilia é feita de uma elevação de espírito que multiplica a bondade pela bondade. Custo a realizar como é que existia na Idade Média a bondade debaixo desse ponto de vista.

Em mamãe havia uma tendência, uma apetência do espírito para um contato com Deus, porque ela queria ter sua principal relação com um Ser tão elevado, nobre e sublime, e todos os outros afetos dela eram decorrentes desse primeiro afeto. No fundo, o que ela amava era Nosso Senhor Jesus Cristo.

Isso conduzia a que toda a bondade que ela tivesse fosse constituída de um modo de considerar os outros com uma elevação muito alta, envolvendo de doçura e afeto a pessoa a quem ela considerava. Esse afeto descia dessa eminência, por assim dizer, quase raptando a pessoa para uma esfera sobrenatural muito elevada também.

Tomemos, por exemplo, o cântico Anima Christi. Há quase uma diferença entre as palavras e o tom de voz com que aquilo deve ser cantado, de um lado, e a música do outro. Porque há qualquer coisa de arrebatado no estilo inaciano desse cântico. Mas existe ao mesmo tempo uma ternura levada a uma elevação, a uma coisa que é o extremo no gênero! Da elevação de quem considera a sublimidade de Nosso Senhor Jesus Cristo e quase a fraqueza d’Ele.

No Anima Christi existe uma espécie de compaixão com que é tratado Nosso Senhor, mas, de outro lado, um arrebatamento. Há naquilo um misto de veneração muito profunda e respeitosa, e de ternura que, tomando em consideração a grandeza do Redentor, mas também a Ele chagado, tem quase receio de se exprimir, pelo medo de tocar n’Ele de um modo insuficientemente delicado. Mas no fundo e no centro está uma evocação da Pessoa d’Ele e dos sentimentos que essa Pessoa desperta. Assim, aquele cântico, de algum modo, descreve a Ele.

O Sagrado Coração de Jesus era o píncaro de seu amor

Havia tudo isso no modo de ser de mamãe, por onde o Sagrado Coração de Jesus era o ápice, o píncaro de seu amor. Isso dava a marca medieval dela. Porque, embora a devoção ao Sagrado Coração de Jesus não tivesse nascido na Idade Média, ela levava a ternura do medieval para com Ele até o último ponto. É bonito que Nosso Senhor tenha aparecido em Paray-le-Monial, cujas origens remontam à Ordem de Cluny.

A consideração de tudo isso me levava a respeitá-la profundamente e, ao mesmo tempo, ter para com ela uma ternura a mais delicada possível. Mas com a sensação de que tudo quanto eu fizesse não bastava, pois ela estava acima disso.

Quando Dona Lucilia morreu, senti uma dupla lancetada: de um lado, a noção de que uma pessoa assim acabava de ser, inexoravelmente, “desfeita” pela justiça divina… Porque a morte é isso. Os dois elementos constitutivos do ser humano, a alma e o corpo, são separados. Portanto, nesse sentido desfeita. Aliás, se não fosse a ressurreição, seria um absurdo. Eu me lembrava de uma cançãozinha que se cantava quando as Filhas de Maria faziam procissão na Igreja de Santa Cecília: “Misteriosa justiça nos prende, só por filhos à culpa de Adão; mas a lei quebrantada anulou-a a tua santa e feliz Conceição.” Quer dizer, realmente é uma misteriosa justiça.

De outro lado, a irreparável ausência dela. Porque encontrar outra pessoa assim…  Pode levar a lanterna de Diógenes que não descobre nada…

Reveses e provas

Pouco antes de ser acometido de diabetes1, estávamos jantando, só ela e eu, em casa. Falávamos, mas o melhor da conversa era a presença. Portanto, eu estava mantendo a prosa quase por polidez, mas de fato me embevecendo fantasticamente com ela.

Lembro-me de ter pensado nisto: como seria difícil mãe e filho se quererem tão bem no mundo de hoje. E me vinha ao espírito a ideia: “Esta salinha de jantar é, no fundo, uma espécie de torrãozinho onde Nossa Senhora ainda conserva um pequeno resto, mas em mamãe um resto solar! Será que está nos desígnios da Providência permitir que tudo isso se dissolva com uma antecedência relativamente grande dos acontecimentos previstos em Fátima? Mamãe falece; de repente eu morro também, isto tudo aqui é vendido, se dispersa, e é mais uma coisa boa que desaparece no mundo…”

Quando me apareceu aquela infecção no pé, recordei-me imediatamente daquilo que eu tinha pensado. Passei os dias em casa fazendo todo o possível para que ela não percebesse a gravidade de meu estado de saúde.

Certa ocasião mamãe estava sentadinha junto à mesa da sala de jantar, eu passei pelo hall e tive um tombo sem que ela visse. A empregada me disse num tom meio atrevido e revoltado:

– Mas o que é que tem? O senhor informe a ela de uma vez sobre o estado em que o senhor se encontra!

Eu manifestei desagrado com ela e afirmei:

– A senhora não está vendo que eu não quero aborrecê-la?

– Mas assim, até esse ponto?

– Até esse ponto. Quem gradua isso sou eu.

Entrei na sala pensando: “O que eu tinha previsto está se realizando… Esse negócio que tenho aqui é uma gangrena.” Mandei chamar os médicos e afundei num túnel. Cogitei: “Um vendaval vai me tomar e ela ainda morrerá por esses dias…”

Ficava transido de pena de mamãe ao pensar o que poderia acontecer se eu morresse antes dela. E me punha o seguinte problema: Recomendo que não digam a ela que eu faleci? Porque o problema se punha. Quer dizer, para não lhe comunicarem que eu morri, tinha que entrar pelo caminho das mentiras. Mas ela, no estado em que se encontrava, tinha o direito à verdade?

Mas, de outro lado, se Deus a queria provar, possuía eu o direito de poupá-la dessa prova? Quer dizer… uma coisa tremenda!

A cadeira de rodas de Dona Lucilia

Quando me vieram avisar que ela estava morrendo, eu acabara de tomar o café da manhã e de ler o jornal. Dirigi-me ao quarto dela tão rápido quanto minhas condições físicas permitiam e, ao chegar, ela já estava morta. Chorei muito e, afinal de contas, fui para o meu quarto. Inexplicavelmente – creio que foi uma graça obtida por ela – invadiu-me uma paz, uma tranquilidade que era quase uma alegria.

Fui ao cemitério para o enterro, mas não ousei ir até a sepultura.

No dia seguinte parti para nossa sede, em Amparo, voltando de lá para a Missa de sétimo dia durante a qual se deu aquele fenômeno do raio de sol sobre as orquídeas, que tomei como sendo o sinal pedido por mim a Nossa Senhora de que mamãe não estava mais no Purgatório2.

Lembro-me, por exemplo, de uma bagatela. Eu me desagradava muito da cadeira de rodas dela. Eu gostaria que mamãe caminhasse. O passinho dela era uma das muitas coisas que me encantavam. Como ela conseguia andar com gravidade e com um passinho rápido! Dona Lucilia era muito grave no que ela fazia, mas rápida no andar. Não sei como ela conciliava isso.

Apesar de antiga e de já não se usar mais cadeiras de rodas daquele tipo, por ser mais alta tinha mais dignidade do que os modelos recentes. E eu não queria vê-la metida nessas cadeiras muito melhores, porém menos dignas. Então arranjei aquela mesma. Ela, então, vinha altinha sobre aquilo.

Quando ela morreu, mandei devolver a cadeira de rodas à Santa Casa e pagar o preço de um aluguelzinho. Uns cinco dias depois, comecei a sentir saudades da cadeira de rodas e ordenei perguntar à Santa Casa se podiam me vender.

São recordações que me dizem muito. Embora o recuo do tempo, neste caso, não melhore a perspectiva, nem me leve a querê-la mais bem por causa disso, por alguns lados convida a uma atitude mais admirativa em relação a mamãe.

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraída de conferência de 20/4/1991)

Revista Dr Plinio 243 (Junho de 2018)

 

1) Em dezembro de 1967, em consequência de uma grave crise de diabetes, Dr. Plinio teve gangrena no seu pé direito, sendo submetido a uma cirurgia no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, para debelar a infecção. (Cf. Revista Dr. Plinio n. 117, pp. 4-5).

2) Cf. Revista Dr. Plinio, n. 121, p. 19.

Santo Estêvão, cheio da graça divina

Destacando-se entre as mais arrebatadoras páginas da Escritura Sagrada, o nobre holocausto do protomártir da Igreja se reveste de ainda maior brilho, considerado à luz desses tocantes  comentários de Dr. Plinio.

Após comemorar as radiantes alegrias do Natal, a Igreja celebra em 26 de dezembro a memória de Santo Estêvão, seu primeiro mártir. O holocausto desse extraordinário herói da Fé é assim narrado pelos Atos dos Apóstolos:

Naqueles dias Estêvão, cheio de graça e de fortaleza, fazia prodígios e grandes milagres entre o povo. Ora, alguns da sinagoga, chamada dos libertos, dos cirenenses, dos alexandrinos e dos que eram da Cilícia e da Ásia, levantaram-se para disputar com ele. Mas não puderam resistir à sabedoria e ao Espírito que o inspirava. (…)

Tendo ouvido seu discurso, seus corações foram feridos pelo ódio e eles rangiam os dentes contra ele. Mas Estêvão, que estava cheio do Espírito Santo, tendo elevado os olhos ao Céu, viu a glória de Deus e Jesus, de pé, à direita de Deus, e disse: “Vejo os Céus abertos e o Filho do Homem à direita de Deus”.

Eles levantaram então grandes gritos, taparam os ouvidos e se atiraram todos contra ele. E arrastando-o para fora da cidade, lapidaram-no. E as testemunhas depuseram seus vestidos aos pés de um homem chamado Saulo. E lapidaram Estêvão que rezava e dizia: “Senhor Jesus, recebei meu espírito”. Depois, tendo ajoelhado, gritou com voz forte: “Senhor, não lhes imputeis esse pecado”. E dizendo isso, adormeceu no Senhor.

Prodígios que suscitam o ódio dos maus

A narração é de extrema beleza, e cada frase mereceria um comentário próprio, pois a cena se desenvolve em lances sucessivos, com significados peculiares. O primeiro fato é que Estêvão opera maravilhas, definidas pelo Livro Sagrado com uma linguagem tão cheia de imponderáveis que nos deixa encantados. Logo no início encontramos uma bonita expressão, empregada para indicar a virtude do santo: cheio de graça e de fortaleza.

Quer dizer, era um homem na plenitude do vigor — não só de ânimo, mas também do sobrenatural, da graça que atua nele —, realizando prodígios e milagres entre o povo. Ora, à vista desses feitos espetaculares, a pertinácia dos que desejavam perseguir Estêvão é bem apontada pelos Atos dos Apóstolos: tomados de ódio, levantaramse para discutir sofisticamente com ele e atacá-lo. É o  segundo lance.

Porém, seus opositores não puderam resistir à sabedoria e ao Espírito com os quais Estêvão falava. De modo que, depois de ter operado prodígios, ele também argumentou de maneira  maravilhosa, confundindo completamente os maus e os deixando sem palavras para lhe replicar. E estes que odiavam os milagres, detestaram ainda mais os seus argumentos. Trata-se, portanto, de uma ira crescente, à medida que Santo Estêvão vai manifestando as excelências depositadas por Deus em sua alma. Como se viu, a primeira manifestação dessa grandeza maravilha são seus  feitos prodigiosos, contra os quais se declarou a sanha dos adversários, em forma de discussão. Tendo o santo argumentado de forma irretorquível, aumenta-lhes o rancor — gratuito, em relação  ao bem enquanto bem.

Outra não é a razão dessa raiva. Enganado estaria quem pensasse ter ela eclodido porque Santo Estêvão foi inábil, porque cometeu algum equívoco ou porque não entenderam algo do que disse. Eles compreenderam perfeitamente, deram-se conta das maravilhas que Estêvão operava e ouviram argumentos contra os quais não tinham respostas. Então o odiaram, porque era bom e sem erro.

É semelhante, aliás, o procedimento de muitos fautores do mal. Atacam o bem e a verdade, porque não podem suportá-los. E quanto maior a manifestação da verdade e do bem, tanto maior o ódio que suscita nos maus. Esses que se mostraram hostis a Santo Estêvão eram da mesma laia dos que decidiram a morte de Nosso Senhor, dos que preferiram Barrabás ao Cordeiro imaculado. O ladrão, o facínora, foi considerado mais simpático, mais atraente e agradável do que Nosso Senhor, por causa do amor ao mal.

Nesses episódios se patenteia a iniqüidade e a malícia do pecado daqueles aos quais a Escritura chama de “filhos das trevas”, dos que cometem a falta, não por fraqueza ou debilidade, mas scienter et volenter. Daqueles que aborrecem o bem que não observam e se comprazem com o mal que praticam, e professam uma doutrina má em virtude da qual detestam a boa causa por sabê-la  benéfica.

Santo Estêvão teria sido imprudente?

Prosseguindo, a narração sagrada nos evoca a atitude de Santo Estêvão que, “tendo elevado os olhos ao Céu, viu a glória de Deus e Jesus, de pé, à direita de  Deus, e disse:

‘Vejo os Céus abertos e o Filho do Homem à direita de Deus’.”

É interessante fazer aqui uma composição de lugares, e imaginar o modo como Santo Estêvão externou essa magnífica afirmação. Há de ter sido de maneira tal que os ouvintes perceberam toda a sua veracidade, e viram que ele tinha razão. Reluzia nele um tamanho reflexo daquilo que dizia, uma superior evidência da autenticidade do que falava, que suas palavras eram irrecusáveis! O fato nos faz recordar outro, ocorrido no século XIX, e comentado por Dom Chautard. Conta este que um advogado esteve em Ars para assistir a um sermão de São João Batista Vianney. Depois, ao ser interrogado por seus amigos acerca do que presenciara naquela cidade, exclamou: “Vi Deus num homem”.

Ora, se isso se deu com São João Vianney, imaginemos como Santo Estêvão, no momento do seu êxtase, estaria transbordando de sobrenatural! Foi um resplandecer de graça mística tão imenso  que seus perseguidores não puderam suportar, e cresceram em ódio a ponto de resolver matá-lo.

Poder-se-ia perguntar se Santo Estêvão não foi imprudente, enfrentando desse modo a ira dos maus. Não agiria melhor se tivesse ido embora, sem forçar, por assim dizer, aquela gente a cometer  um assassinato sacrílego? Pelo contrário, ele cada vez se afirmava mais, aumentando a raiva dos seus contendores, até que chegaram ao homicídio.

Este crime não ocorreria, e Estêvão não perderia sua vida de apóstolo, se fugisse. Então, não procederia de forma mais sapiencial se ficasse quieto e procurasse escapar?

A primeira resposta a essa pergunta, encontramos na própria Escritura: Santo Estêvão estava cheio do Espírito Santo. Portanto, agia corretamente, sob a inspiração divina. O fato é que ele se achava engajado numa luta cujo desfecho era incerto. Nessa pugna, tentava ele com insistência penetrar naquelas almas, por meio de uma nova maravilha que operava. Para comovê-las e  conquistá-las, ele foi afirmando verdades sempre mais elevadas. Quando atingiu o ápice de seu apostolado, seus interlocutores, empedernidos no recusar o que Santo Estêvão dizia ou fazia,  cometeram o assassinato.

O método apostólico que ele empregou foi perfeito. Procurou tocar aqueles corações, iluminar aquelas inteligências. A cada rejeição, ele respondia com uma misericórdia maior, deixava  transbordar de seu íntimo uma graça mais intensa, exprimia um argumento mais fulgurante, realizava um prodígio mais admirável. Até o ponto em que eles recusaram tudo. Sua atitude foi  altamente sábia e apostólica. Ele poderia ter convertido aqueles homens se estes tivessem aberto suas almas ao efeito da ação salutar da santa vítima.

Porém, não quiseram ceder à bondade e à virtude de Estêvão. Ergueram-se contra ele e só açaimaram quando perpetraram o ignominioso assassinato.

A morte plácida dos justos

Cometeram-no — descrevem os Atos dos Apóstolos — depois de lançar grandes gritos e “tapar os ouvidos”, como se costumava fazer diante de alguém que proferisse uma blasfêmia. E num ódio que movia a todos,  atiraram-se contra Santo Estêvão, apedrejando-o mortalmente.

E pode-se bem imaginar que a sanha dos malfeitores crescia, à medida que o primeiro mártir da Igreja tomava atitudes cada vez mais sublimes, enquanto as pedras caíam sobre ele. Um curioso detalhe salientado pela Escritura é que “as testemunhas depuseram seus vestidos aos pés de um homem chamado Saulo”. Saulo, o futuro São Paulo, naquele tempo fariseu e encarniçado  Perseguidor dos cristãos.

A vida de Santo Estêvão vai se extinguindo sob a brutalidade da lapidação.

Procuremos imaginar a cena maravilhosa. Ele, qual segundo Cordeiro de Deus, olhos voltados para o céu, ferido e deitando sangue por todo o seu corpo, com contusões horrorosas, faz apenas esta  oração: “Senhor Jesus, recebei o meu espírito! Senhor Jesus, recebei o meu espírito!”

Que extraordinária impressão essa atitude devia causar nas almas boas!

E depois, “tendo ajoelhado, gritou com voz forte: Senhor, não lhes imputeis esse pecado!”

Então, a primeira prece — “Senhor Jesus, recebei meu espírito” —, ele a disse de pé. Mas, é natural, vergado pela violência das pedradas, não pôde mais se manter ereto. Caiu de joelhos, e nessa postura tão supremamente conveniente para a oração, ele pediu a Nosso Senhor que não lhes imputasse aquele pecado. Ou seja, ainda com voz forte, rogava o perdão para os seus próprios agressores.

No auge da tragédia, ele tem uma frase de uma simplicidade e de uma serenidade sublimes.

“E dizendo isso, adormeceu no Senhor.”

Tudo acabou, e veio a morte plácida dos justos. A tormenta se tinha transformado num sono, o martírio estava consumado, ele estava dormindo em Deus. Ao exalar o último suspiro, aquele  homem todo ensanguentado, certamente terá tido uma expressão de fisionomia tranquilíssima. Sua alma subia ao Céu. Como esse martírio é digno de ser o primeiro da história da Igreja, exemplo para os demais holocaustos dos que morreram testemunhando sua Fé em Cristo Jesus, Senhor nosso!

Plinio Corrêa de Oliveira

Universo Natalino

Uma das inocentes alegrias que o Natal proporciona às almas provém das tocantes canções com as quais os diversos povos louvam e homenageiam o Divino Recém-nascido.

Ao longo dos séculos, cada nação da Cristandade, e notadamente as da Europa, compôs seus cânticos natalinos típicos, cujas letras e melodias se unem aos costumes e culinárias locais para  conferirem mais luz e perfume à unção própria dessa grande festa católica.

Já tivemos ocasião de comentar o Stille Nacht, a canção de Natal universal, entoada no mundo inteiro, surgida no século XIX numa aldeia austríaca. Deu-lhe vida o povo alemão, o povo da  bravura, da proeza militar, mas também dessa profunda delicadeza de espírito que o levou a imaginar o sentimento de ternura de quem se colocasse junto à manjedoura do Menino Jesus e contemplasse aquela criança fraquinha, com todas as debilidades físicas da infância e, entretanto, o próprio Deus.

Em qualquer canção natalina germânica encontra-se essa nota de compaixão humana, contemplativa e súplice, diante do que há de mais frágil e suave. Será, então, Maria Durch ein Dornwald  ging, uma lenda cantada acerca de um bosque onde, por sete anos, apenas espinhos brotaram, sem flor e folhagem alguma.

Por essa rude floresta entra Nossa Senhora, trazendo ao braço seu Divino Rebento, e à medida que Eles caminham, os espinhos vão se transformando em rosas… Maria Santíssima, com sua  candura e força virginais, traz o Menino bem protegido sobre o seu coração.

Ambos penetram num bosque de espinhos. Ora, como podem essa flor de delicadeza ímpar que é a Mãe de Deus, e esse tesouro da Terra que é o próprio Homem-Deus, exporem-se a natureza tão agreste e hostil? Não é possível concebê-lo. Então, enquanto andam, os espinhos viram rosas de agradável fragrância. Nossa Senhora compreende: foi uma amabilidade de seu Filho para com Ela!  Jesus dorme junto ao seu coração, mas continua a governar a natureza. Ternura, enlevo, extremo respeito. Voltemos nossos olhos para a Espanha e seus célebres “villancicos de Navidad”.

À semelhança do povo alemão, o espanhol é feito para o heroísmo de uma autenticidade e arrojo inegáveis. Encara a coragem como lance individual, atira-se na peleja sozinho, como o toureiro diante do touro, “banderilla” na mão, disposto a todas as façanhas.

Entre as inúmeras dádivas que Deus concedeu à Espanha, está a de lhe ter envolvido por um panorama de montanhas as quais nos dão a impressão de haverem sido moldadas pela truculência de um gigante, um quebra-montes que, à força de pancadas e pontapés, desenhou aquelas cordilheiras, enquanto talvez dançasse uma jota ou cantasse uma saeta.

É uma natureza pobre, contrastando com a riqueza de vida e superabundância de coragem que leva o espanhol a realizar essa arte que nos deixam boquiabertos: são alegres na carência, na  necessidade, na falta de doces, de confortos. E essa felicidade de existir, de sentir a sua própria vida, de olhar para o Céu e pensar em Deus, está presente na canção de Natal espanhola. Eles oferecem ao Menino Jesus o seu júbilo por pertencer a esse povo, como se dissessem: “Senhor, Vós me deixais muito contente e cheio da coragem que Vós me destes! Homenagem a Vós, Senhor!”

A Santa Igreja vive na alma de povos diferentes, despertando distintos acordes com os quais eles cantam e glorificam o Natal de nosso Salvador

É um modo diverso, porém digno de festejar o Natal, pois é o povo que se oferece a si mesmo e a sua alegria como ação de graças a Deus. Gratidão preciosa, daquele que recebeu menos mas  demonstra toda a grandeza de sua alma.

Já o inglês, tão diferente do espanhol, apresenta uma analogia na maneira de entoar suas canções natalinas. A nação britânica canta também a sua alegria de viver e de ser conforme seus costumes peculiares.

Porém, não é saltitante nem procura se exprimir através dos superlativos como os castelhanos. A principal preocupação da música de Natal inglesa é ser equilibrada, procurando a beleza do  sentimento proporcionado, adequado, comedido.

E ele oferece ao Divino Infante a sua anglicidade, a sua personalidade, os seus problemas. Povo de gentlemen, dirige-se a Nosso Senhor como um gentleman, sem demonstrar tristeza nem  aborrecimento. Sabe que essa existência é árdua, mas não desanima, pois o Menino Jesus nos socorre e ampara.

São estes alguns exemplos de como a Cristandade canta o Natal. E servem para nos fazer compreender como a Igreja Católica vive na alma de povos diferentes, produzindo diferentes acordes.

Porque Ela é riquíssima e inesgotável em frutos de santidade, de perfeição. É como o sol quando atravessa vitrais de variegadas policromias: oscula o vidro vermelho e acende um rubi, o verde, e faz fulgurar uma esmeralda.

Assim o gênio da Igreja iluminando o povo alemão, o espanhol, o inglês ou qualquer outro, engendra maravilhas e inocências natalinas que devem nos cumular de admiração, comprazimento e  desejo de louvar o Verbo Eterno que se fez carne e habitou entre nós.

Plinio Corrêa de Oliveira – Revista Dr Plino 81 – Dezembro de 2004