Oração: “Mandai-me um raio de vossa luz”

Agradeço-Vos, ó Coração Sapiencial e Imaculado de Maria, por terdes me chamado para a excelsa condição de escravo vosso.

Entretanto, movido pelo desejo de levar até a sua mais alta plenitude essa condição, sinto os obstáculos que as infidelidades anteriores à minha vocação deixaram nesta minha alma tão misericordiosamente amada por Vós.

Entre esses está, sobretudo, o mau hábito de me voltar continuamente para assuntos banais e triviais, neles perdendo a atenção e o tempo concedidos por Vós para me enlevar com o que é nobre, digno e sublime, conforme a Vós, ó minha Mãe, que sois mais elevada do que os céus e mais sublime do que todos os coros de Anjos e Santos.

Sempre que suceder sentir-me atraído para as coisas banais e triviais, mandai-me um raio de vossa luz que reacenda em mim o desejo das coisas elevadas e celestes.

Ó Coração Sapiencial e Imaculado de Maria, fazei-me humilde, submisso, forte, nobre e  invencível, para que eu seja um perfeito escravo vosso, um enlevado e imbatível Apóstolo dos Últimos Tempos. Assim seja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Oração composta em 1967)

MODELOS DE HONRA, SÍMBOLOS DA FÉ

Entre as diversas e esplêndidas características da arte medieval, que nunca me sacio de elogiar, há uma espécie de deformação que se reveste de uma seriedade, uma catadura, uma força e uma  presença heráldica verdadeiramente magníficas.

Ora, algo parecido podemos encontrar nos profetas do Aleijadinho.

Em geral, homens feios. Porém, nada existe de mais belo, no Brasil, do que as célebres esculturas desse artista mineiro. São a sua obra-prima, considerada por todos os críticos modernos como filhas de inspiração medieval, embora a Idade Média há tempos já tivesse passado. São peças góticas, estupendas, que poderiam figurar sem demérito ao lado das imagens seculares que ornam as galerias e os nichos das maravilhosas catedrais europeias.

Nesses personagens talhados em pedra-sabão, o Aleijadinho soube exprimir de maneira esplêndida o que deve ser um profeta. E a deformidade deles, como nas melhores produções medievais, não faz senão acentuar a expressão simbólica que o gênio artístico desejou imprimir na sua obra.

Caixas toráxicas largas, pescoços taurinos, pernas um tanto curtas, musculosas e atarracadas, os braços compridos. As cabeças grandes em relação ao corpo, as orelhas avantajadas. Os olhos, igualmente exagerados para o contorno das faces, denotam a magnitude da alma. Porque tê-los desproporcionais para o rosto, assim como a cabeça o é para o corpo, significa possuir tudo quanto é cognoscitivo maior do que o funcional.

Detalhe que ressalta ainda mais a eloquente representatividade das imagens. Por sua vez, o desenho das barbas joga um papel peculiar na composição dessas figuras bíblicas: algumas volumosas, cheias, felpudas; outras, artisticamente talhadas, emoldurando os queixos proeminentes e vigorosos. Estas e aquelas simbolizando de modo extraordinário a força moral desses homens que atravessaram toda sorte de tormentas, de sofrimentos.

E todos aparentam uma saúde de ferro, física e, sobretudo, espiritual. Uma sanidade psíquica absoluta, objetividade completa, pensamento pão, pão, queijo, queijo; rudes e francos, paladinos da verdade sem simplificações nem relativismos. Homens dispostos a dizerem tudo a que foram destinados, ainda que o cumprimento de sua missão implique na luta e no holocausto da própria vida.

Guerreiros dotados de extrema coragem, imbuídos do espírito profético no que este tem de mais elevado. Gestos altamente expressivos, porque tocados por um vento também profético. Na verdade, nunca percebi vento animar tanto a pedra como nos profetas do Aleijadinho. É algo único e fantástico.

Se os olhos são grandes, fitam entretanto um ponto indefinido no horizonte, como o homem que traz a cabeça povoada de subidas cogitações. Contemplativos, acham-se na atitude de quem tirará  dessas reflexões uma invectiva.

Descansam da descompostura que acabaram de passar, e se preparam para a próxima. Instrumentos das recriminações divinas, polêmicos, determinados, movidos por uma superior certeza, nobres, sérios, sublimes. Não há um deles que não seja, também, modelo de honra. Cada qual, a seu tempo, foi um enviado de Deus, com visões místicas, com “flashes” próprios, com todo o direito de transmitir às gentes as mensagens recebidas do Senhor dos senhores. Falavam, proclamavam, e suas vozes reboavam como o som de bronzes tangidos gravemente. Nada neles procura se desviar para outra coisa que não seja a missão de divulgar a palavra divina. Nenhuma de suas virtudes é fingida, nenhuma dissipação em nenhum sentido. Vivem somente para o que foram criados. A honra do profeta é essa retidão integral, essa dignidade excelente, reconhecida pelos povos. Ele incute respeito.

Numa palavra, não conheço na iconografia católica figuras que exprimam tanta fé como esses profetas de Aleijadinho, que rugem um rugido eterno de pedra, hieráticos, imóveis, impassíveis. Figuras postas contra o firmamento, como se raspassem o Céu e tocassem quase em Deus, símbolos de um poder descido do alto.

Daí que não se poderia imaginar lugar mais propício para estarem. Encontram-se ali com uma tal ênfase, constituindo uma espécie de carrilhão em que cada um toca seu sino peculiar, e fazendo ouvir um conjunto que é só deles e de mais ninguém na História, que não se os concebe instalados em outro local.

Eles não ficariam bem dentro de uma igreja, de um templo, por mais colossal que fossem. Não. Dir-se-ia que a abóbada celeste é o único templo proporcional a eles, e tudo atrai para vê-los numa perspectiva do céu, para serem admirados em função das nuvens. Existem para o ar livre, para aquele descampado, ombreando as elegantes palmeiras imperiais que lhes servem de moldura.

Sem dúvida, uma obra-prima de encher a alma! Resta a pergunta: como, na Minas do século XVIII, quando a arte gótica estava mais no seu fundo e na sua desconsideração no mundo civilizado, surge um gênio como o Aleijadinho, apoiado por uma certa equipe de homens de considerável senso artístico, e revive uma Idade Média que, a meu ver, foi a época áurea da arte?

Como explicar que naquele Brasil das colônias se deu essa restauração, antecipando o próprio “renouveau” da Idade Média que aconteceria na Europa do século XIX? Aquela corrente artística então submersa, nas solidões brasílicas recobra vida, pelo indiscutível talento de um aleijado.

E nos fundos do sertão mineiro, as maravilhas medievais renascem, alcançando uma expansão e um florescimento com raro esplendor. Como?

Penso que só há uma resposta possível: foi por uma ação da graça, uma disposição misteriosa da Providência, desejosa, talvez, de fazer luzir em outros panoramas outras tantas belezas artísticas inspiradas pela Igreja — filhas daquelas que levaram a Civilização Cristã aos seus mais rutilantes dias de glória.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Fidelidade à estrela

Segundo uma bela tradição, baseada na exegese de algumas passagens da Escritura Sagrada(1), os Magos guiados pela estrela até Belém eram reis, possivelmente provenientes de pequenos e longínquos reinos.

Para Dr. Plinio(2), os três Reis Magos tinham como missão predispor seus respectivos reinos para a aceitação da Boa-Nova levada pelos Apóstolos ou por seus sucessores, cuja pregação encontraria receptividade da parte da população previamente preparada por seus monarcas.

Para isso — dizia Dr. Plinio —, o Menino-Deus deve ter tornado presente aos Reis Magos, por meio de graças místicas, algo de tudo quanto a Igreja e a Cristandade trariam de belo para a humanidade no decorrer dos séculos, com a promessa de que nas regiões por eles governadas isso se realizaria, se aqueles povos fossem fiéis.

Baltasar, Gaspar e Melchior eram, por certo, almas escolhidas e muito propensas ao maravilhoso, a ponto de se deixarem conduzir por uma estrela. Por isso suas pessoas aparecem nimbadas de uma atmosfera extraordinária, irradiando esse maravilhoso para o qual devem ter preparado seus pequenos reinos.

Sem dúvida, os Reis Magos foram objeto das orações de Nossa Senhora e de São José junto ao Divino Infante para o cumprimento de sua bela missão que, na opinião de Dr. Plinio(3), ultrapassou os limites do tempo e do espaço, estendendo-se a toda a História.

Procedentes de diversas raças, prefiguravam eles todos os povos que viriam adorar o Salvador. Por essa razão, os episódios históricos por eles vividos — a visão da estrela no Oriente; o encontro com Herodes; a insegurança deste rei iníquo e, com ele, de toda a cidade de Jerusalém; a alegria ao reavistarem a estrela; a adoração feita ao Menino, junto a Maria, sua Mãe; a oferenda de ouro, incenso e mirra; o aviso recebido, em sonho, para voltarem por outro caminho(4) — estavam envoltos em aspectos simbólicos que indicavam terem os Magos recebido de Deus uma autêntica e misteriosa delegação: representar as nações que, no futuro, se abririam à influência da Santa Igreja Católica.

Delegação semelhante encontramos junto à Cruz, onde Nossa Senhora, São João e Santa Maria Madalena representavam todos os católicos que ao longo da História permaneceriam fiéis aos pés do Crucificado.

Essa ideia deve dar muito alento àqueles que, nas horas difíceis da Igreja ou da Civilização Cristã, padecem incompreensões, humilhações, perseguições, e que, embora pouco numerosos, procuram representar em seus respectivos ambientes, a pureza, a ortodoxia, a intrepidez, o espírito de iniciativa, no momento em que tudo pareceria falar em recuo, em transigência, em fuga. Esses, por sua fidelidade, além de alegrar o Menino Jesus em sua pobre manjedoura ou consolar o Redentor em seus padecimentos no alto da Cruz, representam de algum modo os católicos fiéis do passado e os que o serão no futuro.

Há, portanto, uma espécie de reversibilidade por cima do tempo e do espaço, por onde essas várias ações se fundem numa cena única e grandiosa.

Peçamos aos Reis Magos que orem por nós para que tenhamos uma das muitas formas de coragem que poderão nos ser pedidas: a de estarmos sós como eles estavam no mundo pagão, à espera da estrela, isto é, da hora de Deus para cumprir com toda retidão, constância e pontualidade a vontade divina.

Para eles, a hora consoladora foi aquela em que contemplaram o Divino Infante nos braços de Maria Santíssima.

Também para nós chegará um momento muito preciso em que uma estrela nos dirá que a hora esperada chegou!

Não será, provavelmente, uma estrela exterior, mas uma voz interior, à qual devemos estar atentos e dóceis, a fim de nos prepararmos para, nessa hora, sermos modelos de exatidão e fidelidade como os Reis Magos.

 

1) Cf. Sl 72, 10-11; Is 60, 3.

2) Cf. Conferência de 22/12/1989.

3) Cf. Conferência de 5/1/1964.

4) Cf. Mt 2, 1-12.

Alta vocação dos Reis Magos

Todos os sacerdotes, reunidos no Templo, deveriam ter comunicado ao povo que os tempos haviam chegado à sua maturidade e, conforme as profecias, afinal o Messias iria nascer. Contudo, foi preciso que viessem de longe os Reis Magos para anunciar em Jerusalém o seu nascimento. Isso mostra o cúmulo da degradação a que essa cidade, ainda não deicida, havia chegado.

Dom Guéranger faz os seguintes comentários a respeito  da vocação e dignidade dos Magos.

Os Reis Magos professam o desejo firme de adorar o Messias.

Tendo a estrela anunciada por Balaão se levantado sobre o Oriente, os três Magos, cujo coração se tinham aberto à espera do Messias Libertador, sentiram antes de tudo a impressão de amor que os levava a Ele. Eles receberam a nova da alegre vinda do Rei dos Judeus de um modo místico e silencioso, diferente dos pastores de Belém aos quais a voz de um Anjo convidou para irem ao Presépio. Mas a linguagem muda da estrela é explicada em seus corações pela ação do Pai Celeste que lhes revelava seu Filho.

Nisto sua vocação foi mais alta em dignidade do que a dos pastores, os quais, segundo as disposições divinas na antiga Lei, nada conheceram a não ser pelo ministério dos Anjos, mas se a graça divina se dirigiu imediatamente a todos os corações pode-se também dizer que ela os encontra fiéis.

Os Magos, falando a Herodes, exprimiram a simplicidade de sua empresa: “Nós vimos sua estrela e viemos para adorá-Lo”. Esses reis dóceis deixam, portanto, de um momento para outro, sua pátria, suas riquezas, seu repouso para caminharem em seguimento de uma estrela de que eles ignoravam o termo.

O poder de Deus que os tinha chamado os reunia em uma mesma viagem em uma mesma fé. Os perigos da viagem, os cansaços, o temor de se levantarem contra si as suspeitas do Império Romano, nada os fez recuar. Seu primeiro passo, seu primeiro repouso foi em Jerusalém. É, pois, nesta cidade sagrada que em pouco tempo será maldita que eles chegam, eles gentios, para anunciar Jesus Cristo e declarar que Cristo veio. Com toda a segurança, toda a calma dos apóstolos e dos mártires, eles professam seu desejo firme de adorar o Messias. Eles obrigam a Israel, depositária dos oráculos divinos, a confessar um dos principais caracteres do Messias: seu nascimento em Belém.

Herodes se agita em seu leito e medita o projeto de carnificina, mas é tempo para os Magos deixarem a cidade infiel, que já recebeu por sua  presença o anúncio de seu repúdio. A estrela aparece no céu e os reis decidem tomar novamente seu caminho. Mais alguns passos eles estarão em Belém, aos pés do Rei que eles vieram procurar.

A vocação dos Magos foi mais alta do que a dos pastores

Esses comentários são borbulhantes de ideias profundas, das quais cada uma mereceria verdadeiramente uma conferência.

A primeira ideia é uma comparação entre os Magos que foram procurar o Menino Jesus, guiados pela estrela, e os pastores. Mas é uma comparação que procura o valor de procedimento de uns e de outros perante o Natal, pelo modo através do qual foi noticiada a uns e outros o advento de Jesus Cristo.

Então ele diz que a chegada de Jesus Cristo foi anunciada aos pastores pelos Anjos. E aos Magos certamente por uma estrela que estava no céu, mas eles souberam que ela significava a vinda do Messias. Como? Em virtude de comunicações internas de caráter místico e silencioso operadas pela graça de Deus na alma de cada um, fazendo com que, quando a estrela chegasse, eles soubessem tratar-se do anúncio do Messias que vinha. Então, tocados por um movimento que era uma fidelidade à voz interna do Padre Eterno na alma deles, os Magos acreditaram na estrela, e como esta se movia  eles a seguiram.

Temos, assim, dois processos. Um é o anúncio de fora para dentro: os pastores, por um fato externo a eles, altamente miraculoso e extraordinário, ficam sabendo que o Messias nasceu. Pelo contrário, os Magos tomam conhecimento de que o Messias nasceu por meio de um fato interior, o qual a estrela apenas esclarece um pouco mais.

Voz interior provocada pela graça

O que tem mais mérito: seguir os Anjos ou a voz interior? Segundo a “heresia branca”

seria os Anjos porque, para esse tipo de mentalidade, a aparição de um Anjo é a prova da santidade; mais ainda, se uma pessoa tem a emoção santificante de ver o Anjo, naquela sensação ela fica santa de uma vez. É uma espécie de suspiro santificante. De maneira que o mais importante é ter recebido o anúncio de um Anjo e corresponder.

Além disso, é mais espetacular ver o Anjo, porque voz interior, quantos têm? Depois, sabe-se lá se é voz interior ou não? Pode haver dúvidas. Com um Anjo não, é uma coisa provada, garantida e, ademais, importante: Deus mandou um Anjo para falar com aquele; oh, não é pouca coisa! Voz interior é a vida de todos os dias, uma coisa apagada, sem graça, desbotada. Então, muito mais vale receber um anúncio pelos Anjos, e é mais fiel quem o segue.

Entretanto, Dom Guéranger, um grande teólogo e especialista na consideração destes temas, mostra que a operação interna da graça numa alma vale mais do que qualquer fato externo, e que a fidelidade à voz interior é mais  preciosa do que a fidelidade a um anúncio exterior; e por causa disto aqueles que não viram o Anjo, mas creram nessa voz interior, tiveram maior mérito. Evidentemente, a voz interior não é um cochicho, mas um jogo de espírito provocado pela graça, por onde a alma percebe, discerne, pondera e, iluminada pela graça, chega às conclusões impregnadas de espírito de fé.

Esse é diretamente um fruto do Espírito Santo, e a fidelidade a isso é mais árdua, mas ao mesmo tempo mais meritória, do que a fidelidade dos pastores ouvindo a voz dos Anjos.

Poder-se-ia objetar: “Mas essas vozes interiores às vezes enganam”.

É bem verdade, mas qual é a consequência?

É que Deus faz mal em nos falar por meio da voz interior? Quem ousaria censurar o Onipotente? E se Deus não faz mal, deveríamos não ouvir, como quem dissesse: “Deixa-O ir falando…”?

Há uma frase na Escritura que diz: “Se hoje ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações” (Sl 94, 8). Portanto, não podemos fazer ouvido mouco à ação interna da graça na alma, mas devemos saber discernir, com o auxílio que o próprio Deus nos dá para isso.

Aqui se aplica bem a palavra de Nosso Senhor a São Tomé: “Tu creste porque me viste. Bem-aventurados os que não viram e creram” (Jo 20, 29).

É fecundíssimo este pensamento.

Jesus no berço já estava dividindo, causando polêmica

Outro aspecto que o texto ressalta é a degradação do povo eleito. Nascido o Messias, esse povo deveria receber o aviso de seu nascimento.

Ora, esse aviso precisaria ser dado em Jerusalém e no Templo. O normal seria que todos os sacerdotes reunidos no Templo, num momento em que uma nuvem áurea entrasse no recinto sagrado e um cântico angélico se deixasse sentir, tivessem a confirmação daquilo do que suas almas já lhes estavam dizendo, ou seja, que os tempos haviam chegado à sua maturidade, que os fatos conferiam com a descrição das profecias e que, afinal, o Messias ia nascer. Contudo, foi preciso que viessem de longe os Reis Magos – gentios, pagãos, alheios à nação, filhos, portanto, de povos reprovados e condenados – para anunciar em Jerusalém que o Messias tinha nascido.

Quer dizer, é o cúmulo da degradação para Jerusalém ainda não deicida, mas que nada faltava para ser deicida. É interessante notar a reação dos sacerdotes. Eles confirmaram que o Messias deveria nascer em Belém e, com isso, indicaram uma das características de que de fato aquele era o Messias. Portanto, sem quererem, prestaram um testemunho de que aquele nascimento se operava nas  condições previstas pelas profecias.

Assim, involuntariamente, eles serviram à causa de Jesus Cristo. O resto é só miséria. Herodes ordenou a matança, quis eliminar o Menino.

Não consta que ninguém na Sinagoga tenha se revoltado contra isto. Nem creio que a Sinagoga, já tão pacifista, se incomodasse com derramamento de sangue dos inocentes…

O resultado é que começou a luta da Sinagoga contra Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele encontrava-Se no berço e já estava dividindo, causando polêmica; não era a causa, mas o motivo de um morticínio. O primeiro sangue derramado por Ele foi vertido quando ainda era Menino.

Pedra de escândalo para que se revelassem as cogitações de muitas almas, para construção e edificação e para a perdição de muitos, como disse bem depois o Profeta Simeão (cf. Lc 2, 35).

Essas são as considerações que me parece a propósito fazer a respeito do dia de Reis.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/1/1966)

Admiração: nossa estrela de Belém

O substrato mais profundo da retidão de alma é o gosto de admirar.

O homem que passa a vida procurando admirar, amar e servir a virtude e a santidade encontra nisto o seu prazer e a sua alegria. Assim, ele sente mais deleite em estar numa choupana ou num leprosário conversando com um verdadeiro santo, do que em habitar num lugar esplendoroso, em meio aos pecadores.

A admiração nos guia e faz intuir o nosso caminho, dando-nos a capacidade de esperar, com calma, diante das desventuras mais pasmosas, porque a admiração é a nossa estrela de Belém.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 18/6/1986 e 10/7/1994)

Onde há lugar para todos…

Quis a Providência que o Menino Jesus recebesse a visita de três sábios — que, segundo uma venerável tradição, eram também reis — e alguns pastores. Dois extremos da escala humana de valores. A graça divina, que chamou para junto da Sagrada Família os Reis Magos, do fundo de seus longínquos países, chamou também os pastores, do fundo de sua ignorância.

E como se apresentaram eles? Bem caracteristicamente como eram: os pastores lá foram levando seu gado, sem disfarçar sua condição humilde; os Magos se apresentaram com seus tesouros, ouro, incenso e mirra, sem procurar ocultar sua grandeza. A piedade cristã, expressa numa abundante iconografia, entendeu durante séculos, que os Reis Magos se dirigiram a Belém com todas as suas insígnias.

Quer isto dizer que ao pé do Menino-Deus cada qual se deve apresentar tal como é, sem disfarces nem atenuações, pois há lugar para todos: grandes e pequenos, fortes e fracos, sábios e ignorantes.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de “Catolicismo”, dezembro de 1955)

Nunca abandonar a oração!

Deus não ouve a prece do pecador” — é a desalentadora justificativa que uma pessoa provada poderia alegar para não seguir a máxima de Santo Afonso de Ligório, segundo a qual jamais devemos deixar de rezar. Em outro destacado trecho de seus comentários ao livro “A oração, grande meio da salvação”, Dr. Plinio nos ensina como vencer esse perigoso escolho na vida espiritual.

No espírito de muitos católicos se encontra subjacente uma séria objeção quanto à eficácia da oração do pecador. Não há mistério no fato de Deus atender as súplicas de uma alma reta, posto estar Ele em boas relações com os justos. Compreende-se que uma pessoa poderosa, mantendo bom  relacionamento com outra que lhe é inferior, seja propensa a satisfazer os pedidos dessa última.

O mistério, porém, começa a aparecer quando se trata das preces do pecador, pois este simplesmente não merece ser atendido: seja por se achar em estado de pecado mortal, ou porque, inconstante na vida espiritual, várias vezes se mostra infiel e não costuma corresponder bem à graça. Então, por que Deus há de atender às orações dele?

Dúvida corroborada pela Sagrada Escritura?

Claro, o problema se põe de forma mais aguda se considerarmos a fealdade do pecado mortal, o horror que Deus tem a essa falta grave e a quem a comete, impondo-se a pergunta: como alguém nesse estado esperará a benevolência divina em seu favor? Pode-se compreender facilmente que Deus, por um ato de sua vontade, queira acolher os rogos do pecador.

Mais difícil é, porém, compreender que o pecador possa ter a certeza de que o Senhor queira ouvir sua oração.

A posição razoável de um pecador diante de Deus pareceria ser esta: “Eu O ofendi, e não sei o que Ele fará, já que de vez em quando Ele atende alguns pecadores. Então, vou jogar também a minha ficha na roleta e tentar a sorte rezando alguma coisa. Deus me será propício, conforme esteja ou não de boas. Cabe a mim reconhecer a prerrogativa d’Ele de não me atender, pois eu pequei. O contrário seria afirmar que o pecador tem o direito de ser escutado por Deus, e não sei em que se basearia esse direito numa pessoa em estado de pecado mortal”. Para corroborar essa incerteza,  lemos frases terríveis da Escritura, mencionadas por Santo Afonso de Ligório.

Primeiro, uma do Evangelho de São João: “Deus não ouve o pecador” (Jo 9,31). Outra, mais séria, em Isaías: “Quando estenderdes as vossas mãos, apartarei de vós os meus olhos; e quando   multiplicardes as vossas orações, Eu não as atenderei” (Is 1,15). E do livro dos Macabeus: “Este celerado orava ao Senhor do qual não há de alcançar misericórdia” (Mac 9,13).

Ora, ao ler essas frases, a conclusão parece ser a seguinte: “Se estou em estado de pecado mortal, sou um celerado que reza para Deus e não alcançará misericórdia”. A muitas almas o problema se põe nestes termos pavorosos, e é assim que o devemos tratar nessa exposição.

Deus não desampara o que deseja se salvar

Com base em São Tomás e em outros Doutores, Santo Afonso de Ligório — ele mesmo um Doutor de grande autoridade — interpreta as frases da Escritura acima citadas. É verdade, diz ele, que Deus não ouve o pecador, porém quando se trata do faltoso que pede algo necessário para a realização do seu pecado. A situação é diferente se imaginarmos um pecador que deseje se emendar, mas tem apenas uma veleidade de se salvar… A partir desse ponto inicial, ele fará umas orações para mudar de vida, marcadas por veleidades.

Apesar de todos os pecados, infidelidades, ingratidões e imperfeições, se no ponto inicial ele tiver esse anseio orientado para a salvação, ainda que débil, a oração será atendida porque agrada a Deus.

É preciso analisar bem qual é o alvo da oração, para poder classificá-la. Aprofundando sua explicação, Santo Afonso de Ligório continua: quem está rezando para se salvar, ainda que faça uma oração tíbia, pode estar certo de que Deus não o abandonou, pois sua súplica só pode ter sido inspirada por Ele. Por pior que seja a pessoa, se ela faz um pedido tão meritório é porque em alguma fímbria de sua alma existe esse anelo de ser boa. Se está desejando, é porque em certo sentido vê a Deus e, portanto, Ele não a abandonou.

Com muito acerto, salienta Santo Afonso que Deus não nos dá desejos inúteis. Sabemos pela Fé ser impossível alguém pedir a própria salvação e santificação sem uma inspiração divina. Ora, seria burlesco da parte de Deus inspirar tal pedido, se de antemão Ele resolveu não atender nem santificar aquele que o faz. É impossível, Deus não age assim.

Basta, portanto, ao pecador ter um remoto, longínquo vislumbre de vontade de se santificar e rezar nessa intenção, para estar seguro de que Deus o atenderá. Quanto mais rezar, mais dons do Céu obterá. Havendo uma longa perseverança, ele acabará recebendo de Deus graças extraordinárias e se salvará.

A questão é não deixar de rezar. Santo Afonso de Ligório emprega uma imagem que eu gostaria de transformar em quadro, se soubesse pintar: um abismo sobre o mar, com todos os horrores imagináveis e uma pessoa suspensa por um fio, acima do precipício. Esse fio é a oração. Enquanto ele permanece ligado, há esperanças; caso contrário, a pessoa pode ter certeza de estar se  isolando e se distanciando de Deus.

Nessa ordem de idéias, há outra consideração mais profunda. Até mesmo quem pára de rezar é comparável ao arbusto partido e à mecha que ainda fumega. Assim, enquanto a pessoa viver, Deus lhe concede a graça de querer rezar. Se ela corresponder, o resto vem por si, pois a Providência a auxilia.

Na verdade, tudo se cifra em nunca parar de pedir a própria salvação e santificação.

E fazê-lo com importunidade. Como já vimos em anterior exposição, Santo Afonso de Ligório insiste nesse ponto: Deus quer ser importunado pelas nossas preces, que Lhe serão tanto mais agradáveis quanto mais persistentes. O homem que reza dessa forma pode esperar muito de Nosso Senhor.

Aquele que, por desconfiança da bondade divina ou por qualquer outra razão (como negligência ou preguiça) não puxa a corda da importunidade, pode não ser atendido conforme deseja.

O regime da misericórdia e o da justiça

Desenvolvendo agora mais um aspecto da nossa pergunta inicial, importa saber porque Deus age razoavelmente  atendendo à oração do pecador.

A resposta se filia a outra questão muito simples: por que Deus, depois do primeiro pecado mortal, não tira a vida do pecador, mas permite-lhe passar por um período de provas? Para determinar a solução do problema, devemos recorrer a uma ordem de considerações que diz respeito à diferença entre o ato de vontade do anjo e o do homem.

São Tomás de Aquino explica que a vontade angélica, por natureza, adere ao objeto apetecido, de maneira inamovível, ao passo que a humana o faz de modo movível. Assim, uma vez tendo se decidido por algo, o anjo não volta atrás. Donde, cometido o primeiro pecado, é natural que o anjo fosse precipitado no inferno.

Com o homem, porém, em virtude da natureza variável de seu ato de vontade, não se dá o mesmo. Deus benignamente contemporiza com ele, proporcionando-lhe outras oportunidades, porque conserva em relação ao homem uma solicitude e um amor — por assim dizer — suspensos pelo pecado, mas não destruídos na sua raiz.

Agindo dessa sorte, Deus é como um pai que não se decide a expulsar de casa o filho que lhe dá muitos dissabores. Poderá até castigar o rebento ruim, mas se não o rechaça, é porque conserva intactos uma certa raiz de boa vontade para com ele, e um certo lado por onde ele ama o filho, pois há uma probabilidade de este se converter.

Sim, Nosso Senhor mantém de pé esse ato de amor em relação a todos  os homens vivos neste mundo, e está disposto, a todo momento, a torná-lo efetivo, por pouco que nos voltemos para Ele.

Entretanto, esse regime cessa no momento da morte: a misericórdia termina e começa a hora da justiça. Enquanto isto não acontece, estamos no regime e na era da clemência. Deus Nosso Senhor ampara o homem, e é razoável que o faça.

Então, não será árduo entender que, na economia normal da Providência, toda pessoa possui razões para ter confiança, estando viva. A ideia do indivíduo abandonado, que nem sequer rezando obtém o que pede, é de fundo calvinista. A noção de um destino que se realiza independentemente da vontade humana, não é católica e deve ser banida do nosso subconsciente.

Se estamos vivos corporalmente, temos a possibilidade de readquirir a vida da alma. Em conseqüência, sempre vemos aberta diante de nós a porta da esperança. E ainda que pecador, o homem pode confiar na sua conversão e emenda, com a alegria de se saber vivendo no regime de um Deus bom, que o ouvirá tão logo se volte para Ele.

A confiança, condição para vencer o desespero Essa disposição de alma se faz mais necessária nesta época em que a vida espiritual está mudando sob o signo do desespero. À medida que a existência moderna, com seus horrores, torna-se mais difícil para todo o mundo, as pessoas vão tendo cada vez mais atitudes próximas ao desespero, e vai se multiplicando o número de homens com uma espécie de tendência natural malévola de desconfiança em relação a Deus. Não querem contas com Ele: “Deus é um e eu sou outro. Eu me arranjo por mim, não tenho pacto de amor nem de amizade com Deus. Ponha-se Ele do seu lado como entender; eu vou me arranjar por mim”.

Almas assim têm quase uma espécie de raiva da misericórdia de Deus, a ponto de, às vezes, até não gostarem que outros rezem por elas, pois  não desejam sequer se servir de um guincho para sair de seus problemas espirituais.

Quantos desses espíritos rebarbativos ainda acreditarão na misericórdia, quando chegar o momento de a justiça divina se manifestar? E quantos terão confiança na bondade de Deus, de modo a suportar todos os sofrimentos com a convicção de que, no fim, tudo acabará dando certo? Tenho a impressão de que só os confiantes poderão atravessar essa época de caos e desespero. Quem não confiar, enfrentará muita dificuldade, devido a esse pessimismo espiritual decorrente de um pessimismo em relação à vida temporal.

Nesse sentido, recordo-me de um fato que se deu comigo há certo tempo, e que me causou não pequena impressão. Ao sair da faculdade em que dera aula, tomei um táxi de volta para casa e disse ao chauffeur (pessoa, aliás, inteligente): “Vamos para a Rua Alagoas, 350”. Ele respondeu: “Já sei”. Quando indiquei o melhor caminho a tomar, ele me atalhou: “Já seeei, já seeei…”

Fiquei quieto. Ele continuou: “Eu não prestei atenção em quem entrou no automóvel, mas o reconheci pela voz, porque eu fui pegar o senhor em tal noite de Natal, na Rua Alagoas, 350. Levei-o para assistir à Missa do Galo nas Perdizes. Além disso, o senhor vai muito a uma casa da Rua Martim Francisco, de onde, às vezes, eu o conduzo para a sua residência. Era um chauffeur de um ponto das vizinhanças. Para ser amável, fingi que também o reconhecia, e lhe perguntei-lhe:

— Como é que você vai?
— Eu vou mal! Sou diabético. Era tratado por um ótimo médico, mas ele morreu e não me cuidei mais. Agora como de tudo, sem me preocupar com regimes.— Não faça isso, é um absurdo!
— O que vai acontecer?
— Você vai morrer!
— Esta vida é tão horrível… Deixa eu morrer de uma vez. Eu como à vontade.

Com essas palavras ele queria dizer: “A vida é tão horrorosa, que o único prazer que tenho é a gastronomia. Então é melhor aproveitar este deleitezinho e depois morrer, do que continuar vivendo”.

Para assustá-lo, disse-lhe que isso era contra a caridade que se deve ter para consigo mesmo. Não adiantou.

— Você ficará cego! — insisti. Conheço casos de diabéticos que acabaram perdendo a visão.

Ele aí se assustou e resolveu consultar outro bom especialista.

Premunir-se contra o pessimismo por meio da oração

O estado de espírito desse chauffeur é bem característico e freqüente nessa época contemporânea: “Vivo para gozar. Enquanto houver um pouquinho de prazer na vida, quero devorá-lo. Suprimido esse pouquinho, já não me interessa viver. Contudo, se há possibilidade de eu ficar cego e a minha existência piorar, então to tomo providências, porque senão seria uma tragédia.” Ora, hoje em dia as almas precisam se premunir muito contra esse pessimismo, compreendendo bem que, apesar de todas as aparências em contrário e dos horrores em que  estamos, Deus é bom, e a vida  terrena pode dar certo, pelo menos na perspectiva do Céu. E se ela tem  sentido em ordem à bem-aventurança eterna, não é preciso mais nada, pois o Céu explica tudo.

Assim, devemos viver com alegria e coragem. Mas, essas disposições não se alcançam sem a oração. Se  não houver a prece perseverante, insistente, confiante, dando-nos sempre esperança,  ficamos entregues às catástrofes interiores, crises nervosas, pavores, psicoses… Este é, realmente, um dos pontos mais importantes a serem meditados no ensinamento de Santo Afonso de Ligório.

Contemplativo e guerreiro

São Bento Biscop fundou as manifestações artísticas do ambiente religioso na Inglaterra, mandando vir artistas com verdadeira inspiração católica e estabelecendo uma ordem nas festas litúrgicas.
Com isso, introduziu elementos de beleza dentro da vida religiosa que depois se difundiriam para a vida civil. Por esse meio ele foi o decorador da Inglaterra de seu tempo. Seus adornos não eram emolientes, tolos ou fúteis, mas tinham dois grandes elementos de inspiração: a profundidade de um contemplativo e as reminiscências do antigo guerreiro.
Os santos que meditam, contemplam profundamente e sabem ser guerreiros, esses estão na origem de todo surto artístico verdadeiro, presidem a aurora e a ascensão da arte.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/1/1966)

O obelisco do Vaticano

Sobre diversos monumentos da Cristandade, o dedo de Deus como que pousou e os revestiu de charme. Diversas vezes, o charme que neles notamos não é senão a própria manifestação da graça divina. Isso transparece de modo mais admirável, a meu ver, no obelisco da Praça de São Pedro. Posto na areia do deserto ou perto de uma pirâmide, na entrada de um templo ou ao lado da esfinge de Gizeh, ele não causaria a impressão que nos causa junto à Basílica do Vaticano. Perto daquele obelisco, minha alma sente uma reverência à pessoa do Papa, ao trono do Príncipe dos Apóstolos.

O Vigário de Cristo é o obelisco da Igreja Católica. O lema dos cartuxos “stat Crux dum volvitur orbis” (“a Cruz permanece firme enquanto o mundo gira”) bem poderia estar inscrito na base do obelisco, porque é a sensação que ele transmite: a de um centro em torno do qual a Terra gira, mas que fica imóvel. É a Igreja infalível, eterna, representada pelo Sumo Pontífice. Está tudo dito.

Plinio Corrêa de Oliveira

Misericordiosos olhos que nos converte

 Quando menino, aos doze anos de idade, diante de uma imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, venerada na Igreja  do Sagrado Coração de Jesus, Dr. Plinio foi “contemplado” pelo misericordioso e compassivo olhar de Maria Santíssima. A graça recebida nessa ocasião marcou profundamente sua vida.

Procurando fazer melhor explicitação a respeito de Nossa Senhora, recentemente encontrei uma figura que, embora muito simples, exprime bem meu pensamento. Não sei se ela, em Geometria, é inteiramente exata, pois, como todos sabem, meus conhecimentos nessa matéria são os mais sumários e desinteressados possíveis.

Imaginemos um poliedro, um corpo com várias faces — esta é a ideia muito primitiva que tenho de um poliedro —, bem construído. Se suas faces são triangulares, olhando-se para uma delas, se vê de certo modo as outras, pois todas têm a forma de um triângulo.

Assim é a Mãe de Deus, cuja perfeição é supereminente, e a Quem a Igreja vota o culto de hiperdulia. Considerando-se uma de suas altíssimas qualidades, percebe-se que Ela tem igualmente todas as outras virtudes de que uma criatura humana seja capaz. Conhecida, por exemplo, sua fé, se entende sua esperança e sua caridade. Vendo-se um lado do poliedro, se intui como são todos os outros, com suas dimensões. Se, conforme a Geometria, o poliedro não é exatamente assim, essa figura serve ao menos como metáfora.

Compaixão de Nossa Senhora

O que mais me tocou, primeiramente, em Nossa Senhora não foi tanto sua santidade virginal e régia, mas a compaixão com que Ela olha para quem não é santo, atendendo com pena e solícita em dar, em suma, uma misericórdia que tem as mesmas dimensões das outras qualidades. Quer dizer, inesgotável, clementíssima, pacientíssima, pronta a ajudar a qualquer momento, de modo inimaginável, sem nunca ter um suspiro de cansaço, de extenuação, de impaciência, mas sempre disposta não só a repetir sua bondade, mas a superar-se a Si própria. De maneira que feita tal misericórdia, embora mal correspondida, vem outra maior. Por assim dizer, nossos abismos vão atraindo sua luz. E quanto mais fugimos d’Ela, mais as graças por Ela obtidas se prolongam e se iluminam em nossa direção.

“Um olhar que me deixou calmo para a vida inteira”

Comparemos o miosótis com o sol. Entre nós e a Santíssima Virgem a diferença transcende ainda mais. Embora seja Ela mera criatura, sua ação poderia ser comparada com o efeito do olhar de Nosso Senhor para São Pedro, que O renegou durante a Paixão e o galo cantou. Quando o Redentor o fitou, ele se sentiu tomado por inteiro. O Apóstolo havia sido testemunha direta ou tivera repercussão imediata de tudo quanto os Evangelhos narram, e conhecia Nosso Senhor perfeitamente. Naquele olhar ele recebeu uma comunicação de tudo quanto sabia, mas com tal acento e esplendor, que derrubou sua ingratidão: “Et flevit amare — E chorou amargamente” (Lc 22, 62). A grande contrição de Pedro é um dos fatos mais bonitos da história dos santos.

Quando menino, tendo ido à Igreja do Coração de Jesus e, pela primeira vez, atinado com a imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, não tive nenhuma visão, êxtase ou revelação. Mas me senti como se a imagem me olhasse, e tive conhecimento como que pessoal dessa bondade insondável que me envolvia totalmente. Ainda que eu quisesse fugir ou renegar, Ela me pegaria afetuosamente e diria: “Meu filho, volte de novo, aqui estou Eu!”, fazendo-me entender a profundidade dessa misericórdia.

Em primeiro lugar, fiquei calmo para a vida inteira. De fato, por maiores que sejam as dificuldades, se estamos envolvidos por essa misericórdia, podemos descansar; porque no fundo, para quem não é brutalmente insensível, mas se volta à Virgem Maria, Ela acaba arranjando todas as coisas. E, notem bem, uma das coisas que — dentro da indefinição de minha mentalidade de menino, entretanto eu tinha bem claro mais me enlevaram, foi que isso não era um privilégio para mim, mas era a atitude d’Ela diante de todos os homens.

Nossa Senhora poderia condescender em querer tratar-me como um privilegiado; porém, tive cognição do contrário: Para todas as pessoas que existiram e existem, todos os pecadores que estão nas ruas, nas casas, nos bondes, nos automóveis, etc., Ela é exatamente assim. Porém, muitos A rejeitam.

Tenho muita pena quando vejo alguém — um “enjolras”(1), por exemplo — nervoso e com problemas; penso: “Por que não posso comunicar-lhe um olhar como o que recebi de Nossa Senhora? Ele ficaria calmo para a vida inteira”.

Não consigo exprimir completamente como foi essa graça. Quando rezo o trecho do Magnificat “et misericórdia eius a progenie in progenies timentibus eum”, quer dizer, a misericórdia de Deus vai de geração em geração a todos os que O temem, sempre pensei: “É bem verdade, e por meio de Maria Santíssima. Ela é a misericórdia insaciável, que não acaba, mas se multiplica solícita, bondosa, tomando nossa dimensão e, por compaixão, faz-se até menor do que nós para nos acolher.”

Muitos pensam que eu sou uma fera, não tenho pena dos outros. Eles não têm ideia do que é essa cognição da misericórdia de Nossa Senhora, a qual penetrou em minha alma.

Misericórdia, pureza, fortaleza e sabedoria de Nossa Senhora

Considerando essa misericórdia, vem-nos à ideia a virginalidade de Maria Santíssima, porque essas noções, por assim dizer, se contêm umas nas outras. Ela é pura, com um grau de pureza indizível. Conhecida a misericórdia se conhece a pureza; é novamente a figura do poliedro. Qualquer castidade que se possa conceber não se compara à pureza d’Ela, toda feita não só de ausência de qualquer pendor para o mal, mas de um jorro de alma direta e exclusivamente para Deus, sem compromisso com mais nada e ninguém, um élan inteiro, de uma força, integridade, um desejo de Absoluto, que não se pode medir.

A pureza de Nossa Senhora, comparada à de outras pessoas, é como a alvura da neve em relação ao carvão.

E, na perspectiva em que me coloco, a pureza traz consigo a ideia da fortaleza, a qual não significa que nada quebra. É algo diferente: ante o que a Mãe de Deus, na sua pureza, decidiu, o resto do mundo se flecte pela força da vontade d’Ela; é um ímpeto, uma resolução, uma ausência de possibilidade de resistência de qualquer pessoa ou coisa que seja, uma soberania, um domínio numa tal dimensão que não há palavras humanas para exprimi-la.

Hoje se fala de obuses e outras armas. Na realidade, são simples caranguejolas inofensivas e ridículas em comparação com um ato de vontade, uma preferência da Santíssima Virgem.

Por sua vez, essa fortaleza, misericórdia e pureza trazem uma ideia de sua sabedoria lúcida, adamantina, dispositiva de todas as coisas, nunca tendo qualquer dúvida, mas somente certezas. Quer dizer, Ela conhece todas as coisas, suas inter-relações, e penetra até as entranhas de todo ser. O universo é tão grande! Pelo fato de Nossa Senhora compreender a ordem do universo e o seu ponto ápice, mais uma vez vislumbramos qual é a imensidade de sua pureza, fortaleza e misericórdia.

Essas são as virtudes que, de momento, mais me chamam a atenção quando me lembro do olhar de Nossa Senhora Auxiliadora na Igreja do Sagrado Coração de Jesus.

“Meu filho, Eu te quero”— “Minha Mãe, eu sou vosso”

Poder-se-ia perguntar-me: “O senhor recebeu esse olhar quando menino, com onze, doze anos; e nunca mais houve algo semelhante?”

Essa graça me foi dada de tal maneira que ficou como um sol para a vida inteira. O fato parece ter ocorrido ontem. A Santíssima Virgem como que me disse: “Meu filho, Eu te quero.” E eu declarei: “Minha Mãe, eu sou vosso.”

Alguém indagaria: “Mas nessas considerações onde o senhor coloca a Nosso Senhor Jesus Cristo?” Respondo: “Em tudo!” É a ideia que São Luís Grignion desenvolve muito: Nossa Senhora é o claustro, o oratório, o tabernáculo sagrado onde está o Redentor, e quanto mais estivermos próximos d’Ela, tanto mais estaremos próximos de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Imaginem Nossa Senhora no período em que, no seu corpo virginal, estava se formando o Menino Jesus, por ação do Espírito Santo, e que alguém quisesse adorar ao Messias, abstraindo d’Ela.

Seria uma estupidez, não teria sentido!

Sei que estarei mais unido a Nosso Senhor quanto mais estiver unido a Maria Santíssima.

Naturalmente, daí decorre que minha devoção a Ele passa por Ela. Creio que mesmo nas ocasiões de maior cansaço — espero, pelo menos —, quando faço referência à adoração devida a Nosso Senhor, logo depois falo de sua Mãe Virginal. É sistemático.

Dir-se-á: “Mas muitas vezes o senhor fala sobre Ela sem se referir a Ele.” Sim, porque Ele é infinitamente maior do que Ela. Assim, falando d’Ela, Ele está implicitamente contido. Mas, tratando a respeito d’Ele, Ela não está implicitamente contida. Por isso, queiram ou não queiram, gostem ou não gostem, se Nossa Senhora me ajudar, farei isto até morrer.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/1/1982)
Revista Dr Plinio 142 – Janeiro de 2010

1) Palavra afetuosa utilizada por Dr. Plinio para designar seus jovens discípulos, surgidos aproximadamente a partir de 1970. Havia neles acentuado grau de debilidade, se comparados com aqueles que os antecederam, os da “geração nova” (cf. “Dr. Plinio” número 81, p. 17).