Conhecendo e amando Nosso Senhor

Desde criança, analisando a fisionomia de Nosso Senhor representada em belas imagens, Dr. Plinio discernia sua Alma e procurava compor como deveria ser a mentalidade correspondente àquele semblante. Ao tomar conhecimento dos episódios narrados nos Evangelhos, compreendeu que eles condiziam inteiramente com aquela mentalidade.

 

Amor e compreensão

Ao considerar as narrações dos Evangelhos, percebe-se que os Apóstolos e todas aquelas pessoas que tinham convívio com Nosso Senhor — excetuando naturalmente Nossa Senhora — não haviam entendido bem o Redentor.

Com o curso do tempo, depois dos primeiros equívocos, eles acabaram pelo menos não formando ideias erradas a respeito de d’Ele. Mas nota-se que eles não tinham uma ideia exata de como era a Pessoa de Nosso Senhor.

Essa compreensão era de uma importância transcendental para eles O amarem como deviam ter amado. Em contrapartida, se tivessem amado como deviam, teriam compreendido tanto quanto podiam. Ora, eles compreenderam menos do que podiam, e também não O amaram o quanto deviam. Assim é o jogo entre o amor e a compreensão. E eles não tiveram esse amor. O resultado é que custou para eles reconhecê-Lo como Deus.

Nosso Senhor perguntou-lhes: “E vós, quem dizeis que Eu sou?” (Mt 16, 15). São Pedro disse que Ele era o Filho de Deus. Então Nosso Senhor manifestou seu agrado com São Pedro, constituindo-o fundamento da Igreja e estabelecendo o Papado. Pelo que me parece, nessa ocasião ele reconheceram a Nosso Senhor Jesus Cristo como Filho de Deus. Mas antes…

A voz, os olhares, os gestos de Nosso Senhor

Quem é Nosso Senhor Jesus Cristo?

Ele forma com o Verbo de Deus uma só Pessoa. Não há duas pessoas, a do homem e a do Verbo de Deus, ligadas de algum modo. Não é isso. É uma só Pessoa, que tem duas naturezas: a divina e a humana.

Há, portanto, n’Ele uma verdadeira Alma, um verdadeiro Corpo, unidos entre si como o estão a alma e o corpo em cada um de nós. Mas essa Alma e esse Corpo estão unidos hipostaticamente à natureza divina, constituindo uma só Pessoa, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

Portanto, cada vez que Ele falava, era o Verbo de Deus quem falava; cada vez que Ele olhava, era o Verbo de Deus quem olhava; cada vez que Ele fazia qualquer gesto, era reflexo da natureza divina na natureza humana o mais perfeito que se possa imaginar.

Manifestava, assim, uma santidade, uma perfeição, uma superioridade da qual não podemos ter ideia, nem sequer remota, se não nos ajudar a graça de Deus.

Se formássemos uma ideia tão exata quanto podemos e devemos de como foi Ele, teríamos começado a amá-Lo como precisamos amar.

A voz, os olhares, os gestos d’Ele… que espelho eram da Santíssima Trindade! Nós precisamos reconstituir um pouco isso para O amarmos como Ele merece ser amado, e não haver equívocos, amando-O como Ele não é. Porque se amarmos Nosso Senhor como Ele não é, acabaríamos um pouco amando quem Ele não é. Todos compreendemos o perigo disso.

Esse é um trabalho muito delicado e, se não fosse com a ajuda da graça, não se faria na alma de ninguém. Porque é muito mais alto do que a cogitação de qualquer homem. Além disso, seria preciso utilizar dados muito imponderáveis; ser um psicólogo extraordinário para recompor. Naturalmente não se pode exigir isso de uma pessoa como condição da salvação.

Analisando uma imagem do Sagrado Coração de Jesus

Então, por causa disso, tenho a impressão de que, com o Batismo e as primeiras impressões religiosas, nos é dada uma primeira noção d’Ele, que vai se aprimorando com o tempo.

Por exemplo, posso me lembrar de como essa noção foi se constituindo aos poucos na minha própria alma.

Graças a Deus, tomei como ponto de partida que a fisionomia habitualmente apresentada pelas imagens de Nosso Senhor era fiel. Aquele era o rosto que Ele teve na vida terrena. E, portanto, aquela fisionomia já queria dizer alguma coisa.

Lembro-me de que, dado a examinar as pessoas pelo rosto, instintivamente eu analisava, por longos períodos, a fisionomia d’Ele. Sobretudo naquela imagenzinha do Sagrado Coração de Jesus que há no oratório do quarto de mamãe.

Longa, atenta e meticulosamente — quanto possa caber na mente de uma criança — eu a examinava. E isso condizia com as imagens existentes na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, num altar lateral e no teto também, e formava uma resultante, uma espécie de figura central correspondente ao essencial dessas várias imagens, e era como eu imaginava, mais ou menos, a Ele.

Ao tomar conhecimento dos episódios da vida de Nosso Senhor, eu procurava me perguntar se condiziam com aquilo que imaginava da mentalidade d’Ele. E percebia que não só estavam de acordo, mas tomavam um realce extraordinário, imaginando os predicados daquele Varão, com aquela fisionomia e aquela atitude. Aquele rosto explicava o episódio, o episódio explicava o rosto. E eu me sentia, portanto, na verdadeira pista de entender como Ele era.

Depois eu procurava ver também na Igreja: dado que Ele possuía tal fisionomia correspondente a tal personalidade, se Ele tivesse que fazer a Igreja, tê-la-ia feito como ela é? E eu chegava à conclusão de que sim, era inteiramente o que Ele devia fazer.

De onde uma confirmação da Fé originária que recebi, pela bondade de Nossa Senhora, logo ao ser batizado. Com o Batismo tornamo-nos templos do Espírito Santo, a graça habita em nós. Isso ajuda enormemente para a formação religiosa vista como um todo e, por sua vez, favorece o amor, o qual auxilia a conhecer melhor.

Fusão das virtudes opostas, formando uma harmonia extraordinária

Antes de tudo, a impressão causada em mim por Nosso Senhor, ao ver sua humanidade santíssima, é a de estar Ele envolto em cogitações enormemente superiores a tudo quanto se possa imaginar, de uma elevação sem proporção com nada. Entretanto, sem poder chegar com o pensamento, nem de longe, até onde Ele chegava, alguma luz dessas cogitações se fazia brilhar n’Ele, e eu como que via a Alma de Nosso Senhor inundada dessas luzes das quais Ele estava repleto.

Seria mais ou menos como um homem que não pode entrar numa catedral à noite, mas vê do lado de fora que ela está com as lâmpadas acesas em seu interior. Ele olha, portanto, os vitrais iluminados, aproxima-se e ouve a música, avizinha-se ainda mais e o perfume do incenso chega ao seu olfato. Ele se encanta com a catedral, onde ele não entra. Os sinais da catedral o fazem perceber algo da sua beleza. Assim seríamos nós — ao menos eu — com Ele.

Percebia dessa forma qualquer coisa de uma elevação prodigiosa; porém, desde o primeiro momento, pelo ponto mais profundo pelo qual eu O poderia compreender, com essa característica de uma fusão, em nível indizivelmente alto, das virtudes mais opostas, formando uma harmonia extraordinária.

Por exemplo, uma força incomparável e, ao mesmo tempo, uma bondade sem par; uma severidade inquebrantável e um perdão de uma doçura infinita; um poder de tranquilizar extraordinário aliado uma capacidade insuperável de mover para a luta; uma transcendência divina com a possibilidade de descer à última pessoa, e até a um cachorrinho, e fazer um benefício qualquer. Estou certo de que, se um cachorrinho se aproximasse de Nosso Senhor, Ele Se alegraria com isso.

Tudo isso indica a superioridade e a imensidade maravilhosas de Nosso Senhor, para que virtudes tão opostas, levadas a um grau sumo, possam caber n’Ele com tanta harmonia.

Nessa harmonia estaria exatamente o que melhor o meu olhar podia captar dos reflexos da graça divina transparecendo na natureza humana de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Com isso e por isso, também muita gravidade e uma seriedade enorme! Seria impossível imaginá-Lo falando uma coisa banal ou mesmo dizendo algo que não tivesse por detrás uma razão infinitamente elevada e perfeita.

Variedades do modo de ser do Redentor

Mesmo quando Ele dormia, seu sono era de uma perfeição, um equilíbrio, uma doçura, uma força, com tal poder de manifestação de toda sua santidade, que se uma pessoa, entendendo quem e como Ele era, pudesse apenas passar uma noite inteira vendo-O dormir, consideraria essa noite como a mais feliz de sua vida.

Ele possuía a natureza humana na sua perfeição e inundada pela união hipostática, com favores divinos insondáveis. Portanto, Ele olhando para cada um de nós conhecia inteiramente como era, e sabia como tratar. De tal maneira que, conforme Ele quisesse, a pessoa se sentia vista até o fundo da alma nos lados ruins ou nos aspectos bons.

Os lados ruins, com uma rejeição por onde o indivíduo teria vontade de fugir do seu próprio pecado. Os aspectos bons, com uma atração tal que a pessoa desejaria multiplicar por cem quintilhões a sua virtude, logo de início!

No entanto, por uma bondosa condescendência para com os homens, Ele não olhava inteiramente nem de um jeito nem de outro, a não ser nas situações excepcionais, para as pessoas poderem viver ao lado d’Ele.

Os episódios da vida de Nosso Senhor são todos maravilhosos. Mas não me impressiona tanto este, aquele ou aquele outro episódio quanto as variedades do modo de ser pessoal d’Ele, enquanto andava de um lado para outro.

Um brado majestoso que fende a sepultura e ressuscita Lázaro

Por exemplo, durante toda minha vida me impressionou a majestade d’Ele diante do sepulcro de Lázaro. Em primeiro lugar, a bondade com a qual Ele chorou junto ao sepulcro porque Lázaro morreu. E depois, como que não podendo conter a sua própria dor, brada: “Lázaro, vem para fora!” (Jo 11, 43), com um brado que eu imagino majestoso e fendendo a sepultura. E a vida volta em Lázaro. É uma coisa majestosa!

Imaginá-Lo recebendo a censura de Marta: “Senhor, se tivésseis vindo antes, meu irmão não teria morrido…” (cf. Jo 11, 21). Parece estar insinuado que, pela relação de amizade existente entre os dois, Jesus tinha a obrigação de evitar a morte de Lázaro. E talvez tivesse mesmo… Entretanto, Ele fez algo melhor do que salvá-lo da morte: tirou-o da morte!

Naquele momento, talvez Ele tivesse parecido a Marta ligeiramente tisnado de culpa… E como Nosso Senhor Se portou nessa ocasião, em que Ele não deu a ela nenhuma satisfação? Foi para a sepultura, e quase pareceu justificar a censura dela, chorando.

Então, por que deixou morrer? Por que não veio mais cedo? Vós chorais a morte que poderíeis ter evitado? Que pranto é este?

Ele, então, faz Lázaro ressuscitar, deixando Marta extasiada! Essas coisas não comportam comentário.

Depois, a cena dos fariseus dizendo que Ele precisava ser morto (cf. Jo 11, 50-53). A primeira vez em que eles falaram em matar Jesus foi quando viram Lázaro ser ressuscitado. E Ele conhecia tudo isso.

Podemos imaginar também Nosso Senhor vendo Marta, com certeza prostrada diante d’Ele, chorando com emoção dulcíssima, e Ele atendê-la como quem diz: “Minha filha, Eu te perdoo. Deverias ter compreendido que não tenho falta! Mas dei-te um dom que não esperavas.” Em seguida, passar perto dos fariseus e lançar um olhar… Que olhar! Não se consegue imaginar; podemos apenas ter vislumbres disso.

Podemos considerá-Lo em outra circunstância, indo a Betânia descansar. Então imaginá-Lo afável, repousando no convívio com Marta, Maria, Lázaro, os Apóstolos, Nossa Senhora, na vida cotidiana da residência de Lázaro, recebendo as honras, conversando na intimidade. Como tudo isso devia consolá-Lo de tanta infâmia, ao ver o que havia de maravilhoso naquelas almas que Ele estava formando na virtude.

Essas várias atitudes d’Ele se sucedendo, sobretudo no momento de passar de uma posição para outra, deixam-me especialmente encantado.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/6/1984)

OBRA-PRIMA DA PIEDADE CATÓLICA

No vasto e rico universo da arte católica, dois modos existem de representar a boa pintura religiosa, aquela em que os mestres dos pincéis se superam ao imprimir nas telas as luzes e as cores de seu talento. Uns procuram representar seus temas o mais possível de acordo com os aspectos comuns da vida, abstraindo daquilo que se nota muitas vezes no cotidiano católico, que é a  transparência da graça nas pessoas ou nos ambientes.

Cumpre dizer: tais pintores são primorosos no retratar o que é comum. Outros, porém, procuram envolver suas pinturas com essa espécie de imponderável místico que permite perceber na cena
a presença da graça. Exemplo paradigmático dessa categoria de artistas foi o Beato Angélico, o “magnata” da pintura da graça, cujos belíssimos afrescos constituem um dos maiores tesouros da iconografia da Santa Igreja.

Não menos admirável, porém, é o talento de outro pintor italiano, que viveu entre o fim da Idade Média e o início da Renascença, o célebre Giotto. Como o extraordinário frade-artista de Florença, também ele deixou-nos quadros e afrescos impregnados — a meu ver, intensamente impregnados — de  sobrenatural. Fra Angélico escolheu como “telas” as paredes do Convento de São Marcos, na urbe florentina; Giotto, as da chamada Capella degli Scrovegni, em Pádua.

Trata-se de uma famosa capela, edificada anexa ao palácio da influente família dos Scrovegni, hoje completa ofícios, reservadas numa espécie de gradim de mármore também muito bonito e bem trabalhado. Ao fundo, o pequeno altar de linhas singelas, sob uma abóbada de arcarias ogivais, emoldurado por estalas de madeira envelhecida, gasta, e por colunas ricas em lavores e coloridos do mesmo tipo de pedra que adorna toda a capela.

Nas paredes, harmônicas com o teto abaulado, vê-se a maior beleza, a principal atração desse exíguo e inestimável recinto católico: as cenas da vida de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, pintadas por Giotto. Caracterizadas, de um lado, por uma inocência ainda toda medieval; e, de outro, pela transparência daquela atmosfera sobrenatural magnífica.

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Sou particularmente sensível à harmonia das cores. Em vista da predominância dos recursos cromáticos utilizados por Giotto, sinto especial agrado por alguns desses afrescos. Por exemplo, a cena do Casamento de Nossa Senhora com São José, em que aparece uma espécie de radicalidade nos tons claros e a mesma radicalidade nos tons carregados, resultando num contraste muito interessante. Há matizes de verde, azul e lilás delicados, postos em realce pela combinação de vermelhos, carmins e laranjas bem profundos. A força destes tons escuros confere uma nota de seriedade ao claro, e constrói um equilíbrio de cores superiormente belo.

O quadro tem como fundo um pequeno edifício que, segundo a imaginação de Giotto, seria uma parte do Templo de Jerusalém. O sacerdote está revestido de uma capa vermelha, e de uma túnica que vai até o chão. É um velho de cabelos já brancos, abundantemente barbado, numa atitude digna, cheio de piedade e de recolhimento. São José traz na mão esquerda o bastão florido, que indicava ser ele o esposo escolhido pela Providência para se casar com Maria Santíssima. Na mão direita, segura a aliança que simboliza essa maravilhosa união. De acordo com uma velha tradição, Giotto representa São José muito mais velho que Nossa Senhora. Ela, ainda mocinha, tem o recato e a compostura de uma pessoa toda virginal. Como traje, leva uma túnica de cor muito clara, que fala de pureza, de delicadeza de sentimentos levada ao mais alto grau. O seu porte é ereto, imaculado.

Outro afresco muito bonito é o que retrata a Apresentação do Menino Jesus no Templo. De um lado, Nossa Senhora e São José; de outro, o Profeta Simeão e a Profetisa Ana. Embora a parte central seja concebida em termos medievais, a ideia é mais uma vez a de que a cena se passa numa dependência do Templo de Jerusalém. Nessa pintura, o fato de maior interesse é a atitude dos santos esposos. Nossa Senhora apresentou o Menino ao Profeta, e aparece com as mãos no gesto de quem acabou de O entregar, ou de quem O receberá de volta. São José, modestamente recolhido a segundo plano, acompanha a cena. É notável a atmosfera de santidade e de pureza que domina o quadro inteiro, de maneira que o próprio templozinho possui algo de esguio e de virginal. Tudo é posto por Giotto sobre um fundo meio azulado, com folhagens e vegetações hoje apagadas, confundindo-se com um céu também de azul profundo. O colorido mais escuro confere particular relevo à parte central do tema: o Divino Infante — sob uma espécie de foco de luz —, o Profeta Simeão e Nossa Senhora (sob luminosidade menor), São José e a Profetisa Ana.

Na Fuga para o Egito, Nossa Senhora vai montada num simples burrico, e toda a Sagrada Família denota os sinais exteriores da pobreza. Mas a dignidade d’Ela é de uma princesa! Um porte retilíneo, as costas sem arcadura nem inflexão, a fronte alta, e a resolução com que enfrenta a viagem, os riscos, denotam a majestade da Mãe do Rei do Universo. São José caminha na frente, atentíssimo para o que possa acontecer com a Mãe e o Menino.

Ela confia em Deus e no esposo. Portanto, vai recolhida em oração, abraçando o Filho em seu colo. Giotto exprime de modo extraordinário a celestial intimidade dos dois. Certamente Ela reza a Jesus, pedindo por aqueles que estão contemplando o quadro…

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Noutro ciclo de afrescos surge o Domingo de Ramos, em cuja composição muito transparece aquela inocência de que atrás falamos. Nosso Senhor entra montado num burrinho, e abençoa o povo à sua frente.

Mas sua fisionomia é de tristeza, o rosto varonil, uma abundância extraordinária de barba, e uma atitude de Prelado de altíssimo poder, ou de Chefe da religião verdadeira. Muito mais do que isso, de Messias. No meio da multidão que o acompanhava, percebe-se uma ou outra pessoa com a auréola da santidade. O próprio Jesus está coroado por um aro muito definido. É, em grau infinito, o primeiro e o maior de todos os Santos, fonte e causa de todas as santificações.

Mais adiante, depois de lindíssimas pinturas como a Ressurreição de Lázaro, vem a Crucifixão e Morte de Nosso Senhor, o quinto mistério doloroso do Rosário. Jesus, pregado ao madeiro, está lívido, tendo exalado seu último suspiro. Santa Maria Madalena, identificada pelos longos cabelos soltos, oscula-Lhe os pés. A um canto vê-se Nossa Senhora, amparada por São João Evangelista e por uma das santas mulheres. No lado oposto aparece uma parte da multidão que deseja assistir ao acontecimento. O céu está povoado de Anjos cantando a glória do Divino Redentor. E enquanto os outros presentes sentem apenas dor e vergonha, Maria Santíssima, embora abalada, permanece de pé, com força e determinação. Imaculada, cheia de graça e de amor a Deus, era capaz de refrear em alguma medida sua própria dor, de maneira a servir de consolo e sustentação para os que, neste momento sumamente trágico, claudicassem na fé e na certeza da Ressurreição.

São alguns episódios da Paixão segundo Giotto, uma das obras-primas da piedade católica.

Para mim, esse face-a-face entre Nosso Senhor e Judas é das coisas mais espantosas que um pincel humano tenha pintado. Nosso Senhor está sério e olhando Judas até o fundo da alma. E este procura mentir. É a verdade eterna e subsistente, encarnada, que olha para um homem falso. E Judas, que procura tornar a mentira dele aceitável, abraça Nosso Senhor e O olha com ares de quem pretende ser um grande amigo. Nosso Senhor o fita e lhe diz: “Judas, é com um ósculo que trais o Filho do Homem?” Nosso Senhor recebe com paciência esse beijo imundo, acompanhado  provavelmente de um mau odor asqueroso, cheiro do inferno. Judas nada responde à pungente pergunta do Mestre. Ele trai o Filho de Deus. Depois disso, se porá a delirar e a correr de um lado para outro, até cometer o suicídio.

Nesta cena, Giotto quis representar em Nosso Senhor Jesus Cristo o sumo de todos os predicados intelectuais e morais. E em Judas, o sumo de todas as abjeções. Daí os recursos de que ele se serviu. Primeiro, a diferença entre as duas cabeças. A de Nosso Senhor é provida com certa largueza de cabelo, digna, composta, sem espalhafato. A de Judas, pelo contrário, está coberta com uma grenha suja, abundante, que ele procurou pentear bem antes de cometer seu crime infame, a fim de que nada atrapalhasse o “bom negócio” que ia fazer. Era preciso que tudo se passasse com ares de cordialidade.

Então, ele se enfeitou. Mas é patente a desordem capilar dele em contraste com a proporção e a ordenação adequada dos cabelos de Nosso Senhor. A barba do Divino Mestre é de boas dimensões, dispondo-se belamente em cima da pele, com muita mesura e harmonia. O mesmo deve-se dizer do bigode. Já a barba de Judas é feita de uns fios raros, formando arquipélagos peludos em certos lugares do rosto, confundindo-se com a própria carnatura, e mais nada. Além disso, a parte que vai do alto da maçã do rosto até o queixo é enormemente desenvolvida em comparação com a de Nosso Senhor, em quem tudo é proporcionado.

Judas dá a impressão de uma gulodice sórdida e horrorosa. Nosso Senhor, a de uma austeridade delicada e verdadeiramente divina.

 

Misercordes oculos ad nos converte

Quando menino, aos doze anos de idade, diante de uma imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, venerada na Igreja  do Sagrado Coração de Jesus, Dr. Plinio foi “contemplado” pelo misericordioso e compassivo olhar de Maria Santíssima.  A graça recebida nessa ocasião marcou profundamente sua vida.

 

Procurando fazer melhor explicitação a respeito de Nossa Senhora, recentemente encontrei uma figura que, embora muito simples, exprime bem meu pensamento. Não sei se ela, em Geometria, é inteiramente exata, pois, como todos sabem, meus conhecimentos nessa matéria são os mais sumários e desinteressados possíveis.

Imaginemos um poliedro, um corpo com várias faces — esta é a ideia muito primitiva que tenho de um poliedro —, bem construído. Se suas faces são triangulares, olhando-se para uma delas, se vê de certo modo as outras, pois todas têm a forma de um triângulo.

Assim é a Mãe de Deus, cuja perfeição é supereminente, e a Quem a Igreja vota o culto de hiperdulia. Considerando-se uma de suas altíssimas qualidades, percebe-se que Ela tem igualmente todas as outras virtudes de que uma criatura humana seja capaz. Conhecida, por exemplo, sua fé, se entende sua esperança e sua caridade. Vendo-se um lado do poliedro, se intui como são todos os outros, com suas dimensões. Se, conforme a Geometria, o poliedro não é exatamente assim, essa figura serve ao menos como metáfora.

Compaixão de Nossa Senhora

O que mais me tocou, primeiramente, em Nossa Senhora não foi tanto sua santidade virginal e régia, mas a compaixão com que Ela olha para quem não é santo, atendendo com pena e solícita em dar, em suma, uma misericórdia que tem as mesmas dimensões das outras qualidades. Quer dizer, inesgotável, clementíssima, pacientíssima, pronta a ajudar a qualquer momento, de modo inimaginável, sem nunca ter um suspiro de cansaço, de extenuação, de impaciência, mas sempre disposta não só a repetir sua bondade, mas a superar-se a Si própria. De maneira que feita tal misericórdia, embora mal correspondida, vem outra maior. Por assim dizer, nossos abismos vão atraindo sua luz. E quanto mais fugimos d’Ela, mais as graças por Ela obtidas se prolongam e se iluminam em nossa direção.

“Um olhar que me deixou calmo para a vida inteira”

Comparemos o miosótis com o sol. Entre nós e a Santíssima Virgem a diferença transcende ainda mais. Embora seja Ela mera criatura, sua ação poderia ser comparada com o efeito do olhar de Nosso Senhor para São Pedro, que O renegou durante a Paixão e o galo cantou. Quando o Redentor o fitou, ele se sentiu tomado por inteiro. O Apóstolo havia sido testemunha direta ou tivera repercussão imediata de tudo quanto os Evangelhos narram, e conhecia Nosso Senhor perfeitamente. Naquele olhar ele recebeu uma comunicação de tudo quanto sabia, mas com tal acento e esplendor, que derrubou sua ingratidão: “Et flevit amare — E chorou amargamente” (Lc 22, 62). A grande contrição de Pedro é um dos fatos mais bonitos da história dos santos.

Quando menino, tendo ido à Igreja do Coração de Jesus e, pela primeira vez, atinado com a imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, não tive nenhuma visão, êxtase ou revelação. Mas me senti como se a imagem me olhasse, e tive conhecimento como que pessoal dessa bondade insondável que me envolvia totalmente. Ainda que eu quisesse fugir ou renegar, Ela me pegaria afetuosamente e diria: “Meu filho, volte de novo, aqui estou Eu!”, fazendo-me entender a profundidade dessa misericórdia.

Em primeiro lugar, fiquei calmo para a vida inteira. De fato, por maiores que sejam as dificuldades, se estamos envolvidos por essa misericórdia, podemos descansar; porque no fundo, para quem não é brutalmente insensível, mas se volta à Virgem Maria, Ela acaba arranjando todas as coisas. E, notem bem, uma das coisas que — dentro da indefinição de minha mentalidade de menino, entretanto eu tinha bem claro mais me enlevaram, foi que isso não era um privilégio para mim, mas era a atitude d’Ela diante de todos os homens.

Nossa Senhora poderia condescender em querer tratar-me como um privilegiado; porém, tive cognição do contrário: Para todas as pessoas que existiram e existem, todos os pecadores que estão nas ruas, nas casas, nos bondes, nos automóveis, etc., Ela é exatamente assim. Porém, muitos A rejeitam.

Tenho muita pena quando vejo alguém — um “enjolras”(1), por exemplo — nervoso e com problemas; penso: “Por que não posso comunicar-lhe um olhar como o que recebi de Nossa Senhora? Ele ficaria calmo para a vida inteira.”

Não consigo exprimir completamente como foi essa graça. Quando rezo o trecho do Magnificat “et misericórdia eius a progenie in progenies timentibus eum”, quer dizer, a misericórdia de Deus vai de geração em geração a todos os que O temem, sempre pensei: “É bem verdade, e por meio de Maria Santíssima. Ela é a misericórdia insaciável, que não acaba, mas se multiplica solícita, bondosa, tomando nossa dimensão e, por compaixão, faz-se até menor do que nós para nos acolher”.

Muitos pensam que eu sou uma fera, não tenho pena dos outros. Eles não têm ideia do que é essa cognição da misericórdia de Nossa Senhora, a qual penetrou em minha alma.

Misericórdia, pureza, fortaleza e sabedoria de Nossa Senhora

Considerando essa misericórdia, vem-nos à ideia a virginalidade de Maria Santíssima, porque essas noções, por assim dizer, se contêm umas nas outras. Ela é pura, com um grau de pureza indizível. Conhecida a misericórdia se conhece a pureza; é novamente a figura do poliedro. Qualquer castidade que se possa conceber não se compara à pureza d’Ela, toda feita não só de ausência de qualquer pendor para o mal, mas de um jorro de alma direta e exclusivamente para Deus, sem compromisso com mais nada e ninguém, um “élan” inteiro, de uma força, integridade, um desejo de Absoluto, que não se pode medir.

A pureza de Nossa Senhora, comparada à de outras pessoas, é como a alvura da neve em relação ao carvão.

E, na perspectiva em que me coloco, a pureza traz consigo a ideia da fortaleza, a qual não significa que nada quebra. É algo diferente: ante o que a Mãe de Deus, na sua pureza, decidiu, o resto do mundo se flecte pela força da vontade d’Ela; é um ímpeto, uma resolução, uma ausência de possibilidade de resistência de qualquer pessoa ou coisa que seja, uma soberania, um domínio numa tal dimensão que não há palavras humanas para exprimi-la.

Hoje se fala de obuses e outras armas. Na realidade, são simples caranguejolas inofensivas e ridículas em comparação com um ato de vontade, uma preferência da Santíssima Virgem.

Por sua vez, essa fortaleza, misericórdia e pureza trazem uma ideia de sua sabedoria lúcida, adamantina, dispositiva de todas as coisas, nunca tendo qualquer dúvida, mas somente certezas. Quer dizer, Ela conhece todas as coisas, suas inter-relações, e penetra até as entranhas de todo ser. O universo é tão grande! Pelo fato de Nossa Senhora compreender a ordem do universo e o seu ponto ápice, mais uma vez vislumbramos qual é a imensidade de sua pureza, fortaleza e misericórdia.

Essas são as virtudes que, de momento, mais me chamam a atenção quando me lembro do olhar de Nossa Senhora Auxiliadora na Igreja do Sagrado Coração de Jesus.

“Meu filho, Eu te quero”— “Minha Mãe, eu sou vosso”

Poder-se-ia perguntar-me: “O senhor recebeu esse olhar quando menino, com onze, doze anos; e nunca mais houve algo semelhante?”

Essa graça me foi dada de tal maneira que ficou como um sol para a vida inteira. O fato parece ter ocorrido ontem. A Santíssima Virgem como que me disse: “Meu filho, Eu te quero”. E eu declarei: “Minha Mãe, eu sou vosso”.

Alguém indagaria: “Mas nessas considerações onde o senhor coloca a Nosso Senhor Jesus Cristo?” Respondo: “Em tudo!” É a ideia que São Luís Grignion desenvolve muito: Nossa Senhora é o claustro, o oratório, o tabernáculo sagrado onde está o Redentor, e quanto mais estivermos próximos d’Ela, tanto mais estaremos próximos de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Imaginem Nossa Senhora no período em que, no seu corpo virginal, estava se formando o Menino Jesus, por ação do Espírito Santo, e que alguém quisesse adorar ao Messias, abstraindo d’Ela. Seria uma estupidez, não teria sentido!

Sei que estarei mais unido a Nosso Senhor quanto mais estiver unido a Maria Santíssima.

Naturalmente, daí decorre que minha devoção a Ele passa por Ela. Creio que mesmo nas ocasiões de maior cansaço — espero, pelo menos —, quando faço referência à adoração devida a Nosso Senhor, logo depois falo de sua Mãe Virginal. É sistemático.

Dir-se-á: “Mas muitas vezes o senhor fala sobre Ela sem se referir a Ele.” Sim, porque Ele é infinitamente maior do que Ela. Assim, falando d’Ela, Ele está implicitamente contido. Mas, tratando a respeito d’Ele, Ela não está implicitamente contida. Por isso, queiram ou não queiram, gostem ou não gostem, se Nossa Senhora me ajudar, farei isto até morrer. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/1/1982)

 

1) Palavra afetuosa utilizada por Dr. Plinio para designar seus jovens discípulos, surgidos aproximadamente a partir de 1970. Havia neles acentuado grau de debilidade, se comparados com aqueles que os antecederam, os da “geração nova” (cf. “Dr. Plinio” número 81, p. 17).

 

Paraíso do “Novo Adão”

O Paraíso Terrestre era um lugar de maravilhas, de esplendores e de imensa felicidade, no qual Deus introduziu nosso primeiro pai, Adão, para que este desfrutasse de todas as delícias que o Criador ali havia depositado. Porém, Adão e Eva prevaricaram, e foram expulsos daquele mirífico Éden.

Ora, Nosso Senhor Jesus Cristo é considerado, a justo título, o segundo Adão, isto é, Aquele que veio resgatar a humanidade das sombras da morte e restabelecê-la no estado de graça, através da imolação que Ele fez de Si mesmo no alto da Cruz.

E assim como o primeiro Adão, também o segundo teve seu jardim de delícias. Esse Paraíso do novo Adão era Nossa Senhora. Tudo aquilo que o Paraíso Terrestre tinha de belo e de esplêndido na sua realidade material, Nossa Senhora o tinha, ainda mais belo e mais esplêndido, na sua realidade espiritual.

E Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo nas castíssimas entranhas de Maria Virgem, teve aí incomparavelmente mais felicidade e contentamento, do que Adão no Éden.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/6/1972)

Arte gótica, a expressão de desejo do Céu

A Igreja, nascida do costado de Cristo, produziu belezas feéricas. Entre elas estão as catedrais góticas, tão características da Idade Média. Ao analisar tais edifícios, Dr. Plinio, grande admirador da Cristandade, faz uma bela consideração: o gótico terá representado por inteiro o espírito católico?

Quando se observa o gótico em suas últimas manifestações, antes da Renascença, tem-se a impressão singular de ter ele chegado ao fim do caminho e atingido tal perfeição, que não se pode imaginar algo mais perfeito nessa linha. Uma nova linha estava para aparecer, não contrária à anterior, mas que seria um salto para cima.

Isso corresponde à história da humanidade. O espírito dos homens havia chegado a um ponto tal que estava para surgir algum dado inteiramente novo, o qual daria um impulso dentro da linha do antigo. É o que se chama tradição. Entretanto, apareceu o Renascimento.

Não é excessivo conjeturar que se a humanidade tivesse sido fiel às graças da Idade Média, teria começado a nascer algo que iria rumo ao Reino de Maria. Porém, com alguma coisa de novo que não se sabe o que é.

Analisemos o gótico e depois vejamos o que dele poderia florescer, a título de conjetura.

A meu ver, esse estilo, mesmo em sua fase inicial, refletia caracteristicamente os seguintes traços do espírito católico europeu da Idade Média: força tendente à perenidade, seriedade e recolhimento.

O gótico é forte e, por essa razão, tende ao perene. Aquelas construções exprimem um possante desejo de durar sempre e de nunca serem substituídas.

Ele tem, por outro lado, uma seriedade, a qual faz com que o interior dos edifícios góticos tenha um recolhimento e uma compostura próprios a quem é muito sério. A luz que neles entra é tamisada por um colorido muito bonito.

Por exemplo, a luz que penetra através dos vitrais da Catedral de Bourges (França) não é a comum, mas de um dia ideal, causando a impressão de um sonho.

É um sonho? Não. A alma, à força de desejar o Céu, conjetura, tanto quanto pode, a respeito de como ele seria. E penetrando numa igreja toda feita de vitrais da Idade Média, tem-se a impressão de que se entra no Paraíso.

Ao mesmo tempo, o gótico é delicado. Considerem aquelas colunas formidáveis das catedrais. Os medievais arranjaram um jeito de trabalhá-las, de maneira a atenuar o que nelas poderia haver de impressão de força quase brutal: esculpiram um feixe de coluninhas que se amarravam umas às outras em torno de uma só coluna. Esta sustenta o teto com muita firmeza, mas dá a sensação de leveza devido às pseudo coluninhas em que se decompõe.

A coluna gótica do lado interior de um castelo, e mesmo de uma catedral, causa a impressão de combate. Trabalhada de maneira a dar ilusão de um feixe de coluninhas, a coluna gótica de grande estilo tem qualquer coisa de tranquilo, sem agitação, e nem a tensão da luta. Ela representa muito mais o guerreiro no seu repouso e na sua oração, do que batalhando.

E a guerra medieval, quando justa, sempre visava a paz, uma solução, uma concórdia equilibrada. E a ogiva exprime isso muito bem. São as duas partes, que podemos imaginar opostas, as quais se resolvem numa posição de equilíbrio, ou seja, numa reconciliação entre elas. Por isso não é raro que no ponto onde as ogivas se encontram haja florões ou adornos, como que festejando a paz.

Também está presente no gótico uma alta noção do dever. Certas colunatas simbolizam um caminho estreito, sério, reto e, sobretudo, elevado, que conduz a uma grande solução: o Céu.

O caminho do Céu não é largo, folgado, espaçoso, agradável, mas apertado, difícil, e está sempre à beira de precipícios, de problemas e outras dificuldades. É grandioso, metódico, do qual, porém, não se pode afastar um passo, porque se perde de vista a meta e se transvia. Isto corresponde à ideia que temos da nossa própria existência, enquanto vivida à luz dos Mandamentos.

Quer dizer, se nos sentirmos opressos pela proximidade de colunas de um lado e doutro, encontraremos os grandes espaços olhando para o alto. Quando a vida estiver apertada, olhemos para o Céu. Assim deve ser a alma do católico.

As almas que fizeram o gótico, tão entusiasmadas e enlevadas com a força, tinham em si muitos outros tesouros.

Depois de terem explicitado em pedra seu desejo e sua afirmação de fortaleza, o mesmo espírito que as animava começou a sorrir e manifestar a sua própria doçura, como quem continua a fazer, no granito, a descrição de suas almas.

Surgem, então, adornos que, sem atraiçoar a austeridade da coluna, transformam a catedral quase num sonho. Abole-se o granito e transforma-se tudo em cristal.

Encontramos esse sonho expresso na Sainte Chapelle, que utiliza a pedra apenas o necessário para suportar o teto e servir de encaixe aos vitrais. Mas o espírito que concebeu a Sainte Chapelle, se pudesse fazer um edifício todo de cristal, sentir-se-ia realizado.

Não devemos ver nisto uma mudança do espírito gótico, porque é algo que estava na alma do homem medieval, desde o início. Assim como uma pessoa que tem uma arca com uma série de tesouros e os vai tirando um por um para mostrá-los, os medievais eram profundamente católicos, e em suas almas havia muitas riquezas em diversas direções.

Eles foram lentamente exibindo, manifestando essas riquezas de maneira que, quando se chega ao pináculo do gótico, parece que nada mais faltava. Dir-se-ia que foi feita a descrição completa de uma alma profunda e verdadeiramente católica.

Entretanto, posso fazer a esse respeito conjeturas, sem o caráter de certeza, tendo apenas o alcance de uma probabilidade. E é nessa perspectiva que considero o assunto.

Que é o espírito gótico?

No fundo, é o espírito da Igreja, inesgotável, imenso, fabuloso. É o próprio Divino Espírito Santo que se manifesta. O espírito da Igreja nunca será inteiramente expresso, pois sempre tem riquezas novas. E nós somente o conheceremos no total quando estivermos no Céu, onde a Igreja militante desemboca na Igreja gloriosa. Podemos afirmar que no gótico havia muitas outras coisas a manifestar, porque ainda não era o espírito católico integral, mas apenas alguns de seus traços.

Por mais que o gótico tenha sido integralmente católico, o espírito católico integral não estava inteiramente representado no gótico.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/7/1989)

Quando o sol e o vitral se tornam um

Sempre me comprouve pensar que a Santa Igreja, e com ela a palavra “católico”, é como um vitral sobre o qual incide a luz da História e esta vai fazendo o percurso do astro soberano. O vitral se reveste de um aspecto na madrugada, na iminência da aurora. Em seguida, adquire outra aparência na manhã, outra ao meio-dia, e assim por diante, nas várias fases do dia até o entardecer. E ainda manifesta extrema beleza quando é tocado pelas derradeiras fulgurações do sol, e vemos suas cores brilharem discretamente, como quem nos diz: “Meu filho, até amanhã. Eu voltarei a reluzir…”

Assim, cada época histórica tem o seu modo de contemplar a Igreja, de senti-la, sem contradizer nem se opor à visualização da época anterior. Como, por exemplo, no vitral o aspecto do meio-dia não contradiz o matutino nem o vespertino, mas é um desdobrar de sucessivas facetas que se completam. Para a Esposa Mística de Cristo, essa sucessão caminhará rumo à plenitude, alcançada no fim dos tempos, quando as Igrejas militante e penitente se unirão à gloriosa no Céu. Será o maior, perene e esplendoroso reluzimento do vitral, o momento em que o sol nele se encostou e se tornaram um só!

Essa consideração suscita a pergunta: como terão as várias épocas do passado admirado a Igreja? Em especial, como foi ela vista pela Idade Média?

Ressalvando que essa análise não pretende estabelecer que as almas piedosas de outras eras históricas compreendiam menos bem a Igreja do que as medievais, creio haverem estas ter dado início a uma forma de conceber a Santa Igreja pela qual passou a ser considerada não só como espelho da luz eterna na ordem espiritual, mas também no campo temporal. Quer dizer, tomava-se consciência dessa prerrogativa que Ela sempre possuiu, e desse modo uma certa relação entre as duas ordens ia nascendo de maneira a formar uma civilização inteiramente filha da Igreja, por esta batizada e adornada.

Porém, uma coisa é a joia que uma senhora recebe de presente e usa. Outra, a joia que ela encomenda de acordo com os seus sonhos.

As civilizações grega, romana e outras em que transcorreu a existência da Igreja, não foram as que Ela desenhou para si. Foram civilizações constituídas pela História as quais a Igreja bondosa e maternalmente adotou, abençoou e utilizou como mãe para regalo e benefício desses povos.

Não assim com a sociedade medieval. Quando se deu a decadência e o esfacelamento do Império Romano do Ocidente, a Igreja recomeçou a construir o mundo europeu, aproveitando alguns brilhantes da joia antiga para uma montagem nova onde Ela, por assim dizer, encomendou ao Pai Celeste outro tesouro de brilhantes, incrustando-os aqui, lá e acolá, fazendo florescer a civilização especificamente cristã da Idade Média.

Assim, a Igreja e a cristandade constituíam entre si mais ou menos como dois espelhos paralelos tendo no centro o mesmo foco de luz: multiplicavam, portanto, essa luz, um no outro de maneira indefinida. Espelho imensamente maior, a Igreja; o menor, a ordem temporal, mas as duas ordens se iluminando e irradiando uma na outra, dando origem a tantas maravilhas na arte, na cultura, na política, etc., admiradas até os dias de hoje.

Nesse sentido, poder-se-ia avolumar os exemplos que ilustram tal paralelismo entre as ordens espiritual e temporal na Idade Média. Limito-me, entretanto, a evocar aqui apenas um: as torres.

Pensemos na torre de uma igreja e na de um castelo. Como são congêneres, como é fácil transformar uma torre de castelo em torre de igreja! De outro lado, como a torre da igreja prepara a vista para compreender e amar a torre do castelo! Numa palavra, como o castelo e a igreja são irmãos!

De fato, no fundo todo castelo é um escrínio que contém uma capela, e nesta, a parte mais sagrada é o tabernáculo. Nesse sacrário, o objeto mais valioso é o cibório no qual se encerram as espécies eucarísticas, ou seja, o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo realmente presente em corpo, sangue, alma e divindade.

É uma das mais belas conjugações de temporal e espiritual, de sol e vitral que se osculam, se irmanam e se tornam um só.

Plinio Corrêa de Oliveira

O ideal expresso em beleza

A alma alemã, quando não influenciada por certas tendências contrárias ao espírito católico, é meditativa, idealista, voltada para a constante procura de uma realidade superior, invisível e metafísica. Esse apelo de alma germânico encontra-se, bastante deteriorado, nas composições de um Wagner, por exemplo. E se acha, em todo o seu esplendor, em toda a sua ousadia de voo, na Catedral de Colônia.

À primeira vista, dir-se-ia apenas duas torres, ligadas por um pequeno corpo central de edifício, espremido, quase como um belo hífen que as une.

As torres se lançam vertiginosamente para o alto, concebidas na ideia de levar o espírito para cima e, nessa vigorosa ascensão parecem emular entre si, imergindo cada qual num dos olhos do observador, atraindo-os a extraordinárias alturas. Tanto são leves, esguias, sem abandonar a característica robustez alemã.

Sozinhas, essas torres perderiam algo de sua formosura, ficariam desproporcionadas, claudicantes. Pelo contrário, juntas, harmonizam-se, apóiam-se para subir. A elevação extrema a que chegam é compensada pela base, e por um ponto invisível de equilíbrio — mais uma vez: metafísico — que paira nos ares, elo de junção insuspeitado das duas torres, que o espírito idealiza e o olhar não percebe. Este é o ponto de união no mais alto dos altos das duas torres da Catedral de Colônia.

À medida que se erguem, elas se afilam, se adelgaçam, acentuando a extensão da altura, como se se perdessem nas nuvens. O próprio rendilhado de pedras em que terminam as torres reforçam essa idéia de irreal: já meio céu, meio terra, meio obra do homem, meio obra de Deus, dentro da ilusão de ótica de quem as contempla do solo. As últimas pontas de alvenaria, não conseguindo ir mais longe, morrem sobre si mesmas com elegância e distinção. Tudo é feito para se afinar, afinar, afinar, subir…

Suas ogivas também crescem para o firmamento, e tendem a disputar com as torres a primazia nas alturas.

Ao contrário da fantasia oriental, patente nos minaretes das mesquitas, tão frágeis e delgados, a Catedral de Colônia é a expressão da fantasia ocidental: um mundo de pedras, sólida, com sua base forte, possante, cravada no chão, maravilhosamente compacta até o momento em que as duas torres se separam e começam seu voo.

É a manifestação do gênio da Idade Média que se mostra nessas belezas, lavorado de forma idealista, em busca dos esplendores indizivelmente magníficos que nos aguardam no Paraíso.

Inestimável socorro para os pecadores

Maria Santíssima, como a melhor de todas as mães, desdobra-se em solicitudes e bondades em relação a seus filhos, de modo especial para com aqueles que gemem sob o peso de seus pecados. A estes oferece Ela os tesouros de sua insondável misericórdia, a fim de resgatá-los e conduzi-los à salvação eterna. Nesse sentido, Dr. Plinio analisa uma piedosa ladainha composta por São João Eudes.

Conhecido por sua doutrina sobre os Sagrados Corações de Jesus e Maria, São João Eudes escreveu esta bela ladainha de invocações a Nossa Senhora:

Ave Maria, Filha de Deus Padre.
Ave Maria, Mãe de Deus Filho.
Ave Maria, Esposa do Espírito Santo.
Ave Maria, templo de toda a Divindade.
Ave Maria, alvíssimo lírio da Trindade, fulgurante e sempre sereno.
Ave Maria, rosa resplandecente de celestial amenidade.
Ave Maria, Virgem das Virgens, Virgem fiel, de quem quis nascer e de cujo leite quis se amamentar o Rei dos Céus.
Ave Maria, Rainha dos Mártires, cuja alma foi transpassada pelo gládio da dor.
Ave Maria, Senhora do mundo, a quem foi dado todo poder no Céu e na Terra.
Ave Maria, Rainha do meu coração, Mãe, vida, doçura e esperança minha caríssima.
Ave Maria, Mãe amável.
Ave Maria, Mãe admirável.
Ave Maria, Mãe de misericórdia.
Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco; bendita sois Vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus.

E bendito é o vosso Esposo, São José.
E bendito é o vosso Pai, São Joaquim.
E bendita é a vossa Mãe, Sant’Ana.
E bendito é São João, a quem fostes confiada ao pé da Cruz.
E bendito é o vosso Anjo, São Gabriel.
E bendito é o Eterno Padre que vos escolheu.
E bendito é o vosso Filho que vos amou.
E bendito é o Espírito Santo que vos esposou.
E benditos são eternamente os que vos bendizem e crêem em Vós.

Maternal convite à conversão

Essas invocações, além de belas e tão expressivas, encerram grande valor espiritual, pois, segundo o autor que as publica, o próprio São João Eudes “recomendava que se recitasse esta prece para a conversão dos pecadores e prescrevia a seus filhos que a dissessem na cabeceira dos doentes.

“A Santa Virgem lhe prometeu que todos que a recitassem com devoção e boa vontade, se estivessem em estado de graça, Ela lhes aumentaria a devoção em seus corações, a cada uma das  saudações ou bênção.”

Portanto, cada invocação alcançaria uma graça especial, um aumento da devoção a Nossa Senhora. “E se estivesse em pecado mortal, com sua mão doce,  virginal, Nossa Senhora bateria na porta dos pecadores, a cada saudação ou bênção que dissessem, convidando-os a se abrir para a graça”.

Ou seja, um favor extraordinário de Maria Santíssima. A cada uma dessas invocações dita pelo pecador em estado de pecado grave, Nossa Senhora lhe bate à porta da alma, convidando-o a uma emenda, ao arrependimento e à penitência.

“E acrescentou que, em relação às pessoas empedernidas no pecado e difíceis de converter, seria salutar incitá-las a dizerem de bom grado essa oração. Ou, pelo menos, concordarem que a oração seja dita por elas, o que lhes faria igualmente bem.”

Compreende-se, então, como essa ladainha de invocações constitui um importantíssimo meio de conversão, e um valioso instrumento de santificação. As três primeiras invocações se referem à  Nossa Senhora como Filha de Deus Padre, Mãe do Filho Encarnado e Esposa do Divino Espírito Santo, e formam a trilogia mariana apreciada por muitos santos, teólogos e doutores. Dessa  ladainha, elas se desprenderam como três sóis, três estrelas para constituírem um tesouro especial no firmamento da Igreja.

Creio que nunca será demasiado recomendar esta linda prece a todos os católicos, mormente aos que, por infelicidade, se encontrem sob o jugo do pecado. 

Amor de Mãe e de criatura

Escolhida desde toda a eternidade para trazer ao mundo o Unigênito de Deus, Nossa Senhora tinha em grau altíssimo todos os desvelos de uma mãe em relação ao seu filho e, ao mesmo tempo, adorava-O como o seu Criador. De maneira tal que, ao vê-Lo se distrair como criança, ao vesti-Lo ou dar-Lhe de comer, Ela pensava: “Deixe-me tomar conta de meu Filho, deixe-me tratar d’Aquele que me criou…”

Por uma profunda compreensão da união hipostática, Maria sabia que as menores ações do Menino Jesus — Segunda Pessoa divina encarnada — repercutiam no seio da Santíssima Trindade, e ao contemplar esse indizível relacionamento, cresciam na alma d’Ela suas solicitudes de Mãe e seu amor de criatura.

Chave da nossa salvação

Maternal e infalível advogada dos homens junto a seu Divino Filho, Maria Santíssima nos conheceu a cada um de nós antes que A conhecêssemos, amou-nos antes que A amássemos, e no trajeto — breve ou longo — que devemos percorrer rumo ao Céu, é d’Ela, em nosso favor, a primeira assim como a última palavra. Donde nossa peregrinação rumo à pátria celestial cumpre se fazer na serenidade, com um ato de confiança completa:

“Ela deseja me salvar mais do que eu mesmo e, portanto, com Ela caminho em paz. A chave de minha salvação está nas mãos de Nossa Senhora”.