Espírito metafísico e espírito sobrenatural – I

Quando bem orientado, o espírito metafísico deve buscar sempre a perfeição absoluta, conduzindo a pessoa à ordem sobrenatural na qual a Igreja nos introduz. Esta disposição de alma, que se resume no espírito sacral, é o pressuposto da boa formação espiritual e da Civilização Cristã.

 

O espírito metafísico é aquela excelência do espírito humano pelo qual a inteligência não se contenta com as explicações imediatas das coisas, mas procura uma explicação suprema. Não se contenta com a satisfação limitada que as coisas terrenas podem dar, mas busca um deleite mais alto, transcendente. E com o mero uso da razão, portanto sem recursos sobrenaturais, procura fazer uma ideia de qual seja essa explicação de todas as explicações, esse bem de todos os bens, e constrói aquilo que nós chamaríamos os dados naturais da religião.

Marcha do espírito metafísico

Assim, a existência, a unidade, a eternidade, a perfeição de Deus. Ele enquanto sendo justo e, portanto, que castiga e premia, ama os homens, governa. Essas são verdades a respeito de Deus que o homem com espírito metafísico deduz pela razão, considerando o universo.

A marcha do espírito metafísico pode colocar-se da seguinte maneira. Eu vejo uma pessoa que pratica um ato extremamente bom, por exemplo, de valentia, de caridade ou de severidade. Olho para aquilo e digo: “É extraordinário como esse homem tem tal virtude. Mas ele a possui de modo limitado. Eu poderia imaginar esta virtude existindo em grau muito mais alto em outrem.”

Isto é sempre verdade. Ainda que nós conhecêssemos Aquela que é o sol das virtudes, Nossa Senhora, poderíamos dizer: “Ela tem esta virtude em grau de deslumbrar, de comover, de não se saber o que dizer.” Mas, analisando as coisas com toda a firmeza, nós diríamos: “Ainda que se pudesse ser mais santo do que Ela, Santo de uma santidade inatingível por nenhuma criatura, só Deus”.

Então, depois de eu ver uma pessoa muito boa, posso afirmar: deve existir uma bondade maior do que a dela. Porque toda bondade menor não existiria se não fosse a bondade infinita da qual ela participa. Logo, deve haver a bondade infinita, um Ser que é infinitamente bom; não é apenas infinitamente bom, mas a própria bondade: Deus.

De tudo do universo que eu vejo, posso fazer isso. Por exemplo, aquela flor francesa chamada “muguet” (lirio-do-vale) , que floresce em maio e dá a impressão de uns sinozinhos brancos, é a própria expressão da delicadeza.

Se tal flor tem aquela delicadeza, minha alma que gosta da delicadeza apreciaria conhecer, é apetente de uma delicadeza imensamente maior do que aquela.

Mais ainda. Minha alma, que é finita, apetece uma delicadeza infinita. E depois que eu conheci uma coisa delicada, minha alma só encontra repouso no momento em que encontre a delicadeza infinita.

A Igreja nos introduz numa ordem sobrenatural

Todas as coisas delicadas da Terra não me bastam, eu quero mais, sempre mais, quero o perfeito, o infinito. Esta disposição do espírito de, em matéria de bom, de belo, querer sempre o perfeito e só se contentar com o perfeito, é uma excelência da alma. Isto leva a consideração, pela via da razão, de um Deus que tenha isto, e a minha compreensão: sou um desgraçado, um miserável enquanto não conhecer este Deus. Toda a vida é pálida e inexpressiva enquanto eu não O conhecer.

É absurdo que a natureza seja mal constituída. Ora, ela seria mal constituída se não existisse a delicadeza infinita. Logo, ela existe e, portanto, há um Deus que é a delicadeza infinita. Este é o espírito metafísico.

O próprio do católico que tem a alma bem formada é possuir esses anseios sem fim, das coisas perfeitas e eternas. O característico do católico com a alma mal formada é imaginar que a vida nesta Terra pode satisfazer.

Então, há o espírito metafísico que se estende para essas coisas, e existe o espírito limitado, circunscrito, que fica apenas no físico, e não no metafísico, no além do físico – eu estou forçando um pouco os termos –, e que se contenta com esta vida. Então um dos primeiros pressupostos do amor de Deus é ser incontentável com as coisas desta vida, e só querer o infinito. 

Ademais, se Deus existe, Ele tem que ser de uma essência e de uma natureza maior do que a nossa. Daí vem a facilidade de admitirmos que Deus nos falou e nos comunicou suas verdades e sua graça, deu-nos uma Revelação e uma Igreja que nos introduz numa ordem sobrenatural, e que tudo quanto puramente na ordem natural nós tínhamos pensado é superado pelo que a Revelação nos ensina de um modo fabuloso.

Então nós temos um anseio maior do que o simplesmente metafísico, que é o anseio para o sobrenatural. Admitimos com facilidade a Revelação, não com superficialidade de espírito, por tolice, mas por uma agilidade de espírito por onde compreendemos facilmente que aquilo é verdade. Temos facilidade em amar as coisas reveladas, somos dóceis para a graça e a ordem sobrenatural.

O espírito sobrenatural e o espírito metafísico se resumem numa só palavra: espírito sacral. O espírito sacral tem um aspecto metafísico natural, e um aspecto sobrenatural que diz respeito à Revelação e à graça.

Defeito de alma que enfraquece o edifício das virtudes na mentalidade dos católicos

Então nós devemos dizer que o pressuposto de toda a Civilização Católica, de toda formação espiritual é que as almas tenham essa disposição. Pelo fato de, mesmo na Igreja, não se insistir bastante sobre isto, havia católicos “carunchados”, porque a maior parte dos meninos saía do Catecismo com a seguinte ideia: “Você morre ainda que não queira, não tem remédio, todo mundo morre. Este é o primeiro fato consumado. O segundo é que depois você vai ser julgado. Terceiro fato consumado: há uma tabela de dez pontos que você precisa obedecer, senão vai para o Inferno; queira ou não queira, você vai encontrar isto diante de si. Então trate de andar bem para não ir para o Inferno. Aliás, se você – dito mais rapidamente – não for para o Inferno, vai para o Céu, o que é muito agradável”.

A criança olha um santinho, vê um Anjo sentado numa substância azul olhando a eternidade passar. Ela pensa: “É isso o Céu? Quando eu comparo com o Inferno é uma saída. Depois me dizem que é bom. Não entendo muito aquele azul, mas enfim tem que ser bom em tese. Lá vou para o azul e está acabado”.

Isto não é despertar o senso sobrenatural, porque a criança fica com a ideia seguinte: “O gostoso seria eu viver neste mundo eternamente; sempre feliz, rico, saudável, não ter Céu nem Inferno; não quero mais nada.”

Este é o defeito de alma que torna tão fraco o edifício da virtude na mentalidade dos católicos. É um pressuposto que se deve ressaltar vivamente. Porque todo trabalho da opinião católica que não tonifique fortemente estes dois princípios resulta numa ação fraca. Vem da debilidade destes princípios o fato de que as pessoas praticam – quando praticam – os Mandamentos a duras penas, resvalando entre o bem e o mal, com concessões, e sempre aparecendo o bem como frágil e o mal como forte.

O que dá uma espécie de baixa e de desânimo. A pessoa perde a coragem na prática dos Mandamentos. E pensa: “Não sei como Deus conduz estas coisas. Ele é sempre derrotado. O partido d’Ele é sempre o mole, o fraco. A Fé, a virtude, é uma fraqueza? A força está no vício. Todas as batalhas da História têm sido ganhas pelo mal, a Igreja não faz senão recuar. Ela agora até está se liquefazendo. Eu fico desanimado.”

Ora, se a alma tivesse estes pressupostos bem nítidos e amasse a Deus como estou acabando de dizer, ela seria capaz de todas as fortalezas. Então veríamos a opinião católica caminhar para a frente. Este é o sentido profundo, o ponto fundamental de toda verdadeira formação católica nos termos que podem interessar o homem moderno.

O verdadeiro homem moderno tem que começar por ser homem, e ser moderno no sentido próprio da palavra. Não é um “Maria vai com as outras”, que acompanha o caudal, mas sim um homem à maneira de São João Batista, que era um homem moderno, quer dizer, adequado, oportuno, útil para seus dias, capaz de curar os males de sua época.

Devemos ter em mente que, antes de tudo, somos uma escola de amor de Deus. E como tal procuramos principalmente lecionar, a respeito do amor de Deus, as verdades esquecidas, mais negadas em nossa época. Nossa Senhora, que nos ajudou a caminhar bastante nesta linha, nos ajudará a ver qual é o modo de ensinar isso.

(Continua no próximo número)

 

(Extraído de conferência de 17/11/1972)

Revista Dr Plinio (Março de 2019)

A Apresentação do Menino Jesus e Nossa Senhora do Bom Sucesso

Dos episódios narrados no Evangelho, nenhum evidencia tanto o papel de Nosso Senhor enquanto gladífero como a Apresentação do Menino Jesus no Templo. Nossa Senhora apresenta ali o êxito de sua divina gestação, tornando-Se padroeira de todos quantos procuram um bom sucesso para o serviço da Causa d’Ela.

 

Nossa Senhora do Bom Sucesso, das Candeias, da Purificação. O que querem dizer essas três invocações? O que elas falam a respeito da vida da Santíssima Virgem? Em que sentido devem nos fazer compreender as relações profundas que nossa piedade pode estabelecer entre a festa do Bom Sucesso, das Candeias, da Purificação e nós? Compreendendo isso poderemos relacionar a devoção a Nossa Senhora do Bom Sucesso com as nossas esperanças.

O nascimento do Menino-Deus

Consideremos o Menino Jesus recém-nascido, deitado na manjedoura em Belém, numa noite fria. Nossa Senhora prevendo tudo com o amor que podemos imaginar, apesar de sua pobreza, arranjou pequenas túnicas para pôr n’Ele, assim que nascesse. Evidentemente dispôs essas túnicas de acordo com as várias temperaturas possíveis, de maneira tal que o Menino Deus não sentisse frio.

Como seria o interior, o íntimo de Maria Santíssima cogitando essas coisas!? Admite-se piedosamente que Nosso Senhor tenha nascido à meia-noite e que, antes de Ele nascer, Ela entrou num êxtase altíssimo, durante o qual deu à luz o Menino Jesus.

O nascimento do Homem-Deus se deu um modo maravilhoso pelo qual sua Mãe Santíssima permaneceu virgem antes, durante e depois do parto; verdade esta que a Igreja sempre afirmou com esta energia de linguagem de que só o pensamento católico é capaz, atestando assim, de modo categórico, a virgindade materna de Maria.

Como Ele pôde fazer isso? Há uma cena no Evangelho em que Nosso Senhor entra em um recinto com todas as portas e janelas fechadas. Costuma-se citar essa passagem como explicativo da virgindade durante o parto. Jesus pode atravessar todos os obstáculos materiais, pois, sendo Deus, seu Corpo terreno poderia assumir as propriedades dos corpos gloriosos e atravessar tudo, antes mesmo de sua Ressurreição.

Logo depois, o mais alto dos êxtases se interrompeu e Ela precisou cuidar do Menino que podia estar com frio.

“Aquele que excogitaste, Tu O gerarás!”

Sendo concebida sem pecado original, a Santíssima Virgem possuía uma inteligência perfeita, isenta das fraquezas inerentes à nossa natureza manchada pela nódoa original. Em consequência, ao ler as Escrituras – ainda mais inundada de graças de Deus para interpretá-las – Ela chegou a compor a fisionomia, o espírito, a mentalidade do Messias anunciado pelos profetas e tão esperado por Ela.

No momento em que Maria Santíssima completou a imagem por Ela formada, em meditação, sobre o Messias, o Anjo apareceu convidando-A para ser Mãe d’Aquele que o espírito d’Ela tinha concebido.

Portanto, uma primeira tarefa na vida de Nossa Senhora foi conceber, pela inteligência, como seria o Filho de Deus. Mas conceber com cuidado, evitando qualquer distração e negligência que pudesse tornar um pouco menos nítida, menos santíssima, a imagem que Ela era chamada a ter d’Aquele que, sem Ela saber, seria seu Divino Filho.

Que santidade é necessário possuir para imaginar o olhar, o timbre de voz, os gestos, o andar, o divino repouso do Filho de Deus! Que alma precisa ter para tentar uma coisa como esta e alcançar êxito!

Mais ainda: Que alma deve possuir para, depois de ter feito essa obra interior de composição, Deus dizer a Ela: “Aquele que Tu excogitaste, Tu gerarás!” Que prêmio maravilhoso este: “Excogitaste, dedicaste a tua mente a desvendar isso? Acertaste! Tu fizeste com tanto amor e acerto, que Eu te afirmo: ‘Tu O gerarás!’” Nunca houve e nem haverá prêmio igual na História do mundo.

Jesus despede-se de sua Mãe

Entretanto, Ela ficava encarregada de tomar conta do Menino, de maneira que em nenhum momento um arrepio de frio ou um pouco de sofrimento com o calor pudesse ser sentido por Ele. E que todo o seu desenvolvimento físico e mental fosse perfeito. Ela era a responsável por isso e tinha uma obrigação enorme de levar a sua tarefa ao ponto perfeito.

Esse ponto perfeito foi o momento gaudioso e triste em que Jesus, ficando adulto, disse a Ela:

– Mãe, estou inteiramente constituído e formado. Chegou a minha vez; Eu caminho para a pregação, a fim de maravilhar os homens e ser crucificado por eles. Minha Mãe, adeus!

Podemos imaginar Nossa Senhora indo até a porta da casa, vendo-O afastar-Se pela estrada, talvez ao cair da tarde, e contemplando a sombra d’Ele a estirar-se ao longo do caminho. Depois, Ela fechava a porta e estava sozinha. Quiçá, para consolá-La, os Anjos começaram a cantar! Sem dúvida, era maravilhoso, mas não valia um olhar, uma manifestação de carinho e de respeito do Filho d’Ela. Só de ouvir, por exemplo, o eco de seus pés divinos sobre aquele soalho tão pobre, já A enchia de contentamento. Que andar de rei, de general, de mestre! Pobres reis, pobres generais, pobres mestres… O que é tudo isso em comparação com o reboar de um passo d’Ele sobre as pranchas de madeira da santa casa que hoje está em Loreto? Quem haveria de remediar esta ausência?

Ao longo da narração do Evangelho vemos que Nossa Senhora aparece, às vezes. Sobretudo, naquele encontro com seu Divino Filho no caminho do Calvário. A meu ver, a cena mais pungente que houve na Terra.

À missão de gerar sucede a de cuidar

Maria Santíssima tinha, portanto, uma primeira missão: conceber o Homem-Deus, e O concebeu esplendidamente. Possuía, ademais, a missão de gerá-Lo e, para isso, quantos cuidados a fim de que tudo se desse perfeitamente e essa gestação fosse para o Divino Embrião como um sol que nasce, tudo perfeitamente direito, adequado, conveniente, santo. Imaginem o enlevo d’Ela quando sentia em suas entranhas virginais que Ele Se movia. Mais ainda, Ele Se comunicava com Ela, por oração conversavam.

Vemos, então, como à tarefa de gerar perfeitamente bem Jesus sucede a de cuidar perfeitamente d’Ele. Acaba uma tarefa, começa outra. O Menino nasce, é o termo de todo um período que começou desde a primeira reflexão feita por Ela sobre como seria o Salvador até o momento de seu nascimento. E Ela contempla, pela primeira vez, aquela face que tanto desejara contemplar: rosto pequeno, de criança inocente, mas já fisionomia de Rei, de Mestre, de Quem fará milagres, porque o sobrenatural de tal maneira irradiava de Nosso Senhor que se tem a impressão de que ao aproximar-se d’Ele qualquer enfermo sararia imediatamente.

Sem dúvida, uma das incumbências da Santíssima Virgem foi vestir seu Divino Filho. Quando Adão e Eva pecaram, Deus fez para eles os primeiros trajes. Quando o Menino nasceu, foi a criatura humana que vestiu a Deus. Como tudo isso é bonito e se presta a meditações!

Maria Santíssima apresenta o Menino no Templo

A Lei do Antigo Testamento determinava que, tão logo quanto possível, as mães levassem seu filho recém-nascido ao Templo para apresentá-lo a Deus e se purificassem. Essa era uma regra que toda boa mãe israelita cumpria. Aliás, linda regra na qual se espelha a santidade de Deus. A criança nasce no meio de perigos. Toda a gestação traz riscos. Mas, afinal, ela nasceu. Ó sucesso feliz! A mãe toma a criança, vai até o Templo e oferece a Deus aquele bebê que pertence a Deus, pois Ele o criou. A antiga Lei tornava isso obrigatório.

Nossa Senhora era superior à antiga Lei. Deus não está sujeito à Lei que Ele mesmo fez. O Legislador é superior à Lei, entra pelos olhos. Então, Ele não era obrigado a ir e Ela não estava obrigada a levá-Lo ao Templo de Jerusalém. Mas Ela quis por respeito à Lei, à tradição. E amando esse conceito de tradição, animada pelo amor de Deus intensíssimo que Ela possuía, Nossa Senhora leva a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade ao Templo de Jerusalém.

Episódio único na história do Templo: é o próprio Deus Encarnado que nele entra. Valeria a pena construir um Templo mil vezes mais esplêndido do que aquele, para ali entrar Deus Encarnado. Era a hora máxima, a hora santa, a hora perfeita. Pode-se dizer que, nesse momento, os Anjos encheram o Templo e se puseram a cantar.

Ela entrou, mas quase ninguém notou… Ninguém ouviu os Anjos. A decadência religiosa do povo eleito era enorme. Aquilo estava cheio de barracas com gente fazendo comércio de toda ordem. Os sacerdotes eram os precursores próximos daqueles que haveriam de trabalhar para a crucifixão d’Ele, ou já eram os próprios que O crucificariam. Tudo estava em ruína. Aquele que é o Autor de todas as coisas entra naquelas ruínas espirituais… E aqueles homens de ruína não O perceberam. Ela cumpre o rito da Apresentação.

Um ancião amarrado à vida por uma promessa

Simeão, que era o profeta indicado por Deus para isso, atua para purificá-La, quer dizer, faz o rito com Ela, e recebendo o Menino nos braços entoou aquele cântico que começa assim, em latim: “Nunc dimittis servum tuum in pacem…” – “Agora, Senhor, levai o vosso servo na paz, porque os meus olhos viram o Salvador…”

Ela ouve encantada aquele ancião que parecia amarrado à vida por uma promessa que não se tinha cumprido: a promessa divina de que ele veria o Messias antes de morrer. Aquele homem viu o Messias chegar e canta: “Senhor, agora levai…” E prevê o futuro daquele Menino, a glória e a Cruz. Diz: “Tu serás pedra de escândalo para que se revelem de muitas almas as cogitações”. Mas ao mesmo tempo aclama, dizendo que Ele é “Lumen ad revelationem gentium” – “Luz que se manifesta aos homens”. E uma profetiza, Ana, também canta as glórias d’Ele. Os dois sabem, por inspiração divina, o que até então só São José e Ela sabiam, que Aquele era o Filho de Deus.

Padroeira para a hora em que o Reino de Maria nasça na Terra

O que significa aí o comemorar o bom sucesso? O sucesso é um bom sucesso, digno de nota, quando se realiza algo que pede cuidado, empenho e dá seu resultado. É filho do esforço, da dedicação e do heroísmo! Aí é que há o bom sucesso. Nossa Senhora leva ao Templo Aquele que é a prova de que a gestação fora perfeita. Ali estava o Filho de Deus.

Aqueles que estão entregues a uma tarefa árdua têm uma responsabilidade grande, uma série de coisas difíceis para fazer a fim de chegar a um resultado; quando alcançam o resultado eles têm um sucesso. Nossa Senhora do Bom Sucesso é a padroeira de todos aqueles que procuram um bom sucesso para o serviço da Causa d’Ela.

Como merece ser chamado de “bom sucesso” o êxito daqueles que, nas trevas da noite do neopaganismo de nossos dias, trabalham para que nasça o sol do Reino de Maria! Não será Nossa Senhora do Bom Sucesso uma padroeira muito felizmente indicada para a hora em que o Reino de Maria afinal nasça na Terra? E filhos indignos da Santíssima Virgem, mas amorosos, transidos de enlevo, quando raiar a luz do Reino de Maria poderemos dizer a Ela:

“Senhora, nós Vos apresentamos aqui o mundo que Vós iluminais; a luz de vosso Reino é o nosso sucesso; Mãe nossa, é o vosso sucesso! Vós fizestes tudo, a começar por nós. Quando um de nós, menino ainda, foi levado às fontes batismais, que mérito tinha para isso? Que graça teve senão a de vossas orações? Que gratuidade assombrosa a desse dom!”

Ora, foi a Santíssima Virgem quem nos obteve a graça que nos levou a sermos batizados. Quem trouxe essa graça para o gênero humano senão o Filho por Ela gerado? Ele é o autor e a fonte da graça. Se Nosso Senhor não tivesse morrido na Cruz, nós não teríamos a graça. Essa torrente de graça que jorra sobre o mundo abriu-se para os homens na hora em que Ele morreu. Mas essa graça, de algum modo, começou a estar presente no mundo no momento em que Ela disse: “Fiat mihi secundum verbum tuum!” – “Faça-se em mim, segundo a tua palavra!” E jorrou sobre o mundo no momento em que o Padre Eterno pediu o consentimento d’Ela para que Nosso Senhor Jesus Cristo morresse na Cruz. E Ela fez essa coisa sublimemente terrível, dizendo: “Morra então Ele, por amor ao gênero humano e para que se faça a vossa vontade”.

Todos os que trabalham a favor da Contra-Revolução, em última análise, atuam para que nasça o sol do Reino de Maria sobre o mundo! É algo vagamente parecido com uma geração, e o Reino de Maria se parecerá admiravelmente com um bom sucesso, com um magnífico sucesso.

Indicações para esculpir uma imagem

Talvez se encontre aí a explicação para o fato de Nossa Senhora aparecer tão régia na imagem que A representa, no convento das concepcionistas de Quito, esculpida milagrosamente por Anjos.

Durante uma aparição à Madre Mariana de Jesus Torres, a Santíssima Virgem dera todas as indicações de como deveria ser sua imagem, inclusive o tamanho, tomando o cordão do hábito da Madre Mariana e medindo-Se a Si própria.

O escultor começou a fazer a imagem e não conseguia. Um belo dia, ele chegou ao coro onde estava esculpindo a imagem em madeira e a encontrou pronta.

Depois disso, Nossa Senhora aparecia para conversar com Madre Mariana de Jesus Torres e andavam juntas por aqueles claustros do convento. Como prova da autenticidade dessas aparições, ao amanhecer o manto d’Ela estava todo molhado de orvalho. Que maravilha, o orvalho cair sobre o manto da Rainha do Céu e da Terra! Nenhum palácio, nenhum diadema real, nada teve a beleza dessas gotas de orvalho pousando e cintilando sobre o manto da Virgem!

Um fatinho da vida de Madre Mariana, profetiza do Bom Sucesso de Nossa Senhora

Madre Mariana de Jesus Torres, para ser fiel a sua vocação – uma espécie de profetiza do Bom Sucesso de Nossa Senhora, do Reino de Maria –, teve que passar por provações terríveis. Eu não resisto ao desejo de contar uma:

O mosteiro dela foi erigido no tempo em que tanto o Brasil como a América hispânica eram colônias, respectivamente de Portugal e da Espanha. Teve sete fundadoras; ela era uma, mas as outras religiosas fundaram com ela o convento. Depois receberam outras vocações da Espanha, creio eu, e entraram também muitas do lugar, que eram mestiças de índias. E uma freira péssima – Judas os há por toda parte e nos dois sexos –, índia, ou mestiça de índia, chefiou a revolta das índias contra as espanholas, que eram santas. Fizeram uma perseguição medonha, e Madre Mariana de Jesus Torres chegou a ser presa na cadeia do convento. Ela rezou continuamente pela perseguidora.

Em determinado momento ficou claro que a perseguidora não tinha razão, e que Madre Mariana estava certa, e foi eleita como abadessa. A perseguidora daí a algum tempo adoeceu, entrou em agonia e ia morrer. Madre Mariana, que havia cumulado essa revolucionária de bondades durante a sua doença, quando de sua agonia pediu especialmente a Deus, por meio de Nossa Senhora, que salvasse aquela alma. A resposta que veio foi esta: “Poderá ser salva, se por amor à tua perseguidora consentires em que tua alma passe cinco anos no Inferno”.

Ela consentiu e a freira se salvou, tendo passado por um Purgatório não pequeno. E a alma de Madre Mariana foi posta no Inferno. O que ela sofreu durante esses cinco anos é uma coisa tremenda, inclusive – as memórias dela não me pareceram muito claras a esse respeito – parece que ela tinha se esquecido que fizera esse oferecimento e passou cinco anos com o pavor da ideia de ter sido condenada, e que sofreria o Inferno por toda a eternidade. Ela só pedia uma coisa a Deus: nunca permitisse que ela deixasse de amá-Lo.

Passados os cinco anos, foi-lhe revelada a realidade e o tormento cessou. E ela que era uma pessoa de uma grande beleza, um prodígio de beleza, muito rosada, com cores muito saudáveis que ela conservou até o fim da vida, durante esse tempo emagreceu, definhou, mas depois refloresceu completamente!

Por aqueles claustros, que várias pessoas aqui presentes viram, passou penando, por uma inimiga, Madre Mariana. Com a alma sofrendo os tormentos do Inferno. Ela ali conversou com Nossa Senhora do Bom Sucesso. Que conversas… parecidas com as de Adão com Deus no Paraíso! Que penas e tormentos, que alegria quando ela voltou à luz e compreendeu que diante dela estava mais um tanto de vida e o Céu se abria.

Apresentação do Menino: Nosso Senhor enquanto gladífero

É interessante notar que, de todas as páginas do Evangelho, não me lembro de nenhuma em que o papel de Nosso Senhor enquanto gladífero venha tão bem acentuado quanto nessa passagem da Apresentação do Menino Jesus no Templo. Porque Ele é qualificado pelo Profeta Simeão, o qual recebe o Menino Jesus das mãos de Nossa Senhora, como pedra de escândalo que vai dividir os homens para que se conheçam em muitos corações as verdadeiras cogitações.

Quer dizer, Ele cria um caso, divide as almas ao longo de toda a História. Escandaliza os escandalosos, os sem-vergonha, os maus, os hipócritas. Esses que Nosso Senhor denuncia e coloca mal à vontade levantar-se-ão contra Ele. Aquele Menino levanta uma grande batalha até a consumação dos séculos e divide a humanidade. O grande divisor da humanidade é Nosso Senhor Jesus Cristo, aquele mesmo Menino, tão encantador, que nos é apresentado no presépio no Natal.

Como seria interessante se houvesse, em alguma igreja, ao pé do presépio uma faixa citando a respeito daquele Menino tão engraçadinho e inocente, com os braços em forma de cruz, a frase afirmando que Ele vai dividir o gênero humano! Como seria bom, como conformaria bem a piedade, como seria magnífico!

Castigos, sorrisos e provas de amor maternal que sobre a América Latina sobrevirão

Ora, a profecia de Nossa Senhora, de que Madre Mariana de Jesus Torres recolheu a revelação, trata exatamente disso. Ela fala de um tempo em que o Equador se terá tornado independente da Espanha, adotará uma forma de governo próprio, e que esse país e toda a América do Sul serão sacudidos por uma grande revolução.

E se refere indiscriminadamente à América do Sul como sendo um grande todo sócio-político-econômico que vai passar por uma revolução religiosa e uma revolução de ordem temporal, as quais irão chacoalhar tudo e que será um castigo para a humanidade. E depois virá o triunfo de Maria Santíssima, o Reino d’Ela, a vitória daqueles que Nossa Senhora tiver suscitado para lutarem por Ela nessa ocasião difícil.

Compreende-se essa concepção da América do Sul como que constituindo um todo. Porque no tempo em que Madre Mariana de Jesus Torres recebeu as revelações, o Brasil fazia parte da Coroa espanhola. Quer dizer, a Coroa de Portugal fora herdada por Felipe II, que era, portanto, Rei da Espanha e de Portugal. E, enquanto tal, senhor do Brasil, que era colônia portuguesa. Razão pela qual toda a América do Sul estava debaixo do domínio de um só monarca, que era Felipe II e seus sucessores. Compreende-se que ela visse isso tudo como um abalo só.

É curioso que perante o mundo de nossos dias a América Latina é tida como um todo só também. Tem-se, portanto, a noção da grande unidade que a América Latina constitui e, consequentemente, dos grandes castigos, sorrisos e provas de amor maternal que sobre a América Latina se abrirão.

Assim, esta festa nos diz muito especialmente respeito.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/2/1983 e 2/2/1985)

Sinal de contradição

A invocação de Nossa Senhora da Luz refere-se ao episódio em que Ela apresentou o Menino Jesus no Templo, onde Ele foi recebido por um profeta, Simeão, e por uma profetisa, Ana.

Simeão fez uma linda profecia na qual ele enaltece Nosso Senhor como Luz para iluminar as nações e sinal de contradição para a queda e o soerguimento de muitos em Israel.

Assim como uma pedra posta no meio do rio separa as águas, estaria Ele no centro da História da humanidade, dividindo os homens, sendo objeto da ira de uns e do amor de muitos outros, para  que se revelassem as cogitações dos corações.

Devemos ter o desígnio de representar Nosso Senhor nesta perfeição: sermos pedras a dividir as águas. De maneira que onde o rio da impureza e da Revolução corre sem ninguém se contrapor, ali esteja um escravo de Maria contestando: “Eu não estou de acordo!”

Que linda vocação! (Extraído de conferência de 19/7/1985)

Oração: Propósito de fidelidade à luz da graça

Ó minha Mãe, Medianeira de todas as graças, na vossa luz veremos a luz!
Mãe, antes ficar cego do que deixar de ver vossa luz, porque vê-la é viver. Na sua claridade contemplaremos todas as luzes; e sem ela, nenhuma luz refulge. Não considerarei vida os momentos em que ela não brilhar; e eu, da vida, não quererei ter mais nada do que a mente banhada por essa luz.
Ó luz, eu vos seguirei custe o que custar: pelos vales, montes, desertos e ilhas; pelas torturas, pelos abandonos e olvidos; pelas perseguições e tentações, pelos infortúnios, pelas alegrias e triunfos. Eu vos seguirei de tal maneira que, mesmo no fastígio da glória, não me incomodarei com ela, porque só me preocuparei convosco. Eu vos vi, e até o Céu não desejarei outra coisa, porque, uma vez, vos contemplei!
Plinio Corrêa de Oliveira (Composto na década de 1970)

Ó Igreja Católica!

Diante da Catedral de São Marcos somos objeto de uma determinada impressão a respeito do desejo de maravilhoso, de grandioso, inspirado pelo espírito de Fé, com que, em louvor de São Marcos, ela foi construída. É uma das mil cintilações deslumbrantes do espírito católico que se manifesta ali, de maneira que, ao contemplá-la, uma pessoa pode dizer: “Igreja Católica é isto. Ó Igreja Católica!”

Quando se faz uma viagem muito cheia de impressões, densa de coisas que se viu e sobre as quais se pensou – ao menos no meu espírito é assim –, nem tudo aflora imediatamente. A pessoa deixa repousar as impressões de viagem e depois elas vão se evolando de tempos em tempos, mais ou menos como as flores que demoram para exalar todo o seu perfume. Passa-se por uma flor, ela se abriu e esparge seu perfume novo. No dia seguinte ela não está recendendo a nada, mas no terceiro dia, quando se pensa que já deixou de exalar sua fragrância, há uma segunda onda de perfume que se exala da flor, e assim por diante. Deste modo são também as recordações de viagem: há várias exalações consecutivas, de vários significados e bons aromas que se vão apresentando, formulando-se à medida que o tempo passa.

Obras impregnadas pelo sobrenatural

Recentemente consegui explicitar melhor alguma coisa que me vinha à mente em minha última visita à Europa, pela comparação entre a impressão que o Velho Continente me causou nas anteriores viagens e a que tive nesta.

Para ficar bem clara a questão, parece-me melhor exemplificar em concreto com a Catedral de São Marcos. Antes, porém, dou uma pequena introdução e depois faço a aplicação.

Suponhamos que um escritor como São Bernardo redige um sermão sobre Nossa Senhora, ou um rei como São Luís IX publica suas Capitulares, isto é, uma legislação sobre um determinado corpo de assuntos. Mas tudo é feito com espírito católico e com a intenção de servir à Santa Igreja e à Civilização Cristã. Por causa da intenção que presidiu a isso, a graça pousa, por assim dizer, naquela obra. E quem a lê tem duas impressões.

Uma natural e humana que a leitura daquele texto pode causar. Por exemplo, São Bernardo é um escritor exímio, de grandes voos literários, um notável burilador da língua francesa, sob o impulso de quem esse idioma explicitou de sua genialidade original tais aspectos novos. São impressões naturais que nos vêm ao espírito, causadas pela leitura do trabalho de São Bernardo.

Mas como aquela obra foi feita por amor de Deus, com a intenção de despertar pensamentos sobrenaturais inspirados pela Fé e tendentes à glória do Criador, entra também uma graça, porque ninguém é capaz de pensar uma obra com base na Doutrina Católica, nem de querer uma coisa para o bem da Santa Igreja ou para a glória de Deus, que não seja pela graça.

Sem auxílio dela ninguém pode fazer essas operações intelectuais e da vontade, pois o homem  é inteiramente inerte e incapaz de as realizar se não tiver o auxílio da graça.

Assim, São Francisco de Sales – para tomar outro autor – escreveu a “Filoteia”, a “Introdução à Vida Devota”, e quem a lê tem a impressão de estar essa obra embebida pela graça, e é absorvido  pela graça que baixa de Deus, mas ajustada, correlata ao texto lido.

Então, ao operar natural da inteligência, da vontade e da sensibilidade, soma-se uma operação de origem sobrenatural pela qual na leitura a pessoa percebe belezas novas de caráter absolutamente superior, extraordinário. Às vezes elas reluzem aos olhos do espírito do leitor através de um fenômeno da mística. São de uma pulcritude maior do que todas as belezas naturais, pois o  sobrenatural vale mais do que o natural.

Amor de Deus, corolário das construções medievais

Isto que se diz a respeito de escritos pode-se igualmente aplicar a monumentos, catedrais, imagens, obras de arte. Por exemplo, as estalas superiormente bem esculpidas de um convento, uma  armadura medieval, um vitral, obras estas realizadas com espírito sobrenatural para o serviço de Deus, mas também com uma finalidade natural. Quem as vê é visitado por uma graça que lhe faz compreender as analogias que elas têm com realidades sobrenaturais.

De onde um muito grande apreço do homem por aquilo que ele vê. Por exemplo, a Catedral de São Marcos e a de Notre-Dame de Paris. Mas não apenas catedrais, às vezes são edifícios destinados a uma finalidade civil, como uma fortaleza, um castelo, que é a residência de uma família feudal e, ao mesmo tempo, a defesa desta família e da população, do burgo vizinho, contra possíveis agressões de maometanos, de bárbaros. Portanto, uma finalidade natural.

Mas o castelo com aquelas torres, aquele jogo de ameias e barbacãs, dá uma impressão sobrenatural, proporcionada pela graça, e que vem do fato de que o castelo simboliza extraordinariamente bem para nós a virtude da fortaleza, enquanto praticada por amor de Deus.

Assim, chegamos à conclusão de que muitos dos monumentos existentes na Europa foram construídos na plena era do amor de Deus, isto é, no apogeu da Idade Média. Outros em épocas posteriores ou anteriores. Nas anteriores, enquanto o gótico começava apenas a ser vislumbrado pelos seus primeiros artistas, o românico era o estilo usado.

Tinha ele, entretanto, charmes, encantos em que algo do sorriso todo cheio de afabilidade, de majestade e de uma discreta melancolia do gótico ia se formando, aparecendo, o que pode ser notado num edifício, numa praça, etc. Ademais, é possível que a graça dê à pessoa um especial discernimento do espírito com que, em concreto, aquilo foi construído. Então, diante da Praça do Paço Municipal de Siena, a pessoa pode ter um discernimento especial de qual era o espírito dos sienenses daquele tempo, de como entrava ali a graça, e fazer uma recomposição das famosas “contradas”, aqueles jogos entre as corporações e associações religiosas, que despertam esse ou aquele estado de espírito. Então aqui está uma ordem de ideias.

Há locais impregnados pelo sagrado…

Passo a considerar agora outra ordem de ideias. Não é mais o estilo, a aparência material, nem mesmo a mentalidade dos que planejaram, executaram ou viveram em determinado lugar, mas é a natureza dos atos que ali se passaram.

Há um princípio admitido pela piedade católica segundo o qual, quando em um ambiente se passou algo de muito sagrado, aquele lugar fica de algum modo sagrado também. Vou dar um exemplo de tal maneira supremo que, por assim dizer, estoura o assunto, mas enfim de um estourar sagrado, magnífico: o Horto das Oliveiras, onde se deu o primeiro mistério doloroso do Rosário, a  Agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo. “Agonia”, em grego, quer dizer “luta”.

Então a luta de Nosso Senhor contra o legítimo arrepio de seus sentidos diante da perspectiva da morte que deveria vir, com tudo quanto a antecedeu. Ali, onde Ele disse: “Pai, se for possível afaste-se de Mim este cálice, mas faça-se a vossa vontade e não a minha” (Lc 22,42).

Veio então um Anjo – o qual podemos imaginar cercado, nimbado de uma luz ao mesmo tempo alvíssima e triste por causa da tarefa que ele devia executar – levando para Nosso Senhor um cálice de uma bebida que haveria de Lhe dar força sobrenatural para tudo aquilo que Ele suportou na Paixão.

Então, onde Ele esteve, sofreu e derramou o primeiro Sangue da Paixão, tudo isso torna sagrado  lugar em que essas cenas se passaram. Por essa razão, quando se está naquele lugar recebem-se graças, não raramente sensíveis, pelas quais a alma é levada ao amor de Deus, à contrição, ao arrependimento, à compunção, à piedade, à compaixão para com o Cordeiro de Deus que ali sofreu para nossa salvação.

Aquele lugar tem bênçãos especiais.

…outros, habitados por uma graça

“Mutatis mutandis”, os locais onde se passaram grandes fatos históricos, eminentes atos de coragem, de virtude, de renúncia, na História da Cristandade, tornam-se lugares particularmente dignos de reverência. Às vezes até fatos sem uma relação direta com a Religião, mas nos quais reluz algo do espírito católico.

Vem à minha memória a execução do Duque d’Enghien, ordenada por Napoleão. Esse duque, último da linhagem dos Príncipes de Condé, reunia em si o aspecto heroico, a estampa afidalgada, a coragem, a ousadia, quase a temeridade de seus antepassados. Possuía qualquer coisa do espírito repentino e irresistível do Grande Condé.

Napoleão tinha intuitos de acabar com esse último descendente da Casa dos Condé, e para isso aproveitou-se do fato de que esse duque estava noivo de uma princesa francesa residente não longe da fronteira alemã, mas do lado alemão, onde a tropas de Napoleão não podiam penetrar. O Duque d’Enghien foi visitar a noiva e quando o Sol já havia se posto, Napoleão mandou um destacamento transpor o Reno, entrar nesse  lugarzinho, agarrar o Condé e levá-lo preso para a França.

Depois de um simulacro de julgamento, que ninguém toma a sério, mandou matá-lo. A calma do Duque d’Enghien nesse momento extremo, sua dignidade, presença de espírito – segurou calmamente a lanterna para que os tiros acertassem nele –, suas últimas cartas, tudo isso tem um aroma de Cavalaria. É bonito ver esse cintilar de luzes da Cavalaria, brilhando na época miserável em que o mundo estava conspurcado pela Revolução Francesa.

Estando em Vincennes, e sabendo onde o Duque foi executado, eu quereria ir visitar o local em espírito de peregrinação. Não tenho nenhum documento comprovatório de que esse homem fosse especialmente piedoso. Dói-me a hipótese de que não o tenha sido. Apesar disso, não há dúvida nenhuma de que se ele não descendesse de ancestrais católicos, não seria essa flor do heroísmo católico a desabrochar dentro da poluição imunda da Revolução Francesa. Portanto, nessas condições, eu iria em espírito de peregrinação ao lugar onde ele foi imolado com tanto garbo, tanta galhardia, e rezaria por sua alma.

Isso nos dá a impressão – notem bem, não é a realidade – de que as cenas ocorridas em determinados lugares, como que ainda estão se passando ali. É fora de dúvida que aquele passado todo revive, e para quem está ali ele tem um prolongamento, uma continuidade misteriosa que emociona especialmente o visitante. Onde existem coisas assim, houve graças extraordinárias.

E do mesmo modo como a graça desce à alma de quem lê, com trezentos anos de diferença, um livro de São Francisco de Sales, ela também age na alma de quem, duzentos anos depois, visita o lugar onde o Duque d’Enghien foi fuzilado.

Essa impressão de lugar habitado pela  graça, no qual se tem a impressão de que os fatos revivem e entramos numa misteriosa intimidade com eles, é altamente benfazeja para o espírito e enriquece o sentir, o degustar do homem que se encontra nesse local.

Desejo do maravilhoso inspirado pela Fé

Tomemos, por exemplo, a Catedral de São Marcos. Vista durante a noite, quando não há turistas e os pombos estão dormindo, a catedral apresenta-se na sua majestosa solidão, esplendidamente iluminada, deixando perceber o branco reluzente do mármore de que foi construída, bem como seus pormenores magníficos, e torna-se especialmente evidente sua linha geral.

Faço notar as três profundidades para a vista humana diante dessa catedral. Em primeiro lugar, as arcadas que têm como centro um arco maior com um magnífico mosaico e, acima, um terraço.

Constituem o primeiro corpo do edifício. Depois, uma espécie de ogiva central muito grande, onde se percebem os famosos cavalos, dois torreões, e de cada lado duas ogivas muito abertas, encimadas cada qual com uma figura. Por fim, constituindo a terceira dimensão, encontram-se as cúpulas ladeadas de umas torrezinhas.

Diante dessa catedral somos objeto de uma determinada impressão a respeito do desejo de maravilhoso, de grandioso, inspirado pelo espírito de Fé, com que, em louvor de São Marcos, ela foi construída. É uma das mil cintilações deslumbrantes do espírito católico que se manifesta ali, de maneira que, ao contemplá-la, uma pessoa pode dizer: “Igreja Católica é isto. Ó Igreja Católica!”

Entretanto, dentro dessa catedral passaram-se fatos históricos da maior importância que determinaram rotações inteiras na História da Cristandade, das nações banhadas pelo Mar Adriático, que se manifestaram na História de Veneza e da Itália, episódios ora de violência, ora de refinamento político e esperteza levada a um grau inimaginável.

Veneza era uma escola de diplomatas extraordinários. Nos arquivos dessa cidade se conservam relatórios que os embaixadores venezianos mandavam periodicamente, contando o que se passava nos países onde viviam. As narrações são tão bem feitas, tão seguras – de tal maneira eles sabem evitar boatos –, as análises tão finas e tão sutis, que essas cartas servem de fonte ótima para a História de qualquer país da Europa.

Imponderável de São Pio X em Veneza

Assim, pelo auxílio da graça, temos não apenas uma percepção do espírito de Fé que levantou tudo isso, mas também uma ideia dos mil fatos que ali se passaram. Um desses fatos se deu no começo do século XX. São Pio X, antes de ser eleito Papa, era o Patriarca de Veneza, portanto, Cardeal e Arcebispo daquela cidade. Quando morreu Leão XIII, convocaram o Conclave. São Pio X – então Cardeal Giuseppe Sarto – comprou passagem de ida e volta, pois ao que parece ele não contava com a possibilidade de ser eleito e, ademais, não tinha vontade nenhuma. Ainda nas vésperas de sua eleição, o Cardeal Sarto julgava que não seria escolhido, mas como, de repente, as coisas viraram e sua escolha tornou-se iminente, ele chorou, porque tinha pânico de ser Papa, pelo peso da responsabilidade do Papado.

Podemos imaginar a última visita desse Santo Cardeal, pouco antes de tomar a gôndola para se dirigir ao Conclave; sua longa figura esguia, com os trajes cardinalícios, cabelos já muito brancos, ele mesmo alvíssimo, acompanhado de seus secretários, monsenhores, prelados, entrando na Basílica de São Marcos para rezar. Depois, com o coração pesado de presságios que via apenas obliquamente, ele tomar a embarcação e partir para o lugar de onde o trem o conduziria até Roma.

Seria a cena de Veneza despedindo-se do mais recente dos Papas canonizados, que previu e combateu a crise do modernismo. Quem passeia por debaixo dessas colunas do átrio ou transpõe a porta, pensando em tudo isso, tem a impressão de que São Pio X encontra-se um pouco aí revivendo tudo isso. De fato, ele não se encontra, mas está presente uma graça relacionada ao que se passou e que torna especialmente sagrado esse lugar.

Passeando de gôndola pelos canais de Veneza

Em minha última viagem à Europa, tive diante de muitos monumentos a impressão triste, de cortar o coração, de que essas graças tinham se retirado, e as cenas históricas ali desenroladas haviam perdido o nexo sobrenatural com aqueles monumentos. Ou que esses restos de continuidade da graça estavam nos seus últimos lampejos e já iam desaparecendo, o que a multidão de turistas não censurava, e nem sequer sabia ser possível sentir isso, e visitava a Catedral de São Marcos, por exemplo, mais ou menos como se visita um museu.

No entanto, essa densa presença de sobrenatural e de história, que em Veneza é incomparável, ainda senti quando tomei uma gôndola para passear pelos canais da cidade. Navegando no escuro entre aqueles palácios, tem-se a impressão de estar participando da vida psicológica, temperamental, social, daqueles personagens de trajes medievais ou do tempo das monarquias absolutas, com máscaras como se usava em Veneza, o bater dos remos na água, o brado dos gondoleiros para evitar trombadas; de repente, vê-se um homem que, ao passar diante de uma casa onde não quer ser reconhecido, pega o seu manto e cobre o corpo inteiro, só se desvendando mais adiante… Esses mistérios todos de Veneza temos a impressão de que ainda vivem, e nos metemos no meio deles ao passear de gôndola à noite pela cidade.

O uso da lancha nos canais já estraga isso, porque o mistério vai embora. A lancha tem o determinismo estúpido das coisas mecânicas. O bonito é o silêncio, o mistério e o deslizar lento da gôndola, na qual os passageiros vão sentados meditando no que fizeram ou farão. Esse mistério tem seu charme.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/1/1989)

Duas formas de grandeza

Basílica de São Pedro e Catedral de Notre-Dame de Paris, duas igrejas completamente diferentes. Na primeira, com um esforço de piedade, a criatura tenta elevar-se até o Criador; na segunda, é  o Criador quem desce até a criatura.

 

Na minha ótica de homem do século XX, com os padrões deteriorados pelos apartamentos de São Paulo, quando entrei pela primeira vez na Basílica de São Pedro, depois de vê-la pelo lado de fora, tive uma certa surpresa, julgando-a muito menor do que eu a imaginava.

Isto se deve ao fato de que, na construção da Basílica, Michelangelo teve o cuidado de ocultar, tanto quanto possível, o tamanho do Cupolone. Naquele tempo, onde o materialismo ainda não tinha feito tantos progressos, era bonito realçar a proporção e esconder o tamanho. Porque o tamanho é matéria, e a proporção é espírito. O espírito deve dominar sobre a matéria.

Houve uma tal preocupação em disfarçar a altura dele, que eu não notei ser o “duomo” de São Pedro tão alto quanto o Martinelli, o maior edifício de São Paulo daqueles tempos.

Porém, a Basílica de São Pedro é toda influenciada pela Renascença. E, portanto, do ponto de vista artístico, ela não é senão uma reapresentação de elementos de beleza clássica, apresentados pelas gerações que vieram depois do Renascimento.

Ora, isso não tem, absolutamente, o espírito católico da Idade Média.

Nota-se, claramente, que a Basílica de São Pedro é uma igreja muito bem composta, cuja pompa está à altura do que os homens podem dispor para venerar a Sé de Pedro e ser, nesse sentido, a primeira igreja da Cristandade. Mas, de certo modo, o homem não tem ali a sensação de proximidade com Deus que há na Catedral de Notre-Dame, em Paris.

Eu traduziria essa impressão nos seguintes termos: na Basílica de São Pedro eu vejo uma tentativa do homem elevar-se até Deus, num esforço de piedade; na Catedral de Notre-Dame, é Deus quem desce até os homens. Por causa disso, a impressão de proximidade de Deus lá é muito maior do que no próprio Vaticano.

 

 

(Extraído de conferência de 18/5/1976)

A arte de cumprimentar

Devido a sua inocência e ao ambiente criado por Dona Lucilia, Dr. Plinio não cedeu à ação revolucionária exercida por muitos dos seus companheiros de colégio. Para opor-se a essa má influência, que se manifestava, entre outras coisas, pelo modo de saudação, ele elaborou uma verdadeira arte contrarrevolucionária de cumprimentar, própria às circunstâncias.

 

Poder-se-ia dizer que, dando rapidamente como introdução o histórico de como nasceu a observação da vida e da luta revolucionária e contrarrevolucionária, depois se compreende melhor como a galharia enorme da ação nasceu em doutrina, já articulada, e como esta dirige a ação. É algo que parece quase impossível de conceber; porém — como tantas coisas quase impossíveis —, tendo o segredo e efetuando as devidas voltas, a questão acaba sendo muito simples.

A inocência, o bom espírito e o ambiente criado por Dona Lucilia

Nessas reminiscências, sempre me reporto ao começo da minha ação contrarrevolucionária, portanto, no Colégio São Luís; e também em dois estabelecimentos secundários, que frequentei como intervalo do São Luís: o curso do Prof. Aquiles Raspantini e outro estabelecimento de ensino chamado, se não me engano, Colégio Paulistano. Além disso, o contato com o meu mundo de criança, e depois a sociedade nos cinco ou seis anos em que a frequentei, metido nela até o alto da cabeça. E um pouco a Faculdade de Direito, que representou um papel muito menor para isso.

Tudo isso somado constituiu o seguinte:

Eu já possuía posição tomada a respeito de uma porção de coisas, em virtude da inocência, do bom espírito, do ambiente criado por mamãe. E um pouco da atmosfera de minha casa, que eu considerava como sendo muito boa. Nessa época eu não via, no ambiente de uma família tradicional, o que pode haver de não tradicional e já desviando para as coisas modernas; então, eu dava àquilo uma adesão inteira, sem jaça — sobretudo à Igreja Católica, evidentemente —, pois apresentava um modo de ser harmônico e coerente diante de mim.

Sentindo o choque disso, daquilo, daquilo outro, eu percebia o contraste. Mas não o notava apenas entre uma coisa e outra, quer dizer, o mundo revolucionário faz determinada coisa de tal jeito, e eu faço de outro jeito; eu percebia muito claramente o espírito que presidia aquilo, o qual era o oposto do espírito que havia em mim.

Por detrás do modo de se cumprimentar havia todo um mundo

Vou dar um exemplo. Um dos primeiros choques que tive foi o modo de muitos meninos se cumprimentarem fora do meu ambiente, no colégio.

É de bom senso que os meninos, chegando à escola, não fiquem se saudando. São quatrocentos, quinhentos alunos, não podem estar desejando bom dia uns aos outros. Isto é uma coisa que entra pelos olhos.

Mas muitas vezes se encontravam na rua, por exemplo, no que hoje é o centro velho e naquele tempo era o centro da São Paulinho. Ia-se lá para tomar sorvete, comer doces em alguma confeitaria, comprar um chapéu, enfim, para mil outras coisas, e se deparava com colegas. E a regra era, encontrando qualquer pessoa conhecida, inclusive meninos, cumprimentá-la tirando o chapéu, amavelmente. Todos os meninos usavam chapéu naquele tempo.

Ora, eu encontrava, muitas vezes, os meus colegas e, ao invés de receber um cumprimento afável, cerimonioso, a que estava habituado — não imaginava que houvesse outro cumprimento —, davam-me uma saudação despachada. E não era só comigo, mas todos eles, entre si, quase não se cumprimentavam.

Eu percebia logo que isso era uma abreviação das fórmulas de cumprimento antigas, europeias, em benefício das fórmulas hollywoodianas, pois a saudação que eu via as pessoas se darem nas fitas de cinema era essa. E notava, por uma conexão, que havia todo um mundo atrás dessa maneira de se cumprimentar. A recusa da amabilidade, do respeito, da cortesia, da confiança recíproca, e o ritmo acelerado, o modo meio bruto de fazer, o desprezo das fórmulas antigas como sendo coisas completamente inúteis, indicavam uma introdução de uma certa brutalidade na vida. Eu via isso com toda a clareza.

Se imitasse os outros meninos, inalaria seu espírito

E, observando que esse menino, aquele, aquele outro, faziam, sentiam exatamente dessa maneira, eu percebia definida uma oposição que apresentava um problema de ação: à vista de eles fazerem assim, nada mais fácil do que eu me pôr em dia, cumprimentando-os como eles se saudavam; era até mais simples do que o cumprimento afável.

Mas surgia a questão: Se eu imitar o jeito deles, inalo o seu espírito, é inevitável. Se os cumprimentar a meu modo, coloco-me em situação inferior porque estou gastando gentilezas e afabilidades com indivíduos que me respondem com um aceno das sobrancelhas, e fico fazendo papel de tonto, e isto também não posso admitir. Um homem que não é capaz de manter a sua própria nota não é homem.

Então, como agir? Tenho que arranjar um meio-termo, que faça com que eu mantenha todo o meu espírito, e o manifeste do modo mais discreto possível para evitar um entrechoque, mas é necessário que seja visível para evitar uma capitulação. De que forma, então, vou cumprimentar? Quer dizer, até que ponto este indivíduo com quem estou tratando — e outros que têm a mesma mentalidade — tolera que eu leve adiante alguma coisa parecida com o cumprimento tradicional? Até que ponto ele explode? Isso de um lado.

De outro lado, como posso tapear a situação, pondo num modo de cumprimentar “aggiornato”(1) tudo quanto eu quero?

Seriedade e afabilidade no trato com os colegas

Fica aqui enunciado um problema que se repete em série, em centenas de outros casos. É toda uma clave do estilo de vida que se põe.

Então o que devo fazer? Tirar do cumprimento a solenidade de um homem? Porque eu cumprimentava com a solenidade de um homem, e não de um menino, pelo modo com o qual fui educado. Eu percebia que não podia exigir dos outros essa solenidade assim, porém deveria pôr, no meu modo de cumprimentar um colega, algo de cerimonioso. Mas qual é o modo de um menino ser cerimonioso sem imitar os mais velhos, sem parecer, portanto, um doutorzinho?

Refleti: Isto se faz assim, assim, assim. Bem, então vou agir desse modo. Posso entrar nos pormenores, explicando como era a forma de meu cumprimento; naturalmente isso alonga muito a série de reuniões que me pediram fazer.

O primeiro ponto era a seriedade de uma pessoa capaz de qualquer resposta, e de correr qualquer risco: Não mexam comigo porque dá encrenca! E encrenca de argumentação, mas se for preciso vou mais longe e, embora eu não seja muito forte, tomo de uma vez uma atitude que manifeste muita segurança, coragem e força! E até lá minha força chegava.

Acima disso, uma afabilidade um tanto maior da que todos eles tinham uns com os outros, mas por detrás deveriam entender que estava a força.

A linguagem como instrumento contrarrevolucionário

Depois, uma linguagem que foi, durante toda a minha vida, o instrumento que procurei usar, aproveitando talvez facilidades nordestinas. Sem ser pedante nem rebuscada, precisaria ser uma linguagem com muito mais vocábulos do que a deles, e, portanto, falando coisas que eles não sabiam dizer, e pondo na conversa uma espécie de natural superioridade bem como consistência nos temas que eu invocava, e cabendo numa atmosfera de brincadeira composta, não de brincadeira decomposta. Essas coisas criavam em torno de mim uma esfera de superioridade, ajustada a menino. 

Mas tudo isso, que é uma solução para um caso concreto, se desdobra, tem subjacentes, regras a respeito de como tratar os revolucionários.

Eles se vingavam a seu modo, quer dizer, não sabendo como sair disso, boicotavam. Então, que atitude tomar diante do boicote?

Ao longo da minha vida, houve muitas outras situações as quais precisei estudar milímetro a milímetro e constituíram um acervo de experiências “regulogênicas”, que geravam regras. Entretanto não era a concepção do princípio no ar para depois aplicá-lo, mas a experiência transformada em regra. Tratava-se de uma coisa completamente diferente e, por essa razão, muito útil.

Acrescentem-se inúmeras situações históricas estudadas; tudo isso forma uma caudal de regras que, se eu quisesse escrever, poderia levar dez anos de minha vida… v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/08/1987)

 

1) Do italiano: atualizado. Aqui tem a conotação de estar de acordo com a moda.

 

Finalidade e unidade do ser humano – I

Com grande riqueza de metáforas e exemplos, Dr. Plinio explica a íntima relação existente entre o transcendental “unum” e a finalidade da pessoa humana. Na presente conferência — feita de improviso e para ouvintes, em sua maioria jovens —, transparece uma das características do pensamento filosófico de Dr. Plinio: a reversibilidade entre as considerações filosóficas e as teológicas.

 

Há pouco, eu estava vendo umas fotografias do Himalaia. Quem o contempla deve ter uma sensação de quantidade total impressionante, e que o monte, em si mesmo considerado, deixando ver o ponto onde ele, como que, emerge do chão e aquele em que o seu píncaro se perde nas nuvens — ou parece fazer fugir o céu astronômico para mais alto, a fim de não encostar nele —, dá a impressão de realidade tangível, de um ser que serve de ponto de partida para considerações que, de “proche en proche”(1), vão até Aquele que é o Ser por excelência: Deus, nosso Senhor.

Partindo de realidades elementares, chegar às mais elevadas

Nessas condições, é evidente estar na ordem da natureza que aquilo que o monte tem de tão esplêndido, ou seja, sua realidade palpável, imponente, magnífica, ele perderia de um momento para outro, não se fosse privado de seu píncaro — ficaria, então, mais baixo —, mas se algum monstruoso serrote o cortasse e o monte deixasse de ter contato com o chão. A partir do momento em que perdesse o contato com o solo, ele daria a impressão de irrealidade, de uma coisa que não pode existir. Como podemos compreender algo de fixo suspenso no ar e sem contato com o chão? É incompreensível! Nada vive suspenso no ar; tudo precisa ter seu contato com o solo. Esse monte se evanesceria. Se olhássemos o seu píncaro e depois a sua base, e víssemos que ela não tem continuidade com o solo, diríamos: todo o resto que está acima parece realidade, mas é ilusão.

Este princípio de que as realidades básicas, elementares, as que estão ao nosso alcance, servem para nos levar às mais altas realidades — como, por exemplo, o primeiro degrau do estrado existente neste auditório conduz, através dos outros degraus, ao topo do estrado —, aplica-se à ordem hierárquica que Deus pôs no universo. Nesta, ao considerarmos o primeiro degrau que tenhamos diante de nós, podemos contemplar todas as grandezas que virão sucessivamente. Por conseguinte, devemos saber contemplar o primeiro degrau de maneira a ver essas grandezas, sem confundir o primeiro degrau com as grandezas a que ele conduz.

Todo homem é criado com determinada missão

Quais são as mais altas realidades para as quais o homem está voltado? Ele nasce, cresce, atinge a maturidade, depois vai fenecendo e morre. Assim também o dia é aurora, em seguida é manhã, depois é o meio-dia em que ele aparentemente se fixa e, pelas três horas da tarde, quando se diz “há tanto tempo que o Sol está brilhando com todo o seu vigor e provavelmente não deixará mais de brilhar”, presta-se mais atenção e se afirma: “Curioso! Parece faltar um pouco de claridade! Será mesmo? Há três horas que ele brilhava sem diminuir de luminosidade e agora ela está decrescendo. Oh, deve ser um engano da vista! Vou prestar atenção em alguma outra coisa e daqui a pouco olharei novamente para o Sol”. Pelas quatro horas, percebe-se o incontestável; algo de belo, de nobre, está se dando na natureza, por onde as sombras começam a aparecer. Aquelas mesmas sombras dentro das quais, depois, gloriosamente afundará o Sol, na aparência para dormir.

Depois o movimento do astro rei se repete, dias e noites se sucedem, e os homens também se repetem: as gerações se sucedem sobre a Terra e a quantidade inumerável dos homens se multiplica, a ponto de estar tendendo, debaixo de certo ponto de vista, a encher o globo. Assim é a sucessão dos acontecimentos, numa aparente monotonia.

Há um provérbio francês que diz: “On entre, on crie: c´est la vie; on crie, on sort: c´est la mort! — Entra-se e grita-se, é a vida; grita-se e sai-se, é a morte!” Entre esses dois gritos está a vida humana.

Como isto é pouco e parece não levar a nada! Um homem repete os passos de outro e a sucessão dos homens seria como a sucessão das formigas. O que é a vida? A que grandeza tudo isso conduz?

Esse raciocínio é errado, pois não toma em conta a verdadeira realidade da vida humana e as grandezas para as quais o homem está voltado. Qual é a realidade da vida humana? É esta: nós viemos a esta Terra com uma determinada missão, cuja atração constitui o dinamismo de nosso próprio ser. Realizada essa missão na Terra, sobre a qual falaremos daqui a pouco, dir-se-ia então que perdemos a nossa razão de ser.

Na aparência é isso, pois o homem morre. Porém, na realidade, ele inicia, na outra vida, outra missão que é a projeção dentro do infinito da vida que ele teve e da missão que ele exerceu na Terra.

Cada ação humana tem uma razão de ser mais alta

De maneira que cada ação humana, considerada no que ela tem de mais imediato, acaba tendo sempre uma razão de ser mais elevada.

Por exemplo, o modo pelo qual estou acenando com a mão enquanto vos falo. Esse gesto tem uma finalidade imediata. Eu sinto, como todo homem, que a fisionomia e a voz não têm expressão suficiente para dizer tudo quanto está na alma. Que o menear da cabeça pode ajudar a essa expressão, mas não basta. E, por causa disso, devo falar também com os braços como involuntariamente falo com o tronco. O homem fala com o corpo inteiro.

De imediato, eu movo a mão sem uma razão aparente que justifique o meu movimento. Mas, se mantivesse as minhas mãos sempre imóveis, elas sofreriam na sua circulação. E, conforme a sabedoria divina, a necessidade moral que tenho de mover as mãos se alia à necessidade física que possui a minha mão de ser movida; é uma necessidade que está nela, enquanto membro do meu corpo. Mas, sendo atendida nessa necessidade de se mover para não se atrofiar, ao mesmo tempo ela serve a um destino mais alto que ela, enquanto mão, ignora. Entretanto, eu sei qual é o pensamento que quero sublinhar e qual a razão de fazer este ou aquele gesto com minha mão.

Eu quisera, por esse exemplo tão corrente, ao alcance de cada um dos presentes, que tivéssemos em consideração o entrelaçamento e a subordinação magnífica das várias finalidades de tudo quanto o homem faz, rumo a uma finalidade central da qual falarei depois.

Mas, para entenderem bem e terem em consideração a complexidade desse entrelaçamento de fins e sua beleza ordenativa, todos nós, quando falamos em público ou em privado, de vez em quando mexemos as mãos. Os que estão neste auditório, ao falarem comigo, ao ouvirem a minha exposição no momento, involuntariamente mexem as mãos, a cabeça ou qualquer parte do corpo, mas exprimem algo ao longo desta conferência que vou lhes fazendo. E de tal maneira exprimem não só no rosto, o que é instintivo e natural, mas no corpo inteiro, que se imaginasse aqui, nesse momento, que todos estivessem atrás de um parapeito e que só lhes pudesse ver as cabeças, eu teria a sensação de que não acompanharia bem como estariam acolhendo a reunião. Porque a expressão do rosto é completada pela atitude do corpo. Todos não percebem, como eu não percebo também, mas nossos corpos estão falando.

Quem diria que o homem tem busto, tem peito, também para falar? Entretanto, nós podemos imaginar um homem do qual se faça um busto, porque se conjectura o resto do corpo a partir de um busto. Mas se fôssemos imaginar apenas uma cabeça sem o busto, ficaria horrorosa! E perderia sua expressão, seria um monstro. O peito é a moldura do homem e ajuda a interpretar aquilo que ele está pensando. Mas o que o peito nos ajuda a interpretar? O que nós quereríamos dizer quando movemos a mão? Nós mesmos não sabemos.

Precisaríamos prestar atenção, e apenas os muito dotados em explicitar, servidos para isto de uma faculdade de atenção muito pormenorizada e de um vocabulário vasto, poderiam acabar explicando o que alguns dos seus movimentos quiseram dizer e, entretanto, dizem. E até no modo de andar longamente — dez quilômetros, por exemplo —, cada passo que o homem dá tem sua expressão. De maneira que, terminados os dez quilômetros, está concluído um discurso.

Prefácio de um livro intitulado ”Eternidade”

Vemos assim como tudo se entrelaça no homem e como, além das finalidades imediatas de todas as coisas que ele faz, por exemplo, andar, respirar, há outras finalidades. Tal é a linda complexidade da vida humana e do ser humano! Como é nobre pensar! Tudo quanto o homem possui no corpo existe para expressão de algo que ele tem na ideia, no pensamento, e todo o seu corpo não serve senão para expressão de sua alma espiritual, impalpável, que jamais morrerá e terá uma finalidade, mesmo quando ela não estiver unida ao corpo. E quanto é pouco o corpo, quando compreendemos que um dia a alma se desprenderá dele, deixando-o para se pôr na presença de Deus.

O corpo se desfaz, mas virá o momento em que esse pó esparso pela terra será recolhido pelos Anjos com um empenho enormemente maior do que o do pescador de pérolas, que as apanha no mais escuro do mar; mais do que qualquer pesquisador de brilhantes no seio da terra e nas galerias mais profundas. Assim, a ação dos Anjos se estenderá sobre toda a Terra e recolherá o pó de cada um, para que renasça sob a forma da ressurreição dos mortos e se apresente de novo gloriosamente. Quanta queda! Quanto desfazimento! Quanta nulidade! Que glória magnífica, e que eternidade!

Portanto, o homem viveu nesta Terra, levou sabe-se lá que existência — são tão variadas as vidas!  Em certo momento, morre. Mas não acabou tudo; o melhor ou o pior está para começar. É o prefácio que acabou; o livro vem depois. É o grande livro da eternidade.

Este é o primeiro passo que damos na consideração dos grandes horizontes e das grandes perspectivas. Contudo, não é senão um primeiro passo. Como se pode prosseguir numa meditação desse gênero?

A unidade na variedade

Dada a mutabilidade do homem — quanto o homem varia ao longo de um dia, de uma hora, às vezes de alguns minutos! —, ele não seria a criatura excelente que é, se não tivesse um “unum”. Não há nessa variedade uma unidade?

Quando não se sente esta unidade no homem, ele parece um livro desencadernado cujas folhas o vento da loucura leva para onde entende. O que caracteriza o homem que não é louco? É exatamente a concatenação de tudo quanto ele cogita e faz, dando um certo rumo ao seu pensamento e à sua ação na vida. Ora, essa concatenação e esse rumo só podem provir de uma unidade interna. O homem é fundamentalmente uno, dentro de toda sua variedade. E o fazer sentir esta unidade na variedade é uma das maiores atrações que o convívio humano pode proporcionar. Quando tratamos com uma pessoa monótona, não sentimos a variedade. É cacete! E se conversamos com uma pessoa que é por demais variada, temos um enfaramento daquilo que é agitado, atormentado e desconexo. Vendo um indivíduo que possui variedades as quais se sucedem, imprevistas, mas ordenadas e que vão desembocando umas nas outras, aprazível ou magnificamente, então se tem uma noção exata do que é o panorama da psicologia de um homem.

Se o homem tem uma unidade, devemos nos perguntar que comparação fazer entre a unidade de um homem e a de outro. Se esse “unum” difere de uma pessoa para outra, no que consiste esta diferença? O que faz a unidade e a variedade?

Certa vez, li o seguinte comentário de um escritor católico das primeiras décadas deste século, do Rio de Janeiro. Ele estava assistindo ao desembarque de passageiros de uma daquelas enormes barcas que, antigamente, transportavam pessoas entre o Rio de Janeiro e Niterói. Um mundo de gente passava diante desse autor, o qual teve esta reflexão singular que não saiu mais de meu espírito: Como Deus conseguiu, com tão poucos elementos — olhos, nariz, boca, orelhas — que compõem o rosto, fazer uma quantidade incontável de fisionomias que nunca se repetem?

O ”unum” de cada pessoa face ao Juízo Final

O mesmo se deve dizer do nosso “unum”. Cada um de nós tem um “unum” que abarca a pessoa toda, e determina o nexo com ela e uma finalidade na vida.

A humanidade constitui uma coleção. E o vale de Josafá, onde se acredita que se dará o Juízo Final, vai ser como um estojo onde vão estar guardados todos os espécimes dessa coleção, desde Adão até o último homem. E, vistas em conjunto, compreenderemos melhor a relação entre todas essas peças da coleção, como quando diante de um mosaico, se bem ordenadas as peças, entendemos o desenho que forma. Se as peças estão jogadas ao léu, não se compreende o desenho tão bem. Não será possível conceber, ou compreender toda a grandeza, toda a beleza do gênero humano ao qual nós pertencemos, senão quando estivermos no vale de Josafá, tendo toda a humanidade debaixo de nossos olhos.

Está escrito no Gênesis que Deus criou todos os seres e, contemplando-os, considerou que, se cada um era bom, o conjunto era melhor(2). Deus criou e vai criando os homens até o fim do mundo. Mas o conjunto de todos os homens é mais belo do que cada homem individualmente. Olhando esse conjunto, diremos: “Que coisa magnífica é ser homem!”

No conjunto de todos os homens que habitam, habitaram ou habitarão a Terra, tenho uma tarefa especial, como uma pessoa dentro de um mosaico. E aqui está meu “unum”. É uma nota central constitutiva de todas as aptidões e tendências ordenadas e boas de meu corpo, que, por sua vez, obedece a um impulso ordenado e bom de minha alma, o qual me leva a fazer na Terra determinadas coisas que Deus quer que eu faça. Essas coisas fazem-me compreender que tenho uma missão. O meu “unum” proporciona à minha vida um fim, o qual é maior do que cada uma dessas ações imediatas. Esse fim é um todo só, para o qual eu, como o meu “unum”, devo tender. E o belo da vida de alguém é observar sua existência inteira que vai andando, passo a passo, na mesma linha até realizar o “unum” final. v

 

(Continua no próximo número)

 

(Extraído de conferência de 10/1/1981)

 

1) Do francês: de próximo em próximo.

2) Cf. Gn 1, 31.

São João Bosco – Virtudes irmãs

São João Bosco possuía o dom de suscitar muita confiança e muita paz nas almas. Ele tinha um sorriso, uma bondade impregnada de fortaleza, mas de tal maneira comunicativa, generosa e apaziguante, que basta rezarmos diante de uma boa imagem dele para percebermos algo de indefinivelmente suave que se perpetuou no seu modo de ser, no seu estilo.

É essa suavidade espiritual que devemos pedir a São João Bosco, nesta época de árduos combates.

Todas as virtudes são irmãs. Portanto, a combatividade mais irredutível e implacável é irmã afetuosíssima dessa bondade, delicadeza e suavidade próprias do espírito de São João Bosco.

(Extraído de conferência de 31/1/1969)

Apresentação do Menino Jesus

Em tudo, Nosso Senhor e sua Mãe Santíssima são para nós modelos que devemos imitar. Ela estava acima da lei que obrigava as mulheres a se purificarem depois de ter dado à luz, e Ele, da que preceituava o oferecimento e resgate dos primogênitos. Entretanto, por amor a essas leis, ambos se dirigiram ao Templo para cumpri-las.

Assim se realizavam os desígnios da Providência: a fim de que Nossa Senhora guardasse em seu coração as esplêndidas profecias do velho Simeão a respeito de Jesus, e para que Mãe e Filho se tornassem exemplos de observância aos Mandamentos divinos.

Plinio Corrêa de Oliveira