Conhecendo as vias da Confiança

Entre os quatro livros que mais marcaram a alma de Dr. Plinio figura o “Livro da Confiança”. Na conferência que a seguir transcrevemos, ele conta como foi seu encontro com essa obra.

Voz de Cristo, voz misteriosa da graça que ressoais no silêncio dos corações, vós murmurais no fundo das nossas consciências palavras de doçura e de paz…

Essa frase se prende, para mim, a dias de muita aflição. Aos 25 anos, achava-me numa encruzilhada de meus caminhos, em virtude de uma determinada circunstância de minha vida em que o problema de discernir a voz de Cristo, a voz misteriosa da graça, se me punha de modo bastante agudo.

Aos 24 anos, parti para o Rio de Janeiro a fim de assumir meu lugar de deputado na Assembléia Constituinte. Viajei despreocupado com relação à minha família, pois a deixava em condições de vida inteiramente normais.

Apesar de ainda jovem, eu me dirigia tranqüilo para lá, porque, se minha eleição correspondia aos planos de Deus, eu haveria de me sair bem. A Divina Providência não traça para um homem um caminho sem dar-lhe o necessário apoio. Assim, estava convicto de que, mesmo tendo de suportar alguma amargura, tudo acabaria bem.

Aflições e desapontamentos

Entretanto, nem tudo no Rio de Janeiro saiu para mim como um jovem idealista esperava. A vida parlamentar trouxe-me enormes dissabores, os quais, somados a outras dificuldades, fizeram-me sentir um certo desapontamento, como se a Providência não fosse cumprir as perspectivas que Ela mesma tinha aberto diante de mim.

Pouco tempo depois, uma informação vinda de São Paulo veio turvar mais o meu horizonte. Com efeito, o futuro de meus pais e o de seus dois filhos estava praticamente assegurado pela vultosa herança que nos legaria um parente próximo.

Porém essa pessoa, já idosa, fez um mau negócio e perdeu todo o seu patrimônio. Em conseqüência, não iríamos herdar nada. Pior. Ficávamos reduzidos a uma grave situação financeira.

Pensei: “Como pode uma coisa dessa acontecer? Agora terei de fazer o quê? Quando terminar este mandato de deputado, que ofício vou exercer? Era melhor não ter sido eleito do que, encerrada a carreira parlamentar, ser obrigado a pegar um emprego inferior”.

Então, aquilo que à primeira vista parecia um presente da Providência, transformara-se em algo que caía sobre mim. Como se não bastasse a preocupação com esse futuro tão carrancudo, sombrio, ameaçador, começo a sentir todas as noites, por volta das três horas, uma nevralgia no rosto.

Fortíssima, como se fosse um prego cravado na face, e que me impedia de dormir. O único jeito que tinha de encontrar um certo alívio era sentar-me e ficar com a cabeça apoiada sobre dois ou três travesseiros, permanecendo assim até que me viesse algum sono. Então eu conseguia descansar mais um pouco.

Acordava e tinha de sair às pressas para a reunião dos deputados paulistas e, em seguida, para a sessão da Assembléia. À noite, sobrava-me algum tempo para rezar meu rosário, cuidar de minha vida espiritual,etc.

Quem nunca esteve às voltas com uma nevralgia não imagina o que seja ficar essas horas noturnas assim dobrado, sentindo um prego enfiado no rosto e sem conseguir dormir. No meu caso, pensando em todos os problemas que me afligiam. Quer dizer, perda da fortuna, carreira profissional comprometida, enfim, vendo minha vida muito dificultada.

Meu porvir parecia uma flor que desabrochara de manhã sob um lindo sol e que, antes do anoitecer, tivera suas pétalas arrancadas e espalhadas por uma borrasca… Sem falar de uma circunstância que só fazia aumentar essa angústia.

Tomara eu a resolução de consagrar toda a minha vida ao apostolado católico. Compreende-se que, para tanto, eu não podia dedicar muito tempo ao trabalho profissional.

Por outro lado, se não exercesse uma profissão, não teria como proporcionar a meus pais, que já caminhavam para a velhice, uma vida condizente com sua posição social.

Como achar um caminho? Que problemas, que coisas misteriosas! E assim ficava eu esfacelado diante dessas perspectivas, horas e horas, noites a fio, sem saber que saída encontrar, até o momento determinado por Nossa Senhora para se fazer uma luz nesse tão sombrio panorama.

Um livro comprado a esmo

Perto do meu hotel erguia-se a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, onde eu ia comungar todos os dias. Acontece que, devido às nevralgias e às preocupações, era-me difícil acordar tão cedo quanto seria necessário para receber a Sagrada Eucaristia durante as missas da manhã, já rezadas quando eu chagava na igreja. Mas o pároco era extremamente amável comigo: percebendo meus horários bastante apertados, sempre se dispunha a me dar a comunhão na hora em que eu por lá aparecesse. Supérfluo dizer quanto lhe ficava agradecido por essa caridade, fazendo-o entender ao cumprimentá-lo com particular gentileza.

E era só, pois eu tinha de sair correndo para a Assembléia Constituinte, e não havia tempo para entabular uma conversa com ele. Certo dia, porém, o padre se aproximou de mim e disse: “Dr. Plinio, nós estamos organizando uma exposição de livros piedosos aqui na sacristia. Se o senhor quiser examinar essa mostra, talvez tenha alguma obra que lhe agrade ver”.

De fato ele desejava me dizer outra coisa: “Para manter a paróquia, estamos vendendo alguns livros. O senhor não quer nos ajudar, comprando alguns deles?”

Eu, devendo tantos favores, não podia nem tinha vontade de recusar. Auxiliar aquela paróquia era uma coisa muito boa, e eu queria colaborar nessa forma de bem. Assim, terminada minha ação de graças, fui correndo para a sacristia disposto a adquirir dois ou três livros, escolhidos a esmo. Peguei um de cujo tema já não me lembro, e outro
chamado O Livro da Confiança.

Retirei-me apressadamente, tomei um táxi e fui trabalhar, levando os livros na mão. À noite, de volta ao meu quarto de hotel, deixei-os sobre um móvel qualquer, sem lhes dar maior atenção.

tendia que confiar em Deus é uma atitude boa. Lembrava-me até de um canto entoado pelo coro da paróquia em que me fiz Congregado Mariano, cuja letra em latim era:
“Beatus homo qui confidet in te —Bem-aventurado o homem que confia em Vós, Senhor”. Eu gostava de ouvir aquilo, era uma canção que me dizia alguma coisa, porém não aprofundava seu significado.

Agora, naquela amargura, ao ler as palavras “voz de Cristo, voz misteriosa da graça”, tive uma sensação curiosa, como se uma atmosfera dulcíssima e cheia de afeto penetrasse em mim, afastasse todos os espantalhos e receios, e me dissesse: “Repita, meu filho: voz de Cristo, voz misteriosa da graça, vós murmurais em minha alma palavras de doçura e de paz”.

Eu sentia algo que fazia desaparecer todas as minhas angústias e me dava uma certeza de que, realmente, aqueles fantasmas de perspectivas e de preocupações futuras sumiriam. E de que Nosso Senhor e Nossa Senhora resolveriam bem os problemas que tanto me amarguravam.

Continuei a ler o livro, e a cada nova frase, a mesma sensação de tranqüilidade se produzia em mim. Eu tinha a impressão de estar entrando num bosque encantado onde davam flores maravilhosas, onde passarinhos cantavam do modo mais sonoro e agradável possível, etc.

E onde fica a razão? Contudo, habituado sempre a raciocinar muito, e não conhecendo a doutrina católica a respeito da confiança, eu tinha duas objeções contra esses  sentimentos.

Em primeiro lugar, não se me apresentava nenhuma razão plausível para confiar em que Nossa Senhora me ajudaria naquela emergência, pois não via no meu horizonte nada que me prometesse uma solução. E o homem tem de ser concreto, não pode viver de impressões interiores. Para confiar, ser-me-iam necessários motivos pão-pão, queijo-queijo, filhos da razão. Ora, onde estava a razão dentro dessa história?

Depois, havia o fato de que em certas horas do dia eu lia aquelas frases, e era para mim como se estivesse mascando serragem de madeira. Não me diziam nada. Em outras horas, pelo contrário, era como se penetrasse um pedaço do Céu dentro de meu espírito. Logo, objeção: “Que propósito tem isto?

Eu não entregarei minha alma a essas sensações interiores sem antes ter uma explicação de como se fundamentam na boa e ortodoxa doutrina da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.” Mas, não havia remédio, era uma experiência curiosa: eu abria o livro e penetrava em mim essa doçura. Nesse momento, as objeções desapareciam,
tornando evidente ser aquilo uma ação da graça, um favor de Deus e de Nossa Senhora.

Porém, quando fechava o livro, aquela suavidade se eclipsava, e para mim já não era tão patente tratar-se de um movimento da graça. Então, eu precisava de provas.

A solução exata, no momento exato

Estas apareceram, de modo bem inesperado. Vinha eu passar os fins de semana em São Paulo para estar com meus pais, e no domingo à noite ou segunda-feira de manhã retornava ao Rio de Janeiro.

Certa noite, numa dessas minhas passagens por São Paulo, encontrava-me no prédio da Congregação Mariana de Santa Cecília, quando um congregado amigou meu, pessoa muito viva e inteligente, aproximou-se de mim e, num tom de voz baixo, quase sussurrado, me disse: — Plinio, você gostaria que eu lhe pusesse na pista de um emprego
muito bom? Quando você deixar de ser deputado, você fica com esse trabalho… Eu caí das nuvens! “Esse homem não sabe nada a respeito de minha vida, não conhece os apuros e os problemas em que ando, como pode ele vir me oferecer algo tão capaz de me satisfazer e de me aliviar em  tantas preocupações?!”

Enfim, quando se está afogando no mar, pega-se qualquer corda que apareça, pois ela deve estar presa a algum lugar sólido. Imediatamente puxei duas cadeiras e o fiz  sentar-se ao meu lado: — Venha cá e me conte esta história direito.

Ele ficara sabendo da abertura de vagas para professores no Colégio Universitário da Faculdade de Direito de São Paulo, e verificou que eu estava talhado para uma delas.

Com algumas providências, eu conseguiria um lugar, com um ótimo ordenado. Eu hesitei um pouco, mas afinal resolvi agir conforme ele me indico. E de fato, após alguns trâmites, acabei sendo nomeado professor catedrático vitalício e com o vencimento irredutível. Era o cargo que desejava, com o ordenado de que precisava, e uma posição honrosa para um ex-deputado.

Terminou o mandato, voltei para São Paulo, e o emprego estava à minha espera.

Mais ou menos por essa época, foram-me oferecidos dois outros cargos de professor catedrático, nas duas primeiras faculdades católicas abertas em São Paulo, a Sedes Sapientiae e a São Bento.

Nesse ínterim, as nevralgias desapareceram, como se nunca tivessem existido. Alguns fardos haviam sido tirados de cima de mim, e eu fiquei entendendo a verdade desta afirmação: Voz de Cristo, voz misteriosa da graça…

As razões para se confiar

Tudo o que nos leva para a virtude será sempre uma ação que baixa do Céu até nossas almas. E se algo nos impele a procedermos conforme à Fé e à Doutrina Católica, há todas as razões para acharmos que isso vem de Deus. Máxime quando nos sentimos fracos e notamos em determinado momento uma força nos ajudando a realizar aquilo que não julgávamos ao alcance de nossa fraqueza. É Deus quem está nos levantando e nos fazendo andar. Ele nos prova, pede-nos uma tarefa árdua e pesada, porém nos sustenta para caminharmos.

“Deus qui ponit pondus, supponit manum”, diz a Escritura. Deus, que impõe o peso, coloca por baixo a mão para que o aguentemos.

Portanto, se sentirmos coragem e tivermos vôo de alma para empreender o que antes nos parecia tão difícil, poderemos verdadeiramente dizer: “A graça está me levando. Deus me chama. Eu vou!”

O que se passara comigo ao ler o Livro da Confiança era, então, obra da graça. Através de suas páginas benditas, fiquei conhecendo as vias da confiança, que deve conduzir  cada um de nós a este ponto: mesmo se houver um grande perigo de que os planos de Deus a nosso respeito não se concretizem, devemos permanecer tranquilos porque, no fim, se realizarão.

Tranquilos, é verdade, mas não indolentes. É preciso rezar e pedir para obter, seguindo o conselho de Nosso Senhor: “Pedi e recebereis; batei e ser-vos-á aberto”. E lembro que nunca fazemos um pedido verdadeiramente grato a Ele, se não for por meio de Nossa Senhora, Mãe d’Ele e nossa. Mãe de Misericórdia, nossa vida, doçura e esperança.

Então, peçamos a Ela, e por meio d’Ela a Nosso Senhor Jesus Cristo, dizendo: “Minha Mãe, vosso Divino Filho tem tais desígnios a meu respeito, mas os problemas se avolumam à frente de meu caminho. Contudo, não me deixo tomar por angústias nem inquietações, porque eu confio em Vós. Ajudai-me!”

E assim praticamos, do melhor modo possível, a virtude da confiança.

Alguns lutam por um ideal… Outros… por uma vida gostosa

Passando pela Europa no ano de 1988, Dr. Plinio teve ocasião de assistir a uma campanha feita por membros de seu Movimento no centro de Madri. Muito propenso a analisar mentalidades, Dr. Plinio fez elucidativos comentários dos diversos tipos humanos presentes nas ruas dessa cidade.

 

Para bem analisarmos a opinião pública, devemos nos despir dos preconceitos espalhados por uma espécie de mito numérico que sempre faz consistir a vitória na obtenção da maioria.

Distinção entre povo e massa

Pio XII, num discurso admirável, faz a distinção entre a massa humana e o povo. A massa é um aglomerado de indivíduos que simplesmente existem juntos e formam uma espécie de multidão, sem especiais vinculações de uns com os outros. Pelo contrário, o povo é um conjunto de pessoas em que cada uma tem com as outras determinadas relações, certos modos de se impostar, formando uma espécie de organismo vivo. Para compreendermos a diferença entre povo e massa, consideremos o seguinte:

Nestas três salas conjugadas em que estou falando, há aproximadamente cem pessoas. Imaginem meus ouvintes que não fossem membros de nosso Movimento e estivessem num grande ônibus, sem se conhecerem, não tendo, portanto, entre si relações individuais e pessoais, mas apenas as vinculações anônimas existentes entre os passageiros de um veículo coletivo.

Quer dizer, eles têm o interesse comum de que o ônibus ande, pare nos locais solicitados para o desembarque de alguns passageiros e chegue até o ponto terminal. Por isso não querem briga nem encrenca dentro do veículo; desejam boa paz e mais nada. Cada um gosta de ser um anônimo para o outro.

Se alguém pergunta de repente a um passageiro “O senhor, quem é?”, ele fica desagradado e pensa: “Para que deseja saber quem sou eu? Sou um passageiro de ônibus como ele, um anônimo. O que esse indivíduo está querendo comigo?”

O anonimato é a regra da massa, a qual vale pelo número de seus componentes: cinco, dez, cem indivíduos.

Entre os que estão aqui presentes a situação é bem diferente: não constituem massa, e sim um organismo, uma gota de povo. Quer dizer, todos se conhecem individualmente e, pelo convívio cotidiano, cada um acaba tendo uma espécie de situação criada por ele mesmo, a qual — por inabilidade ou qualquer outra razão — pode não ser a que desejaria. A vida se faz com base nessas relações pessoais; não é um mecanismo que se reduz a um número, mas algo vivo, uma interseção de várias personalidades que, dando graças a Nossa Senhora, tenho diante de mim e constituem um conjunto de filhos.

Vejo que são de várias partes da Espanha e também de outras nações, formando um conjunto vivo, orgânico, em que cada um é, não como uma gotinha de metal fundido, integrando uma máquina, mas  uma célula viva dentro de um tecido.

Se olharmos pelo microscópio um tecido celular vivo, discerniremos grande quantidade de células; cada uma atua como se fosse uma pequena personalidade: tem sua dose de vitalidade e de reatividade sobre as outras, análoga à de um indivíduo dentro de uma família ou numa organização como a nossa.

É da vida de cada pessoa encontrando-se com a das outras que se forma um tecido, daí resultando um povo.

Considerado nosso Movimento como um tecido, um organismo vivo, qual a repercussão de nossa campanha na Espanha, que é um tecido, um organismo incomparavelmente maior? A campanha está conseguindo sua finalidade?

O mais baixo grau onde o ente humano pode chegar

A vitória sobre a opinião pública não consiste em obter a maioria, como os plebiscitos e as eleições fazem pensar: quantos espanhóis querem tal coisa, quantos desejam tal outra. Trata-se de saber: que espécie de pessoas estamos influenciando, e, dentro do tecido vivo que é a Espanha, que possibilidades têm elas de influenciar outras?

O público que estava na praça Puerta del Sol(1) se dividia em três partes bem claras.

Havia um círculo formado em torno da nossa fanfarra e do nosso sistema de propaganda. Em sua parte externa era impreciso, pois algumas pessoas chegavam, outras saíam, mas a parte interna do círculo apresentava certa precisão de desenho.

Pouco adiante, existiam dois pequenos círculos de indivíduos, sentados em volta dos dois chafarizes, simplesmente porque as bordaduras dos mesmos, um tanto largas, forneciam-lhes um assento cômodo. Constituíam um público contrário àquele reunido em torno dos nossos. Alheios uns aos outros e dando as costas para o que na aparência os unia — os chafarizes —, eles estavam todos adormecidos. Alguns mastigavam alguma coisa, e o faziam com preguiça, não olhando para nada de fixo, não pensando em nada de determinado, mas sentindo que estão vivendo, e encontrando nisto certo prazer. É o gosto de respirar, de digerir, de mexer as pernas, de ter um corpo, e não o de possuir uma alma.

Têm essas pessoas uma vida vegetativa a mais parecida possível com a do animal. Olhando certos animais, às vezes temos impressão de que possuem bem-estar. Quer dizer, eles sentem deleite de estar vivendo, mas não têm conhecimento desse deleite.

São Tomás de Aquino, com uma linguagem muito precisa, diz que o bicho não conhece nada. Ele tem notícia das coisas, mas não o conhecimento, que é uma compreensão intelectiva. A palavra “notícia” é perfeita. Por exemplo, um pássaro vê diante dele uma folha que cai. Ele tem notícia de que caiu alguma coisa, mas nem sabe que é uma folha; e não pensa a respeito disso, porque não tem pensamento.

Aqueles indivíduos são entes humanos; entretanto têm o menor grau de pensamento possível: “Que gostoso! Eu estou aqui sentindo viver. Estou mastigando, piscando, olhando, respirando, batendo as pernas, mexendo os braços, estou vivo”.

Sob certa perspectiva — mas que atinge uma realidade muito profunda — é o mais baixo grau aonde a criatura humana pode chegar. Essa é propriamente a descrição do dormente.

Os dormentes

Para tudo quanto é fenômeno de pensamento, de ideal, de ato de vontade, de definição, de atitude, eles estão no sono.

Sucede inúmeras vezes com todo indivíduo que, acordando de manhã, diz para consigo: “Que bom sono eu dormi essa noite!” Estando dormindo e não tendo consciência de nada, como sabe ele que teve um sono bom?

Em parte é porque, quando despertou e sentou-se na cama, as últimas névoas do sono estavam se retirando.  Ele não tinha acabado de dormir inteiramente e sentiu o gostoso do sono que ainda existia. E, por memória, teve a ideia de que aquele prazer, cujo último fim estava notando, ele havia sentido a noite inteira.

Esses indivíduos têm o gostoso de estarem acordados e sentados próximo aos chafarizes. E, de modo analógico, digo que eles estão dormentes.

Como se chega a esse estado?

A graça atua no fundo das pessoas, máxime das batizadas, e proporciona movimentos de alma elevados, nobres.

A Revolução explora o desejo do gostoso

Mas, de outro lado, o corpo age no sentido de a pessoa se entregar aos meros prazeres materiais. Quando criança, ela pensa, por exemplo: “Como é gostoso correr de bicicleta, tomar vento!” E, em todas as idades: “Como é gostoso megalar(2)!” Ela comparece no colégio com um sorvete especial que comprou, dizendo que um sorveteiro perto de sua casa lho deu porque a achou muito simpática; inventa uma série de mentiras.

 Tais indivíduos querem levar uma vida gostosa e recusam os movimentos da graça que conduzem suas almas para as coisas mais elevadas. E se alguém afirma que a vida não consiste em gozar, mas é necessário o sacrifício, consideram-no como louco e não se interessam por ele.

Cada época revolucionária que sucede outra acrescenta um gostoso para a vida.

Por exemplo, a sensualidade. O pecado contra a castidade, há trinta anos atrás, tinha a intensidade X, a frequência X. Mas as modas tornaram-se cada vez mais imorais, o convívio entre as pessoas de sexo diferente foi ficando mais frequente, mais livre e menos controlado. A Revolução na mentalidade delas caminha em direção ao cada vez mais gostoso.

Nós nos opomos a isso, somos os arautos do sacrifício, os que lutam contra o mero gostoso, a favor de um ideal; assim, estragamos a festa daqueles que só procuram o gozo. E não pugnamos por um ideal qualquer, mas por um ideal de Fé. E a Fé não se refere a uma crença religiosa qualquer, mas à Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Isso os revolucionários rejeitam e dormem porque já não têm remorsos. Estão entregues completamente às suas próprias delícias, lamentando precisar aguentar dificuldades, inconvenientes, etc. E por esse processo vai ficando cada vez mais fácil adormecer os partidários do gostoso.

E existia uma terceira categoria: os que vão e vêm, olham a campanha, e os que estão sentados, mas não prestam atenção. Esses estão dormindo também? O que se passa na alma deles?

Um deles é, digamos, um advogado que vai ao escritório de um outro para discutir uma questão, e está preparando seu raciocínio para derrotar o colega. Ele passa tão preocupado, que não presta atenção em nossa campanha ou a observa muito por alto.

O mesmo pode acontecer com um médico que se dirige à casa de um cliente, o qual ele examinou na véspera, consultou alguns livros e colegas, mas está na dúvida quanto ao diagnóstico. Às vezes, a vida de um paciente depende do diagnóstico de seu médico: opera ou não opera? Se for feita a cirurgia, provavelmente ele morrerá. O que fazer?

É possível que isso também suceda a um homem de negócios, o qual se pergunta: “Telegrafo ou não para os Estados Unidos ou Canadá a fim de fechar um negócio?”

Porém, a maior parte dos passantes está pensando nos seus próprios interesses, muito menos cogentes. Um caminha para o seu escritório, mas não tem nada de muito importante para tratar; outro é médico que vai ver um cliente atingido por um resfriado muito forte, ao qual ele quer receitar um remedinho; um terceiro é homem de negócios que, para fechar um negociozinho em algum lugar da Espanha, precisa dar um telefonema. São coisas que não preocupam.

Entretanto, são da mesma categoria daqueles que estão em torno dos chafarizes. Eles fazem andando o que os outros fazem sentados. Julgam que os trabalhos e os problemas da vida são interessantes e a eles se dedicam para ganhar dinheiro, pois este proporciona facilidades gostosas para a vida.

Alguns acionam o intelecto porque acham gostoso

Poder-se-ia perguntar: como é possível uma pessoa achar gostoso enfrentar complicações?

A resposta é simples. Em vários jornais do mundo há uma secção onde se publicam problemas de xadrez. Viajando de ônibus ou de trem, às vezes há passageiros procurando solucioná-los. Tomam as questões existentes somente no tabuleiro, não na própria vida, e gostam de resolver problemas difíceis porque pertencem a uma categoria um pouco mais elevada do que os amantes do gostoso, sentados em torno dos chafarizes.

Eles usam a inteligência, que é uma faculdade tão nobre, não para conhecer a verdade, o bem, o belo, Deus, mas porque acham gostoso acionar o intelecto. Assim, são eles semelhantes aos indivíduos dos chafarizes.

É comum verem-se nas ruas pessoas correndo a pé, usando traje o mais sumário possível, achando que estão fazendo um bonito papel junto aos outros.

Antes desse desastre de automóvel que me semi-imobilizou(3), eu andava pouco, pois não gostava de fazê-lo. E pensava o seguinte: “As minhas pernas foram feitas para me carregar e não para que eu as carregue. Um homem que anda pelo gosto de andar, vai carregando as pernas pelo caminho. Eu ando apenas se for necessário”.

Quando eu era menino me diziam:

— Para você ser um homem forte é preciso fazer esporte.

Eu cogitava: “Não acredito nessa balela. Sinto em mim mesmo que serei um homem razoavelmente forte e não vou fazer esforço físico, pois não tenho obrigação de tornar-me um touro. Preciso pensar, ler, lutar, tenho um ideal para servir”.

Os que somente pensam em jogar xadrez são esportistas da cabeça: não procuram um livro para resolver um alto problema, nem indagam sobre as elevadas questões da inteligência e da vida, porque não lhes interessa. A seu modo, são vegetativos; vegetam com o espírito.

Compreendo que uma pessoa jogue xadrez para descansar o espírito. É legítimo, como beber água.

Qual a diferença entre a mentalidade dessas pessoas e os membros de nosso Movimento?

A parábola do fermento

Considerem uma paróquia. Antigamente a Espanha era uma nação com muitas vocações sacerdotais. Mas deve estar havendo uma infeliz diminuição dessas vocações.

A Igreja espera e nós esperamos que, se em cada paróquia com quatro ou cinco mil fiéis houvesse dois ou três padres completamente da Santa Igreja Católica, e contrarrevolucionários, uma cidade mudaria.

Células de uma alta vitalidade, com uma missão divina — o sacerdócio —, e por isso favorecidos especialmente pelas bênçãos de Deus, eles poderiam levar quatro ou cinco mil pessoas. É a realidade evidente.

Nosso Senhor estigmatizou essa adoração das maiorias numéricas quando empregou aquela parábola tão bonita da massa e do fermento, dizendo aos Apóstolos: “Vós sois o fermento. A massa são os outros. Vós deveis fermentar a massa”.

A cena que presenciei hoje na “Puerta del Sol” era o fermento agindo…

Pouco importa que grande número de pessoas recuse. Não se trata de transformar tudo em fermento, mas de fermentar a massa. Assim se reconquista o país.

O participante da campanha deve se perguntar: “Como está minha alma quando vou para a rua? Qual é o meu grau de fervor e de amor à nossa Causa? Enquanto estou abordando as pessoas, etc., lembro-me de que a Providência está seguindo a cada um de nós e se servindo de minhas palavras para falar-lhes?” De fato, alguma delas pode logo depois ser chamada por Deus, como aconteceu com o nosso Lúcio(4), cujo nono mês de morte se celebra hoje. Tendo agora um bom movimento, um ato de amor, poderá receber os últimos sacramentos e salvar sua alma.

Se cada um de nós durante a campanha se lembrasse disso sumariamente…

São João Batista Vianey, Cura d’Ars, na França, viveu no século XIX e praticava milagres. Foi um grande Santo.

Dom Chautard, em seu livro magnífico “A Alma de Todo Apostolado”, o qual lhes recomendo muito, conta este fato:

Um advogado de Paris viajou até Ars para conhecer o Santo. Tendo regressado, um amigo perguntou-lhe:

— O que você foi ver em Ars?

— Fui ver Deus num homem.

Devemos ser mais modestos. Não suponhamos que se vai ver Deus em nós; nossa dimensão não é essa, pelo menos por enquanto. Mas se pode ver em nós nosso Anjo da Guarda, no qual se pode ver a Deus.

Em termos mais concretos: pode-se perceber algum reluzimento da graça também em nós. E esse é o ponto essencial da campanha.

Atrair os maravilháveis

Aquelas pessoas que estavam em torno dos nossos, após lhes ser explicada a campanha, entendiam melhor e ficavam maravilhadas.

A campanha realiza o fundamental de sua tarefa: atrai os maravilháveis, o que da Espanha é espanhol. Através desse aspecto da alma espanhola, Dom Pelayo(5) começou sua epopeia. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/10/1988)

 

1) Situada no centro de Madri.

2) Palavra criada por Dr. Plinio para indicar a mania de imaginar-se possuidor de qualidades que não tem, ou exagerar as que possui.

3) Em 3 de fevereiro de 1975, Dr. Plinio sofreu grave acidente automobilístico, na estrada Jundiaí-Amparo, Estado de São Paulo

4) Lúcio Chao. Membro do Movimento fundado por Dr. Plinio, o qual morreu em Madri, vítima de atropelamento.

5) Dom Pelayo (+ 737), chefe dos visigodos e Rei das Astúrias; em 718 obteve a vitória de Covadonga, considerada como o início da Reconquista espanhola.

 

Nossa Senhora do Bom Sucesso

Na pequenina Quito do século XVI um grande acontecimento se deu: Maria Santíssima apareceu a uma religiosa concepcionista e lhe fez revelações sobre o futuro de seu país. Embora não tendo tomado tais revelações como infalíveis, Dr. Plinio deu a elas uma atenção especial.

No dia 2 de fevereiro, a comunidade das Irmãs Concepcionistas celebra em Quito, Equador, a festa de Nossa Senhora do Bom Sucesso. Qual é a história desta devoção?

Madre Mariana de Jesus Torres e o triunfo de Maria

Madre Mariana de Jesus Torres, religiosa concepcionista, foi ao Equador em 1576, quando ainda era menina, acompanhando sua tia, Madre Mariana de Jesus Taboada, a qual partia com a intenção de lá fundar um convento.

Com elas viajaram várias outras religiosas espanholas, as quais se fixaram em Quito — cidade que naquele tempo era ponta avançada da penetração espanhola na América do Sul. Pelo que se conhece de suas vidas, essas religiosas fundadoras morreram em odor de santidade e eu tenho muita esperança de que — para a maior glória do Equador e das Américas em geral — elas sejam canonizadas.

Na pequenina Quito daqueles tempos, Madre Mariana de Jesus Torres, sendo abadessa do convento, teve extraordinárias visões e revelações privadas de Nossa Senhora.

Embora não tomemos estas revelações como dogma — a Revelação oficial está encerrada com o Novo Testamento — devemos considerá-las especialmente.

Tais revelações prenunciam um tempo onde o Equador se tornaria independente da Espanha e seria sacudido por uma grande revolução de caráter religioso-temporal; no mundo inteiro a Fé se extinguiria em muitas almas, e haveria inúmeras calamidades morais. Mas após esses acontecimentos terríveis seria instaurado um tempo de glória para a Igreja.

História da imagem

Qual é a história da imagem de Nossa Senhora que a partir de então passou a presidir o convento?

Numa das aparições(1), a Santíssima Virgem pediu a Madre Mariana que fizesse uma imagem sua, em tamanho real. Para isto, a vidente desejou medi-la a fim de que se cumprisse esse desejo.

Então, Nossa Senhora segurou uma das pontas do cordão franciscano que trazia em sua cintura, para auxiliar Madre Mariana a tomar suas medidas.

A confecção da imagem foi confiada a um escultor local(2).

Certo dia, ao subir ao coro da igreja do Convento — lugar onde esculpia a imagem — qual não foi a surpresa do escultor: encontrou a imagem pronta! Ela estava magnífica!

Nenhuma mão humana havia terminado a imagem; durante toda a noite a igreja havia permanecido fechada. É uma imagem feita por mão de anjo(3).

O que a imagem nos comunica

O que essa imagem nos inspira no fundo da alma?

A mensagem que ela contém: uma grande promessa, um grande triunfo. Algo posto pela graça se acrescenta aos recursos da escultura e anuncia, no fundo de nossas almas, as alegrias e as certezas da promessa.

O báculo e as chaves, que Nossa Senhora traz consigo, dão a entender que é Ela quem abre e fecha os acontecimentos grandiosos; mas também as misérias e catástrofes dos homens; enfim, as vitórias de Deus dentro da História.

Mais do que as jóias, quem A adorna realmente é seu Divino Filho! Ela O traz triunfalmente, como quem diz: “Estou vencendo, mas venço para que Ele vença. Eu sou Rainha, sim, porém o sou porque Ele é o Rei!”

Nela há também um aspecto sobre o qual chamo a atenção: Ela comunica sua virginalidade extraordinariamente. É impossível olhar para esta imagem sem ter a impressão de que, em torno dela, a pureza se irradia.

Ela está inundada por uma felicidade de alma que é prêmio pela virtude da pureza. A pureza concede isto à alma que a pratica: segurança, discernimento, dignidade, compostura por onde se calca aos pés os infortúnios. Daí provem a louçania da vitória e do triunfo transmitida por essa imagem.

A luta ainda vai ser maior

Deste modo Ela nos prepara para as agruras da luta, falando-nos da alegria e da glória que virão.

Antigamente, até meados do século passado, talvez, não se conheciam os anestésicos, e as operações se faziam a frio. O paciente — muitas vezes acordado — de vez em quando, perguntava ao médico como ia o andamento da cirurgia.

Era compreensível que o cirurgião, amigo do paciente — ou simplesmente movido por sentimentos de compaixão que aquelas dores não podiam deixar de causar —, durante a primeira fase da operação lhe dissesse: “Vai indo bem, eu estou conseguindo abrir tal zona, já estou em tal outra, etc.; daqui a pouco vem a extração”. Este “daqui a pouco vem a extração” animava o paciente! Ou seja, as fases mais delicadas do perigo estão se aproximando e vão terminar.

Depois que a amputação foi realizada, se a dores persistem ou aumentam, o que faz o médico? Ele diz: “Olhe, o pior já foi, daqui por diante as dores vão declinar, nós já estamos chegando ao fim”. Ele começa a apontar para aquilo que é o ideal do doente: o fim da operação.

É o caminho da normalidade: na fase ascendente fala-se que tudo vai bem e incita-se a ter coragem; quando ela atinge um ponto no qual é preciso toda a resistência, compreende-se que se diga “agora vai melhorar”.

Nossa Senhora do Bom Sucesso dá-nos a impressão de que está dizendo no fundo de nossas almas: “Meus filhos, a luta ainda vai ser maior, mas o meu Reino já vai começar a luzir no horizonte!” É a alegre e vitoriosa proclamação do Reino de Maria!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 14/8/1982 e 2/2/1983)

1) No ano de 1610.
2) A própria Virgem Maria escolheu o escultor, dizendo: “Para esta tarefa, deves chamar Francisco del Castillo, o qual é um hábil escultor, e dar-lhe as descrições de minhas medidas”.
3) De fato, Madre Mariana teve uma visão dos anjos concluindo a imagem enquanto o escultor se ausentava para buscar vernizes e tintas para o acabamento.

Lição das flores

A rosa, a orquídea, a tulipa, três belas flores criadas por Deus. Que ensinamentos elas nos dão? Acompanhemos Dr. Plinio na consideração destas maravilhas.

 

Há três flores que especialmente me agradam: a tulipa, a rosa e a orquídea.

A rosa

Para meu gosto pessoal, a rosa ocupa o primeiro lugar entre as flores. Ela é inteiramente bonita, perfeita e acabada, é uma glória, uma beleza, uma maravilha.

A rosa é eminentemente ordenada. Nela, todas as pétalas estão postas em ordem e todas as suas formas de beleza obedecem a um raciocínio. Eu estaria longe de afirmar que a rosa é planejada, mas dir-se-ia que, como que, um poeta a planejou. Sim, Deus Nosso Senhor a planejou, a destinou.

Ela tem o perfume próprio à sua forma de beleza. A rosa tem a beleza da ordem prevista, racional e explícita, ela é uma soberba explicitação do conceito da beleza.

A orquídea

Depois da rosa, na escala das flores, está uma que é abundante no Brasil e na Colômbia: a orquídea.

Se a rosa traz consigo o esplendor da ordem, a orquídea é bem o contrário! Ela é singular, prega surpresas. Suas pétalas se “movem” semelhantemente a um “ballet”. Parece dançar um “ballet” vegetal para direções que ninguém imagina.

Sua parte central possui uma beleza magnífica, mas imprevista. Algumas destas flores têm, por exemplo, uma coloração branco-avermelhada na orla de suas pétalas que vai se intensificando e assumindo uma profunda cor vermelha à medida em que se aproxima da parte central, de modo que quanto mais se aproxima do interior da flor, mais misteriosa fica. Tem-se a impressão de que há um vermelhíssimo sublime que não se mostra, por uma espécie de recato.

Assim, as orquídeas possuem uma beleza fantasiosa, inesperada, de uma alta distinção, mas de uma distinção que parece dizer a quem a vê: “Confessa que tu não me imaginavas e que eu sou superior a tudo quanto pensavas”.

Há um “não me toque” na orquídea, que faz parte de outra família de beleza. Não é a beleza da desordem — porque a desordem não tem nenhuma forma de beleza —, mas é uma forma superior da ordem, que o raciocínio não constrói e que só a fantasia sabe compor.

Dir-se-ia que a orquídea é semelhante ao espírito de duas nações latino-americanas psicologicamente muito parecidas: Brasil e Colômbia.

O capricho, o inesperado, o entusiasmo; às vezes, o ressentimento, a vingança; conforme a ocasião, a violência, mas sempre seguida de uma reconciliação afetuosa; todo este “vai-e-vem temperamental” muito comum no brasileiro e no colombiano, estão marcados de alguma maneira na orquídea.

A tulipa

A tulipa, por sua vez, é uma flor tão bonita que, quando a vemos, nos perguntamos se algo pode ser mais belo do que ela. É grande sua variedade de cores, mas entre as mais belas está a bordeaux. Ao contrário das cores da orquídea, a tulipa tem uma coloração leal, estável, definida.

Enquanto a orquídea é, como que, uma parasita, o todo da tulipa fala de autossuficiência, de independência. Ela se levanta altaneira, e carrega, bem na ponta, uma espécie de equilíbrio. É um equilíbrio um pouco altivo, as próprias folhas cercam a haste e se desprendem para deixar passar a haste, a qual vence todos os obstáculos, se afirma quase como uma lança.

Alguém poderia perguntar: em síntese, qual é então a beleza da tulipa? Eu diria que é beleza da harmonia. Há uma proporção entre a altura, o diâmetro, o tamanho de cada pétala, que faz dela uma obra-prima de coerência. E quando se admira isto, sente-se alegria de ser um ente racional, sente-se a beleza da razão. É uma ordem de belezas no estilo da maravilhosa Europa: equilibrada, racional!

Certa vez, ao saber que existiam tulipas negras, tive certa perplexidade e me perguntei: “Para que servirá uma flor preta? Será para cruzes de Missas de defunto? Eu não compreendo. Mas haverá uma razão qualquer para que Deus tenha criado a tulipa negra”.

Qual não foi minha surpresa quando, passando de automóvel por uma rua de Paris, vi um jarro com tulipas de várias cores, entre as quais havia também uma negra, posto junto à vitrine de uma loja.

O automóvel passou rápido — com a rapidez dos velhos táxis da França —, e eu arregalei os olhos com aquilo, mas, sobretudo, regalei minha inteligência, compreendendo a razão de ser daquela maravilha de Deus.

Ao analisar o jarro e ver como a tulipa negra realçava a beleza de todas as outras cores, eu compreendi por que Deus criou as tulipas pretas. Era tal o contraste produzido por ela junto às demais cores, que se alguém quisesse tirá-la de lá eu diria: não tire, porque é uma das notas mais bonitas do jarro.

Era uma forma de fantasia racional, à maneira francesa. Era um teorema a respeito de cores.

Escala de valores

A análise destas flores nos dá uma interessante lição:
Para muitos homens, só tem verdadeiro valor aquilo que for de primeira ordem; o que for de segunda não serve para nada, é lixo. Isto não é verdade, há uma gradação entre as coisas, a qual nos incita a amar a beleza própria a cada grau.

Bela como a rosa, para meu gosto, a tulipa não é. Entretanto, ela não é de “segunda classe”, no sentido pejorativo da expressão.

A escala hierárquica não impõe um achatamento do inferior, mas sim um “resplandecimento” do superior.

Até entre as flores há uma hierarquia de valores. Aplicando o princípio de hierarquia à análise feita, podemos dizer que a rosa e a tulipa são as flores do anti-igualitarismo. Uma é bela no grau supremo; a outra, não sendo a primeira, dá a Deus glória, mostrando a beleza que há também nos graus intermediários.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/3/1971)

Erguei-Vos, Senhor!

Já fizemos ver que nossos dias  se inserem no longo processo histórico iniciado com o humanismo, a renascença e o protestantismo, acentuado fundamente com o enciclopedismo e a Revolução Francesa, e por fim com a transformação dos povos cristãos em massas largamente trabalhadas pelos fermentos da imoralidade, do igualitarismo, do indiferentismo religioso ou do ceticismo total.

A descristianização é o signo sob o qual estão colocados todos os fatos dominantes ocorridos no Ocidente, do século XV a nossos dias. Cessada aquela por um movimento inverso, teremos passado de um conjunto de séculos para outro.

Era precisamente um fato desta amplitude, um corte no processo descristianizante e um surto da religião sem precedentes, que São Luís Maria Grignion de Montfort — autor do “Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem” — implorava, esperava e, disto estamos certo, obteve.

O meio para se chegar a este triunfo será uma congregação toda consagrada, unida e vivificada por Maria Santíssima. O que seja propriamente essa congregação, na mente do Santo, não se pode afirmar com certeza absoluta.

Em certo sentido, parece uma família religiosa. Mas há também aspectos por onde se poderia pensar diversamente. De qualquer forma, essa congregação será o instrumento humano para implantar o Reino de Maria.

Essa misteriosa congregação, que será uma “assembléia, seleção, escolha de predestinados feita no mundo e do mundo; rebanho de pacíficos cordeiros a serem reunidos entre lobos; companhia de castas pombas e águias reais entre tantos corvos; batalhão de leões destemidos entre tantas lebres tímidas” [palavras de São Luís Grignion no “Tratado…”], essa congregação só pode ser  constituída por uma ação fecunda da graça nas almas dos que devem compô-la. Mas para Deus nada é impossível: “Ó grande Deus, que podeis fazer das pedras brutas outros tantos filhos de Abraão, dizei uma só palavra como Deus, e virão logo bons obreiros para a vossa seara, bons missionários para a vossa Igreja. Lembrai- Vos de dar a vossa Mãe uma nova Companhia, a fim de por Ela renovar todas as coisas, e terminar por Maria Santíssima os anos da graça, assim como por Ela os começastes”. Como se sabe, companhia significava, no tempo de São Luís, regimento ou batalhão.

Foi neste espírito que Santo Inácio chamou Companhia de Jesus seu Instituto. São Luís Maria concebia a sua Companhia como essencialmente militante. Ela será como que um prolongamento de Nossa Senhora, em luta permanente e gigantesca com o Demônio e seus sequazes: “É verdade que há de haver grandes inimizades entre essa bendita posteridade de Maria Santíssima e a raça maldita de Satanás; mas é essa uma inimizade toda divina, a única de que sejais autor. Porém esses combates e perseguições dos filhos da raça de Belial contra a nação de vossa Mãe Santíssima só servirão para melhor fazer resplandecer o poder de vossa graça, a coragem da virtude de vossos servos e a autoridade de vossa Mãe, pois que Lhe destes desde o começo do mundo a missão de esmagar esse soberbo, pela humildade de seu Coração”.

Este tópico é dos mais importantes, de vez que mostra a modernidade da Companhia, de seu apostolado militante, de seu espírito profundamente — quase diríamos sumamente — marial.

Esses apóstolos, “por seu abandono à Providência e pela devoção a Maria Santíssima terão as asas prateadas da pomba, isto é, a pureza da doutrina e dos costumes; e douradas as costas, isto é, uma perfeita caridade para com o próximo, para suportar-lhe os defeitos; e um grande amor a Jesus Cristo, para levar sua cruz”.

Mas essa devoção marial e essa caridade se realizarão numa pugnacidade extrema, decorrência da própria devoção marial. Com efeito, serão eles “verdadeiros servos da Santíssima Virgem, que, como outros tantos São Domingos, vão por toda parte com o facho lúcido e ardente do Santo Evangelho na boca, e na mão o Santo Rosário, a ladrar como cães fiéis contra os lobos que só buscam estraçalhar o rebanho de Jesus Cristo; que vão ardendo como fogos e iluminando como sóis as trevas do mundo”. E por isto São Luís Maria multiplica as metáforas e adjetivos alusivos à  combatividade dos membros da congregação: “águias reais”, “batalhão de leões destemidos”, terão “a coragem do leão por sua santa cólera e seu ardente e prudente zelo contra os demônios e filhos de Babilônia”.

E é essa falange de leões que ele pede a Deus no tópico final de sua oração: “Erguei-Vos, Senhor: por que pareceis dormir? Erguei-Vos em todo o vosso poder, em toda a vossa misericórdia e  justiça, para formar-Vos uma companhia seleta de guardas que velem a vossa casa, defendam vossa glória e salvem tantas almas que custam todo o vosso sangue, para que só haja um aprisco e um  Pastor, e que todos Vos rendam glória em vosso santo templo!”

Plinio Corrêa de Oliveira (Publicado na “Última Hora”, Rio de Janeiro, 10/9/84)

Santa Escolástica e o apostolado do sofrimento

Santa Escolástica, irmã de São Bento, desenvolveu uma obra entrelaçada com a deste, fundando as beneditinas.

Numa época em que a ação social destas religiosas pareceria tão necessária, elas se empenharam em algo muito mais importante: rezavam e se sacrificavam. E, pelo seu exemplo, deixaram bem claro que a fecundidade do ramo masculino devia-se ao fato de haver um ramo feminino que rezava e se imolava.

Vemos, assim, o papel admirável, insubstituível e incomparável de Santa Escolástica.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/2/1965)

Minha mãe, dizei por mim!

Minha Mãe, quando Jesus estava em vosso claustro, Vós encontrastes inúmeras coisas para Lhe dizer; vede, entretanto, que misérias eu digo no momento que O recebo na Sagrada Eucaristia!

Por isso, eu Vos peço: Falai por mim, minha Mãe, e dizei a Ele tudo quanto eu quereria ser capaz de dizer, mas não o sou. Adorai-O como eu quereria adorá-Lo; dai-Lhe a ação de graças que eu quereria dar-Lhe; apresentai- Lhe atos de reparação pelos meus pecados e pelos do mundo inteiro com um calor de reparação que, infelizmente, eu não tenho.

Minha Mãe, pedi por mim e por todos os homens tudo quanto for necessário para que realizemos a vossa glória; porque, minha Mãe, o que eu peço mais do que tudo é a vossa glória, o vosso Reino.

Amém.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/3/1984)

Energia combativa

A história do pontificado do grande Pio IX mereceria ser estudada a fundo pelos católicos. Ela contém ensinamentos para nossa época muito mais oportunos e profundos do que geralmente se pensa.

Quer pela definição do dogma da Imaculada Conceição, em 1854, quer pela convocação do Concílio do Vaticano em 1869, e a definição do dogma da infalibilidade papal no ano seguinte, este grande Papa enfrentou aguerrida e resolutamente o naturalismo e o racionalismo do século.

Pio IX julgou que a época era ainda menos propícia do que outra qualquer para uma atitude de impassibilidade sorridente, cujo efeito necessário seria o encorajamento dos maus e o entibiamento dos bons. Com isto, calcando aos pés qualquer falso sentimentalismo, Pio IX enfrentou decididamente a impiedade.

Sua energia combativa venceu. Depois da definição do dogma da infalibilidade pontifícia pelo Concílio do Vaticano, a onda do racionalismo naturalista tem decrescido incessantemente, e embora ela ainda conserve formas disfarçadas dignas da maior cautela dos católicos, é certo que perdeu aquela agressividade truculenta e blasfema com que se pavoneava nas altas rodas literárias, políticas e sociais da Europa do século XIX.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de “O Legionário” de 18/12/1938)

Divina visita

Qual não seria nossa alegria ao saber que à porta de nossa residência está um personagem ilustre, o qual veio nos visitar? Como o receberíamos?

Imaginemos que, de repente, parasse diante de nossa casa um magnífico Rolls-Royce, e dele descesse um ajudante de campo, esplendidamente fardado, tocasse a campainha e anunciasse a chegada da Rainha da Inglaterra, dizendo:
— Aqui mora fulano de tal?

A criada que o atendesse diria surpresa:
— Sim, é aqui que ele mora.
— Então abra as portas porque Sua Graciosa Majestade, a Rainha Elisabeth II, veio fazer-lhe uma visita a fim de demonstrar toda a estima que tem por ele, e aqui permanecerá por dez minutos. Imediatamente se abririam as portas, e nós não saberíamos o que fazer para agradecer à rainha que estaria honrando nossa casa com sua presença.

Mais ainda do que honrar a casa, ela nos estaria beneficiando com o seu convívio: quando se trata de um visitante tão especial, algo de sua nobreza, de sua excelência, de seu talento é transmitido ao visitado.

***

Pois bem, haveria algum propósito, ao cabo de dez minutos, nós dizermos à rainha: “Majestade, me desculpe, mas esta conversa está demasiado cansativa. Precisaríamos encerrá-la”?

Pelo contrário, ficasse a rainha o tempo que quisesse, multiplicaríamos nossos esforços para conseguir que ela permanecesse onze minutos em vez de dez; e, caso conseguíssemos, pensaríamos: “Está vendo? Ela iria ficar aqui por dez minutos, mas porque eu sou simpático ficou onze.”

***

Ora, quando na Sagrada Eucaristia, Jesus penetra em nós, dá-se um convívio infinitamente mais intenso do que aquele da visita feita pela Rainha da Inglaterra.

Na Sagrada Comunhão, Nosso Senhor Jesus Cristo visita nossa alma intimamente; não se trata de algo externo ao nosso ser — como visitar nossa casa —, mas sim, de algo interno: Ele entra em nós.

Poderíamos, após esta visita de Nosso Senhor, estar contando os minutos para encerrar nossa ação de graças?

Pelo contrário, devemos fazer uma compenetrada ação de graças após a Comunhão; e para isso é indispensável que para ela nos preparemos bem, adequadamente, tendo bem presente o ato maravilhoso e grandioso que vai se dar.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 19/2/1971 e 16/7/1977)

Eucaristia – Mane nobiscum Domine

A Sagrada Eucaristia constituiu um dos principais pilares da espiritualidade de Dr. Plinio. Inaugurando a seção “Ardoroso devoto da Eucaristia”, procuraremos dar a lume o amor que transbordava de sua alma: “A boca fala do que transborda o coração!” No presente artigo, Dr. Plinio nos ensina a bem nos prepararmos para a Sagrada Comunhão.

Para compreender a variedade de métodos e modos que há para realizar a ação de graças e a preparação para a Comunhão, é necessário compreender o modo pelo qual a graça trabalha as almas. O Apóstolo São Paulo afirma que “stella differt stella”(1) — uma estrela é diferente da outra. Desta forma, não existem dois santos iguais, pois cada qual tem sua vida espiritual própria, com características inconfundíveis. E, como não pode deixar de ser, a graça guia cada alma no caminho da virtude de acordo com seus desígnios, proporcionando atrativos, ou também aversões, que modelam o espírito e indicam o itinerário que a alma deve seguir.

Portanto, não se pode dizer que um método de preparação para a Comunhão é igualmente válido a todas as almas.

Entretanto, São Luís Maria Grignion de Montfort possui um ponto de vista marial para a Comunhão, onde ele coloca Nossa Senhora como mediadora entre Deus e quem recebe a Eucaristia. Isto sim é valido para todos os católicos, em todos os tempos e lugares. Sendo a variedade de métodos imensa, descreverei, então, um que possa ser benéfico a todos.

Ação de graças por meio de Maria

Sendo Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Maria Santíssima é perfeita. Ele A criou com tudo quanto Ela deveria possuir para ser sua Mãe. Concebida sem pecado original desde o primeiro instante de seu ser; Virgem antes, durante e depois do parto, de tal forma perfeita, que em todos os instantes de sua vida nunca deixou de corresponder inteiramente à graça de Deus, estava numa altura inimaginável de virtude quando chegou o momento bendito em que Deus resolveu colhê-La da Terra para o Céu!

Nossa Senhora é também Mãe de todos nós, e a Mãe tem sempre pena do filho mais esfarrapado, mais torto e mais desarranjado. Quanto pior o filho, mais Ela se compadece.

Devemos, pois, ao receber a Eucaristia, nos colocar na presença d’Ela como filhos necessitados, implorando que Ela tenha pena de nós. Naturalmente, Ela sempre se compadecerá em relação aos seus filhos. E quando o Divino Filho d’Ela vier a nós na Comunhão, será por sua intercessão.

Contudo, o pedido feito por Maria a seu Divino Filho, é que Ele entre na “cabana” que é a alma de cada um de nós. Mas essa “cabana” pode ser ordenada e enfeitada por Nossa Senhora, para que esteja agradável a Ele. E, como a intercessora é a própria Mãe d’Ele, Nosso Senhor se sentirá comprazido.

Por isso devemos pedir que Nossa Senhora esteja espiritualmente presente em nossa comunhão a fim de que preencha, de algum modo, o infinito espaço que nos separa de seu Divino Filho, o qual nos acolherá satisfeito por havermos recorrido à sua Mãe. Ele então nos dirá: “Tu és um filho de Maria, minha Mãe; pede-me o que queres”. Ao que devemos responder: “Senhor, antes de pedir, eu Vos agradeço! Quanta bondade, quanta misericórdia! Mas, como agradecer-Vos suficientemente? Suplico, pois, à Vossa Mãe — que também é minha — que agradeça por mim”.

Servir-se das moções espirituais na preparação para a Comunhão

Ao nos prepararmos para a Sagrada Comunhão, devemos também rememorar alguns momentos do dia que tivemos, como também as perspectivas do dia que ainda teremos diante de nós. Não me refiro aos problemas corriqueiros, mas sim, aos de nossa vida espiritual.

Supondo que se faça uma Comunhão vespertina, devo me perguntar como foi meu dia em matéria de vida espiritual: o que necessito, o que desejo, o que mais profundamente tocou minha alma e o que a atraiu mais durante o dia. Isto mais facilmente nos estimulará a um ato de amor, de louvor e de reparação mais perfeitos.

Caso haja um pensamento que considere ser mais fecundo para minha alma, é louvável concentrar nele minha atenção. Muitas vezes esses pensamentos correspondem a um atrativo especial da graça à alma.

Podemos também apanhar uma invocação de alguma ladainha que tenha tocado mais especialmente, por exemplo, a do Sagrado Coração de Jesus, e meditar sobre ela. Este é um modo muito vivo — e para muitas etapas da vida espiritual, excelente — de nos preparar bem.

Uma das invocações muito bonitas nesse sentido é: “Coração Eucarístico de Jesus”. Meditando nesta jaculatória, adoramos Nosso Senhor enquanto tendo o desejo de instituir a Eucaristia, movido por aquele amor especial que Ele demonstrou na última ceia: “Desejei ardentemente comer convosco esta ceia”.

O Coração Eucarístico de Jesus, transbordante de misericórdia, vem a nós na Comunhão; peçamos então que o Imaculado Coração de Maria nos prepare para bem recebê-Lo, a fim de que na Sagrada Eucaristia recebamos especialmente as graças que dizem respeito ao cumprimento de nosso chamado individual.

Este é um modo bonito e lícito de variar as ações de graças e as preparações para a Comunhão, quase ao infinito, de acordo com a inclinação e as aspirações da alma.

Aridez e consolação: benefícios distintos, porém, eficazes!

Haverá também ocasiões onde nossas Comunhões — segundo a linguagem muito adequada da piedade católica — serão áridas. Assim como a terra árida não produz fruto, temos, muitas vezes, a impressão da aridez em nossa alma: comungamos e não sentimos nada.

Reza-se e pede-se, mas tem-se a sensação de que nossas súplicas foram meros termos piedosos sem nenhuma profundidade. Nessa situação, qual o valor de aproximar-se do sacramento da Eucaristia? A pergunta que parece ser tão razoável, quando bem analisada mostra-se infantil.

Seria como a pergunta de uma pessoa que toma um remédio cientificamente certo de produzir um bem incalculável. Após a ingestão, e nos dez minutos que se seguem, não se sente melhora alguma. Neste caso, diríamos que tal medicina é ineficaz? Claro que não: seus efeitos se prolongarão no decurso dos dias, e até dos anos. Só então sentir-se-á a melhora desejada.

Algo parecido dá-se, sem dúvida, com a Sagrada Comunhão. Muitas vezes comungamos, mas a ação de graças é árida; abrimos um livro de piedade, mas o livro não nos inspira nada; temos impressão de que não adiantou rezar.

Ora, Deus visitou minha alma, mas a presença d’Ele foi inútil? Aquele que é Todo-Poderoso, Criador do Céu e da Terra, de todas as maravilhas, esteve presente em mim, e não me fez um bem sequer?

Devemos ter presente que, não raras vezes, a Comunhão inteiramente árida traz, em si, mais vantagens para a alma do que aquela que nos dá consolações inúmeras. Isto porque Nossa Senhora e Nosso Senhor querem, como homenagem, que peçamos ainda quando não percebemos como nossa oração Lhes é grata.

Ou seja, Ele não desejou que este contato fosse sensível, para que minha Fé crescesse. Pois muitas vezes Ele nos prova a fim de verificar se somos daquela espécie de almas que só creem quando sentem: “Tomé, tu creste porque viste; bem-aventurados os que não viram, mas creram!”

São Francisco de Sales, exímio nas comparações encantadoras, tem um magnífico exemplo:

Dois cantores apresentam-se sucessivamente ao rei.

Um deles é normalmente constituído em sua natureza física, e, enquanto canta, vê a fisionomia de encantamento do rei ao ouvi-lo. Ele ouve sua própria voz, nota como ela é bela, compreende como o rei se deleita com seu cântico, e, enfim, contenta-se em ver o rei comprazido. Este homem possui duas alegrias: de ver o encanto do rei, e de ouvir a sua própria voz.

O outro cantor, por sua vez, é cego e surdo! Ele não vê o rei, contudo sabe que o rei está lá; não ouve sua própria voz, mas diz ao rei: “Senhor, eu estou aqui por obediência. Na minha ‘noite’, eu não vejo onde estais; na minha surdez, não ouço minha voz; mas para fazer a vossa vontade eu cantarei, encantado de saber que minha voz também vos agradou!”

Qual dos dois músicos dá maior prova de amor ao rei?

Pois bem, muitas de nossas Comunhões são as do “cego e do surdo”. Não vemos, nem sequer sentimos a presença de Nosso Senhor em nós. Não percebemos como é bela a nossa súplica, nem como Ele se encanta com ela. Mas, pela Fé, cremos que estamos em estado de graça, e que Ele se alegra de estar em nós, ao ponto de dizer: “Minhas delícias consistem em estar com os filhos dos homens”.

Ele estará realmente presente em mim, embora na aridez. Nestas horas, será de grande benefício lembrarmo-nos disso.

Aproveitando as perspectivas angustiosas…

Quando o meu dia não tenha contribuído para a sensibilidade eucarística, mas, pelo contrário, tenha sido um dia de luta, o qual deixa prever que o dia seguinte será angustioso, é louvável fazer que minha Comunhão centre-se nessa dificuldade, dizendo: “Senhor, em vossa agonia no Horto, quando suastes sangue, Vós fizestes a seguinte oração: ‘Pai, se for possível, afaste-se de mim esse cálice, mas faça-se a vossa vontade e não a minha’; Senhor, eu temo o que vai me suceder, e estremeço de terror diante de uma hipótese que me gela até os ossos. Peço-Vos, através de vossa Mãe Santíssima, que afasteis de mim essa provação, mas, se essa não for a vossa vontade, faça-se a vossa e não a minha. E Vos peço que isso concorra para o bem de minha alma”.

Podemos rezar repetidas vezes nesse sentido, no momento em que se recebe a Eucaristia: “Senhor, Vós estais presente em minha alma, com inteira intimidade. E não pode haver intimidade maior que a vossa, quando, através da Sagrada Comunhão, Vos fazeis presente numa alma. Neste momento de dificuldade, Vos peço que ouçais o brado de angústia vindo de minha alma. Quantos Salmos inspirados por Vós foram também brados de angústia! Aqui está também o meu: Tende pena de mim, e atendei-me”.

Desenvolver a ação de graças em função das necessidades diárias

Muitas vezes, para bem nos prepararmos para o divino encontro com Jesus na Eucaristia, bastará nos lembrarmos de algo que lemos em algum livro de piedade, que nos marcou profundamente, ou então de alguma graça que recebemos no decorrer do dia.

Às vezes, algum aspecto novo de Nossa Senhora nos impressiona. Neste caso, nossa preparação poderá ser: “Nossa Senhora é Mãe de Nosso Senhor; Ele concedeu a Ela tal privilégio que eu não conhecia. Vou pedir a Ela que me obtenha na Sagrada Eucaristia tal favor que necessito”.

A propósito de qualquer movimento de piedade durante o dia, pode-se articular a Comunhão e depois a ação de graças. Caso tenhamos um dia de grande alegria, e essa alegria tenha sido um sinal manifesto da bondade de Nossa Senhora e de Deus Nosso Senhor para conosco, podemos fazer a ação de graças tomando em consideração esta graça recebida.

Quem recebe uma manifestação da bondade de Deus, deve contemplá-Lo como Ele se mostra: sorridente, afável, manifestando afeto e desejo de proteger-me. Neste caso, quando recebê-Lo, devo adorar n’Ele a bondade, o amor especial que Ele me tem, o encorajamento que Ele quis me dar em meu apostolado ou em minha vida interior.

Ubi Spiritus, ibi libertas, onde está o Espírito Santo, aí sopra a liberdade. Enfim, há uma tal variedade de movimentações das almas, que é impossível descrever todos os métodos que cabem para alguém fazer a Sagrada Comunhão. Aqui ficam, entretanto, algumas sugestões.

Plinio Corrêa de Oliveira

 

(Extraído de conferências de 28/3/1967 e 4/2/1984)

1) I Cor 15, 41.