São José e a fecundidade da vida interior

Quando alguém se refere aos grandes vultos da história, imediatamente nos vem à memória a figura de um genial estadista, de um celebrado filósofo, de um brilhante general. Todavia, tudo isso não é nada em comparação com a sublimidade de ter colaborado na realização da Redenção. Eis a incomparável vocação de São José, destacada por Dr. Plinio, que no-lo apresenta como modelo a ser seguido por todos os católicos.

A ignorância religiosa em que vivemos tem produzido, entre outros efeitos nocivos, o desvirtuamento inteiro do significado real de algumas determinações da Igreja, que, quando mal  interpretadas, são inteiramente estéreis de frutos espirituais, e quando bem compreendidas, são férteis em graças e proveitos de toda ordem.

São José, modelo de todas as grandes virtudes

É o que se dá, por exemplo, em relação ao culto de São José que, proposto pela Igreja como modelo dos chefes de família e dos operários, é também, pelo imenso acervo de virtudes com que foi enriquecido pela graça, modelo ideal de todas as grandes virtudes católicas.

A maioria dos católicos, porém, não pensa seriamente em tomar São José como seu modelo. De um lado, a imensa santidade do pai [jurídico] de Jesus, a quem a Igreja cultua com a suprema dulia, parece um ideal absolutamente inatingível. De outro lado, a fraqueza humana de que nos sentimos repletos, solicitada por toda sorte de inclinações, nos afasta por tal forma de qualquer ideal espiritual, que julgamos muito já ter feito quando nos libertamos do jugo do pecado mortal e venial, e vivemos uma vida espiritual estacionária, relativamente suave, pois que se limita à conservação do terreno conquistado, mas inteiramente estéril para a Igreja e para a maior glória de Deus.

Em busca da perfeição espiritual

A Igreja certamente não pretende que seus filhos igualem em glória e em virtude aquele que, depois de Maria Santíssima, foi o mais elevado expoente de virtudes da humanidade.

Por outro lado, porém, ela não quer de modo algum que limitemos nossos horizontes espirituais a uma vida piedosa banal, amesquinhada pela errônea ilusão de que seria falta de humildade aspirar-se à santidade que brilhou no gênio de São Tomás, na combatividade de Santo Inácio, no recolhimento de Santa Teresa e na caridade de São Francisco.

A Igreja desmascara esta falsa humildade, apontando nela, ou um pretexto especioso da covardia espiritual, ou uma concepção orgulhosa da virtude, considerada mais como fruto do esforço humano do que da misericórdia de Deus. E, ao mesmo tempo, ela se serve do exemplo de seus grandes santos para “levantar ao alto” nossos corações, indicando-nos que a única preocupação real desta vida, o único problema verdadeiramente importante de nossa existência, é a aquisição daquela perfeição espiritual que será o único patrimônio que conservaremos, a despeito das crises financeiras, das comoções sociais e da fragilidade das coisas humanas, para, finalmente, transpormos com ele os próprios umbrais da eternidade.

É disto exemplo frisante o grande São José. Nascido de família ilustre, arrasta, no entanto, uma existência obscura que, contrastando com o brilho de seu nome, o colocou na mais baixa camada da sociedade de seu tempo. Escasseiam-lhe os dotes naturais com que os homens se fazem grandes. Não dispõe de exércitos nem de súditos, que levem ao longe a glória de seu nome. Não dispõe do dinheiro com que galgar às altas posições. Vive humilde e desprezado, à sombra do Templo majestoso, e no próprio país em que reinara a sabedoria de Salomão.

No entanto, brilha nele a chama da caridade. Um intenso amor de Deus, uma espiritualidade e uma vida interior admiráveis fazem de sua alma objeto da complacência da Santíssima Trindade, e este homem humilde é chamado a co-participar de modo direto em acontecimentos dos quais decorreriam os mais notáveis fatos da história do mundo.

A Religião católica, coluna da civilização

A Redenção do mundo, que é o fato central de toda a nossa história, determinou a queda do paganismo, o aparecimento e o triunfo da Igreja Católica, a implantação de uma civilização baseada em concepções inteiramente novas da família, do Estado, do indivíduo e da Religião, que foram os fatos iniciais e a causa do grande progresso que hoje admiramos.

A família pagã, transformada e sobrenaturalizada pelo contato com os Sacramentos da Igreja, transformou-se em foco admirável de perfeição espiritual e em escola austera da disciplina dos instintos inferiores.

O Estado pagão, transformado em sua base pelo Catolicismo, deixou de ser privilégio de plutocratas ou demagogos, para ser antes de tudo um admirável meio de distribuição equitativa da justiça e proteção a todos os indivíduos.

O indivíduo, que no paganismo era presa de suas paixões, viu abrir-se diante de si o admirável ideal de perfeição espiritual pregado pelo Homem-Deus; e o homem medieval, descendente dos sibaritas da Antiguidade, se transformou no cruzado, no asceta ou no filósofo cristão.

A Religião, enfim, conseguiu trazer ao mundo, com seus Sacramentos, com a graça de que é veículo, e com o admirável apostolado hierárquico da Igreja, uma continuidade de ação santificadora que tem sido a coluna da civilização.

Todos esses acontecimentos gloriosos tiveram sua origem na Redenção. São José, pela admirável correspondência à graça com que se distinguiu, colaborou de modo eminente no plano divino da Redenção. E, como tal, é merecedor de grande parcela da glória que, legitimamente, cabe ao Divino Salvador, pela imensidade de benefícios com que nos cumulou.

Inestimável valor de uma vida espiritual intensa

Vemos, pois, a admirável fecundidade de uma vida que todas as circunstâncias naturais tendiam a tornar estéril. Vemos a prodigiosa capacidade de ação da santidade que, no recolhimento e na humildade, colaborou diretamente em acontecimentos muito mais importantes e teve uma participação incalculavelmente mais notável em toda a história da humanidade do que Alexandre com seus exércitos, Kant com seu saber arrogante, ou Maquiavel com sua diplomacia astuta e amoral.

Vida interior, portanto. Vida interior intensa, constante, ilimitadamente ambiciosa, no sentido espiritual da palavra, eis a grande lição que (o exemplo) de São José nos deixa.

Intimamente unidos a Nossa Senhora como o foi São José, não nos deve desanimar, ante a grandeza dessa lição, a escassez de nossas forças, pois que devemos exclamar como encorajamento: “Omnia possum in eo qui me confortat — Tudo posso n’Aquele que me conforta”.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do “Legionário”, nº 116, de 26/3/1933. Título e subtítulos nossos.)

A primeira gota de uma torrente de graças

Ele era um pequeno funcionário público de Lourdes. E também um cético diante das recentes aparições da Santíssima Virgem que, naqueles idos de 1858, vinham comovendo essa cidade dos Pireneus. Contudo, movido pela curiosidade, decidiu comparecer certo dia à gruta de Massabielle, nos arredores de Lourdes, no momento em que a Mãe de Deus entabulava mais um colóquio com a camponesa Bernadette Soubirous.

A partir de então, a existência do incrédulo personagem mudaria para sempre, conforme ele próprio testemunhou: Após assistir à cena, senti-me como saído de um sonho, e me afastei da gruta. Não conseguia voltar a mim e um mundo de pensamentos agitava-se em minha alma. A Senhora do rochedo ocultava-se bem, mas eu percebera sua presença, e estava convencido de que seu olhar maternal voltara-se para mim. Oh! hora solene de minha vida! Perturbava-me até o delírio pensando que eu, o homem das ironias e das presunções, fosse admitido a ocupar um lugar perto da Rainha do Céu!

Para Dr. Plinio, a história dessa tocante conversão era eloquente motivo para se crescer em confiança na insondável misericórdia de Maria Santíssima. E comentava: “Esse homem teve noção de que realmente existia a pessoa com quem Santa Bernardette conversava. Portanto, aquela visão não podia ser uma abstração, nem era uma fantasia. A camponesa dialogava com alguém, e o seu modo de agir nessa circunstância possuía todas as características objetivas de uma interlocutora. Donde ser inegável a autenticidade da cena. O fato de ter presenciado este diálogo diretamente, o comoveu e o levou à conversão. Ele não viu Nossa Senhora, porém pelas atitudes de Santa Bernadette soube que a Rainha do Céu ali se encontrava.

“Analisemos a situação de alma desse homem. Sentia-se, ao mesmo tempo, humilhado e pasmo, pois não podia crer que ele, cético, havia sido tão bem tratado por Nossa Senhora e transformar-se no objeto de um milagre gratuito alcançado por Ela em seu favor. De nenhum modo merecia ter essa espécie de visão indireta da aparição, e menos ainda receber aquela inestimável graça concedida pelas mãos de Maria. E entretanto, pelo simples reverberar da presença d’Ela sobre a figura de Santa Bernadette, a Virgem tocou sua alma e venceu todos os seus orgulhos, fazendo-o pensar: ‘É espantoso! Eu, até há pouco tão ruim, tão pretensioso, tão miserável, o menos indicado a obter tamanha dádiva, contra todas as expectativas a recebo. Como é misericordiosa a graça que bate em portas tão conspurcadas, e de forma tal que a porta quase não pode recusar-se a abrir!’

“A obra maravilhosa que a graça realizou na alma desse homem foi precursora dos esplendores que a mesma graça operaria em milhares de almas que passariam por Lourdes e ali seriam tocadas pelo milagre. E em tantas outras que, embora achando-se distante da gruta de Massabielle, converter-se-iam ao ouvirem as descrições dos milagres. O dom extraordinário concedido àquele cético foi como a primeira gota de uma verdadeira inundação de graças que viria para o mundo, a partir do dia 11 de fevereiro de 1858, quando Nossa Senhora apareceu pela primeira vez a Santa Bernadette.

“Desse fato devemos colher um importante fruto. Se tomarmos em consideração que, em favor de um incrédulo, Nossa Senhora alcançou graça tão insigne, dádiva muito maior obterá Ela para aqueles que perseveram na Fé. E, portanto, podemos esperar com inteira confiança e devoção que Ela nos consiga de seu Divino Filho graças superlativas, de modo particular na festa de Nossa Senhora de Lourdes. Razão pela qual me parece assaz conveniente que, nessa data mariana, nos ajoelhemos aos pés de uma imagem d’Ela e Lhe supliquemos, com entranhado fervor, as graças de que mais necessitamos, quer para nossa vida espiritual como para remediar nossas dificuldades temporais.”

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio (Fevereiro de 2007)

Socorro dos pecadores

Saibamos que o melhor corretivo para nossas incertezas na vida espiritual é a devoção a Maria Santíssima. Embora nos sintamos indignos de sermos atendidos, devemos rezar com redobrada confiança, compreendendo de modo vivo e prático que não é necessário ser bom, não é preciso possuir méritos ou grandes virtudes para ser ouvido.

Alcançaremos as graças que nos importam porque nos foi dada uma onipotente Medianeira junto ao Mediador: Ela é o socorro, mais do que dos justos, dos pecadores. Tenhamos consciência dessa verdade, e nossa oração subirá ao Céu com uma ardorosa esperança, uma inteira convicção de que será favoravelmente acolhida.

Ladainha da Humildade – Desprendimento e amor a Deus

Dr. Plinio nutria grande apreço — e a recomendava vivamente a todos — pela  Ladainha da Humildade, composta pelo Cardeal Rafael Merry del Val, Secretário de Estado  do Papa São Pio X.
Conforme ressaltava Dr. Plinio, é a humildade um dos importantes esteios para a perseverança do católico, como salvaguarda da virtude da pureza e da autenticidade de qualquer ato piedoso.

A Ladainha da Humildade, escrita pelo Cardeal Merry del Val, embora magnífica e de inestimável proveito para as almas, devendo ser rezada amiúde, poderia admitir certo desenvolvimento particularmente útil para os membros de nossa obra.

Contrária à visão egoísta da vida

Nesse sentido, ocorreu-me fazer uma aplicação dos mesmos conceitos enunciados pelo Cardeal Merry del Val a tópicos que nos interessam de modo especial.

Sob um certo ponto de vista, essa oração poderia ser chamada “Ladainha do Desprendimento”, pois todos os pedidos nela formulados têm por objetivo evitar o egoísmo.

Assim, os desejos de ser estimado, amado, honrado, consultado, preferido, de ser mais santo do que os outros, etc., resultam, em última análise, da preocupação egoísta de considerar-se o primeiro e ter tudo para si. Em síntese, de quem possui, como ideia fixa, o “eu, eu, eu”.

Crescer no amor a Deus e ao próximo

Surge, então, este pensamento: “Está bem, não desejo ser amado, conhecido, louvado. Esse é o lado negativo do assunto. Qual será seu aspecto positivo?”

O lado positivo, contrário ao egoísmo, consiste não apenas no amor ao próximo, mas, sobretudo, no amor a Deus. O verdadeiro amor ao semelhante é um reflexo do amor a Deus, que se exprime também pela devoção a Nossa Senhora, à Santa Igreja Católica Apostólica Romana — Corpo Místico de Cristo — bem como pelo amor à vontade do Altíssimo e, portanto, à nossa vocação, ao movimento do qual participamos.

Em conseqüência, apresentar o lado positivo dessa Ladainha envolve a seguinte questão: ao entrar num ambiente, devo sinceramente estar despreocupado de ser o primeiro, de ser honrado, louvado, estimado, consultado, etc., e cumpre tomar essa atitude por amor a Deus. Portanto, preciso querer que o Criador e a Igreja sejam amados sobre todas as coisas; e seja eu capaz de amar minha vocação acima de todas as coisas meramente humanas.

Ter sempre em mente o aspecto positivo desses pedidos

Importa considerar também que, ao me esforçar para evitar que o amor próprio, o orgulho e o egoísmo me dominem, preciso ter uma certa visualização que me ajude a combater esses defeitos. Imagine-se, por exemplo, que eu pronuncie uma conferência e o público, muito indulgente e pouco dado a críticas, me cumule de aplausos. Qual deve ser o pensamento correto a se formular nessa hora?

“Que ovacionem a mim, não tem importância. Minha exposição conseguiu despertar o amor a Deus e à Igreja Católica em alguém? Esses aplausos significam um verdadeiro movimento de virtude que minhas palavras suscitaram? Se assim foi, alegrar-me-ei. Não, porém, quanto ao que diz respeito a mim, porque esta é minha razão de ser. Sou filho de Deus e da Santa Igreja, servo de Nossa Senhora: com isto devo me preocupar.”

Ter sempre em mente esse aspecto positivo da Ladainha da Humildade é um esplêndido auxílio para se praticar de modo completo essa virtude propugnada pelo Cardeal Rafael Merry del Val em sua prece, bem como para evitar os defeitos nela apontados.

O modo mais acertado de se rezar a Ladainha da Humildade

Assim, parece-me em extremo conveniente meditarmos sempre no conteúdo dessa valiosa oração. E fazê-lo com aplicações concretas à nossa vida quotidiana, ao nosso dia-a-dia na vocação. Pois o amor próprio é algo tão contínuo, polimórfico e profundamente radicado na natureza humana, que qualquer pessoa, não tendo vigilância, acaba sendo meio infiltrado — para dizer pouco! — por ele.

Exemplifico. Se desempenhamos uma tarefa de modo bem feito, obtemos um grande resultado para nosso apostolado e, por isso, somos objetos de admiração dos outros. A pergunta que devemos fazer a nós mesmos é: “Agimos assim por satisfação própria ou por Nossa Senhora? Para sermos aplaudidos ou a fim de que Ela seja bem servida?”

Se realizamos o trabalho para glorificar a Santíssima Virgem, é o correto e o desejável. Mas, se eu degustar os elogios e pensar: “Homem! Fiz tal coisa, e como os outros me admiraram naquela hora! Fulano, que sempre me contraria, ficou com uma face comprida…” — estarei me entregando a considerações lastimáveis, as quais roubam todo o mérito do meu apostolado.

Precisamos ser indiferentes ao fato de aparecermos ou não naquilo que fazemos nas vias da nossa vocação. E para se alcançar esse desprendimento, só há um meio eficaz: examinar-se e perguntar se Nossa Senhora de fato está bem servida, honrada e glorificada com nossas realizações.

Quer dizer, o modo mais prático e correto de rezar a Ladainha da Humildade é fazer continuamente essas aplicações ao nosso comportamento na vida interna de nossa associação. Por outro lado, se empreendemos um trabalho importante e ninguém nos elogia, não nos incomodemos. Desde que tenhamos procurado atender aos desígnios de Deus, o resto não importa.

É procedendo dessa forma que se combate inteiramente o egoísmo e o orgulho.

Gloriosa perenidade

Durante as visitas que fiz a Roma, agradava-me discernir e sentir algo que eu chamaria de a perenidade da Igreja Católica, quer dizer, o modo maravilhoso como ela vai prolongando sua existência neste mundo. Na sua história os séculos se sucedem e como que se confundem, formando uma espécie de miscelânea suavíssima, importantíssima, seríssima, de tal maneira que, ao  contemplarmos os vários templos católicos de Roma, admiramos os passos da Igreja através dos tempos.

Dir-se-ia que todas as épocas vividas por ela ali se revelam, num estado ligeiramente melancólico, porém doce, tranqüilo — não isento de bem-estar — e olhando para a eternidade, como quem diz: “Meu dever está cumprindo, mas resta-me a mim o estar aqui, para representar o papel no cortejo dos séculos até que a peregrinação do homem sobre a face da Terra se complete”.

O visitante com uma alma sensível a esses aspectos, pode se deter diante de qualquer uma dessas igrejas romanas e talvez perceberá, como eu percebia, que aquele edifício sagrado traz consigo a atmosfera dos primeiros anos do Cristianismo; junto a ele, ou no seu interior, ainda ecoam gemidos de mártires, e a luz do sol, neste momento ou naquele, banha de uma luz incomparável a face de uma imagem ou a ponta de um mosaico seculares.

Essa sensação nos faz imergir no passado, e como que degustarmos as graças e a santidade da Igreja como estas se manifestavam aos homens daqueles remotos tempos. Em torno daquelas obras de arte, imagens, relicários, essa santidade e essas graças como que se mantiveram paradas.

Mais de uma vez pude constatar essa impressão. Passava diante de uma igreja romana, detinha-me por  alguns instantes a admirá-la e sentia vir do seu interior um arfar dos séculos mesclado a um vento que consigo carreava graças, e aquilo me envolvia por inteiro. Adiante, outra igreja, outra beleza, os mesmos sentimentos.

Isto fala muito da perenidade da Igreja. E, de fato, toda grande instituição que vem do fundo dos séculos e caminha séculos para frente, a fim de alcançar genuína glória precisa ter algo pelo menos desse ocaso em que se misturam todas as épocas já vividas por ela. Sem esse predicado, se tudo for novo e composto no momento presente, será como uma criança recém-nascida no berço.

Não. Viva, sofra, lute, combata sua batalha! Atravesse uma longa existência e seja a pessoa heroica em cuja alma se somam os diversos estados de espírito que a modelaram. Seja alguém no qual dorme o passado e pulsa o futuro!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 10/6/1987)

Como podemos imitar os santos?

Durante as décadas de 60 e 70 Dr. Plinio fazia conferências diárias, em geral comentando a vida do santo cuja festa a Igreja celebrava naquela data. Donde essas reuniões serem chamadas de “Santo do Dia”, nas quais a edificante virtude dos heróis da Fé eram propostas como modelo a quantos acompanhavam ditas exposições. Certa vez, atendendo ao interesse de seu auditório, Dr. Plinio salientou o melhor modo de seguirmos o exemplo dos grandes santos.

Com freqüência no “Santo do Dia”, fazendo comentários a respeito deste ou daquele bem-aventurado, apresento um quadro da vida espiritual que poderia ser assim resumido: a Fé ilumina a inteligência; esta dirige a vontade a qual, por sua vez, fortalece a sensibilidade humana. Agindo dessa forma, o homem está em ordem em relação a Deus. Os santos o conseguiram por meio de meditações, raciocínios, exercícios metódicos e cuidados persistentes, enfrentando lutas e sofrimentos extraordinários.

Dificuldade dos mais fracos

Sempre procuro elogiar enfaticamente esse modo de praticar a virtude, o que suscita em alguns de meus ouvintes a seguinte pergunta: “Dr. Plinio, os ‘Santos do Dia’ são feitos em grande parte para as gerações mais novas, e até novíssimas, compostas de capengas(1). Os santos sobre os quais o senhor tece comentários são o contrário da “capenguice”, porque têm muita personalidade, são capazes de sofrer, de praticar atos heroicos e fazem obras que nós não conseguimos realizar. Então, que proveito podemos tirar dessas exposições?”

Virtudes a serem admiradas, mais do que imitadas

Respondo à compreensível indagação.

Antes de tudo, cumpre considerar que, em toda a História da Igreja Deus suscita santos com virtudes tão extraordinárias que devem ser admiradas, mais do que imitadas. Exemplo frisante é o de São Simão Estilita, o qual, para fugir das atrações mundanas, subiu no alto de uma coluna e ali passou a vida inteira em oração e penitência. O que sucederia se toda pessoa com dificuldades em cumprir os Mandamentos, ficasse o dia inteiro rezando sobre uma coluna?

Não haveria colunas que bastassem. Além disso, o número de colunas abandonadas seria imenso…

Sem dúvida, o procedimento de São Simão Estilita é um modo admirável de praticar a virtude. Não há palavras que possam exprimir nosso respeito e enlevo por um homem que permanece durante anos no alto de uma coluna, não pensando em outra coisa senão em Nosso Senhor e nas verdades eternas. Contudo, se o desígnio de Deus para a maior parte dos homens não é o de imitar São Simão Estilita, a admiração pelo santo deve levá-los a praticar virtudes menores, ou pelo menos de modo menos excepcionalmente heroico.

Cada um poderia dizer a si mesmo: “Claro está, não posso chegar ao grau de virtude que São Simão Estilita atingiu, mas desejo caminhar nessa direção”.

Ora, se esse anelo nasce em nosso interior, significa que aquele santo é uma espécie de precursor de milhões de almas que, de algum modo, fazem aquilo que ele realizou. E, portanto, o extremo da admiração redunda numa como que imitação, a qual beneficia incontáveis corações.

Todos somos chamados à santidade

Em segundo lugar, precisamos compreender que, embora as virtudes heroicas de alguns santos do passado não possam ser praticadas pelos homens de hoje — e nem pertençam às vias comuns da graça —, a santidade está ao alcance de todos. Porque a perfeição moral é atingível por qualquer homem que a deseje, com o auxílio da graça. E quando admiramos um santo, nos encantamos com a santidade, e somos convidados a seguir de alguma forma o exemplo de sua vida virtuosa.

Outro não foi o pensamento que inundou a alma de Santa Teresinha do Menino Jesus, a doutora da chamada infância espiritual. Quer dizer, ela se comportava diante de Deus com a humildade e a simplicidade de uma criança. Não almejava fazer coisas extraordinárias, mas apenas servir a Deus nas formas quotidianas e comuns da virtude. Porém, praticando-as com um amor tal que este significava verdadeiramente a santidade.

O teor de relações de Santa Teresinha com Nosso Senhor era semelhante ao da criança com seus pais, e poderia ser qualificado quase de filial e reverentemente sem cerimônia. Ela não procurava de modo algum ser grande diante de Deus, e sim humilde e pequena, vivendo da confiança na misericórdia do Altíssimo minuto a minuto. Dessa maneira ela alcançou a santidade.

Como águia que fita o sol através das nuvens

Pode-se dizer que Santa Teresinha levou essa confiança a extremos singulares. Por exemplo, ela era um braseiro de amor a Deus, mas sua alma passou por longos períodos de aridez. Em certas ocasiões essas penas espirituais a afligiam até mesmo durante o cântico do Ofício.

Entretanto, nas mais diversas provações, ela se mantinha serena, e já no fim de sua vida, devorada por tentações contra a fé, ela resistia de modo admirável e completo. Diante de tudo isso, conservava a atitude de pequenez, vazia de si mesmo, sabendo que valia muito aos olhos de Deus. Por isso costumava reafirmar que Nosso Senhor a protegia, embora ela não o sentisse.

Nesse sentido, empregava a linda metáfora da águia que fita o sol através das nuvens: não lhe era possível divisar o sol divino, mas estava com as vistas continuamente voltadas para Ele, amando-O do modo mais intenso possível.

Certa feita lhe perguntaram como ela agiria se tivesse a infelicidade de cometer um pecado grave. Resposta: “A misericórdia de Deus é tão grande que eu retomaria, com a alma partida de dor, minha vida espiritual no ponto anterior à queda, e recomeçaria a ascensão tranquilamente”.

Não cabe chamar Santa Teresinha de capenga, mas ela abriu a pequena via para os capengas que viriam depois dela, proporcionando-lhes uma vida espiritual modesta, humilde, mas repleta de amor, dando-lhes a oportunidade de realizar, à sua maneira, grandes coisas.

Concluímos, portanto, dizendo que convém conhecermos as altas virtudes dos santos insignes para amá-las, admirá-las e, na medida do possível, imitá-las, segundo as disposições propostas pela “pequena via”.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 12/1/1966)

 

1) Dr. Plinio costumava empregar a palavra “capenga” no sentido metafórico, a fim de indicar certas debilidades de alma manifestadas por filhos das gerações que o sucederam. Estes apresentavam deficiências espirituais análogas às de um coxo, e assim como o capenga de corpo precisa de muleta para caminhar, o de alma, por ser inconstante, necessita sempre de especial apoio para progredir na piedade.

Lourdes e a mediação universal de Maria

Em 11 de fevereiro comemora-se a festa de Nossa Senhora de Lourdes, recordando a primeira aparição de Maria à camponesa Bernadete Soubirous. Aberta nas montanhas dos Pireneus, a Gruta de Massabielle tornou-se lugar de predileção do sobrenatural, onde uma impressionante sucessão de milagres tem beneficiado, não apenas os corpos, mas sobretudo as almas. Para Dr. Plinio, tais prodígios, alcançados a rogos da Santíssima Virgem, constituem espetacular confirmação da vontade divina de nos conceder todas as graças pela mediação da onipotência suplicante de Maria.

Dentre os muitos aspectos da devoção a Nossa Senhora de Lourdes, um há que me parece insuficientemente acentuado, e sobre o qual gostaria de fazer incidir os presentes comentários.

Rainha e Medianeira

Para se compreender o Reino de Maria, cumpre ter em mente essa verdade fundamental: por vontade de Deus, Nossa Senhora é a Medianeira de todas as graças. Porque, para ser autenticamente Rainha, deve Ela conseguir do Rei (isto é, de seu divino Filho) tudo quanto quer e dessa forma governar o mundo.

Por sua natureza humana, Maria não detém mais poder do que os seus semelhantes. Assim, para reinar sobre o universo inteiro — anjos, santos, homens, todo o mundo material, etc. — Ela precisa possuir a graça de Deus. E como ponto de convergência de todos os favores celestes, Maria Santíssima é Rainha. Vale recordar que a intercessão de Nossa Senhora foi chamada, adequadamente, de onipotência suplicante, pois é por meio da súplica que Ela tudo pode junto ao Todo-Poderoso.

Portanto, a realeza da Virgem se acha em íntima conexão com o fato de Ela ser o canal de todas as graças. As dádivas divinas nos são concedidas pelas mãos de Nossa Senhora, e por seu intermédio são apresentados ao Altíssimo os pedidos feitos pelos homens. É geralmente aceita pelos teólogos a sentença segundo a qual, se todos os anjos e santos do Céu rogarem algo a Deus sem a mediação de Nossa Senhora, dificilmente lograrão êxito; enquanto que Ela, pedindo sozinha, tudo alcança. Por onde se compreende como o foco da predileção divina se concentrou em Nossa Senhora e através d’Ela se esparge sobre o conjunto da criação.

A mediação universal corroborada em Lourdes

As aparições de Lourdes se inserem numa série de outras célebres manifestações de Maria Santíssima a partir do século XIX, as quais culminariam com as revelações de Fátima, no início do século XX. Poder-se-ia dizer que, na noite cada vez mais profunda na qual a civilização contemporânea se vai deixando soçobrar, tais aparições formam um pontilhado de luzes anunciando a vinda do Reino de Maria. E creio ser de grande interesse analisar, em cada uma dessas visões, a presença das idéias da mediação universal e do reinado de Nossa Senhora.

Em Lourdes, tais noções se verificam patentes, considerando que Nosso Senhor Jesus Cristo poderia ter proporcionado essa estupenda fecundidade de milagres em algum santuário a Ele dedicado. Na própria França, onde se encontra a Gruta de Massabielle, ergue-se a magnífica basílica de Paray-le-Monial, votada ao Sagrado Coração, pois ali o Redentor fez suas revelações a Santa Margarida Maria Alacoque. Ora, Jesus poderia dispor que aqueles prodígios de curas e conversões ocorressem nesse lugar ou em outros santuários erigidos em sua honra.

Porém, quis o Salvador que a maior fonte de milagres conhecida na história da Igreja e do mundo brotasse num local consagrado a Nossa Senhora. Ou seja, que aquelas curas espetaculares fossem obtidas sob a égide da Santíssima Virgem, mediante súplicas a Ela impetradas.

Assim agindo, Nosso Senhor parece desejar comprovar a verdade de fé da mediação universal de Maria, dando aos homens claras razões para compreenderem que sua Mãe tudo pode. Pelos rogos da Virgem são debelados os maiores males, as piores doenças, os sofrimentos mais horrorosos. Ela consegue suspender as leis mais inflexíveis da natureza, vence qualquer obstáculo, e logra, por exemplo, que um cego de nascença, sem nervo ótico, adquira visão!

Maior glória, abaixo do esplendor divino

Essa é a onipotência suplicante, o poder da Soberana, medianeira de todas as graças.

Recordo-me, a esse propósito, de uma piedosa canção entoada no meu tempo de moço, a qual dizia:
Salve, ó Mãe! Salve, ó Virgem Santíssima!
Do universo portento primor.
Mais esplêndida glória que a tua,
Só tem Deus do universo Senhor!

Com efeito, a conclusão de quanto acima consideramos, é esta: mais esplêndida glória que a de Maria, só possui Deus, Senhor de todo o universo. Nossa Senhora se acha infinitamente abaixo do Criador, mas quão incomensuravelmente acima de todas as outras criaturas!

Milagres físicos para fazer bem às almas

Pessoas existem que se impressionam com os milagres de Lourdes, e entretanto pedem à Santíssima Virgem apenas favores materiais, esquecendo-se dos espirituais e mais importantes. Não compreendem que os dons temporais, dos quais necessitamos, devem nos induzir a desejar os que aproveitam à nossa salvação eterna. Aliás, é por essa forma que verdadeiramente Deus atrai as almas para Si, pois todos os dons concedidos por Ele têm o objetivo maior de beneficiar o espírito humano.

Assim, não se deve pensar, por exemplo, que Nossa Senhora curará um homem capenga(No sentido físico da palavra)(1), movida apenas pelo sentimento de pena para com a sua deficiência. Claro, tem Ela compaixão do aleijado, se compraz em corrigir seu defeito. Porém, mais do que isto, a Virgem se serve de um milagre físico para fazer bem à alma do enfermo e às dos que presenciam ou têm conhecimento do prodígio.

Tal benefício consiste, sobretudo, em infundir nos corações uma imensa fé na verdade de que Ela é a Medianeira universal de todas as graças.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

1) Com freqüência e de modo bondoso, Dr. Plinio empregava a palavra “capenga” no sentido metafórico, a fim de indicar certas debilidades de alma manifestadas por filhos das gerações que o sucederam. Estes apresentavam deficiências espirituais análogas às de um coxo. E assim como o capenga de corpo precisa de uma muleta para caminhar, o de alma, por ser inseguro, inconstante, volúvel, necessita sempre de especial apoio para progredir na vida espiritual.

A grande lição de Lourdes

Dentre os inúmeros relatos das aparições de Nossa Senhora em Lourdes, muito significativo é o de um funcionário público dessa localidade dos Pirineus. Sem fugir ao costume de seu tempo, era ele um homem cético para com as coisas de Deus e da religião, até o momento em que a Providência determinou tocar sua alma e o levou a presenciar um dos colóquios de Santa Bernadette com a Imaculada Conceição. Seu testemunho, de insuspeitada franqueza, é uma das eloquentes provas da autenticidade dessas aparições. Eis um bonito trecho de sua narrativa: De repente, como se um raio a houvesse tocado, ela (Bernadette) teve um sobressalto de admiração e pareceu nascer para uma segunda vida. (Uma luminosidade especial) a envolvia toda. Espontaneamente, sem cálculo, com um movimento maquinal, os homens que lá estávamos tiramos nossos chapéus e nos inclinamos como as mais humildes mulheres. A hora das objeções passara e, a exemplo de todos os que assistiam a esta cena celeste, olhávamos da moça estática para o rochedo, do rochedo para a moça.

Sorridente ou séria, Bernardette aprovava com a cabeça, ou parecia mesmo interrogar. Quando a Senhora falava, ela estremecia de felicidade. Quando, ao contrário, era ela que fazia ouvir suas súplicas, humilhava-se e se comovia até as lágrimas. Comumente, a vidente terminava suas preces por saudações dirigidas à Senhora invisível. Eu conhecia o mundo talvez até demais. Encontrara já pessoas que eram modelos de graça e distinção, mas jamais vi alguém saudar com a graça e distinção de Bernardette. Ao terminar a visão, porém, voltamos a ter diante de nós somente a figura amável, mas rústica, da filha dos Soubirous.

Após a cena que acabo de descrever, eu me sentia como um homem que acabou de sonhar e me afastei da gruta. Não conseguia voltar a mim, e um mundo de pensamentos me agitavam a alma. A Senhora do rochedo ocultava-se bem, mas eu sentira a sua presença, e estava convencido de que o seu olhar maternal voltara-se para mim. Oh! hora solene de minha vida! Perturbava-me até o delírio pensando como eu, o homem das ironias e das presunções, tivesse sido admitido a ocupar um lugar perto da Rainha do Céu.

O cético acreditou e se converteu

Por suas comovedoras palavras, entende-se que esse homem, todo embebido de orgulho e ceticismo, foi ali objeto de uma graça insigne e se converteu. Tinha ele se dirigido à gruta — segundo confessa — mais disposto a se divertir do que a acreditar nas aparições. Porém, ao reparar nas atitudes de Santa Bernadette durante os diálogos com Nossa Senhora, teve ele, por uma intuição psicológica direta, a noção de que a Interlocutora da menina realmente existia. Ela não podia ser uma abstração, algo tirado do vácuo, uma fantasia. A jovem camponesa estava falando com alguém, e seu modo de proceder tinha todas as características objetivas de quem entabula uma conversa com outra pessoa. De maneira que era inimitável a autenticidade da cena. E, portanto, a Santíssima Virgem existia, e estava ali presente. O cético acreditou e se converteu.

Enobrecida no trato com Nossa Senhora

Não deixa de ser muito interessante um dos indícios que ele aponta da veracidade das aparições, ou seja, a também inimitável distinção de atitudes da vidente, no momento dos colóquios.

Santa Bernadette era uma moça rústica. Quem a vê nas fotografias, nota tratar-se fundamentalmente de uma camponesa.

Pois bem, apesar disso, ao estar com Nossa Senhora, ela Lhe falava e A cumprimentava com uma elegância extraordinária. Tanta que o funcionário público declara não ter conhecido pessoa — e ele privara com muitas — mais distinta que Bernadette. Porém, terminando a visão, ela voltava a ser a filha dos camponeses Soubirous.

Quer dizer, era uma nobreza comunicada a ela pelo contato com Nossa Senhora. Passada a aparição, ela mudava de jeito. Seria mais ou menos como se uma pessoa de condição muito modesta fosse chamada a conversar com a rainha da Inglaterra e, nesse encontro, tivesse atitudes e maneiras mais finas do que no seu cotidiano.

Haveria uma espécie de filtração dos predicados da rainha para a pessoa com quem ela se dignou estabelecer uma interlocução. O mesmo se dava nas aparições de Lourdes.

Primeira gota de uma inundação de graças

Outro fato interessante a salientar é a própria conversão desse homem. Ele diz que saiu da gruta ao mesmo tempo humilhado e pasmo, pois não podia crer que alguém tão cheio de dúvidas e ceticismo como ele houvesse sido tão bem tratado por Nossa Senhora. Na verdade, deu-se um milagre gratuito em favor dele, uma vez que o convertido de nenhum modo merecia ter esta espécie de visão indireta da Virgem Imaculada. E, com o simples reflexo da presença d’Ela sobre a figura de  Santa Bernadette, Maria comoveu a alma desse homem e acabou com todos os seus orgulhos.

Pela expressão curiosa dele, vê-se que seu pensamento é o seguinte: “Eu era muito presunçoso, estava contra- indicado para receber essa graça, mas agora me sinto tocado por ela. Como é misericordiosa a graça que bate em portas tão conspurcadas, de modo que não se possam recusar a abrir!”

Foi, portanto, uma obra maravilhosa feita pela graça na alma desse homem, precursora do que se realizaria com tantos milhares e milhares de almas que passariam por Lourdes e seriam colhidas pelo milagre. E de tantas outras que, mesmo longe da gruta de Massabielle, se converteriam ouvindo falar dos prodígios ali operados por Nossa Senhora. Foi a primeira gota de uma verdadeira inundação de graças que viria para o mundo, iniciando-se em 11 de fevereiro de 1858.

Preciosos ensinamentos

Esses, como todos os acontecimentos de Lourdes, são ricos em ensinamentos para nós. A mais valiosa dessas lições será, talvez, a respeito do sofrimento. Até nossos dias, vemos manifestarem-se em Lourdes algumas atitudes de Nossa Senhora — e da Providência, com quem Ela vive em íntima união — diante da dor humana. Dentro da perfeição dos planos divinos, essas atitudes têm sua razão de ser, apesar de parecerem até contraditórias.

De um lado, chama a atenção a pena que Nossa Senhora tem dos padecimentos físicos dos homens. Numa extraordinária manifestação de sua insondável bondade materna, atende seus rogos e pratica milagres para lhes curar os corpos.

Nossa Senhora tem igualmente compaixão das almas, e para provar que a Fé Católica é verdadeira, pratica milagres a fim de operar conversões.

Mas existe outra realidade em Lourdes, não menos significativa: são os inúmeros doentes que de lá voltam sem o tão almejado restabelecimento. Por que misteriosa razão Nossa Senhora devolve a saúde física a uns e não a devolve a outros? Qual a razão mais profunda disso?

Creio que essa ausência de cura pode ser tomada como um dos mais estupendos milagres de Lourdes, se considerarmos que, para a imensa maioria das almas, o sofrimento e as doenças são necessários para se santificarem.

É por meio das provações físicas e morais que elas atingem a perfeição espiritual a que foram chamadas. E quem não compreende o papel do sofrimento e da dor para operar nas almas o desapego, a regeneração, para fazê-las crescer no amor a Deus, não compreende absolutamente nada. É por essa forma que, via de regra, os homens alcançam a bem-aventurança eterna.

E tão indispensável nos é o sofrimento para chegarmos ao Céu, que São Francisco de Sales não hesitava em qualificá-lo de 8º sacramento.

Ora, Nossa Senhora agiria contra o interesse da salvação das almas, se as livrasse todas das doenças. Claro está que, para determinadas pessoas, por circunstâncias e desígnios especiais, de algum modo convém subtrair-lhes o sofrimento. São exceções. A maior parte dos que vão a Lourdes voltam sem ter obtido a cura.

Estupendos milagres morais

Como Mãe que ajuda os filhos a carregar seus fardos, Nossa Senhora em Lourdes concede ao doente uma tal conformidade com o padecimento, que não se tem notícia de alguém que, ali estando e não sendo curado, se revoltasse. Pelo contrário, as pessoas retornam ao seus lugares de origem imensamente resignadas, satisfeitas de terem podido fazer sua visita à célebre gruta dos milagres, e de contemplar a bondade de Maria para com outros infortunados.

Há mesmo o fato de não poucos doentes, vindos dos mais distantes países da terra, vendo em Lourdes a presença de pessoas mais necessitadas do que eles, dizerem a Nossa Senhora estar dispostos a abrir mão da própria cura, em favor daquelas.

Quer dizer, aceitam o sofrimento e a doença em benefício do outro. É um verdadeiro milagre de amor ao próximo por amor de Deus. Milagre moral, arrancado ao egoísmo humano; milagre mais estupendo que uma cura propriamente dita.

Se bela é essa resignação, mais bonita ainda é a generosidade cristã das freiras do convento carmelita de Lourdes. São contemplativas recolhidas que têm o propósito de  expiar e sofrer todas as doenças, a fim de obter para os corpos e almas dos incontáveis peregrinos as graças e favores que eles vão ali suplicar. Nunca pedem sua própria cura, e aceitam todas as enfermidades que a Providência disponha caírem sobre elas, em benefício daqueles peregrinos. Padecem horrores, levam às vezes uma vida inteira de sofrimentos ou morrem de uma morte prematura, com esse intuito especial de fazer bem a outras almas.

Quando deitamos um olhar no mundo a nosso redor e consideramos as misérias da natureza humana decaída pelo pecado original, compreendemos que semelhantes atos de abnegação se acham tão distantes do nosso egoísmo e causam uma tal repulsa ao nosso amor próprio, que constituem um milagre maior do que todas as espetaculares curas verificadas em Lourdes. Esses atos demonstram que a primordial intenção de Nossa Senhora é produzir esses milagres de caráter moral que conduzem as almas ao Céu.

Pois Nossa Senhora não seria Ela, se aparecesse em Lourdes para fazer bem aos corpos que perecem, e não o fazer às almas imortais. Nem seria verdadeiro esse amor d’Ela aos homens, se não tivesse por principal objetivo levá-los ao amor de Deus.

Porque nada de melhor para nós se pode desejar.

O grande ensinamento de Lourdes

Então compreendemos o grande ensinamento de Lourdes. Não é o apologético, tão imenso, tão importante.

Mas é esse da aceitação da dor, do sofrimento, e até da derrota e do fracasso, se for preciso. Alguém objetar á: “É muito difícil resignar-se a carregar a dor por essa forma”.

Encontramos a resposta na agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo, no Horto das Oliveiras. Posto diante de todo o sofrimento que O aguardava, Ele disse ao Pai Eterno: “Se for possível, afaste-se de mim este cálice. Mas seja feita a vossa vontade e não a minha”.

O resultado é que veio um Anjo consolar Nosso Senhor. Essa é a posição que cada um de nós deve ter em face de suas dores particulares: se for possível, que elas sejam afastadas de meu caminho. Porém, seja feita a superior vontade de Deus e não a minha. E a exemplo do que ocorreu com Jesus no Horto, a graça nos consolará também, nas provações que Maria Santíssima nos enviar.

Tenhamos, portanto, coragem, ânimo, compreensão do significado do sofrimento e alegria por sofrermos: estamos preparando nossas almas para o Céu.

 

Parece um conto de fadas

Uma pequena igreja da Itália, em contraste com o prosaísmo e a feiura de tantos prédios atuais — construídos  conforme o espírito revolucionário —, é mimosa com distinção e solenidade, remetendo-nos a uma atmosfera irreal e maravilhosa.

O ponto de vista sob o qual analiso e comento os monumentos europeus é o de despertar o amor a um tipo de maravilhoso existente na Europa, elaborado pela civilização cristã, e que é, portanto, um fruto do Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo e das lágrimas de Nossa Senhora.

Maravilhoso sapiencial, de caráter religioso

Foi disto, do senso da cruz, da virtude, do sacrifício que nasceu uma civilização que engendrou essas maravilhas, as quais exprimem algo do espírito e da sabedoria da Igreja. É esse maravilhoso sapiencial, de caráter religioso que consideraremos agora.

Temos aqui fotografias da Igreja dos Santos Nicolò e Cataldo, na cidade de Lecce, na Itália, contendo vários elementos ornamentais explorados a diversos títulos, constituindo várias formas de beleza do panorama italiano.

O panorama italiano é peculiar, pois certas coisas que são bonitas em qualquer parte do mundo, mas possuem dessas belezas comuns e vulgares que vemos e passamos adiante, na Itália existem de um modo especial, por onde elas tomam uma beleza quase clássica, que forma um dos maiores ornamentos desse país e um dos mais altos pontos de atenção do gênero humano.

Por exemplo, quem já esteve na Itália compreende, mas para quem nunca a visitou não é tão fácil compreender a beleza dos muros velhos escalavrados, de pedras que duram séculos, com cicatrizes de todas as molecagens que se fizeram em cima delas, de todos os granizos que caíram sobre elas, e que conservam a dignidade de uma face envelhecida, rugosa, mas com ar de matrona régia.

Notem esse muro. Uma pessoa com espírito moderno e pragmático teria mandado passar massa e depois pintar a óleo, para ficar lisinho e bonitinho, porque esse tipo de pessoas não entende senão o que seja lisinho e bonitinho.

Vejam quantas cicatrizes há nessas pedras! Todas cheias de poros, de sujeiras, de calosidades. Entretanto, isso batido pelo Sol da Itália dá uma ideia de eternidade, de uma coisa que nada destrói.

Essa trepadeira dá a impressão de algo com uma forma de vida endêmica que não há Sol que acabe com ela, e segura com força o prédio, como quem diz: “Eu viverei”. As próprias pedras, batidas pelo Sol, têm qualquer coisa da boa natureza que resiste a tudo. Disso desprende-se uma noção de perenidade.

É preciso saber entender o pitoresco

Pode-se imaginar em uma dessas ruelas uma pizzaria onde se vende a famosa pizza napolitana, outro estabelecimento cheirando a polenta ou a mortadela, de dentro do qual se ouve um berro do patrão para a filha dele: “Angelina, eu já disse que me traga tal coisa para este freguês!” — com ares de Nero proclamando a queda de Roma, atrás do balcão como se fosse um trono, e com aquela tendência declamatória pitoresca do italiano.

O filho do dono, por sua vez, é um homem que toca guitarra e canta “O Sole mio…” De repente, atrás de um arco desses ouve-se um gato miando… Há dentro disso qualquer coisa de rústico, de elementar, de simples, de uma plebe sadia, vigorosa, que canta o Sol sem nenhuma espécie de artifício, e que constitui um dos verdadeiros encantos da Itália.

É muito bonito esse contraste no velho urbanismo da Itália: ruazinhas completamente emaranhadas, sem calçada e dentro das quais entram motocicletas, vespas, lambretas e automoveisinhos modernos. As pessoas se afastam, passa o automóvel, elas protestam, berram… Uma viazinha estreita que, de repente, dá num laguinho inesperado.

Segundo um urbanismo “hollywoodiano” o bonito seria uma avenida muito larga, terminando num lago ainda mais largo do que ela. E o transeunte, de longe, vai vendo a avenida por onde vai.

Quando chega ao final, não  tem nada de novo. Boceja ao chegar ao lago, pois já o estava vendo à distância.

Na Itália, não. Tudo isso é pitoresco, e é preciso saber entendê-lo. Do contrário, não se viajou pela Itália, não se viu a Itália.

Vamos, agora, analisar a igreja. Quem a construiu parece ter tido a pretensão de edificá-la como se fosse uma basílica. Ela é de proporções pequenas, mas toda sua fachada é trabalhada com a distinção e com a solenidade que caberiam a uma igreja grande. Poder-se-ia imaginar uma imensa basílica construída com essa fachada; ficaria linda! Mas o artista soube dar a isso o tamanho reduzido, para ficar, ao mesmo tempo, digno e engraçadinho.

Temos, então, a beleza específica dessa fachada, na qual distinguimos dois elementos: uma cúpula e depois a fachada propriamente dita. Esta se compõe de uma linha central, que é a linha grande, e de duas linhas colaterais que são acólitas da linha central, existem para ela. Se analisarmos a linha central, notaremos ser relativamente simples. Ela tem um porte bonito, harmonioso, muito bem feito, uma proporção entre a altura e a largura muito bem tomada, a proporção de altura entre as colunas e o arco é muito bem tirada também.

A porta é trabalhada, mas sem excesso. Acima dela encontramos uma longa parede vazia, onde o único elemento decorativo é a rosácea que existe, provavelmente, para conduzir luz ao coro dentro da igreja. Quer dizer, tem uma finalidade prática.

O ornamento só aparece bem no alto. São formas, figuras com o seguinte objetivo: a largura dessa parte central, quando chega a certa altura se estreita um pouco. Esta sucessão de larguras diferentes culmina num ponto terminal leve, por onde acaba quase se fundindo no céu.

O sorriso da Arte

Ao lado desta parte central muito simples vemos duas partes colaterais bastante ornadas. Tudo é muito bem construído: as duas partes se repetem e têm colunas com dois nichos nos quais se encontram imagens de Santos.

Essas são colunas jônicas, todas caneladas, como o fuste em cima também, todo ele com as clássicas folhagens de acanto, e depois, em cima, uma trave. Cada uma dessas partes poderia constituir um edifício autônomo, tão bonitas são. Entretanto, encaixam-se harmoniosamente dentro do conjunto da igreja.

Se abstrairmos a parte superior, veremos como o restante forma uma linha básica larga e sólida em relação ao que vem acima, que é mais leve em função do princípio de que o mais pesado carrega o mais leve e o mais forte sustenta o mais fraco. É o contrário do princípio existente em determinados prédios modernos, nos quais uma superfície pequena parece esmagada por uma massa de  cimento sobreposta.

Aqui não: o elemento com aparência de débil fica em cima e o componente pesado embaixo.

Por fim, nota-se toda uma ornamentação abundante terminando o edifício, porque a parte mais nobre, mais leve, mais etérea, deve estar junto do céu. As figuras leves ficam colocadas perto do teto para dar ideia de algo que está subindo para o firmamento e ali se perde. Todas as construções antigas observavam essa norma, que se perdeu depois por artifícios da Revolução.

Considerando o conjunto do edifício temos um monumento muito bem feito, mimoso, mas com ares de pequeno rei. Mais ou menos como seria o Príncipe de Mônaco; é um rei em miniatura. Ninguém dá risada dele; ele é o “garnisé” no gênero dos reis. O garnisé é o sorriso de Deus a propósito do galo, que o mesmo Deus criou.

Aqui é o sorriso da Arte a respeito de suas próprias grandezas. Ao invés de construir uma obra linda e grande, ela faz uma coisa pequena e igualmente linda, para poder sorrir a respeito de si  mesma. O monumento, considerado deste ponto de vista e em contraste com o prosaico de outros prédios, parece um pouco um conto de fadas, uma coisa um tanto irreal, maravilhosa.

Temos, então, um dos ângulos bonitos da Europa sagrada.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/3/1967)

O rochedo saltará como um cabrito

Estamos aos pés do maior rochedo da História, que é a Revolução gnóstica e igualitária. Assim como em Lourdes Maria Santíssima realizou e realiza inúmeros milagres, Ela fará com que esse rochedo se esboroe.

A respeito de Nossa Senhora de Lourdes, na biografia de Santa Bernadete Soubirous, a vidente de Lourdes, escrita pelo Pe. Trochu(1), encontramos alguns dados que nos  falam a respeito da devoção dessa Santa a Nossa Senhora.

O Rosário era sua devoção preferida A devoção à Santíssima Virgem tinha que ser particularmente terna e particularmente filial. “Maria, seu ideal vivo, ocupava em seu  coração um lugar muito próximo a Nosso Senhor” — declarou sua vizinha de enfermaria, Sóror Marta du Rais. Tinha que ouvi-la quando recitava a Ave-Maria.

Que acento de piedade, especialmente quando pronunciava as palavras “pobres pecadores”. Quando dizia “Minha Mãe celestial”, não podia dizer mais. Alguém se atreveu a  perguntar-lhe se a lembrança da aparição se tinha apagado em sua memória. “Esquecer-me? — exclamou com tom de censura — Oh, não, jamais!” E levando sua mão direita sobre a fronte, dizia: “Está aqui”.

“Teria que nos fazer — sugeriu-lhe uma companheira — uma descrição de como era a Virgem, posto que a senhora sabe como era Ela. Não poderia nem saberia fazê-lo — foi a única resposta que deu. Eu para mim não necessito; levo-A no coração.”

A devoção mariana encheu de certo modo toda a sua vida. Tinha necessidade de meditar sobre a Virgem. Via Maria em tudo e por tudo com seu coração e seu entendimento. Nunca, para uma alma religiosa, a oração de quietude podia ter sido mais desejada. Quando rezava à Santíssima Virgem — atesta Sóror Gonzaga Champy —, parecia ainda que estava vendo. Quando alguém lhe pedia que alcançasse alguma graça, imediatamente respondia que pediria à Santíssima Virgem.

Arrebatada pelo Cântico dos Cânticos — informa um grande servidor de Maria — Sóror Maria Bernadete se comprazia em louvá-La, fazê-La conhecer, amá-La e servi-La.

Esforçava-se por imitar suas virtudes, especialmente sua humildade e sua renúncia. Dedicou-se, para sua devoção, a compor acrósticos. A primeira dessas modestas composições se refere à Santíssima Virgem, e era:

Mortificação
Amor
Regularidade
Inocência
Abandono

No dia da Assunção, na capela, a Madre Henri Fabre, que estava situada um pouco distante de Sóror Maria Bernadete, de modo que lhe era fácil poder observá-la, “às palavras do canto ‘é minha Mãe, eu vejo’, eu a vi — conta — como se ela tivesse um arrebatamento e uma comoção de alegria”. […]

Toda sua vida desfiou o Rosário como tinha feito em Lourdes. “O Rosário era sua devoção preferida”, disse uma Superiora Geral. Mais de uma vez, na enfermaria, a Irmã Gonzaga Champy alternou as Ave-Marias com ela.

“Então — recorda essa religiosa — os olhos escuros, profundos e brilhantes de Bernadete pareciam como se estivessem vendo Nossa Senhora.” Pela noite, quando ia dormir, recomendava a uma companheira: “Toma o Rosário e durma rezando. Farás o mesmo que fazem as crianças pequenas que adormecem dizendo ‘mamãe, mamãe’.”.

Vocação muito parecida com a de Lúcia de Fátima

Esses dados sobre Santa Maria Bernadete atestam bem a ardente devoção que ela teve a Nossa Senhora. Mas há uma coisa curiosa na vida dessa Santa: ficou provado que ela tinha essa grande devoção a Nossa Senhora, mas ela não deixou transparecer senão muito pouca coisa. Quer dizer, algum dado novo, alguma reflexão nova, algum  enriquecimento da Mariologia, algum sistema de devoção novo, algo que pudesse, enfim, representar um impulso para a devoção a Nossa Senhora, ela não deu.

Isso porque Santa Bernadete teve uma vocação muito parecida com a de Lúcia de Fátima. Quer dizer, ela teve a vocação de revelar ao mundo as aparições de Lourdes. Uma vez que ela revelou essas aparições, ela as prestigiou tornando-se freira e sendo canonizada pela Igreja.

Embora a Igreja não mande crer nas aparições de Lourdes, porque são de caráter privado — e em matéria de fatos sobrenaturais nós só somos obrigados a acreditar nos fatos oficiais, não nos privados —, roça pela heresia quem conteste as aparições de Lourdes. Porque seria preciso admitir que uma Santa canonizada pela Igreja tivesse tido essas ilusões.

Ora, isso é uma coisa que não se pode admitir. De maneira que a vida e a santidade de Santa Bernadete de algum modo atestam a autenticidade das aparições de Lourdes.

A santidade de Bernadete atesta a autenticidade das aparições Aliás, também exuberantemente atestadas pelo fato dos milagres que se operaram depois, e que são uma  prova de que em Lourdes realmente é a graça que atua. Santa Bernadete Soubirous, durante uma das visões — o povo não via Nossa Senhora, mas percebia que ela falava com uma pessoa que ninguém via —, a certa altura essa pessoa disse a ela: “Passe a mão na terra, revolva-a, que daí vai nascer uma fonte.” E, num lugar onde ninguém supunha que existisse água, viu-se ela meter diretamente a mão na terra — era uma camponesa — e a água brotar. Daí veio exatamente a fonte de Lourdes e ela disse que  nessa fonte se operariam muitas curas.

Ela fez uma profecia: nessa fonte maravilhosamente aparecida haveria curas, e depois houve as curas. De maneira que cada uma dessas coisas é milagrosa por si. Além disso, a vida de santidade dela atestava o seu equilíbrio mental e, portanto, a autenticidade das visões e dos fatos milagrosos que em Lourdes se deram.

Depois que esses fatos se deram, ela não teve uma missão pública, mas privada. E por causa disso ela se calou. Isso é muito bonito para nós vermos a diferença de vocações dentro da Igreja, e como a Providência suscita cada pessoa para ordenadamente seguir uma determinada vocação.

Um tem uma tarefa, um segundo outra tarefa, um terceiro tem outra. Nossa Senhora distribui essas missões de maneira tal que ninguém se mete na tarefa na qual não foi chamado e cada pessoa se dedica inteiramente à missão para a qual foi escolhida.

Temos, então, Santa Bernadete Soubirous como uma espécie de testemunho vivo do milagre de Lourdes. Em Lourdes Maria Santíssima quis ser conhecida enquanto  sumamente benfazeja. Por isso, nas nossas orações devemos ser ousados, fazer pedidos arrojados — não insensatos; é uma coisa profundamente diferente —, difíceis de alcançar, e precisamos, ao mesmo tempo, pedir com muita insistência.

Por exemplo, pedir uma graça que diga respeito à nossa santificação. Isso nos leva a refletir um pouco em nossa vida espiritual. E, por essa forma, a ter uma visão de nós mesmos e de nossas atividades, de nossos rumos, mais precisa. E leva-nos a fazer uma oração grata a Nossa Senhora.

Mais do que os corpos mortais, Nossa Senhora quer curar as almas imortais Não devemos nos esquecer de que as doenças do corpo, no Evangelho, costumam ser  consideradas, pelos comentaristas e exegetas, como sendo símbolos das doenças da alma. E que assim como alguns sofrem de paralisia do corpo, outros sofrem de paralisia
da alma; sofrem de cegueira do corpo, outros, da alma; e assim surdez, mudez e outras enfermidades. O que é mais difícil: curar o corpo  ou curar a alma? Evidentemente,
para a Rainha do Céu e da Terra não é difícil nem uma coisa nem outra.

Aquilo que Nossa Senhora pedir, Ela obtém. Se Ela cura tanto os corpos, vamos pedir-Lhe para curar as nossas almas também. Se tivermos defeitos da alma que gostaríamos de corrigir, seria o momento adequado para levarmos aos pés d’Ela esses nossos defeitos e rogar- Lhe que nos cure. Esse pedido tem muita razão de ser, porque se a Santíssima Virgem quer tanto curar os corpos perecíveis, mortais, quanto mais Ela quererá curar almas imperecíveis e imortais. Nosso Senhor Jesus Cristo não veio à Terra para salvar corpos, e sim para salvar almas, e por isso nossos pedidos não podem deixar de ser muitos gratos a Ele. Podemos rogar por nós ou a favor de alguém por quem  nos interessamos, com quem façamos apostolado, por uma alma cujas dificuldades nos amedrontam, por um amigo cujas aflições ou tentações pelas quais passa constituem para nós uma fonte de preocupação.

A Festa de Nossa Senhora de Lourdes nos inspira, contudo, outra consideração e nos traz à memória, naturalmente, a gruta bem conhecida de Massabielle na qual se encontra o nicho com a imagem da Imaculada Conceição, onde há os dizeres dirigidos por Nossa Senhora a Santa Bernadete Soubirous: “Eu sou a Imaculada Conceição.”

Embaixo, o Rio Gave que espuma e, pouco adiante, as piscinas nas quais se fazem os banhos dos doentes, e onde ocorrem os milagres. Bem acima, numa posição bonita, encontra-se a Basílica. Confirmando o dogma da Imaculada Conceição Nesse quadro clássico, temos uma nota que diz tudo. A Santíssima Virgem quis aparecer e manifestar-se em Lourdes para dar especial força à Fé dos fiéis quanto ao dogma da Imaculada Conceição. Para isso, a Igreja tinha quase dois mil anos de ensino e, definindo o dogma por sua autoridade infalível, este foi aceito por quase toda a Cristandade. Foi recusado apenas por alguns que saíram ingloriamente, torpemente da Igreja nessa ocasião, a tal seita dos Velhos Católicos.

Nesta situação, entretanto, Nossa Senhora quis que um milagre, a aparição d’Ela a uma pastorinha, Santa Bernadete Soubirous, ainda realçasse isso, para que a crença dos fiéis na Imaculada Conceição fosse bem firme.

Para ainda tornar este milagre mais evidente, Maria Santíssima prolongou-o numa espécie de rosário de milagres através dos séculos. Será que realmente Nossa Senhora apareceu a essa pastorinha? Será que ela não foi sugestionada pelo  clero? Será que não foi paga, não foi ensinada?

Qual a prova do contrário? É o milagre. É uma cura, duas, dez, incontestáveis,  indiscutíveis, perfeitas, que provam ao longo dos tempos, como um sino que toca longamente, e de vez em quando soa de novo e não se contenta com seu próprio eco, mas se prolonga a si próprio na sua atividade, pela noite adentro… Assim também, na noite da impiedade que ia avançando pelo mundo, os sinos dos milagres de Lourdes continuaram a tocar.

As curas operadas em Lourdes

A esta importância do milagre se contrapõe, entretanto, também outra situação. Não é só mais a Imaculada Conceição cuja confirmação é a finalidade essencial dos milagres, mas há também outro aspecto a considerar: os doentes com todas as misérias que podem afligir o pobre corpo humano, e que ali vão para serem curados.

Algumas curas são claramente milagrosas. Outras, de cujo caráter milagroso não há prova científica, mas que são curas autênticas. Apenas a Igreja não declara oficialmente que são milagres porque são doenças, em última análise, curáveis também por outro agente. E a Igreja se dá ao justo e sábio luxo de só reconhecer aquelas curas de doenças realmente incuráveis.

Mas, quantas curas de doenças curáveis! Quantas pessoas que palpitam ali aos pés da imagem da Imaculada Conceição em Lourdes e cantam, rezam, choram e suplicam  porque trazem fardos no corpo, os fardos das doenças; trazem sofrimentos, provações terríveis e pedem a Nossa Senhora que as cure.

A respeito dessas curas, qual é o ensinamento da Igreja? Descartadas outras circunstâncias a considerar, esta pesa fundamentalmente: é preciso que o doente tenha Fé católica apostólica romana viva, acesa. E que ele creia no milagre que vai acontecer. Desmentindo o que estou dizendo, há casos de ateus que se curaram.

Analisando os fatos, verifica-se que eles eram acompanhados muitas vezes por gente que tinha Fé, a velha mãe, a irmã piedosa, o irmão católico ardoroso que rezavam, em atenção a cujos rogos os milagres foram dados aos ateus.

Se alguma vez a cura foi concedida a um homem desacompanhado de pessoas e que não tinha Fé, havia em algum lugar do mundo uma alma reta, uma alma justa que, sem rezar por aquele homem individualmente cuja existência ignorava até, entretanto orou para que a glória de  Nossa Senhora se manifestasse. Esta é a realidade. Quer dizer, o que determina, o último elo para que o milagre toque no miraculado e a luz do Céu penetre, assim, aos olhos dos incrédulos para provar a Imaculada Conceição, é a Fé  daquele que pediu; a Fé que move as montanhas.

Estamos diante do maior rochedo da História: a Revolução Ora, nós estamos aos pés do maior rochedo da História, que é a Revolução, e devemos crer que a nossa força de alma aplicada, cotidianamente, contra esse rochedo o moverá. O sinal de nossa Fé é o ímpeto da força. Para usar a metáfora do aríete, é preciso que no impulso desse aríete cada um coloque toda a sua força.

E, não adianta dizer que qualitativamente a força de um de nós pode valer mais do que a do outro, porque é um argumento errado. Assim como Nosso Senhor quer que uma gota d’água esteja misturada ao vinho para operar- e a transubstanciação na Santa Missa, assim também, por este exemplo augusto, quer Ele nos provar que o esforço do menor tem que estar somado, por inteiro, ao esforço do maior.

O que é a força no caso? É aquela violência que move os Céus. Está dito: “O reino dos Céus é dos violentos” (Mt 11,12). E é essa a violência que nós devemos ter. Violência com que Jacó lutou contra o Anjo e obrigou-o a dar a bênção. Assim nós temos que lutar contra as circunstâncias e obter da Santíssima Virgem que o Anjo d’Ela desça do Céu e nos dê a sua bênção.

Então a Providência exigiria de todos nós que aplicássemos, cada um, toda a força sobre o rochedo dizendo: “Salve Rainha, Mãe de misericórdia…” Um dia, quando menos  esperássemos, o rochedo saltaria como um cabrito. Nossa Senhora terá, nesse momento, premiado dias, meses e anos em que, sem cessar, a alma foi aplicada com toda a intensidade. Dia virá em que o Coração Sapiencial e Imaculado de Maria ordenará ao rochedo: “Salte!” E ele saltará.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 10/2/1965, 11/2/1967 e 12/2/1982)