Beato Angélico

O Beato Angélico, cuja festa é celebrada no dia 18 de fevereiro, soube transmitir às suas obras certas fulgurações que, na verdade, são manifestações da virtude da sabedoria, pela qual o homem apetece a coerência e a profunda harmonia interior das coisas, mais do que os bens menores do existir humano.

Essa harmonia exprime algo de inefável, total, que é a melhor representação de Deus. E quem a ama, ama o simbolizado por ela, portanto, o próprio Deus, predispondo assim sua alma para o Céu.

Plinio Corrêa de Oliveira

GRANDEZAS E PULCRITUDES DA DOR

O homem tem necessidade de tornar suportável a vida nesta Terra. Para adoçar suas agruras, ele tem à disposição muitos lenitivos lícitos, entre os quais, a contemplação do que há de celeste e maravilhoso na obra da Civilização Cristã.

Acontece, porém, que um dos frutos excelentes engendrados pela Cristandade é, precisamente, a atitude que o católico deve tomar em face da dor.

Certa vez, nos meus tempos de aluno dos jesuítas, um professor de Religião nos propôs um problema muito interessante, abstraindo-se do aspecto prosaico que o envolve.

— Imaginem — dizia ele — que uma galinha fosse capaz de pensar, e que alguém se aproximasse dela e lhe dissesse: “Tu foste criada para servir de alimento ao homem. Daqui a pouco, seu dono vai te matar e te almoçar”. Pergunta-se, então, que sentimento deveria ter a galinha: de horror, porque vai morrer? Ou de entusiasmo, porque o fim para o qual ela existe — alimentar o homem — vai se realizar?

O problema estava bem apresentado, e me impressionou de modo profundo.

Anos depois, procurando resolvê-lo à luz da doutrina católica, a solução me pareceu clara. Não se trata, é evidente, da galinha, mas do estado de espírito delineado pela figura metafórica que o professor nos pintou. A resposta que encontrei foi esta: a galinha sentiria necessariamente a dor horrorosa de sua própria imolação; porém, mais do que a dor, ela não poderia deixar de sentir a felicidade inerente ao fato de ter alcançado o seu fim último, a sua completa realização. E isto traz uma alegria muito superior à infelicidade do holocausto. Portanto, os dois sentimentos deveriam se juntar, de tal maneira que a galinha amasse o fato de chegar a seu fim, embora o fizesse com dor.

O mesmo se pode aplicar à vida humana. Neste mundo, a pessoa feliz não é a que vive muito, nem a que vive prazerosamente. É, na verdade, aquela que conduz a sua existência segundo o objetivo para o qual foi criada: amar, servir e glorificar a Deus no cumprimento dos desígnios que Ele tem sobre ela. Nosso ânimo deve decorrer desse senso de que a alegria elevada e serena da finalidade alcançada é a autêntica alegria da vida. Nela encontramos as forças para suportar os sofrimentos que a Providência permite em nosso caminho, e os recursos para compreender tudo quanto eles significam na consecução de nossa realização suprema.

Por isso mesmo, na época da Europa maravilhosa, nos áureos tempos da Civilização Cristã, encontramos a dor instalada no meio dos esplendores da vida, com toda a amplitude possível. Assim, a morte transformava-se numa grande solenidade, a respeito da qual a etiqueta tinha disposto todas as suas exigências.

Por exemplo, quando um arquiduque d’Áustria agonizava, no momento em que lhe seria ministrado o Santo Viático, todos os príncipes da Casa Imperial ali presentes entravam em procissão no quarto, e formavam uma corola de velas acesas em torno do Senhor Eucarístico e daquele que em breve partiria para a eternidade. No meio de toda essa magnificência, o moribundo recebia o Santíssimo Sacramento, era ungido com os santos óleos. Seu falecimento se dava em meio a esse aparato da morte realizado com as pompas da vida. Como suprema despedida, seu funeral era um requinte de gala.

Magnífica expressão desse enobrecimento da dor, dessa superior beleza de que se revestia o sofrimento, temos os garbosos e hieráticos gizantes medievais, os grandiosos monumentos fúnebres, as estátuas representando homens cobertos de véu e carregando imponentes caixões. Toda uma arte imensamente desenvolvida, para revestir de pulcritude o aspecto doloroso da vida.

Mais. O entusiasmo com que se esperava e se cantava, nas vésperas das batalhas, a agonia da luta. Nasceram as canções de gesta, nas quais cada golpe, cada “ai!” recebia a glorificação de um acento épico, de uma arrebatadora melodia. Nas salas de armas dos castelos, na noite que antecedia a partida para a frente de combate, os homens conversavam e sorriam. E nos bailes das festas de primavera, enquanto dançavam pelos salões dos palácios, aqueles nobres de cabeleira empoada, de sapatos de fivelas de prata e saltos escarlates sabiam que dali a poucas semanas estariam partindo para a guerra. Sabiam que muitos não retornariam, que várias daquelas senhoras estariam na viuvez, mães ficariam sem filhos, e os filhos, sem pais. Entretanto, dançavam… Eles encaravam a dor com serenidade e grandeza de alma.

Do mesmo modo eram respeitadas e postas em foco as mais variadas formas de sofrimento — inclusive o da maternidade ou o do esforço intelectual levado a bom termo —, porque bem se compreendia a noção de que esta Terra é um vale de lágrimas, segundo a linda expressão da Salve Rainha. Sorria-se para a dor por uma superior razão: “Vou realizar meu fim, aquilo para o que existo, e, por causa disso, apesar de todo sofrimento, estou alegre”.

Daí vêm, igualmente, o júbilo e a pompa com que a Igreja celebrava — e celebra — a entrada de alguém para a vida religiosa. É o ingresso numa existência de renúncias e provações. Mas, em se tratando de uma jovem, esta se veste de noiva, orna-se a capela de flores, toca-se o órgão, o coro canta, e tudo se passa como se fosse uma esplêndida festa de casamento. A razão disso: a moça está em vias de realizar a finalidade para a qual foi criada.

Em sua vida no claustro ela encontrará a dor, sem dúvida, porém a assumirá de “grand coeur”, com abundância de alma, sondando-a até o extremo, a exemplo do Divino Mestre que, diante da Cruz, abraçou-a e chorou. Pranto de comoção no qual, avantajando-se ao oceano de amargura interior, entrava uma imensa felicidade: era seu supremo objetivo, a Cruz para a qual toda a vida d’Ele havia sido ordenada.

São Teodoro: um mártir increpador

Descendente de uma família nobre e rica, o jovem Teodoro cheio de garbo desafia o magistrado, proclama a caducidade dos ídolos, a vacuidade do Imperador, a nulidade do Império. Foi torturado barbaramente e queimado vivo. Assim como o sangue de Abel, vertido por Caim, clamava a Deus por vingança, o sangue dos mártires implorava a Deus a punição e, ao mesmo tempo, a conversão do Império Romano.

 

Proponho que assistamos juntos a um episódio histórico. Não é um filme de televisão, mas a descrição de um fato digno de ser lembrado na História da Igreja, contado circunstanciadamente não por mim; vou apenas ler a narração tirada da obra do Padre Rohrbacher(1).

O Império Romano decaía devido à corrupção moral

Trata-se do martírio de São Teodoro. Ele foi denunciado como católico e, convocado por um magistrado qualquer, recusou-se a abjurar a Fé. Foi levado, então, a um lugar de suplício onde ele poderia, a qualquer momento, fazer cessar os seus tormentos desde que se dispusesse a renunciar a Fé. Aguentou esses tormentos crudelíssimos até a morte. É um mártir.

Uma nota particularmente interessante nesse martírio é que o juiz e ele travam uma verdadeira batalha psicológica, na qual o magistrado procura de todos os modos amolecê-lo para evitar martirizá-lo. São Teodoro resiste, desafiando o juiz cada vez mais. O fato foi notório, conhecido e presenciado por muita gente.

Nós devemos nos perguntar qual é o efeito disso sobre a opinião pública correspondente ao Império Romano que abrangeu toda a bacia do Mediterrâneo. Os romanos se estendiam não só pelo litoral, mas eram senhores das nações ribeirinhas do Mediterrâneo. Aprofundando-se, portanto, longamente pelo território da África, Ásia, Europa, e constituindo, portanto, uma unidade impressionante.

Esse Império, pela imensa extensão e pela dificuldade de comunicação naquele tempo, fragmentou-se em dois: o do Oriente e o do Ocidente. Mas entendia-se que formava um só todo moral e até mesmo político, e que os imperadores, sem serem irmãos pelo sangue, o eram pela missão e deveriam governar em mútua colaboração, cada qual a sua parte do Império. Uma unidade, portanto, enorme, majestosa.

O Império Romano foi monumental e riquíssimo, mas também corruptíssimo. À medida que se desenrolava sua história, seu poder e sua riqueza foram crescendo, porém foi se dissolvendo moralmente e terminou na corrupção moral mais espantosa, acumulando dois aspectos diferentes.

De um lado, os romanos propriamente ditos, não só os habitantes de Roma, mas da Itália, que constituíam o núcleo do Império. Estes sentiam-se muito seguros e estáveis em função do poder e da riqueza que possuíam, e pelo fato de que os inimigos estavam longe, em fronteiras que dificilmente seriam transpostas por eles; e se as transpusessem seriam contidos com facilidade pelas legiões romanas.

Além da prosperidade e da segurança por verem o perigo bem longe, contribuía para a dissolução dos costumes o fato de que a religião dos romanos não dava o mínimo fundamento para uma atitude moralizada. Resultado: o Império foi se corrompendo até chegar a toda espécie de imoralidade e deterioração.

A Religião Católica se desenvolvia

Ao lado dessa depravação generalizada havia a Religião Católica que, do fundo das catacumbas, nascia e se desenvolvia, apresentando-lhes o oposto.

Vemos, então, o jovem Teodoro, nascido na Grécia, de uma família nobre e rica, julgado por um juiz daquela região, o qual estava, portanto, sob a influência dessa família. Esse jovem cheio de garbo desafia o magistrado e proclama a caducidade dos ídolos, a vacuidade do Imperador, a nulidade do Império, com uma força que vai crescendo à medida que o juiz oferece mais.

Dá-se, então, um debate entre o juiz – que visa despertar no jovem o desejo pela vida cômoda e agradável, sem o conseguir – e São Teodoro, que procura comunicar a Fé Católica proclamando as virtudes cristãs e o nome de Jesus Cristo, levando as verdades da Fé tão alto quanto se pode levar um estandarte; e o juiz recusando também.

A recusa de ambas as partes resulta em choque, que culmina com a morte do jovem Teodoro. Dir-se-ia que o fato está encerrado. Ora, a história começa aí. No Céu há um mártir rezando, enquanto na Terra os frutos de seu sangue se difundem.

Tertuliano disse aquela famosa frase: “O sangue dos mártires é semente de cristãos”. Assim como o sangue de Abel, vertido por Caim, clamava a Deus por vingança, o sangue dos mártires implorava a Deus pela punição e, ao mesmo tempo, pela conversão do Império Romano. E o sangue de São Teodoro passou a clamar.

Houve uma opinião pública que em parte presenciou, em parte tomou conhecimento desse martírio. Que atitude terão tomado aquelas pessoas diante dos diálogos impressionantes que vamos ler? Imaginem aqueles romanos que faziam festa quase todas as noites, comendo e bebendo durante horas, chegando ao extremo horror de provocar-se náusea, pela ação de escravos que vinham com penas de pato coçar o paladar, para lançar fora o que haviam ingerido e, esvaziando assim o estômago, poderem continuar a beber e a comer.

Podemos nos perguntar qual o efeito produzido nessa opinião pública pelo diálogo entre São Teodoro e seus algozes.

São Teodoro proclama a sua Fé e investe contra o inimigo de Cristo

Passemos à leitura e comentário da referida ficha.

A perseguição se deu pouco depois de que os Imperadores Galério e Maximino publicaram seus editos, que mandavam continuar as perseguições aos católicos, ordenadas por Diocleciano.

Diocleciano ordenou uma das piores e mais longas perseguições.

O jovem soldado, muito longe de dissimular a sua Fé, a trazia como que escrita sobre a fronte.

Imaginemos, então, um legionário romano com aquela armadura e elmo característicos, e que trazia sobre a fronte como que escrita a Fé em Nosso Senhor Jesus Cristo, sendo visto por um folgazão que se embriagou na véspera e se embriagará naquela noite, e que para encher tempo vai assistir ao martírio e olha para aquilo aviltado e com o olhar embaçado pelo álcool.

Teodoro foi apresentado ao Tribuno da Legião e ao Governador da província, que lhe perguntaram por que ele não adorava os deuses, segundo as ordens dos imperadores.

Ele respondeu: “Sou soldado de Jesus Cristo, meu Rei. Eu não conheço outros deuses; meu Deus é Jesus Cristo Filho único de Deus”.

Isso é uma proclamação. Agora vem a increpação. Ele não se limita a proclamar a sua Fé, mas investe contra o outro, dizendo:

“Os deuses que quereis que eu adore não são deuses, mas demônios! Quem quer que lhes atribua honras divinas está no erro: eis qual é a minha Religião, aquela por cuja Fé estou disposto a sofrer. Se minhas palavras vos chocam, golpeai, rasgai, queimai, cortai a língua; é justo que os meus membros sofram pelo Criador.”

Esta apóstrofe tem todas as características de desafio e é metódica. Ele proclama a sua Fé, depois diz que a fé dos outros não vale nada, e desafia: “Agora, querendo, me martirizem. Eu estou disposto!” Eis o desafio total lançado por um legionário romano!

Podemos imaginar a repercussão de uma atitude como essa em pessoas incapazes de compreender como é que alguém, podendo dizer que adora aos ídolos – não precisava adorar de verdade, bastaria dizer que adora –, se expõe a tormentos dos quais elas têm horror e se prive de divertimentos, quando essa privação já lhes parece um tormento.

O Imperador é um fragilíssimo príncipe, no Céu há um Rei eterno e imutável

Os juízes, embaraçados com uma resposta tão ousada, deliberavam sobre o que eles deveriam fazer, quando um oficial, querendo caçoar do Santo que tinha dito ser fiel ao Filho de Deus, se pôs a lhe dizer:

– Então, Teodoro, teu Deus tem um filho? Ele é sujeito às paixões como os homens?

Respondeu Teodoro:

– Não, meu Deus não está sujeito a paixões. Todavia, Ele tem um Filho, mas um Filho nascido da maneira digna de Deus e bem superior a vossas ideias baixas e carnais, pois esse Filho é a palavra de verdade, pela qual Ele fez todas as coisas.

O tribuno lhe perguntou:

– Podemos nós conhecer esse Filho de Deus?

Ele respondeu:

– Eu quereria bem que Deus vos tivesse dado graças para isso.

Mas, disse o oficial:

– Se nós o tivéssemos conhecido, não poderíamos abandonar nosso Imperador para dar nossa vida ao seu Deus.

Disse Teodoro:

– Se vós O conhecêsseis, teríeis em pouco tempo saído de vossas trevas e, em lugar de pôr uma confiança frágil no vosso fragilíssimo príncipe na Terra, vos ateríeis a Deus, que é o Deus vivo, o Rei e Senhor eterno e vós combateríeis comigo em favor d’Ele.

Essa increpação de que o Imperador é um fragílimo príncipe da Terra e que há um Rei no Céu, eterno e imutável, é uma coisa de deixar aquela gente boquiaberta. Porque era gente que tinha uma vaga ideia de uma post-vida, mas tão vaga, contraditória e cheia de lendas, que praticamente não funcionava. Eles não tinham senão uma ideia ainda mais vaga, de vez em quando lampejos, de um julgamento segundo leis que ninguém sabia como eram.

Agora, vem um que afirma, mas trazendo na fronte uma espécie de prova da verdade da Fé que ele proclamava; pode-se imaginar o impacto no juiz, no tribuno e na opinião pública.

Exortava os católicos que eram conduzidos ao martírio

“Deixemo-lo por alguns dias, disse o tribuno, ele mudará e virá por si mesmo, e acabará fazendo aquilo que lhe é mais vantajoso.”

É a regra dos pagãos, que os caracteriza a cem por cento. Vantagem, vantagem, vantagem, não tem mais nada.

Deram-lhe, então, um prazo dentro do qual ele deveria sacrificar aos deuses, senão seria martirizado.

O Santo não se perdeu em vãs deliberações, mas se empregou em rezar e louvar a Deus incessantemente.

O louvar é um estilo de oração, mas é quase mais bonito do que as outras formas de rezar, no caso. Um homem que marcha para o martírio horrível e que louva a Deus, por Quem ele vai ser martirizado, que louvor bonito! Tem-se a impressão de que um Anjo não cantaria melhor.

Os gladiadores não eram mártires, mas escravos ou pessoas livres de baixa condição que lutavam uns com os outros para o público ver. Eles, antes de começar o combate, alinhavam-se diante da tribuna do imperador e diziam a frase: “Ave Cæsar, morituri te salutant” – “Ave, César, aqueles que vão morrer te saúdam.” Depois começava o combate.

São Teodoro dizia isto a Deus: “Ave, ó Deus, aquele que vai morrer Te saúda. Mas esse que vai morrer sabe que em Ti ele vai viver.” É belo!

Entretanto, os perseguidores procuraram cristãos entre os habitantes para serem conduzidos também à prisão. Teodoro os seguia, exortando a serem firmes e fiéis a Jesus Cristo.

Quer dizer, o tempo que lhe foi dado para hesitar, ele o empregava rezando ou acompanhando outros ao martírio. Era, naturalmente, gente menos importante que ele, a quem os perseguidores não tinham medo de matar. Ele acompanhava os outros ao martírio, exortando-os: “Sustentem, protestem contra o juiz, sejam firmes até o fim, confessem o nome de Jesus Cristo!”

Podemos imaginar a raiva dos que lhe tinham dado prazo, ao verem como ele o empregava. O transporte para o lugar do martírio era feito por uma espécie de piquete de soldados que levavam os condenados à vista de toda a cidade. Os pagãos vaiavam os que iam morrer. Do lado de fora do piquete, estava Teodoro, o soldado: “Aguentem, dura pouco, a eternidade vem, Deus merece, Jesus Cristo é nosso Deus!”

Em todas as ocasiões ele marcava dessa maneira o seu zelo para o serviço de Deus.

Incendeia um famoso templo pagão

Agora vem um modo de manifestar o zelo que deixa o Padre Rohrbacher hesitante, mas ele menciona pondo ao lado de São Teodoro uma grande autoridade. Diz o autor:

Havia um templo no meio da cidade, nas margens do rio chamado Ires. Esse templo era dedicado à deusa Cibeli, que as fábulas chamavam “a mãe dos deuses”. Teodoro, encontrando a ocasião favorável, pôs fogo durante a noite no templo, que foi reduzido a cinzas, com os ídolos que nele existiam.

Pela discussão que vem depois, vê-se que, entre outras intenções, estava a de mostrar que os ídolos não valem nada, qualquer um ateava fogo neles. Era, portanto, uma prova de que ele tinha razão, mas também um escárnio aos idólatras.

O que São Gregório de Nissa relata como uma generosidade louvável, se bem que o Concílio particular de Euvira pareça censurar ações desse gênero. Teodoro, apesar disso, não ocultou sua ação; ele se gabava até publicamente, nas rodas, que era ele quem tinha posto fogo. Pelo que foi denunciado e compareceu perante o tribunal do governador com tal segurança que mais parecia juiz do que acusado.

É extraordinário! Com a Fé resplandecendo na fronte, sendo o juiz de seu juiz, sabendo que ele caminhava para a morte terrível.

Ele reconheceu o fato que lhe era imputado. O juiz lhe perguntou por que ele tinha queimado a deusa do lugar, em vez de adorá-la. O Santo respondeu que ele tinha acendido uma lenha para pôr à prova a deusa e ver se era combustível ou não. E que o fogo a tinha atacado e queimado, porque toda a força dela tinha consistido apenas em matéria e isso se queima.

Ora, ele estava dando um argumento para não adorar: “Como é uma deusa, se eu a queimei? O que vale isso?” O juiz fez o que tantas vezes fazem os ímpios, isto é, quando os bons dão um argumento, não contra-argumentam porque não têm o que dizer. Então ficam indignados.

O juiz se encolerizou e mandou chicoteá-lo e o ameaçou de outros suplícios muito mais rigorosos, se ele não obedecesse às ordens dos imperadores.

Como ele era de uma família influente, o juiz mandou chicoteá-lo, mas não o condenou à morte. Queria ver se ele apostatava, para não ter encrenca com a família, ou ao menos uma encrenca tão pequena quanto possível.

O Santo respondeu que os suplícios mais terríveis não o fariam obedecer aos homens contra o que Deus mandava, e que a esperança que ele tinha nos bens do Céu lhe tirava todo o temor dos males que o ameaçavam nesta Terra.

Um dos lados de seu corpo foi rasgado com unhas de ferro

O governador, vendo-o insensível a essas ameaças, trata de suborná-lo por promessas magníficas que lhe faziam esperar honras, dignidades e até a qualidade de pontífice de um desses deuses.

Teodoro escarneceu dessas promessas para voltar às suas ameaças, cujo efeito era muito próximo; ele assegurou ao juiz, fazendo um sinal da Cruz sobre todo seu corpo, que ainda que o juiz o fizesse derreter no fogo, o cortasse em pedaços, ele não cessaria de confessar Jesus Cristo até o último alento.

O juiz, renunciando então a todos os meios de doçura, fez colocar o Santo sobre um cavalete. E ordenou lhe rasgassem um dos lados com unhas de ferro, o que foi executado com tanta crueldade que os seus ossos ficaram todos postos a descoberto.

Podemos imaginar a dor lancinante que uma coisa dessas causa!

Ele nada disse ao juiz, mas cantava: “Eu bendirei Deus em todo o tempo, sempre o seu louvor estará na minha boca”.

Ele cantava esse versículo de um salmo. “Em todo tempo” quer dizer no tempo bom, mas também no tempo ruim. “Por mais que sofra, eu O louvarei!” Se isso não é grandeza de alma, não sei o que é grandeza de alma!

Luzes pairavam sobre o Santo

O juiz, espantado por uma tão rara força no sofrimento, disse-lhe:

– Tu não tens vergonha, miserável como és, de pôr tua confiança neste homem que chamas Cristo, que houve quem fizesse morrer como um infeliz? Tu não tens vergonha de te dispor inconsideradamente aos tormentos e aos suplícios?

Respondeu Teodoro:

– Essa vergonha é para mim e para todos os que invocam o nome de Jesus Cristo uma razão de alegria e de glória.

Ele então foi exposto à tortura e depois mandado para a prisão onde Deus manifestou as maravilhas de seu poder a propósito de Teodoro. Porque, segundo conta São Gregório de Nissa, escutou-se durante a noite a voz de uma multidão de pessoas e viu-se algo como uma multidão de lâmpadas. O carcereiro, surpreso com esse duplo prodígio entrou no cárcere e não viu outra coisa senão o Santo que descansava placidamente no meio dos prisioneiros.

É uma coisa admirável! Um homem que sofreu essas torturas conseguir dormir! É inconcebível! Na véspera de outras torturas, tranquilamente.

As vozes e luzes pairavam sobre ele e se tornaram notórias ao carcereiro.

O juiz mandou, na manhã seguinte, que ele fosse levado de novo para o submeter a outras torturas. E considerando-o invencível em todos os pontos, pronunciou a sentença de morte e o condenou a ser queimado vivo, o que foi feito imediatamente.

Fortaleza sobre-humana dos mártires

Termina, assim, a história de São Teodoro. Se não fosse o fato de haver uma caudal de episódios semelhantes, ele poderia ser chamado “São Teodoro, o grande”. Mas a questão é que o conceito de grande tem dois sentidos: um é perante Deus, e nessa acepção todos os Santos são grandes; outro é diante dos homens. Neste sentido, por mais profundo que seja o conceito de grandeza, chamam-se “grandes” os que são maiores do que os do mesmo gênero. Ora, os mártires gloriosos são tão numerosos que se hesita em dizer que ele é maior do que muitos outros. Entretanto, pudemos ver como ele é grande!

Consideremos agora a repercussão desses fatos na opinião pública. Nós não temos os documentos diretos, tanto mais quanto as fontes pagãs não tratam do Cristianismo a não ser muito pouco e de passagem. Como então podemos saber qual é a reação da opinião pública? Pela marcha progressiva das conversões. Torturas, conversões; torturas, conversões… Compreende-se que, diante de um mundo dividido, atos como esses despertavam, no fundo das almas, restos de razão natural naufragados dentro da podridão romana. Junto com esses restos vinha a graça de Deus que dava às almas um discernimento, uma apetência de bens sobrenaturais que, de si, a natureza humana não tem, despertando por sua luz, por sua força, mesmo nas almas mais pútridas, ímpetos generosos.

Na luta de séculos entre os mártires e seus perseguidores vemos duas coisas espantosas. De um lado a fortaleza sobre-humana dos cristãos ao suportar tamanhos tormentos. De outro, a crueldade dos algozes.

Causa surpresa ver que instrumentos não cirúrgicos, e sim de tortura, manipulados não por mãos de cirurgiões votados ao êxito da cura e a que doa o menos possível, mas empenhados em maltratar, os quais pegam o ferro quente e põem a fundo, regozijando-se quando o paciente geme, e que cortam, recortam e estraçalham… Que pessoas dotadas da nossa natureza tenham aguentado coisas dessas é um milagre patente! O ser humano não tem forças para isso por sua natureza. Terá vigor para ir a um combate, sempre com a esperança de sair ileso, mas caminhar para a tortura dessa maneira o homem não tem força.

Ora, os mártires aguentam desafiando e morrem na serenidade de suas almas. Como se pode compreender isso sem o milagre? Há, pois, um milagre evidente convidando essa gente a se converter.

Força de Deus que penetra, embebe e toma conta de tudo

Outra coisa que também excede a estatura humana é a maldade dos homens que ordenam essas execuções e as praticam. Dir-se-ia que a criatura humana desce abaixo de si mesma quando faz isso. Encontram-se menos raramente homens que realizam isso, mas que multidões inteiras o pratiquem é inimaginável! Ainda mais multidões do maior, mais civilizado, mais culto e mais rico império que havia na Terra. Essas multidões se entregarem ao prazer de ver o tormento dos outros, essa manifestação de sadismo coletivo que dá a impressão de psicose sem o ser, isso é uma coisa também inacreditável, dentro da qual se vê a ação do demônio combatendo contra a ação de Deus. Esse é um choque maior do que os homens empenhados, de lado a lado, que dá toda beleza ao episódio. A pulcritude do episódio vem de um modo relevante, a meu ver, disto: o choque no qual Deus vence e escarnece do demônio.

Com efeito, ao longo de uma tortura dessas, na opinião pública muitos ficam piores. Entregam-se dessa maneira ao demônio! Alguns ficam melhores. Esses alguns já sabem que, melhorando, vão se expor a uma tortura daquelas, e que o caminho deles é o que estão vendo. Não é como uma conversão de hoje, em que o indivíduo é batizado, o padre felicita, ele vai para sua casa tranquilo; se sua família é católica ainda faz uma festinha para ele. Não é isso, não! Naquela época, o convertido sabia: “Isso vai me levar àqueles padecimentos. Minha conversão está me pondo na fila dos que vão morrer. Está bem, eu entro na fila!” É qualquer coisa de admirável!

Poder-se-ia objetar que o efeito disso na opinião pública é nulo. Uma opinião pública de gozadores e bandidos só pode ser insensível a isso, e jamais os católicos deixarão de ser uma minoria.

Sem dúvida, a aparência era essa. Os católicos viviam por debaixo da terra. Quando Constantino deu liberdade à Igreja e fez um edito mandando fechar os templos pagãos, não houve protestos e tudo acabou, porque, a bem dizer, não havia mais pagãos em Roma.

A ilusão era de que os pagãos tinham a popularidade e todo o poder. De fato, existe uma dinâmica do mal à maneira de um gás venenoso que se dilata e conquista facilmente. Contudo, há uma força de Deus que muitas vezes é subterrânea, não se percebe, mas que penetra, embebe, toma conta de tudo sem que se tenha ideia. Em determinado momento, quando se vai ver, Ele venceu.

Sejamos como São Teodoro e vamos para a frente com coragem!

Isso se dá com os que, em nossos dias, lutam pela Contra-Revolução. Constituem uma minoria açoitada por todas as severidades da guerra psicológica revolucionária; acossada com múltiplas formas de tortura do desdém, da ignorância, da perseguição dos seus mais próximos, e dentro da própria Igreja, de tal maneira que um católico contrarrevolucionário poderia dizer: “Alienus factus sum in domus matris meæ” – Tornei-me um estranho na casa de minha mãe (cf. Sl 69, 9). De tal maneira o contrarrevolucionário é insultado, isolado, ejetado de todos os lados. Dir-se-ia: “Minoria sem futuro, condenada eternamente a ser insignificante e para quem não trabalha a vitória”.

Sejamos nós como “Teodoros” e vamos para a frente com coragem! Quiçá não percebamos, como São Teodoro não notou as conversões que ele mesmo ia determinando; mas uma coisa é verdadeira: o sofrimento dos que padecem por Nossa Senhora é semente de novos cristãos. Eis a lição que São Teodoro nos dá. Rezemos a ele.            v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/8/1981)

Revista Dr Plinio 251 (Fevereiro de 2019)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. v. XIX, p. 261-266.

 

A grande catedral de Deus

Nossa Senhora é o jardim, o palácio, a grande catedral de Deus, inteiramente perfeita, dotada com tais graus de insondável beleza que nos é impossível sequer imaginar.

Alguém que tivesse do universo criado um conhecimento pleno, mas não conhecesse a Virgem Santíssima, seria pouco mais que nada em comparação daquele que ignorasse tudo a respeito da natureza, mas conhecesse a excelsa figura de Maria. De tal maneira a Mãe de Deus é superior a tudo, e sua alma, paradisíaca, repleta de acordes de uma sinfonia celestial.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 2/2/1969)

Para Vos glorificar, ó Mãe!

Sabemos, ó Mãe boníssima, não sermos dignos de nos aproximar de vosso Filho Divino, posto o incomensurável abismo de indignidade que d’Ele nos separa. Porém, maiores do que esse abismo, ó Mãe, são a vossa misericórdia e o vosso amor por todos e cada um dos filhos que tendes sobre a face da Terra, e em especial pelos batalhadores do bom combate que, desde há muito, desejastes  lutassem por Vós e vosso adorável Filho nos dias amargos em que vivemos.

Assim, Mãe Santíssima, vida, doçura e esperança nossa, rogamo-Vos: que a vossa misericórdia preencha esses abismos e faça descer até nós a plenitude da clemência de Cristo Jesus; que a vossa  onipotente intercessão nos alcance a perfeição moral, a integridade de doação e o inteiro cumprimento de nossa vocação — para, desse modo, Vos rendermos a excelsa glória que tanto vos  devemos!

“Gustate et videte…”

Como a maioria dos monumentos medievais, o Mont-Saint-Michel nos arrebata para uma espécie de clave única, apanágio das maravilhas da Idade Média. E o reflexo daquela inocência católica que pervadia as almas e a sociedade dessa época dominada pela Fé.

Candura batismal, luminosa, ponto de partida para a realização de belezas que aspiravam o Céu.

Não duvido que algo de sobrenatural pode pairar sobre uma paisagem abençoada, envolver e penetrar os que nela vivem, assim como a unção de uma imagem da Santíssima Virgem pode impregnar a linda flor que depositamos aos seus pés.

Imagine-se o Mont-Saint-Michel imerso num lindo pôr-de-sol. O entardecer transforma o ar numa espécie de matéria fofa, sutil, delicada, leve, dentro da qual tudo vai se evanescendo. Um imenso repouso se estende sobre os largos horizontes, enquanto nossa mente é embalada por este pensamento: “Felizes os homens que habitam entre essas paredes e aos quais é dado admirar continuamente esse maravilhoso panorama”.

A eles de nos convidarem: “Gustate et videte quam suavis est Dominum” — vinde ver aqui quão bom é o convívio do Senhor… (Sl 33, 8-9)

Sim, uma natureza quase inteiramente absorvida pelo sobrenatural. E pairando acima de tudo, dominador, o Arcanjo — não a imagem na ponta da agulha, mas o próprio São Miguel —, que  transmite a impressão fantástica de grandeza celeste, diante da qual todo o resto nos parece pequeno. Muito pequeno.

Há nele qualquer coisa de ordenativo do espírito, sem nada de cartesiano. Sobretudo, a meu ver, no claustro interno. Poder-se-ia ponderar se este não será ainda mais medieval que a própria silhueta completa do Mont-Saint-Michel, coroada pela abadia. Pois ali, entre as ogivas e as colunatas góticas, encontra-se a manifestação em pedra da razão, da lógica, do bom senso e da sabedoria extraordinárias que reluziram no auge da Cristandade.

Ou seja, nas almas trabalhadas pela graça, as quais, por ação desta, tornaram-se capazes do equilíbrio e da logicidade total expressos na Filosofia de Santo Tomás de Aquino. Assim como capazes da atitude de espírito contemplativa, admirativa, enlevada, tranquila, pronta a rugir como o leão ou a cantar como um anjo, conforme o exijam as circunstâncias que encontre diante de si.

inda posição, meio ilha, meio terra firme. De maneira que, em certas horas, é totalmente ilha, entregue às cóleras e aos furores do mar. Noutro momento, o tempo serena, o oceano reflui, e vê-se  uma mulher com criancinhas atravessar a pé enxuto aquelas areias, galgar as pedras e as escadarias para, lá no alto, render seu preito reconhecido pela graça que o Arcanjo lhe alcançou.

Dali a pouco, quando as sombras do entardecer se projetam sobre ele, o Mont-Saint-Michel se conserva altaneiro no meio de uma paisagem onde só há crepúsculo e águas que o cercam…

 

Obediência e entusiasmo

Dr. Plinio discorre sobre a estreita relação existente entre a obediência a Deus, a seus Mandamentos e aos legítimos superiores, e o entusiasmo, sem o qual nenhum ato sobrenatural atinge sua perfeição.

 

Examinando bem a ideia que, muitas vezes, é difundida a respeito do modo de ser católico, nota-se que as pessoas não percebem que amar a Deus sobre todas as coisas significa amá-Lo com entusiasmo, pois só nos entusiasmamos com as coisas que colocamos acima de todas as outras.  E não existe modo de amar a Deus sobre todas as coisas, que não seja dar a Ele todo o entusiasmo de nossa alma.

Obediência e alegria do entusiasmo

Ora, qual é o termômetro do entusiasmo? É exatamente a obediência. Quando a pessoa está muito entusiasmada, percebe o quanto ela se une com aquilo que a entusiasma, obedecendo. E ela tem aí um calor, um timbre, um amor de obediência todo especial, que leva sua alma inteira. Tanto mais que São Tomás afirma que um mínimo resíduo de felicidade o homem precisa ter, senão ele não aguenta a vida. E, mais do que tudo, o que faz aguentar a vida e ser feliz é a alegria do entusiasmo, por amor de Deus.

É entre esses entusiasmados que se vê o frescor do espírito, o calor da alma, a ligeireza das mentalidades, o voo, a deliberação, o gesto, a força de impacto, etc. E se o homem não tem a alegria desse entusiasmo, ele começa a subestimar, a sofismar, a relaxar, decair, degradar-se, tudo passa a ficar pesado e ele não aguenta a obediência.

Contaram-me um episódio da vida de Santo Inácio, que eu já ouvira falar: um noviço estava conversando, embevecido, com Santo Inácio. Vendo o noviço encantadíssimo, o Santo Fundador lhe diz: “Vá fazer tal coisa!” O noviço não caiu logo em si, e Santo Inácio acrescenta: “Não pode o amor ser maior que a obediência. Portanto, estás errado!” E lhe deu uma penitência severíssima.

Diante dessa atitude, o entusiasmado fica encantado e pensa: “Oh, que retidão, que precisão! Que sagrada intransigência! Que maravilha!” Reação do homem sem entusiasmo: “Que ruim é Santo Inácio! Eu estava tão embevecido ouvindo-o e ele fez essa brutalidade comigo!” Quer dizer, esse homem não tem fogo e não é capaz de compreender os píncaros da perfeição e da virtude.

Como cumprir os Mandamentos

Por vezes, nas aulas de Catecismo, os Mandamentos são apresentados com o seguinte fundo de quadro: “Os Mandamentos são duros, mas é preciso aguentar, porque Deus tem o direito de mandar. Ele poderia ter sido mais misericordioso e ter feito os Mandamentos mais leves. Não os fez, e quem os cumpre, afinal de contas, vai para o Céu. Se não cumprir, vai para o Inferno; está revelado. Portanto, aguente e gema! Peça a Nossa Senhora, que de vez em quando Ela atenue um pouco. Isso é assim, então comece a praticar a Religião!”

Ora, isso não é entusiasmo. Resultado: não se praticam os Mandamentos.

Cumprem-se os Mandamentos no entusiasmo! “Não pecarás contra a castidade!” A reação da alma diante disso não pode ser a seguinte: “Ih! Mas como é duro hein?! Como aguentarei?” Perdeu a batalha. A atitude tem que ser outra: “Oh, castidade, que beleza tens! Como és magnífica! Que píncaro! Claro, não pecarei!” Assim se guarda a pureza.

“Não mentirás!” Deus tem horror à boca mentirosa, diz a Escritura. Servir-se dos lábios e da língua, dons tão preciosos de Deus; da voz, símbolo tão magnífico da alma humana, para mentir, utilizar isso para um objetivo contrário à finalidade natural querida por Deus, que infâmia! Mas a veracidade… O varão veraz, que diz as coisas como são, que magnífico! O entusiasmo leva à verdade.

Nosso Senhor no Horto das Oliveiras

O entusiasmo é algo tão magnífico que ele se parece com o Sol, até mesmo quando este entra em ocaso. Mas, uma coisa é o pôr de sol do entusiasmo, outra é a moleza do decadente. Não se confundem.

No pôr de sol do entusiasmo, a vontade de se sacrificar, o desejo de ideal continua intacto, embora o indivíduo não sinta nada. E o modelo disso é Nosso Senhor Jesus Cristo no Horto das Oliveiras. Depois que eu tenha mencionado isso, o único jeito é dobrar os joelhos, porque o Modelo é tão sagrado que não há outra coisa para dizer. Ele não estava na alegria de sua alma nessa ocasião.

São Francisco de Sales o disse bem: Jesus só tinha a alegria na fina ponta de sua alma. No resto era um mar de desolação. Mas, como Nosso Senhor aceitou o sofrimento! Bebeu o cálice, aguentou a Paixão e morreu para aquilo que Ele tinha resolvido morrer! Isso é entusiasmo!

Mas para sermos capazes desse entusiasmo na dor, precisamos ser muito capazes do outro. Quer dizer, ter na alegria e na força de nossa alma o entusiasmo no sentido corrente da palavra. Nossa Senhora saberá, quando vier o momento, como nos introduzir no entusiasmo do sofrimento. Nademos nesse entusiasmo corrente, porque essa é a hora dele.

A Igreja é a causa de nossa alegria

Como manter o entusiasmo?

O nosso entusiasmo visa como fundo de quadro, evidentemente, a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana. Ela é a causa de nossa alegria. Tudo quanto se diz de Nossa Senhora, “mutatis mutandis”, pode-se afirmar da Igreja. E poder-se-ia fazer uma saudação à Igreja, invocando a “Salve Rainha, Mãe de misericórdia”. Talvez com muito poucas modificações, caberia à Igreja perfeitamente a oração Salve Rainha, que é uma saudação a Nossa Senhora. Inclusive se poderia pedir, nas orações, as graças da Igreja, porque isso tudo a Esposa de Cristo possui.

Não basta conhecer a teoria

Entretanto, andam em erro aqueles que imaginam que, a partir de uma concepção doutrinária a respeito da Igreja, um homem recompõe a imagem do que deve ser o verdadeiro católico. Seria mais ou menos como uma pessoa que estudou a teoria da arte e se capacitou nela, mas nunca foi a um museu, nem viu uma obra de arte, jamais fez uma consideração artística in concreto. Aqueles meros princípios artísticos, por mais que sejam lógicos, convincentes, verdadeiros, bons, não são suficientes para a criação artística; há um passo que a mera teoria não transpõe. E é preciso ter visto a coisa concreta para que o espírito também se aplique sobre ela, e verifique a afinidade da coisa concreta com os conhecimentos doutrinários que adquiriu. E, em consequência, julgue-a boa, analise-a adequadamente e a incorpore ao seu cabedal intelectual.

As falsificações manipuladas pela Revolução

Na época atual não temos apenas uma dificuldade muito grande em ver a doutrina da Igreja viva em pessoas, mas recebemos também contrafações, falsos modelos. E a realidade de nossa situação seria como a de um homem a quem se tivesse ensinado a teoria da arte, mas meio falsificada, de maneira que ele percebesse haver muito de verdadeiro ali, mas algo lhe causasse estranheza. E isso fosse ilustrado por museus de arte moderna, com a arte falsificada. Ele, naturalmente, sairia desses museus com contraimagens, contrafiguras ajustadas a uma doutrina meio falsificada. Compreendemos assim a dificuldade desse cérebro gerar a ideia do que é uma verdadeira obra de arte.

E é isso que sucede conosco porque, devido à Revolução, temos a mente literalmente povoada, até nos últimos pormenores, de ideias, impressões e clichês falsos. E uma obra de saneamento interno, para a aquisição da plena fidelidade, supõe que a Providência mande homens que fiel e adequadamente simbolizem aquilo que ensinam. Quer dizer, eles devem ensinar o que verdadeiramente a Igreja ensina, e simbolizar aquilo que Ela ensina.

Como é que eles simbolizam?

A mentalidade de um católico

Antes de tudo pela mentalidade. Em que sentido da palavra? O mais adequado dos símbolos de Deus é o homem, evidentemente. E quando alguém se refere ao homem, fala de sua mentalidade porque é o mais nobre, o por onde ele é homem inteiramente, porque ele tem uma mente. Então esta mente, configurada como manda a Igreja, como quer Deus, é o melhor símbolo do Criador.

Assim, era preciso que a Doutrina Católica fosse ilustrada com essas mentes à maneira de Deus, quer dizer, à maneira da Igreja. Alguém poderia me dizer: “Mas, há aí um círculo vicioso, porque estar ilustrado com um exemplo concreto à maneira de Deus e da Igreja é ter a doutrina de Deus e da Igreja. De maneira que voltamos à questão, basta ter a doutrina”.

Respondo: Sem a doutrina, nada feito. Mas não se pode dizer que simplesmente com ela tudo esteja feito. Já expliquei e ilustrei, não preciso mais insistir.

Como é que conhecemos a mente de um homem?

Um homem, que é membro da Igreja, não personifica a Igreja inteira nem ele é a Igreja em abstrato. O que é um homem católico?

É aquele que inteiramente, no ponto monárquico de sua alma, disse sim à Igreja. Mas, o que quer dizer aqui “inteiramente”?

Primeiro Mandamento: amor entusiástico

A formulação existente no Antigo Testamento para o primeiro Mandamento é perfeita: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda tua alma e com todas as tuas forças”(1), quer dizer é um amor entusiástico, que exprime o amor inteiro.

Então, o católico está constituído segundo a “arquitetura” harmônica que Deus lhe concedeu e sobre a qual incide clara, luminosa, a luz de Cristo, a luz da Igreja. E, incidindo aí, propaga-se por toda a mentalidade da pessoa, à maneira de algo que vivifica e amolda todo o seu ser. E não é só isso, porque a graça envolve, circunda a alma em mil aspectos, mil circunstâncias da vida, mil ocasiões.

Os santos e o Purgatório

Essa transparência da graça num homem pode ser maior ou menor. Há pessoas que são retas, amadas por Deus, vão para o Céu, mas antes devem passar pelo Purgatório. Tais pessoas têm uma transparência maior ou menor para essa ação da graça.

Segundo foi revelado a uma mística, Santa Teresa de Ávila, antes de subir ao Céu, teve que passar rapidamente pelo Purgatório. E ela havia sofrido na Terra tudo quanto sabemos!

Os teólogos afirmam que os mártires vão para o Céu diretamente, não passam pelo Purgatório. Um São Lourenço, por exemplo, cujo martírio foi horripilante. Ele mesmo vendo as gotas da gordura de sua própria carne caírem dos seus membros sobre o corpo, porque ele estava sendo assado! Após suas costas ficarem completamente assadas, ele disse: “Nas costas tudo acabou, virem-me do outro lado!” Viraram-no de bruços, foi assado e morreu.

Encontro de São Domingos, São Francisco e Santo Ângelo

Essa transparência pode ter, portanto, graus diferentes, segundo as várias almas.

Alguém perguntaria: “Mas, se eu conheço uma pessoa assim e depois posso vir a conhecer várias outras semelhantes, por que hei de optar por uma e não por outras na linha da obediência? Só porque eu fiz um voto? Qual a razão dessa obediência, dessa opção que eu terei feito antes de ter conhecido outros?”

A pergunta está mal feita, porque, quando se trata de almas inteiramente transparentes a essa graça, nunca fazem diferença entre si. E cada uma atrai quem deve atrair, e encaminha quem deve encaminhar àquele ao qual deve ser encaminhado.

Todos conhecem, por exemplo, o famoso encontro de São Domingos, São Francisco e o carmelita Santo Ângelo, numa sacristia, creio que de Roma. Imaginemos que um passante por ali diga perplexo: “Para mim, isso deu esquizofrenia, porque são três tão grandes santos que não sei a qual deles devo seguir.”

Eu lhe diria: “Trate indiferentemente com qualquer um dos três que você verá qual tem que seguir. E se você não vir, ele mesmo indicará: ‘Meu filho, você foi feliz; não é comigo, é com outro que você vai ficar.’”

Há uma linha mestra, uma avenida de clareza onde todas as almas assim se encontram, sem nunca provocarem trombada.

Entretanto, existe um outro dado a tomar em consideração, porque esse é o lado da graça. Há o aspecto demônio, o qual não faz a obra da graça, mas sim da Providência. Por incrível que pareça, isso é assim. E ele, ouvindo-nos falar isso, fica furiosíssimo, porque bem sabe que a obra dele executa os desígnios de Deus.

A tentação coletiva, o demônio social

Foi por desígnio de Deus que satanás tentou Adão e Eva. Não era desígnio de Deus que eles pecassem, mas que fossem provados e, se fossem ruins, merecessem o castigo.

Fala-se muito, em aulas de Religião, da tentação individual, da ação do demônio sobre um homem para induzi-lo ao pecado. Está muito bem lembrado, mas me espanta e lamento que não se diga nada da tentação coletiva; desses demônios que agem simultaneamente sobre os indivíduos de todo um grupo ou setor social, de toda uma sociedade, e levam as pessoas para o Inferno por esse modo.

Nesta época em que se fala tanto do socialismo, da função social da propriedade, do demônio social não se fala. Um modo de completar a virtude para a qual a graça nos convida é a luta contra o demônio, por onde ficamos o contrário daquilo a que ele também nos convida.

Portanto, a graça leva para um lado, e a luta contra a tentação conduz para o lado da graça. E esse é o furor do demônio quando recebe um “pontapé”, porque ele percebe que a alma não se incomodou com a tentação dele, porque fez o contrário do que ele queria.

Estamos numa época onde a tentação social é tão fabulosa, que ela é propriamente o fundo de todas as tentações individuais. Não há uma tentação individual que não esteja maculada, sobre a qual não pese a tentação social, que não seja condicionada por esta; atualmente a tentação social — num certo sentido da palavra — é mais forte que a tentação individual.

O fato de conhecermos pessoas completamente voltadas contra a tentação social, é uma outra graça que nos leva a praticar a obediência em relação a essas pessoas.

Então, retomando o exemplo do artista que conhece a teoria da arte e não a arte concreta, podemos afirmar que um combatente que conheça a teoria da guerra, mas nunca tenha feito guerra não dá nada.

Pelo contrário, se tomarmos um combatente que fez a guerra contra o mal e que se modelou segundo tal guerra, esse merece a nossa confiança.

Esses fatores se somam para que nossa obediência seja entusiasmada. E entusiasmada não só nas boas horas, mas nas horas más, porque essas são razões razoáveis por onde, nos momentos onde decai o entusiasmo sensível, elas estaqueiam. E a pessoa bem estaqueada, na hora do entusiasmo sensível, vai até onde pode e recolhe como fruto que, na hora do entusiasmo não sensível, faz tudo quanto deve.

Espero que o comentário que fiz até agora tenha sido entusiasmado. Mais ainda, espero que tenha sido entusiasmante, porque eu quisera realmente acender o entusiasmo na alma dos que aqui se encontram.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 22 e 23/6/1982)

Revista Dr Plinio 191 (Fevereiro de 2014)

 

1) Dt 6, 5.

 

O segredo da calma

Pelo dom de profecia, Maria Santíssima conheceu individualmente todos os homens que existiriam até o fim do mundo, com suas qualidades e defeitos, e tem para com cada um a misericórdia incalculável da melhor das mães.

Devemos, pois, ter a certeza de que pedindo-Lhe qualquer coisa, obteremos. Pode ser que alguém peça algo que não seja para o seu próprio bem. Neste caso, Nossa Senhora não dará. Porém, até nisso entra a misericórdia d’Ela porque, conhecendo melhor do que nós o que nos convém, a Mãe de Deus nos concede outra graça mais valiosa do que aquela pedida por nós.

Mesmo que estejamos em estado de pecado, a Santíssima Virgem tem pena de nós e nos obtém graças preciosas para nos emendarmos e brilharmos diante d’Ela por toda a eternidade.

Sendo assim, não há razão para ficarmos nervosos e agitados, pois ainda que não compreendamos por que está acontecendo algo de muito triste conosco, devemos estar tranquilos, pois a nossa Mãe vela por nós.

A perfeição consiste, portanto, em manter-se sereno e tranquilo, compreendendo que tudo se faz pela vontade de Nossa Senhora. Aí está o segredo da calma.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/10/1990)

Revista Dr Plinio 239 (Fevereiro de 2018)

Ponto culminante na luta entre o bem e o mal

Depois da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, o mal nunca teve tanta audácia em se mostrar como na Revolução Francesa. Na luta entre o bem e o mal, a verdade e o erro, o belo e o feio, essa Revolução é uma espécie de ponto culminante. Ela pode ser considerada, sob esse aspecto, como um grande e horrível livro no qual se aprendem verdades terríveis e admiráveis.

 

Suponhamos a existência de um palácio tão admirável que, se não tivéssemos conhecido pelo menos em fotografia, nossa mente não seria capaz de imaginá-lo.

Encanto por um belo palácio

Entretanto, obtida uma boa fotografia, a mostrássemos a um colega que nos dissesse:

– Mas que palácio lindo, que fotografia maravilhosa! Você não poderia me emprestar isto durante alguns dias para eu levar para casa?

– Por que olhar isto, qual é a vantagem? – perguntaríamos para experimentá-lo.

– Não sei, isso eleva a minha alma. Vendo esse palácio, esses mármores, essas tapeçarias, esses móveis, o prédio na sua beleza, na sua distinção, em sua imponência, a minha alma como que sobe. E sinto necessidade disto, porque tudo no mundo contemporâneo abaixa, deprime, avilta, corrói, destrói, decepciona. Encontrei algo que produz o efeito contrário na minha alma; isto é o remédio. Se você pudesse me dar uma cópia dessa fotografia, seria a maior obra de caridade que me faria, porque fico encantado com esse palácio.

Notaríamos imediatamente a nobreza de alma de nosso interlocutor e pensaríamos em nosso íntimo: “Certamente vou fazer o sacrifício de dar-lhe essa fotografia, porque ela realiza o papel de um par de asas para a alma dele subir mais alto, até Nossa Senhora, a fim de aumentar os horizontes intelectuais dele e, com isso, seus horizontes religiosos, espirituais. Se esse palácio é uma imagem do Céu na Terra, este pobre coitado, que não tem ideia alguma do Paraíso, ao contemplar esse palácio poderá sentir-se mais elevado rumo ao Céu, para onde eu quero tanto que ele vá.”

Ódio a tudo que é distinto, nobre, elevado

Imaginemos agora o contrário:

Um de nós está folheando um álbum com fotografias do Palácio de Versailles. Alguém se aproxima e pergunta:

– O que tem Versailles de extraordinário?

– Ora, Versailles é uma obra de Deus.

– De Deus não, foi o Rei Luís XIV que mandou o arquiteto Mansart fazer os planos e construir o palácio. Deus não entrou em nada nisso.

– Versailles é filho dos homens, é verdade, mas os homens são filhos de Deus; logo, Versailles é um neto de Deus, como diz Dante Alighieri. Tudo o que existe, direta ou indiretamente, foi feito por Deus. Portanto, admire esse palácio porque é um meio de chegar até o Criador. Pois para amar a Deus que não vemos é preciso amarmos as criaturas terrenas que vemos. Versailles é uma criatura de Deus; amemo-la para amarmos inteiramente a Deus. Você não o acha bonito?

– Sim, e precisamente por isso eu o odeio, porque detesto tudo quanto é nobre, distinto e eleva o espírito.

Aqui estariam delineadas duas visões opostas da vida: uma é a dos filhos da luz, de Nossa Senhora, Ela mesma de uma perfeição, beleza e santidade maiores do que tudo quanto possamos imaginar. A outra é a dos filhos das trevas.

Santa Bernadette era de educação muito primitiva…

No século XIX, na gruta de Massabielle, na cidadezinha de Lourdes, Nossa Senhora apareceu a uma camponesa chamada Bernadette Soubirous, filha de um casal extremamente pobre. Era gente do povo, reta, de costumes muito bons, mas de educação bastante primitiva, porque eram trabalhadores manuais da terra e não tinham contato com nada de superior, de mais elevado.

Um dia em que estava perto dessa gruta, Bernadette escutou uma voz e, olhando para o seu interior, viu uma Senhora de uma beleza admirável. Era Maria Santíssima em pessoa que começou a dirigir-lhe a palavra. A jovem camponesa, com toda a simplicidade, principiou a falar com Nossa Senhora, mantendo as mãos postas na atitude de quem reza.

A Santíssima Virgem deu-lhe uma série de explicações e depois acabou recomendando-lhe que arranhasse a terra ali onde ela estava, pois começaria a aparecer água. A água se tornaria mais abundante e, de um simples filão, passaria a ser uma corrente de água forte, grande; usando essa água muitas pessoas se curariam e ali se tornaria um lugar onde Nossa Senhora seria muito glorificada.

Bernadette imediatamente começou a arranhar o chão, que era uma terra comum. E, para seu espanto, ela viu que de repente começou a minar água, apareceu um regato e formou-se o tal curso de água.

Houve várias visões e Santa Bernadette, em sua ingenuidade, contava para o povo. Então, cada vez que estava marcada uma aparição de Nossa Senhora, um número crescente de pessoas vinha para presenciar o fato.

A Santíssima Virgem só aparecia para Santa Bernadette, a qual falava de tal maneira que se percebia estar vendo alguém, embora os circunstantes não ouvissem as respostas de Maria Santíssima.

…mas se nobilitava quando conversava com Nossa Senhora

Certa ocasião li este bonito depoimento de um padre que presenciou as aparições: ele, que frequentara ambientes da alta sociedade, tratara com gente de muita categoria e vira, portanto, senhoras de muita distinção, declarava nunca ter notado um sorriso tão bondoso, uma atitude tão fina, distinta e amável num rosto feminino, do que em Santa Bernadette quando conversava com a Santíssima Virgem. Portanto, segundo ele, não havia marquesa nem duquesa francesa que se comparasse com a elevação de Santa Bernadette que, nesses momentos, se nobilitava inteira e ficava com uma distinção extraordinária. Terminada a conversa, ela voltava imediatamente a apresentar a fisionomia tosca de uma simples camponesa.

Esse pormenor das aparições de Lourdes mostra bem o quanto Deus ama tudo aquilo que é distinto, nobre, que se parece com a Mãe Santíssima d’Ele, a mais perfeita das criaturas.

Há uma canção na qual Nossa Senhora é invocada como “summi Regis palatium” – palácio onde habita o sumo Rei. Ela é comparada a um palácio porque o Verbo de Deus, ao encarnar-Se, habitou dentro d’Ela. Durante todo o tempo em que o Corpo sagrado de Nosso Senhor esteve sendo gerado e desenvolvido pela Santíssima Virgem, até o momento do nascimento, Ela foi o palácio de Cristo na Terra, mais excelente e magnífico do que todos os palácios reais e de tudo quanto se possa imaginar, porque feito para abrigar Aquele que é o próprio Deus feito Homem.

Explosão de ódio contra tudo quanto é grandioso, nobre, legítimo, bom

Isso posto, compreende-se que se daquelas duas mentalidades opostas acima descritas – uma favorável e outra contrária à existência de palácios – se constituíssem dois grupos de homens, eles entrariam em luta um contra o outro, porque um amaria e outro odiaria tudo quanto é verdadeiro, bom e belo. Teríamos uma luta tremenda parecida com a batalha entre São Miguel Arcanjo e os Anjos bons, de um lado, e os demônios capitaneados por Lúcifer, de outro lado.

Ao se revoltar contra Deus, Lúcifer, até então o anjo que conduzia a luz, tornou-se trevas e a mais hedionda das criaturas, pois odiou Aquele que é a Verdade, o Bem e a Beleza.

Essas considerações resumem o sentido da Revolução Francesa. Todos os elementos de verdade, bondade e beleza existentes na Terra antes dessa Revolução foram construídos, organizados por pessoas dotadas de um espírito voltado para Deus, que eram segundo o Criador e amavam o verdadeiro, o bem e o belo.

Em sentido oposto, a Revolução Francesa foi a explosão do ódio daqueles que detestavam tudo quanto é grandioso, nobre, legítimo, bom, e queriam estabelecer um mundo chulo, desordenado, imoral, sem fé.

Tal Revolução foi uma revolta dos homens que se deixaram dominar pelo Inferno, para acabar com tudo quanto era elevado, belo e bom na Terra.

Por essa razão, como não queriam que houvesse reis, rainhas, nobres, palácios, grandeza nem beleza, estragaram aqueles parques, quebraram ou roubaram os objetos do palácio, espandongaram os lustres, despedaçaram os espelhos. Aprisionaram a família real, culminando, após meses de tormento e de abominação, na condenação à morte do Rei Luís XVI, da Rainha Maria Antonieta e de uma irmã do Rei, Madame Elizabeth, dando início ao período histórico chamado do Terror, em que bastava alguém ser nobre para estar condenado à morte.

A mais distinta, elevada e sofredora de todas as damas do século XVIII

Para encerrar, conto um fato que ilustra bem o espírito que animava a Revolução Francesa.

Morto o Rei Luís XVI, a Rainha ficou viúva. Chegou o dia de ser apresentada ao tribunal para ser julgada, e ela queria muito salvar a própria vida para defender seus filhos, ainda crianças, pois não queria que estas fossem educadas pelos revolucionários.

Então Maria Antonieta preparou um discurso no qual ela mesma realizava a sua defesa, enquanto os revolucionários iriam apresentar testemunhas que fariam acusações falsas contra ela.

Certa noite, os revolucionários invadiram o recinto onde seu filho dormia. A mãe, embora fosse uma dama frágil, lutou contra eles fisicamente para defender o menino, mas afinal não pôde resistir, e os revolucionários o raptaram, tendo ele passado meses sem ver a mãe.

Estabelecido o tribunal revolucionário, o menino entra como testemunha para depor contra a própria mãe. Ele calçava tamancos ordinários muito grandes, dentro dos quais puseram palha para não caírem dos pés; estava bêbado e ao ver a mãe não teve o menor sentimento de afeto, permanecendo parado com uma cara abestalhada.

O presidente do tribunal disse a ele:

– Menino, conta aqui a todas as pessoas presentes os crimes que a tua mãe cometeu contigo.

Haviam ensinado para ele, como a um autômato, a mais infame das coisas. O menino disse que sua mãe o tinha iniciado na imoralidade.

Maria Antonieta ouviu aquilo e, diante dessa acusação torpe que todo mundo via ser uma calúnia, notando que a galeria estava cheia de mulheres do povo, disse: “Eu apelo a todas as mães da França para que digam se acreditam nessa acusação”.

As mulheres bateram palmas à Rainha a mais não poder.

Contudo, era o período da Revolução Francesa em que se dizia ser a época da liberdade, mas na realidade imperava a tirania. O presidente do tribunal, que deveria declarar inválido o testemunho de uma criança bêbada, sobretudo quando ela diz algo que ninguém podia acreditar e apenas provava a infâmia dos acusadores, entretanto deu ordem para retirarem da sala todas as mulheres, a fim de evitar que aplaudissem novamente Maria Antonieta. E, por fim, condenou-a à morte. Assim morreu a mais distinta, elevada e sofredora de todas as damas daquele século.

Podemos afirmar que o mal nunca teve, depois da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, tanta desfaçatez, tanta audácia em se mostrar, como na Revolução Francesa. De maneira que na luta entre o bem e o mal, a verdade e o erro, o belo e o feio, essa Revolução é um episódio central e uma espécie de ponto culminante. Não compreende os fatos que vieram antes nem depois quem não analisa a Revolução Francesa assim. Ela pode ser considerada, sob esse ponto de vista, como um grande e horrível livro no qual, entretanto, se aprendem verdades terríveis e admiráveis.            v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/4/1993)

Revista Dr Plinio 239 (Fevereiro de 2018)

 

Adoração da Pessoa de Nosso Senhor

Nosso Senhor Jesus Cristo sempre foi o padrão supremo em função do qual Dr. Plinio concebia a verdade, o bem e a beleza de todas as coisas, como também o relacionamento humano.

A escola filosófica pela qual o conhecer a biografia do filósofo não interessa em nada, limitando-se em considerar as ideias dele, priva-se de alguma coisa que a Providência dá ao homem no conhecimento da verdade, da beleza e do bem.

Pedra angular

O indivíduo que trata de um assunto põe ali, ainda que não queira, notas da sua luz primordial(1) e do atraente que para ele esta possui, por onde o lado bom dele é conhecido no que tem de mais profundo.

Aristóteles, por exemplo, poderia pensar em Deus como “Causa Primeira” e, se ele fosse fiel, fazer disso o que se poderia chamar a sua luz primordial.

Já São Paulo dizia que não pregava a não ser Jesus, e Jesus crucificado(2). Por quê? Porque no Apóstolo todas as considerações de Aristóteles sobre Deus chegavam até Alguém que existiu, e que é Nosso Senhor Jesus Cristo na unidade de sua Pessoa e na dualidade de suas naturezas, em Quem São Paulo via, mais completamente do que Aristóteles, aquilo que o próprio Aristóteles dissera. E o Apóstolo pôde afirmar: “Vivo, mas não eu; é Cristo que vive em mim”(3), em vez de dizer: “É Deus que vive em mim”.

No meu espírito, o caminho pelo qual a contemplação da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo me levou à consideração da sociedade temporal, foi um modo especial de analisar o “bonum, o verum, o pulchrum”. Mas o elemento fundamental é a contemplação da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo na dualidade das naturezas humana e divina.

O que há de mais profundo na minha alma é essa visão religiosa da Pessoa de Nosso Senhor. Essa é a pedra de ângulo a partir da qual todo o “verum, bonum, pulchrum” se deslinda.

Em menino, fazendo a análise psicológica de Nosso Senhor

Em presença de Nosso Senhor Jesus Cristo, o que minha alma sentia, tendo a notícia d’Ele que pode ter uma criança com três, quatro anos? Qual era essa primeira cognição, e como era esse primeiro ato de adoração?

Eu O considerava através das imagens que via em mais de um quarto de minha casa, de um livrinho de Religião para criança, do que mamãe contava d’Ele, da História Sagrada, etc.

Dona Lucilia não falava do Credo diretamente, mas o que ela dizia pressupunha o Credo e o ato de Fé, que era o ponto de partida. Mas ela não criava, nem de longe, o problema: “Eu vou provar que a Igreja Católica é verdadeira…” Porque ela considerava que, ao contar a história, já estava provando ser verdadeira. E para a criança é realmente assim.

Eu tinha a sensação evidente de que Ele era o Homem-Deus — porque mamãe, ao tratar disso, deixava claríssimo —, e procurava fazer uma análise psicológica de Nosso Senhor.

Ele era de uma elevação de cogitações e de vias absolutamente excelsa! Os critérios segundo os quais Nosso Senhor considerava todas as coisas eram de uma superioridade que deixava qualquer outra pessoa sem nenhum paralelo possível. Ele ficava desde logo numa altura inacessível ao homem.

Olhando para Ele, eu compreendia o que, no Homem, resplandecia de divino. Mas, de fato, eu entendia que era uma elevação própria a Deus e que a humanidade d’Ele estava numa atitude permanente de contemplação e adoração da divindade das três Pessoas da Santíssima Trindade.

A partir disso, Nosso Senhor tinha um contato com todas as almas, porque, estando naquela altura e sem as limitações de um simples ser humano, Ele conhecia todas as outras almas, sabia o que acontecia com cada uma delas e intervinha dentro de todas. Sua superioridade Lhe dava o direito ex natura rerum(4) a esse contato.

Naturalmente, tudo isso em mim era muito implícito. Não imaginem um menininho de quatro anos fazendo pedantemente essas digressões. Mas, explicitando agora, noto que era isso.

Fuga do bom para o ótimo

O próximo ponto da minha meditação é: de que natureza era essa ação de Nosso Senhor? Como Ele toma contato com essas almas?

Não posso saber como é nos outros, mas posso perceber como é esse contato de almas estudando-o em mim. Eu me sinto, antes de tudo, elevado algum tanto acima de mim mesmo, por ver essa grandeza do ser e do cogitar d’Ele.

De onde se abre em mim uma luz no cogitar e no ver, que me extasia, porque algo em mim é feito para olhar mais do que eu. E quando saio da minha vida de menininho e percebo algo em mim que vê mais do que eu, que é mais do que eu, tenho a impressão de que eu escapo, fujo do bom para o ótimo, ponho-me ali na ponta dos pés e me alegro.

Outro ponto: eu noto que, ao mesmo tempo em que contemplo assim essa vida existente em Nosso Senhor — que é um pensar, um querer, um sentir —, Ele me faz como que tocar com as mãos no pensar, no querer e no sentir d’Ele. E isso me comunica, com a elevação própria a isso, uma retidão e uma santidade do pensar, do querer e do sentir, as quais são como um remédio que eu bebesse, e na hora de sorver essa bebida deliciosa ela me agradasse sobremaneira, mas ao mesmo tempo me corrigisse.

Fico compreendendo que devo ser assim, por uma dupla ação: primeiro porque, vendo como Ele é, eu O adoro. E, em segundo lugar, porque, adorando-O, noto que coisas tortas em mim, que eu nem percebia serem tortas, se endireitam, e com isso Nosso Senhor me cura de coisas que me tornavam doente sem eu saber.

Entrevendo a luta que aparece no horizonte

Daí me vinha uma ideia da qual eu propriamente não fugia, mas não fixava muito a atenção nela. Não quero me acusar de uma imperfeição que não estava em mim, mas desejo mostrar que ali havia uma raiz de imperfeições proveniente do pecado original.

Então eu percebia que naquela hora aquilo era delicioso, mas quando passasse o mais intenso disso, essa ação corretiva ser-me-ia duro manter. E, portanto, em certo momento eu teria que sofrer e lutar muito.

Eu tomava conhecimento dessa realidade, mas, à maneira de uma criança, pensava: “Bem, ainda não chegou a hora, e aqui está tão bom, que deixo isso para depois”. Tinha mais curiosidade de fixar a minha atenção no que Deus estava me mostrando — sem saber ser Ele Quem mostrava — do que naquilo que eu poderia deduzir por mim mesmo, e que era o combate. Por isso, eu apenas entrevia e deixava meio de lado.

E, olhando para os meninos com quem eu vivia, notava que alguma coisa dessas Jesus fazia em suas almas também, mas eles davam muito menos atenção. E eu tinha certa ideia de que era culpa dos outros, uma indecência.

Também aí nota-se o começo da luta que ia aparecendo no horizonte, mas isso não me empolgava como empolgou mais tarde.

Como ainda não via neles o mal, mas apenas um bem menor, eu não pensava no futuro disso. Sentia um vácuo que eu gostaria que fosse muito diferente, mas não um choque que me levasse diretamente para a luta.

Ação direta e ação supletiva

Vinha-me outra ideia que em termos atuais eu exporia assim: “Ecce quam bonum et quam iucundum habitare fratres in unum — Eis como é bom e alegre que os irmãos morem juntos.”(5) Eu formava com aqueles meninos um todo tão alegre e agradável que me levava a concluir: “Como isso é bom! Mas o é, sobretudo, porque há neles um efeito da ação de Nosso Senhor Jesus Cristo!” Eles não eram inimigos de Nosso Senhor, não tinham estabelecido um corte de relações com Ele. Assim, eu me sentia posto na minha situação própria e natural: contemplando Nosso Senhor Jesus Cristo na Igreja Católica — cuja noção começava a aparecer no meu espírito —, em mim, em mamãe — muitíssimo, mas muitíssimo! — e nos que me circundavam também.

De maneira que era um mundo todo católico dentro do qual eu sentia a complementação normal da felicidade, que me dava a contemplação de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Detendo-me por um instante nesse ponto, pode-se ver a noção que nascia aqui implícita: a condição normal do homem para adorar a Nosso Senhor Jesus Cristo, receber sua influência, ser como Ele, enfim, viver, é contar com a harmonia e a ação supletiva dos outros. Tomando em consideração que a parte do bem que Nosso Senhor Jesus Cristo não me fazia diretamente, Ele a exercia por meio dos outros.

Então, Ele com cada um tinha uma ação direta, e depois uma ação supletiva, por meio dos outros. Aqui entrava o pressuposto da sociedade temporal cristã: a Cristandade.

O meu lar, os meus parentes, todas aquelas famílias que moravam no bairro dos Campos Elíseos, aquilo tudo eu considerava como sendo igualmente bom.

Era o mito de uma Cristandade sustentado por uma série de aparências boas que o mundo ainda tinha naquele tempo, e que eu supunha habitadas pela influência de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Um sol que não cessava de brilhar

Eu via, por exemplo, uma dona de casa sair da igreja com quatro, cinco filhinhos que se seguravam pelas mãos; ela tomava as mais criancinhas, na ponta estavam os mais velhinhos, e ia conversando e vigiando. Atrás, com uma bengala debaixo do braço, segurada pelo castão, vinha o pai, com ar grave de quem os defende contra qualquer ataque que pudesse ocorrer. Era um defensor que pairava acima de todos.

Tudo tão direito, tão normal, Jesus Cristo tão presente em tudo isso, que me dava a ideia de que, para ser inteiramente “cristiforme”, o conveniente era que tudo em torno de mim fosse “cristiforme” também.

Depois veio a Primeira Comunhão, com suas graças características, o conhecimento mais exato da Doutrina Católica recebida em cursos regulares de Catecismo, da História Sagrada.

Comecei a observar a Igreja e ver que nela, e em tudo quanto eu conhecia do passado, do presente e do que estava profetizado para o futuro, Nosso Senhor Jesus Cristo habitava e Se fazia sentir de um modo especial por uma ação que eu ainda não sabia chamar-se graça e que era como um sol que não parava de brilhar.

Daí a ideia — complementar do convívio com meus próximos — de uma grande instituição que era a fonte dessa ação de Cristo sobre os homens. E meu ambiente tinha aquelas características devido ao fato de ter aderido a essa fonte, pois era um ambiente católico.

Em última análise, até minha ligação com Nosso Senhor Jesus Cristo se devia a isso: Ele tinha esse nexo com a minha alma porque eu era católico. Enfim, eu possuía a noção clara de encontrar Nosso Senhor Jesus Cristo dentro da concha sagrada da Igreja. Mas não apenas como se alguém dissesse, por exemplo: “Jesus está na casa do centurião Cornélio.” Ali está Ele, mas os arredores da casa não têm nada a ver com sua presença. Não era isso. Eu notava que, na Igreja, a presença de Nosso Senhor ilumina tudo e transfigura as coisas por dentro. Por isso, na Igreja Católica até a soleira da porta era uma coisa santa, pois algo da ação d’Ele estava presente ali. Quantas e quantas vezes eu tive vontade, antes de entrar numa igreja, de me ajoelhar e oscular a soleira da porta, pensando: “A partir daqui começa a casa d’Ele!”

Ato de humildade

Certa vez vi uma pinturazinha com a inscrição “Hæc est porta cœli”, e pensei: “Mas é claro, a porta do Céu é essa. E Plinio, preste atenção! Você é objeto da ação dessa graça, é trabalhado por ela e a ama tanto; está perfeitamente bem. Mas você tem seus doze anos e já sente as garras dos seus defeitos. E deve sentir também que as suas resistências resultam de alguma coisa que existe de fundamentalmente mau em você, e que procura separá-lo disso. E que, portanto, você é ruim. Essa graça o torna bom, mas lhe vem de fora para dentro. E, propriamente, você não é digno de nada disso. Agradeça o fato de, apesar de ser ruim, Nosso Senhor Jesus Cristo ter permitido tudo isso para você. Compete-lhe, pois, um sentimento profundo de sua maldade e de sua indignidade, e querer oscular a soleira da porta compreendendo que você se honra com esse gesto, pois não seria digno nem sequer disso.”

Ao fazer essas considerações, eu sentia sobre mim um efeito curioso: percebia Nosso Senhor mais distante, mas atuando muito mais profundamente em mim. Depois vim a saber tratar-se de um ato de humildade. Eu carregava meu ato de humildade com todas as minhas forças, por me sentir, por causa disso, mais perto d’Ele. O objetivo era sentir essa proximidade.

Eu entendia de um modo confuso que se bocejasse em cima dessa indignidade e pensasse: “É verdade, mas Nosso Senhor me admite. Portanto, vamos passar por cima de tudo isso porque, de repente, Ele se dá conta de que isso é mesmo assim, e me expulsa!” Seria como querer fraudá-Lo. E se eu fizesse isso, começaria a apagar-se a Fé Católica na minha alma.

Então, tomei como princípio o seguinte: Quanto mais eu martelar nessa indignidade e a tiver em vista, mais estarei próximo d’Ele. Então martelo até me arrebentar para me unir tanto quanto eu quisera! Eu quisera unir-me mais! Mas, tanto quanto posso, martelo mesmo!

À vista disso, eu tanto martelei que, possuído a fundo dessa ideia, tomei o hábito, por exemplo, de oscular as imagens apenas nos pés, porque não era digno nem disso; a imagem era benta e os meus lábios não eram dignos disso, por causa dessa radical maldade existente em mim, que me tornava objeto explicável da repulsa divina.

Provações contra a pureza e o choque com a Revolução

Com isso ia me sentindo mais unido a Ele. Nunca com vontade de fugir! O que estava na minha mente é que só Nosso Senhor tinha palavras de vida eterna, e que, portanto, era preciso estar com Ele. Depois, eu não saberia viver a não ser assim.

Começa a época das provações contra a pureza, do choque com a Revolução. Portanto, o medo, a tentação da fuga, os instantes, eu não diria de desânimo, mas como que o momento da falta de energias e de mobilização própria para entrar na luta.

De outro lado, na linha da luta contra os revolucionários, o esforço é tão enorme! E ver-me de repente, não naquela espécie de paraíso de Cristo vivendo em todos, mas, pelo contrário, uma realidade que é como se o demônio vivesse em todos, com exceção de poucas pessoas. Então, a necessidade de lutar. Mas, a preguiça de lutar!

Como eu me privava do agrado, do deleitável, do contato amistoso, jovial e engraçado com os outros, das alegrias despreocupadas da minha infância, sentindo-me quase um moço velho e fanado pelas provações, pelos problemas, pelas reflexões! Entretanto, eu tinha dez, onze anos! Era a minha posição diferente do mundo inteiro! Eu me resolvo a arcar com essa luta?

O lado da consciência do mal, que no fundo era a voz da humildade, me dizia: “Veja, hein, quando você de tal maneira se descarregava sobre si próprio, que razão você tinha… Veja bem quem é você!”

Mas se sou assim — pensava eu — não sou sequer digno de rezar a Nosso Senhor, de levantar meus olhos a Ele, nem de me aproximar d’Ele. E Ele me rejeita com um desprezo tanto mais magnífico quanto mais magnífico é Ele! Isso tanto é assim, que se Ele não me rejeitasse eu não O adoraria! Eu O adoro na rejeição que Ele faz de mim e na punição que Ele me dê, porque aí vejo que Ele era Quem eu pensava. Mas, de outro lado, como arranjo esse caso?

Aparece o ”arco-íris”

Aí apareceu o “arco-íris”: Nossa Senhora! Na Igreja do Coração de Jesus, o “sorriso” da imagem de Nossa Senhora Auxiliadora e a compreensão: Tudo isso daria, aparentemente num caos. Mas não é um caos, porque Ele mesmo, superior a tudo quanto eu podia pensar d’Ele, excogitou esse meio, deu-me a Mãe d’Ele para minha Mãe!

Ali está a solução! Sendo eu ordinário como sou, é a solução para sempre. Porque se eu não me apegar a Ela, tudo está perdido! Mas pelo trato, pelo jeito, pela bondade d’Ela, sinto que, por eu ser tão ordinário, tão fraco, tão ruim, ter essa semente de mal em mim tão marcada como eu vejo, Ela tem uma pena especial. E enquanto meço a profundeza das minhas chagas, Ela sorri para mim e como que me diz: “Meu filho, é verdade, você tem razão. Mas muito mais Eu sou boa do que você é ruim! E passo por cima disso, o afago, lhe quero bem, trago-o para junto de Mim.”

Daí brotar de meus lábios: Salve Regina, Salve Regina, Salve Regina! E daí também o sentido da palavra “salve”: o de me salvar! Eu não a considerava como uma saudação; não estava pensando em protocolos na hora em que eu naufragava. Era S.O.S.! “Salve Regina…”

Esse era o aspecto “vida interior” de algo que transbordaria, no contato com a vida, numa noção da Cristandade, num conceito completo de Revolução e Contra-Revolução.

Qual é o papel do “verum, bonum e pulchrum” — de que eu falava há pouco — nessa visão das coisas, da sociedade temporal e da luta entre a Revolução e a Contra-Revolução, cuja noção foi-se desenvolvendo paralelamente com isso?

Ardor no conhecimento do verum

Há nisso tudo um enlevo constante em relação a Nosso Senhor Jesus Cristo. Não sei se é correta a palavra “enlevo”. Tenho certeza de que a palavra “adoração” é inteiramente suficiente — e talvez só ela seja suficiente — para indicar a disposição de nossa alma em relação a Ele.

Mas, na própria adoração, o que prepondera? A consideração do “verum, do bonum ou do pulchrum”?

É uma coisa evidente que no ato de adoração existe simultaneamente um abrasamento no conhecimento do verum, um amor entusiasmado e comovido ao bonum, e um deslumbramento pelo pulchrum.

Nosso Senhor mesmo, como Ele é veraz! Como é verdadeiramente o Homem-Deus! Como na unidade da Pessoa d’Ele habitam duas naturezas, e como isso é reversível, ordenado, perfeito! E, sobretudo, o que é Deus ali dentro, que coisa fantástica!

De outro lado, que natureza humana perfeitíssima! E como o encontro da natureza humana com a divina é admirável!

O verum aqui está não só em que isso é assim, mas numa outra coisa: como tudo é coerente dentro disso! É lógico, deve ser assim! E, portanto, um entusiasmo da verdade possuída.

Como é esse entusiasmo? Não é um entusiasmo exclusivamente silogístico: “Eu raciocinei e cheguei à conclusão”, porque o ato de Fé em mim precedeu de muito esse raciocínio; mas é uma espécie de evidência meio mística dada pela Fé, que o raciocínio apologético vem calçar depois, mas não vem suprimir; vem servir a essa ação meio mística dada pela Fé.

De tal maneira que eu ouço pessoas falarem na firmeza das minhas convicções. Tenho vontade de sorrir, e dizer: “Você não entende nada. Fale da firmeza de minha Fé!” Porque a partir da firmeza da minha Fé, no que eu dela deduzo, tenho muita certeza; ali eu piso com sapato de ferro, porque não tenho medo de peso nenhum! No que eu não deduzo, não tenho essa certeza.

Por outro lado, também o modo categórico com que distingo uma coisa má de outra boa. A boa deve ser praticada, favorecida, estimulada, louvada. A má deve ser execrada, detestada; deve-se viver no reconhecimento e na desconfiança constante do mal que aquilo representa, numa atitude a mais policialesca que se possa imaginar contra esse mal, pegando-o e triturando-o implacavelmente.

Pulchrum e simbolismo

Sobre o pulchrum, o que dizer?
Como o pulchrum é o término do trajeto, nele se vê o verum e o bonum, e se acaba proferindo a palavra: pulchrum. Mas essa palavra não exclui o verum e o bonum, ela os contém com a luz própria a cada coisa.

Então, o pulchrum é o esplendor da verdade e do bem, com mais algo; não significa que ele não existe. Ele é ele; mas me levava a dizer, numa espécie de ousadia de pensamento, que talvez houvesse entre o verum, o bonum e o pulchrum uma relação análoga — à maneira de um reflexo — à existente entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

O pulchrum tem no meu pensamento grande papel. Inclusive porque ele tem qualquer coisa de sensível, mas este próprio sensível precisa ser entendido.

São Tomás define o pulchrum como: “aquilo que, visto, agrada”. Houve a aplicação de um sentido. Por exemplo, olhei e aquilo me agradou aos olhos. Isso é o pulchrum.

Na palavra “agrada” entra algo que funcionou assim em mim a vida inteira. Depois cheguei a perceber o lado de Doutrina Católica que há nisso, e que ocupa o meu pensamento.

O sensível tem esse papel — ao qual eu sou muitíssimo aberto e tenho até uma necessidade enfática de alma — de discernir nas coisas o por onde elas simbolizam a Deus e a Nosso Senhor Jesus Cristo. De maneira tal que, não tendo esse simbolismo, elas não me interessam.

Um palácio, mesmo uma igreja que não tenha esse simbolismo, para mim diz muito menos do que poderia dizer uma cabana com uma expressão simbólica muito grande.

O simbolismo é uma analogia entre uma coisa e determinada perfeição de Deus, por onde eu, pelos sentidos, como que vejo essa perfeição de Deus. E minha alma é sedentíssima disso.

Algo me agrada, sobretudo, enquanto caminho para perceber naquilo um símbolo de Deus, ou seja, um reflexo criado de Deus que completa o que as graças de ordem mística fazem perceber.

Então, o que as pessoas alcançam pela graça o símbolo faz de algum modo perceber também pelos sentidos, iluminados pela graça. O pulchrum é o delectabile(6) espiritual, simbólico e digno de ser tocado pela graça.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/4/1989)

 

1) Aspiração para contemplar as verdades, virtudes e perfeições divinas de um modo próprio e único, pelo qual uma alma ou um povo dará sua glória particular a Deus. Sobre este assunto, ver Revista Dr. Plinio, n. 54, p. 4.
2) Cf. 1Cor 1, 23; 2, 2.
3) Gl 2, 20.
4) Do latim: pela própria natureza das coisas.
5) Sl 133, 1.
6) Do latim: deleitável.