A boa oração é sempre atendida

Encerrando a série de seus comentários ao livro de Santo Afonso de Ligório – “A oração, grande meio da salvação” –, Dr. Plinio relembra e responde algumas objeções que poderiam ser levantadas acerca do valor das nossas preces e da propícia disposição de Deus para com elas.

 

Lemos na Escritura, sobretudo nos Evangelhos, muitas afirmações a respeito da eficácia da oração. Uma das mais famosas é: “Pedi e recebereis, procurai e achareis, batei e abrir-se-vos-á” (Lc 11, 9).

É a lição da parábola do homem que dorme e que, à força de ser importunado pelo vizinho a lhe bater à porta, atende o pedido deste (Lc 11, 5ss).

Ao explicar a parábola, Nosso Senhor comenta: “Quem de vós, se um filho pede pão, lhe dará uma pedra? Ou se pede peixe, lhe dará uma serpente? Ou se pede um ovo lhe dará um escorpião? Se vós pois, que sois maus, sabeis dar bons presentes a seus filhos, quanto mais vosso Pai que está nos Céus concede o bom Espírito para aqueles que o pedem”.

Por que confiar no valor da oração, se nem sempre é atendida?

Se essas palavras devessem ser tomadas “quadradamente” ao pé da letra, como se tratando de uma promessa absoluta de Nosso Senhor, a conclusão é que todas as nossas orações são sempre  atendidas.

Ora, a experiência nos mostra que nem todas são atendidas; logo, dir-se-ia que essa promessa não pode ser tomada ao pé da letra. “Então qual o valor dela?” — perguntará alguém. “Se Deus se reserva ressalvas ao fazer uma promessa, fica-se mais ou menos desnorteado quanto à sua validade.” Certa vez alguém me confidenciou: “Eu não rezo porque Deus não me atenderá, pois Ele quer que eu passe por uma prova”.

Trata-se evidentemente de uma atitude errada. Mas vê-se que a pessoa tinha uma dificuldade que pode ser expressa no seguinte raciocínio: “Se estou doente e peço a Deus que me cure, ou se estou tentado e peço que a tentação cesse, que grau de confiança posso ter no atendimento de meu pedido? O próprio São Paulo rogou três vezes a Deus que afastasse dele as tentações e não foi  atendido, pois a tentação era  uma dádiva para ele. Vale então a pena eu pedir?” O problema acima está posto em termos bem agudos e rudes. Mas é um problema lógico que exige solução, com o objetivo de compreender melhor o valor da oração e a atitude de Deus para com quem reza.

Poucos são os livros de piedade que consideram essa dificuldade inteiramente de frente. Em geral, fazem considerações muito abstratas e não fornecem uma explicação satisfatória. Tive de refletir bastante para chegar às conclusões que enunciarei a seguir.

O pedido que nunca é recusado

Em primeiro lugar, na oração devemos distinguir duas  espécies de pedidos. Há aquele que Deus atende sempre, no sentido mais rigoroso da palavra, isto é, o de nossa santificação, perseverança e salvação eterna, desde que nossa oração seja insistente. Porém, mesmo nesse caso há conformes. Pois isso não implica que se obtenha imediatamente o que pedimos. Há pessoas que se julgam no direito de fixar prazos a Deus. Elas não compreendem que Deus pode tardar em conceder as graças que imploramos, pois quer provar a nossa paciência e confiança.

Ele pode querer que passemos por provações terríveis, antes de nos conceder o que pedimos. Conheço almas que quanto mais rezam, tanto mais acreditam naufragar. A solução para elas não é parar de rezar, mas orar com maior empenho. Pois quando Deus lhes conceder a graça pedida, fa-lo-á com juros. Na minha experiência de vida espiritual eu afirmo que esse trato de Deus para com essas almas é um sinal de verdadeira predileção por elas.

É preciso que essas almas tenham confiança, esperem contra toda a esperança, sabendo que um dia obterão o que pedem, em vista da promessa de Nosso Senhor: “Em verdade, em verdade vos digo, tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, Ele vô-lo concederá”. A expressão “em verdade, em verdade” equivale a um verdadeiro juramento de Nosso Senhor.

Discernindo as vias da Providência

Tendo criado o homem com inteligência e livre arbítrio, está nos desígnios da Providência que ele não só utilize esses dons para progredir na vida material, mas também para buscar a própria  santificação.

A inteligência humana, servida como por um instinto que vem da graça, encontra condições para realizar um reto juízo a respeito de tudo quanto se refere à vida espiritual. A cada homem Deus dá   uma noção do que lhe convém para a sua salvação. Não se trata de uma noção genérica, mas de uma noção aplicada à sua vida pessoal concreta.

Mas a medida de segurança e de clareza que as almas têm no conhecimento de suas próprias vias, varia muito de uma para outra.

Há algumas às quais Deus concede uma clareza excepcional a esse respeito, enquanto outras vêem num lusco-fusco. Isso depende da pedagogia de Deus com cada alma.

Assim, por exemplo, àquelas que por seus defeitos naturais seriam muito tentadas de orgulho, Deus concede pouca clareza nesse discernimento, a fim de que não repousem sobre si, e sejam  obrigadas a rezar muito para poder ver com clareza como se conduzir, bem como a consultar e a seguir a direção espiritual de um outro homem, que tem mais discernimento do que elas.

De fato, nos casos em que as certezas são tênues, ou em casos de dúvida, Deus completa essa noção por meio da abalizada orientação de diretores espirituais.

A ação do Espírito Santo nas almas

Quando posso ter confiança de que meus pedidos serão ouvidos por Deus?

É precisamente quando, por efeito de uma graça interior de discernimento, tenho certeza de que minha solicitação corresponde aos caminhos traçados por Deus a meu respeito. Então devo pedir com toda confiança, porque Deus quer me conceder o que Lhe rogo.

Há, evidentemente, outros meios de comprovar qual é o caminho que Deus escolheu para mim: são certos sinais e circunstâncias que confirmam a certeza interior inicial. A confiança adquire  então um fundamento lógico, e a promessa de que nossa oração será atendida se aplica nesse caso estritamente.

As certezas quanto às vias de Deus nascem às vezes de revelações interiores como, por exemplo, no caso de Santa Joana d’Arc. Nascem também, por vezes, não de revelações, mas do conjunto de inspirações postas pelo Espírito Santo na alma. Santa Teresinha do Menino Jesus tinha certeza absoluta de que todas as suas irmãs seriam religiosas e rezava ardentemente para que o fossem, sem condicionar suas preces a outros desígnios de Deus, pois estava convicta de estar pedindo o que Deus queria dar. Esta é a fé que move montanhas, tanto no primeiro caso, como no segundo.

Essas certezas interiores, quando são obra da graça do Espírito Santo, revelam-se tão fortes que não são passíveis de dúvida. Em outros campos da vida espiritual elas também se manifestam, como por exemplo naquele famoso episódio de São Mauro, discípulo de São Bento, que em certa ocasião caminhou sobre as águas por ordem do abade para salvar o menino Plácido que estava se afogando. Uma ação especial da graça, por meio de imponderáveis, lhe disse no interior da alma que ele devia seguir o caminho da obediência naquela circunstância. Foi tal a eloquência da voz interior, que não titubeou um instante, e inclusive operou um prodígio. Essa é a fé que move as montanhas.

Sentir os “imponderáveis” e ouvir as vozes interiores

É preciso estar atento a esse instinto interior que nos mostra o que a Providência quer nos conceder em concreto. Pois Deus tem caminhos muito diferentes para as almas. Santa Teresinha do Menino Jesus, por exemplo, tinha como propósito “nada pedir e nada recusar”. Ora, ela que tinha essa praxe, é a Santa que mais atendeu pedidos, cumprindo seu projeto de passar o Céu  derramando sobre a Terra uma chuva de rosas. Sua via espiritual era de nunca pedir nada, mas ela estimulava as pessoas a que pedissem.

Não estava na via de Santa Teresinha fazer o que Santa Escolástica fez. Esta soube, por revelação, que a morte de São Bento estava próxima. Certo dia em que o Abade a visitou, insistiu com ele  que não fosse embora mas permanecesse ainda algum tempo conversando. São Bento foi terminante e decidiu se retirar. Ela então rezou, e uma tempestade tremenda impediu que São Bento a deixasse.

Há muitas mansões na Casa do Pai Celeste. Compete à alma discernir sua própria via, e pedir as graças que Deus quer lhe conceder.

Mas é preciso considerar que há um certo lusco-fusco, ao qual Deus nos quer deixar sujeitos, e que torna possível um engano na interpretação dessa voz interior. Foi o que se deu com Santa Joana d’Arc. Por tudo quanto se diz da sua vida, parece que ela não imaginava morrer queimada, como término normal de sua carreira. É frisante, nesse sentido, em certa ocasião ela ter saltado da torre  onde estava presa, para tentar fugir, chegando mesmo a se machucar. Ela não compreendeu, mas resignou- se à vontade de Deus, o que é o mais importante.

Esses lusco-fuscos existem, e é preciso nos habituarmos a eles. Geometrizar a vida espiritual, ou nos enervarmos com ela, é agir contra o regime estabelecido por Deus.

Por outro lado, se é verdade que interiormente posso me enganar, como no caso de Santa Joana D’Arc, não quer isso dizer que não devo confiar no que me é dado conhecer interiormente sobre o   meu caminho. Meu diretor espiritual pode se equivocar em relação a mim, mas isso tampouco quer dizer que a direção espiritual não valha nada. Essa alternativa, infalibilidade ou zero, está evidentemente fora da linha da Providência.

A boa oração é sempre respondida

Esses princípios, quando aplicados à oração para obter bens materiais, ensinam-nos que é preciso ter confiança de que seremos atendidos quando há razões ponderáveis para julgar que o que  pedimos é bom e conforme à vontade da Providência.

E se fizermos nosso pedido a Deus, em maneira condicional— que é como deve ser — e Deus não nos atender, saibamos que nos dará qualquer outra coisa. Pois nossa oração nunca ficará sem ser atendida, mas nos trará algum benefício, que inclusive pode ser maior do que o  solicitado por nós.

Devemos imitar São Paulo que, quando pediu a Deus a libertação das tentações que sofria, o fez com a predisposição de aceitar a vontade de Deus de não atendê-lo e mantê-lo exposto à vexação para o bem de sua alma.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Bom gosto…

Embora se trate de um tema delicado e pouco passível de consenso, o bom gosto envolve, contudo, uma circunstância que eu diria indiscutível. Explico.

Quando consideramos as nações nas quais floresceram renomados sistemas artísticos, percebe-se que estes não foram elaborados por especialistas, senão num sentido muito particular da palavra. Podemos comprová-lo nas expressões da cultura católica e da civilização cristã, como também nas de outras civilizações que enriqueceram, com seus belos contributos, o precioso acervo artístico da Cristandade.

Por exemplo, é inegável o valor de certas obras de arte da China e o bom gosto que as modelou, conferindo-lhes tal formosura que são dignas de figurar, no Ocidente, em qualquer palácio real, imperial ou mesmo pontifício. Assim, em diversos lugares nos é dado admirar jarros, tapetes, marfins, gravuras, leques e, de modo todo particular, porcelanas engendrados pelo talento chinês.

Quanto a estas últimas, narram as crônicas que teriam sido descobertas pelos jesuítas na China: maravilharam-se com o produto e desejaram trazê-lo para a cultura ocidental. Não lograram, porém, que os artistas chineses lhes revelassem a fórmula e os procedimentos para elaborá-lo.

Mas, a conhecida sagacidade dos filhos de Santo Inácio não se desarmou diante daquela recusa. Zelosos apóstolos e astutos observadores, ao exercerem seus trabalhos de missionários junto ao povo, notaram que outras pessoas, mais humildes, também confeccionavam porcelana. Com finura e tato, eles acabaram por obter da gente miúda o segredo dessa arte tão esplendorosa. Na primeira oportunidade, enviaram à Europa a fórmula e toda espécie de objetos chineses, para que os ocidentais tivessem ideia das possibilidades de cultura e de civilização que aquela China lhes oferecia.

Não tardou muito, e os europeus começaram a fabricar sua própria porcelana. Surgiram as magníficas peças francesas, inglesas, alemãs e outras, de extraordinária categoria, que logo passaram a competir com a preferência pelos objetos à base de metais preciosos. As baixelas de ouro e de prata, até então soberanas, viram-se ombreadas pelos delicados aparelhos de jantar, pintados em matizes róseos e níveos, bordejados de azuis e vermelhos intensos, ornados de pinturas com paisagens bucólicas, com buquês e guirlandas de extremo bom gosto. Bom gosto…

Plinio Corrêa de Oliveira

Imagem da eternidade

Imaginem um pássaro que, de cem em cem anos, passasse uma vez pelo Pão de Açúcar e roçasse com o bico aquela montanha, de maneira a retirar um pouquinho de farelo. Quantos séculos levaria esse pássaro para destruir o Pão de Açúcar?

Pois bem, quando o Pão de Açúcar estivesse desfeito, a eternidade ainda estava no começo, porque não tem fim…

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/10/1989)

Imagem da eternidade 

Oração: Ação de graças pelo sofrimento recebido

Ó minha Mãe, eu Vos agradeço por me terdes dado esta ocasião de sofrer por Vós, e Vos digo: quero esta dor! Eu a desejo porque Vós assim o quereis; e a desejo durante o tempo que Vós quiserdes! Ajudai-me na minha debilidade para que eu possa carregar esta cruz como Vós entenderdes. Eu a osculo como Nosso Senhor a osculou no momento de colocá-la sobre os ombros, porque desejo tudo sofrer.

Eu ficaria desolado se minha vida fosse sem cruz. A vida sem cruz é uma vida sem Vós e, portanto, aceito a cruz de todo o coração. Tenho a alegria de receber este sofrimento em união convosco e para Vos agradar.

Dai-me, ó Mãe, o amor e o senso da cruz!

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 5/12/1967)

Venerável nascente da Cristandade

Muito do que se tem admirado da Civilização Cristã ao longo dos séculos, e se admirará até o fim dos tempos, pode-se dizer que nasceu de uma gruta. Aberta no meio de montes ásperos e  íngremes, ela abrigou o jovem Bento de Núrsia, que ali se refugiara para encetar sua vida contemplativa. Nela, ele forjou sua magnífica e santa alma de patriarca.

E dela se irradiou a Ordem Beneditina, da qual floresceu o movimento cluniacense, do qual, por sua vez, brotou a sociedade católica medieval. Uma gruta, portanto, imensamente venerável.

Trata-se de Subiaco, a “tintura mãe”, a fonte de onde jorrou a água da cristandade européia ocidental, de cujo desenvolvimento nasceriam a América e todas as expansões católicas pelo mundo.

***

As montanhas se sucedem e se encontram em vértices acentuados. Nenhuma delas cai de modo bonito. Nenhuma desenha as flexões e de flexões suaves dos montes da Baía da Guanabara. São  elevações agrestes, justapostas pela mão do Criador, não se conhecem, não são amigas umas das outras, e mais parecem dilaceradas diante do firmamento. Para que servem?

Para o vazio, para a aridez, para o isolamento dos homens chamados a viver na solidão. Ali, o religioso se sente imerso na terra abandonada e rude, pois para ele a existência neste mundo nada reserva.

O seu viver é olhar para o Céu: “Pater Noster qui es in coelis, sanctificetur nomen tuum”…

***

A gruta… É muito bonito, poético até, dizer que São Bento encerrou-se ainda moço numa gruta. Porém, o peregrino que visita Subiaco surpreende-se ao contemplar aquelas pedras ríspidas — em todo o sentido da palavra ríspida — com as quais o jovem ermitão teve de conviver. Pouca ou nenhuma beleza as distingue. Todas parecem uma amálgama constituída em épocas pré-históricas, quando ainda escorriam à maneira de cera de vela, acumulando-se na desordem, e na desordem se petrificando, depois de calores e frios espantosos. Tudo é desconforto, tudo é solidão, tudo é Céu! Devemos imaginar São Bento vivendo aí, lendo, meditando, rezando, talvez sem se dar conta de que, naquele fundo de rocha, a Cristandade européia estava nascendo.

***

As construções, por sua vez, erguidas com certa irregularidade, apresentam no seu conjunto uma beleza indefinível, ressaltada pelo fato de se confundirem com penhascos estupendos, que têm algo de profético, pois neles parece encerrar-se todo o futuro da ordem beneditina.

Arcarias românicas servem de arrimo para os grandes edifícios do mosteiro. Arcos que transmitem uma idéia de lógica, de força, de calma, que têm seu encanto próprio, e mesmo uma certa majestade. Refletem eles algo da retidão, da despretensão e da robustez da alma do magnífico Patriarca.

A um canto, o pequeno campanário, singelo e modesto, mas suficiente para abençoar aquelas solidões, na aurora e no pôr do sol, com o timbre do seu bronze a saudar a Virgem Santíssima nos  toques do Angelus.

***

Dir-se-ia que o ambiente próprio para ser o berço da cristandade medieval deveria ser mesmo essa solidão predestinada, na qual o espírito humano se compraz em imaginar que a vegetação, as grandes árvores, os penhascos e as ondulações do terreno eram impregnadas de graças vaticinadoras do que adviria para a Europa nos séculos medievos.

E ainda que São Bento não soubesse nem previsse tudo o que estava por nascer, ele tinha entretanto seus anseios e ideais de uma civilização cristã. E todas aquelas montanhas, pedras e penhascos repercutiam os seus ideais; e os ventos, quando ali sopravam, pareciam cantar os seus anseios.

Resultado, quando hoje se visita Subiaco, procura-se interrogar aqueles montes e quelas grutas que ouviram os ecos dos passos de São Bento, os soluços e os prantos dele durante as crises e  tentações, o sussurro de suas preces e os seus cânticos de alegria. Procura-se, enfim, sentir de algum modo as ressonâncias de uma história que lá se passou, de um futuro que lá se engendrou, e perceber os reboares de bênçãos e graças que ali reinaram, que ali ainda palpitam.

Em Subiaco, tem-se a impressão de que se toca o Céu com as mãos. Mais ainda. É o Céu que baixa à Terra e inunda os homens com sua bondade, sua sacralidade e sua grandeza.

 

“Passou pela vida praticando o bem”

Ao discursar como paraninfo do Colégio Arquidiocesano, em 1936, Dr. Plinio exalta o ideal do catolicismo autêntico que, diante do mundo posto na alternativa de decidir por Cristo ou contra Ele, não transige nem se intimida, proclamando sua Fé com enérgica e inquebrantável tenacidade.

 

Permiti que esta oração, que nasceu do âmago de meu coração e contém o mais sincero de meus sentimentos, seja dirigida, em nome da gloriosa mocidade católica, que tenho a honra de representar nesta solenidade, aos meus jovens amigos, os bacharelandos do Colégio Arquidiocesano, de 1936 . (….)

As gerações que precederam a esta, que hoje ingressa na vida, então divididas em campos antagônicos. Uma imensa divergência intelectual separa seus expoentes mais representativos. Do alto das cátedras universitárias e das tribunas parlamentares, através das colunas dos jornais ou das páginas dos livros, pela palavra ampliada ao microfone ou abafada no segredo das confabulações políticas, procuram os professores, os escritores e os estadistas do presente traçar os rumos por onde querem guiar o Brasil.

Não se iludam, porém, os pregadores de ideologias boas ou más, construtoras ou demolidoras: sua doutrinação só será fecunda, na medida em que ela penetrar no espírito e no coração das gerações novas. A estas é que pertence o futuro. Para onde ela se orientar, orientar‑se‑á o Brasil de amanhã. Os pregadores de doutrinas não são, hoje em dia, senão meros advogados de causas santas ou de causas fraudulentas. À nova geração, é que incumbe a augusta função de juiz. (…)

A crise da adolescência

Pouco têm escrito sobre [a crise da adolescência] os sociólogos e os historiadores. Não importa. Tratemos de analisar esta crise, de lhe apontar as origens, de lhe investigar os efeitos, e chegaremos à conclusão de que nela se encontra uma das causas mais ativas de grande catástrofe do mundo contemporâneo.

A crise da adolescência é, em via de regra, o fato culminante daquilo a que se poderia chamar a história interior de toda a humanidade, nos últimos cem anos. É na diferença das atitudes tomadas por nós e nossos avós perante esta crise, que se encontra, em grande parte, o segredo da radical oposição entre o século XIX e o século XX, na filosofia, na sociologia, na política, na literatura e nas artes.

Nos cento e poucos anos que medeiam entre a queda de Napoleão e os dias que vivemos, a sociedade tem educado a infância em princípios que, geralmente, são cristãos.

Faça‑se a estatística do número de adolescentes que, anualmente concluem o curso em colégios católicos, e ter‑se‑á uma ideia da extensão que a influência cristã tem na formação da infância contemporânea. Por mais que, em nossos dias, os fatores do ambiente contrariem esta influência, ela ainda é considerável. E muito mais considerável ela foi nas gerações anteriores tão céticas quanto a nossa, mas mais respeitadoras — por espírito de tradição, se quiserem — da moral cristã.

No século passado, como neste século ainda, o lar e o colégio, os dois principais ambientes em que transcorre a infância, foram guiados, em via de regra, por um espírito que, ora mais ora menos intensamente, apresenta matizes cristãos.

No colégio católico, a doce figura do Cristo irradia sobre os alunos o esplendor de sua harmonia moral. Por mais que essa irradiação seja inconscientemente recebida como muitas vezes ocorre, ela não deixa de ser real. O Cristo que se contorce em sofrimentos e em súplicas pela humanidade, no Crucifixo do refeitório, o Cristo que, no altar da Capela, aponta aos alunos o seu peito entreaberto, no qual pulsa um coração abrasado de amor, o Cristo cuja doçura e cuja imensa misericórdia são ensinadas na aula de Religião, exerce sobre os alunos uma impressão profunda, a que não se furtaram nem sequer os campeões da impiedade do século XIX.

No lar, o Cristo também figura como um protetor benigno e supremo dos interesses domésticos. É à sua bondade, que se deve toda a felicidade da família. É à sua clemência, que a família recorre nos momentos amargos da provação. É à sombra de sua lei, que florescem castamente as afeições domésticas, é d’Ele, que emana o ambiente de pureza sem o qual a vida da família não é possível.

O Cristianismo floresce no ambiente doméstico, não apenas pela eficácia do culto que aí se pratica, como na carícia casta de mãe, da irmã, na austeridade do pai, e na inocência da vida dos filhos.
No século XIX como no século XX — aliás, no século XX menos do que no século XIX — é esta a regra geral.

O jovem entra num mundo que prega uma lei oposta

Mas, com a adolescência, rompem‑se os véus que ocultavam à infância o verdadeiro aspecto da vida moderna. E o jovem, afeito a um ambiente de Fé e de pureza, se vê forçado a ingressar inesperadamente em um mundo que prega uma lei diametralmente oposta à que ele aprendeu a respeitar. (…)
Ao adolescente, educado no amor da Fé e da pureza, a sociedade dirige, no limiar da vida, uma frase que é a antítese da do famoso bispo de Reims: “curva a cabeça, cristão, queima o que adoraste e adora o que queimaste.”

Se o adolescente tiver o heroísmo de resistir, o mundo o apupará como um covarde. Se tiver a covardia de ceder, aplaudi‑lo‑á como um herói.

Esboçando em largos traços o panorama da crise da adolescência na sociedade semi‑cristã dos últimos cem anos, não tive a pretensão de enquadrar, nesta descrição, com todos os seus detalhes particulares, a imensidade de aspectos diversos que, segundo as circunstâncias de tempo e lugar, essa crise pode assumir.

A necessidade de optar por Cristo ou contra ele

Em todos estes aspectos, no meio de tantas variantes, só quis destacar um traço fundamental, que se conserva invariável. Hoje como ontem — e, repito‑o, ontem muito mais do que hoje — a influência da Religião se exerce sobre a infância, de modo todo particular. Essa influência, que a sociedade moderna tolera por um resto de Fé ou de tradição, entra em choque com as exigências do ambiente que rodeia a mocidade. Deste choque, nasce para os adolescentes a necessidade de optar por Cristo ou contra Ele. Mais consciente em uns, menos consciente em outros, esta necessidade se impõe a todos. E é nas lutas íntimas que esta opção provoca, que consiste, em síntese, a crise da adolescência.

Nesta crise, como procedeu o homem do século XIX? Colocado na contingência de optar pelo Cristo ou contra Ele, que partido tomou?

Um e outro. Ou melhor, nem um nem outro. A atitude do século XIX, na crise da adolescência, foi sobretudo, uma atitude de vacilação. Desta vacilação nasceu a grande característica do século, que foi a incoerência.

É peculiar ao Catolicismo uma admirável harmonia entre sua doutrina religiosa, seus princípios morais e suas diretrizes sociais. Não é possível negar a primeira, sem atacar os fundamentos dos outros. Como não é possível rejeitar a esta, sem se colocar em oposição flagrante com aquela. O monolito, desde que seja fragmentado, deixa de ser monolito. O Catolicismo, desde que seja privado de uma de suas partes deixa de ser Catolicismo.

Não percebeu isto o século XIX. E exatamente por isto, na imensa vacilação que foi a causa de sua incoerência fundamental, o século XIX raras vezes chegou a repudiar completamente o Cristo pela boca de seus principais pensadores.(…) E não foi diversa a atitude da generalidade dos homens. A maior parte deles admirava a moral cristã, exigindo dentro do lar a sua rigorosa observância. O que não era obstáculo a que negasse os princípios religiosos em que se estribava esta moral, e se julgasse livre de a violar na vida extraconjugal. A família continuava a viver cristãmente, ainda mesmo depois de perdida a Fé. Como dizia Renan, a sociedade do seu tempo conservava vestígios do Cristianismo, sem conservar a Fé, como um vaso que tem por algum tempo o perfume das flores que dele retiraram.

Outros, faziam o contrário. Conservavam a Fé mas desprezavam todas as conseqüências morais que dela decorrem. Católicos na igreja e no lar, eram pagãos na política, na vida profissional e, sobretudo, na vida extraconjugal.

Espíritos fragmentados, admirando verdades a que não obedeciam, ou obedecendo a princípios que não aceitavam, os homens do século XIX tinham dentro de si o imenso mal‑estar que a prosperidade material apenas conseguiu anestesiar, e que tumultua necessariamente no coração de todo homem que não estabeleceu dentro de si o reinado da coerência. (…)

Repúdio à incoerência das gerações passadas

O século XIX admirava a “fé do carvoeiro”, na sua simplicidade e na sua pureza. Mas ridicularizava como preconceito inconsciente a Fé do cientista. Admitia a Fé nas crianças. Mas condenava‑a nos jovens e nos homens adultos. Quando muito, tolerava‑a na velhice. Exigia a pureza para a mulher. E exigia a impureza para o homem. Exigia a disciplina para o operário. Mas aplaudia o espírito revolucionário do pensador.

Evidentemente, contradições tão profundas deviam gerar crises íntimas, de grande intensidade. Em geral, foi em crises assim, que se formaram todos os agitadores que, no século XIX, atearam na Europa o incêndio dos ideais revolucionários. E foi também em crises assim, que se formaram quase todos os grandes convertidos ao Catolicismo, que proclamaram bem alto, contra o mundo e o século em que viviam, a sua Fé na Igreja de Deus.

Os acontecimentos dramáticos de que o século XX tem sido ator e testemunha, só concorreram para precipitar o desenlace desta crise.

Cada vez mais, a atitude de incoerência das gerações passadas vai sendo repudiada pelas gerações presentes. A bem dizer, nas gerações que despontam, só se deixam governar pela moral fragmentária do século passado os insuficientes, os displicentes, os indiferentes. (….)

Pregadores infatigáveis do grande ideal

As falanges marianas são, no Brasil, um exército quase inumerável de moços que, em um combate de todas as horas e de todos os minutos, pugnam pelo Cristo e pela civilização, contra o mundo contemporâneo que rola pelo abismo da anarquia, impelido pela força de seus próprios vícios. (…)

Pela palavra, pelo exemplo, pelo estudo, o Congregado Mariano é um pregador infatigável do grande ideal pelo qual vive. Indiferente à admiração de alguns como ao desprezo de muitos, ele segue o seu caminho invariavelmente reto, cumprindo o dever, amando o próximo, amando a Pátria, servindo a todos os semelhantes, por amor de Deus. De sorte que, na sepultura de cada Congregado Mariano, a Pátria possa escrever um dia, como epitáfio, aquelas palavras admiráveis que o Apóstolo disse do próprio Cristo Jesus (At 10, 38): “Pertransivit benefaciendo” (Passou pela vida praticando o bem).

Mas o amor ao bem tem como corolário necessário o ódio ao mal. O Congregado Mariano é um inimigo irredutível do mal. Onde muitos se calam, onde tantos se acovardam, onde quase todos silenciam, a voz do Congregado Mariano se ergue altiva e denodada, para estigmatizar o mal, para desmascarar seus partidários, para contrariar os ardis dos inimigos da civilização. Com a mesma indiferença com que enfrenta hoje os sarcasmos e as perseguições, enfrentará amanhã os canhões e as baionetas. Não há barreira que seu idealismo não vença. Não há dificuldade que sua abnegação não supere. Não há obstáculo que prevaleça contra a sua tenacidade enérgica e invencível.

Plinio Corrêa de Oliveira (Excertos do discurso publicado em “Echos”, nº 29, de 22/11/1936)

Prêmio demasiadamente grande

Segundo uma bela e tão razoável tradição, no momento em que a Santíssima Virgem, meditando na figura do Messias profetizado nas Sagradas Escrituras, completou a imagem que Ela deveria  formar a respeito d’Ele, o Arcanjo São Gabriel Lhe apareceu.

Assim, a primeira tarefa de Nossa Senhora foi conceber em seu espírito como seria o Redentor. Que santidade deveria ter a Virgem Maria para, com êxito, imaginar a fisionomia, o olhar, o timbre de voz, os gestos, o caminhar, o repouso do Filho de Deus!

E que alma era preciso ter para, depois disso, receber de Deus esta sentença: “Dedicaste a tua mente a desvendar este mistério, fizeste-o com tanto amor e tanto acerto que Eu Te digo: “Aquele que excogitaste, Tu gerarás!”

Prêmio maravilhoso, como nunca houve nem haverá igual na História! Ele disse de Si mesmo àqueles que fossem fiéis: “Serei, Eu mesmo, a vossa recompensa demasiadamente grande” (cf. Gn 15,  1). Nosso Senhor Jesus Cristo é tão perfeito que até para Nossa Senhora Ele foi o prêmio demasiadamente grande.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/2/1985)

Aspecto democrático em Nosso Senhor Jesus Cristo

Nosso Senhor é Rei de infinita grandeza, seu modo de ser é aristocrático. E, estando presente nos sacrários das igrejinhas espalhadas por toda a Terra, onde atende e conversa com qualquer pessoa do povo, Ele manifesta seu aspecto democrático.

O Magistério da Igreja ensina que das três formas de governo — monarquia, aristocracia e democracia — nenhuma é contrária à justiça e, portanto, à Lei de Deus. Assim, um povo pode optar por qualquer uma delas, conforme entenda, porque todas são lícitas.

A Revolução Francesa quis impor a república em toda a Europa

Foi o que se praticou na Idade Média, em que havia tanto monarquias como cidades aristocráticas sem chefe monárquico — por  exemplo, a República Sereníssima de Veneza, cujo chefe, o Doge, era temporário, eleito pela aristocracia inscrita no livro de ouro de Veneza. Ele mesmo devia ser aristocrata, e substituído ao cabo de dez anos de mandato.

Havia também várias repúblicas democráticas na Idade Média, principalmente as cidades livres na Alemanha, Suíça e Itália, nas quais os plebeus burgueses, trabalhadores manuais elegiam o  governo.

Nunca se sustentou, na Idade Média, a ideia de que uma destas três formas de governo fosse injusta e incompatível com as outras. Por isso, não passava pela mente de ninguém, naquela época, fazer uma cruzada de um país contra outro para impor determinada forma de governo. Pelo contrário, conviviam na maior boa vontade, na maior bonomia, e cada um se organizava como queria, segundo as peculiaridades, as circunstâncias, o transcurso dos acontecimentos históricos e mil outros fatores.

Esta é a soberania pela qual cada um escolhe para si próprio o governo que entende.

Com a Revolução Francesa começaram a aparecer as guerras para impor o regime republicano à Europa inteira. A partir desse momento, estabeleceu-se uma luta das aristocracias e monarquias contra as repúblicas e vice-versa. Mas é porque o movimento republicano passou a ser animado pela Revolução, coisa que não acontecia na Idade Média.

Ora, a Revolução tem uma tese: a monarquia e a aristocracia são formas de governo opostas à dignidade humana e, como tais, contrárias ao Evangelho, à lei de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Portanto, é necessário eliminar, por meio de lutas libertadoras, esses regimes dos povos oprimidos. Alguns inábeis defensores das monarquias e das aristocracias, vendo o caráter intrinsecamente mau do movimento republicano do século XIX, deduziram daí que a república era intrinsecamente má, sem se lembrarem dos precedentes anteriores, nos quais havia tantas cidades livres
republicanas em que a investidura do chefe da república no cargo era feita na igreja, em cerimônia religiosa, assim como a investidura do monarca e do príncipe.

Leão XIII condenou a tese de que a democracia é uma forma de governo injusta e desenvolveu o que estou dizendo aqui, naturalmente com o brilho e com a autoridade dele.

O movimento modernista — heresia secreta que lavrou no tempo de São Pio X, o qual a esmagou com a Encíclica “Pascendi Dominici gregis”, mas renasceu no tempo de Bento XV sob outras formas — sustentava o contrário, isto é, que só a democracia é a forma de governo legítima.

São Pio X condenou severamente essa tese, de maneira que devemos pensar a respeito desse assunto o que o Magistério da Igreja nos indica.

Devemos admirar e tender para o mais perfeito

Entretanto, submetendo a ulterior juízo da Igreja, acrescento a este pensamento o seguinte: São Tomás de Aquino diz que a mais perfeita das formas de governo é a monarquia, sobretudo quando ordenada, composta com a aristocracia e a democracia.

Quer dizer, devem coexistir certos elementos de monarquia, de aristocracia e de democracia dentro das formas de governo. De que modo? “L’Histoire par l’image” (CC 3.0)

O Portugal do Ancien Régime(1), até o século XVIII, por exemplo, possuía isso muito bem distribuído, porque para a direção do reino havia o rei; para a direção da parte rural do país, a nobreza, ainda com os seus castelos, remanescentes vestígios dos antigos feudos; e havia, nas cidades habitualmente habitadas pela burguesia, um regime de foros, que eram liberdades da cidade em relação ao rei e ao senhor feudal, pelas quais se conferia à urbe o direito de governar a si mesma, os seus assuntos internos, desde que não contundisse com as leis do rei, nem com as prescrições do senhor feudal.

Essas liberdades forais eram muito apreciadas, e os estudiosos as têm analisado e considerado muito sábias, variando de cidade para cidade, conforme as circunstâncias de cada uma, a evolução histórica, etc.

Não era, portanto, uma espécie de “saco de gatos” de três formas de governo opostas; tampouco  o sistema inglês: Câmara dos Lordes aqui, Câmara dos Comuns ali, vamos ver para que lado a balança pende… Não era isso. Cada um tinha a sua esfera.

Aliás, um francês definiu a província, a região, assim: esfera de influência de uma grande família. Acho a definição magnífica. No regime misto a que me refiro, o governo do reino é do rei; a  direção da província, da região pertence ao nobre; e a do município, ao povo que nele habita. É tão natural, tão claro, e constitui uma das modalidades possíveis de combinação dessas formas de governo.

Não obstante, parece-me que, sendo a monarquia a forma de governo mais perfeita, embora o povo que não viva em regime monárquico tenha esse direito — e até, se a monarquia não se ajustar bem às circunstâncias dele, ele não deve adotá-la —, é natural que ele tenha uma simpatia e uma admiração prevalente por aqueles povos onde a forma de governo mais perfeita possa se executar e desenvolver as suas excelências.

A humanidade deve, criteriosa e sabiamente, tender quanto possível para o mais perfeito e não pode considerar um título de orgulho estar no regime menos perfeito, como seria o meramente aristocrático ou democrático.

Essas considerações, acrescentadas com a devida veneração aos ensinamentos de Leão XIII e São Pio X, não me parecem contundir em nada com o pensamento deles.

As imagens de Nosso Senhor, elaboradas ao longo dos séculos, e o Santo Sudário

Então nasceria uma pergunta até muito bonita. Houve quem me indagasse a respeito dos aspectos aristocráticos e monárquicos do Sagrado Coração de Jesus. Mas como seria também a  democracia no Sagrado Coração de Jesus? Não vamos ter medo da pergunta.

Haveria dois ângulos pelos quais poderíamos abordar o tema: um seria tomar Nosso Senhor Jesus Cristo como Ele é, e considerar o que de monárquico, de aristocrático e de democrático se irradia n’Ele. Outro ângulo seria o seguinte: tomado, em tese, o ensinamento d’Ele, encontrarmos o fundamento para dizer que em tal passagem ou circunstância Ele manifestou-Se mais favorável a esta ou àquela forma de governo.

De momento, parece-me mais conveniente a primeira fórmula. Nas figuras de Nosso Senhor que eu tenho visto, em fotografias ou diretamente, nas catacumbas de Roma, há pinturas  representando-O, por exemplo, como o Bom Pastor ou em outros de seus atributos, mas não me lembro de pinturas que representem sua Sagrada Face. Não se sabe de alguém que, tendo  conhecido pessoalmente Nosso Senhor, O tenha retratado em imagens. Sou propenso a admitir que se conheciam  suas feições por tradição oral.

Tendo caído o Império Romano do Ocidente, começaram as construções da alta Idade Média, e surgiram as imagens de Nosso Senhor Jesus Cristo cujas feições seriam comprovadas, séculos mais tarde, com a descoberta do Santo Sudário.

Dir-se-ia ser muito explicável que cada povo modelasse o Divino Mestre segundo a imaginação, produto da própria cultura. Entretanto, as figuras elaboradas ao longo de séculos indicam, com  maior ou menor precisão, mas indiscutivelmente, que a Pessoa do Santo Sudário é a mesma representada pelas imagens comuns.

Como se deu este salto por cima dos séculos e se “adivinhou” a figura Sagrada de Nosso Senhor Jesus Cristo? Nunca tive tempo de estudar a fundo isso, mas li o suficiente para fazer uma  conjectura séria, que é a seguinte: Aos poucos, com o auxílio da graça, a piedade dos fiéis foi compondo essa figura.

Pode ter acontecido também que algum Santo ou Santa tenha visto, em uma  revelação privada, e tenha até pintado a figura de Nosso Senhor. Essa imagem agradou enormemente ao senso geral dos fiéis e, por causa disso, foi se espalhando de país em país e sendo aceita por todo o mundo como indiscutível, e assim se propagou por toda a Igreja.

Ora, isso é fruto da graça, uma espécie de revelação privada da verdade, que Nosso Senhor teria dado muito belamente à Igreja, à medida que ela ia se distanciando da vida terrena d’Ele, levada pelo curso da História. Com o passar do tempo, fomos nos afastando dos dias em que Ele esteve aqui presente, de um modo visível, sensível. Para consolar a nossa orfandade, Ele nos deixou, antes de tudo, a Sagrada Eucaristia, mas também o Sagrado Rosto d’Ele, por essas formas de produção, evolução e fixação do senso dos fiéis.

Vemos, por aí, como há mistérios lindíssimos que Nosso Senhor e Nossa Senhora guardam, e que só as posteridades depois vão conhecer.

Maria Santíssima provavelmente conhecia a utilização que a Providência faria do Santo Sudário, mas não creio que os Apóstolos a conhecessem, nem mesmo Santa Maria Madalena; muito menos
Nicodemos ou José de Arimateia.

Entretanto, o Sudário com o qual Jesus foi sepultado seria, dali a dois mil anos, a prova de que Ele tinha estado naquele pano. Assim, na sepultura, morto, Ele estava envolto no documento que comprovaria a sua vinda e o seu futuro.

“Vox populi, vox Dei”

Este aspecto — a meu ver, lindíssimo — dá-nos muito a ideia do caráter de participação popular na vida da Igreja. Não houve um grande homem, não houve ninguém que aparecesse e dissesse: “Ele foi assim”, pintou-O e as multidões caíram de joelhos. Alguém terá pintado, mas o que de fato assegurou a expansão foi o consenso geral, uma espécie de sufrágio universal.

Há uma expressão que diz “vox populi”, vox Dei: a voz do povo de Deus é a voz de Deus. É muito bonito, muito ordenado, muito direito. Dou outro exemplo.

No século XIX a “vox populi” se pôs a cantar o Stille Nacht, e o mundo inteiro a adotou como a música de Natal por excelência, por um consenso universal. Por que se canta o Stille Nacht aqui, na Nigéria, na Libéria e em quantos lugares há na Terra? A história dessa canção está ao alcance de todo mundo; sabe-se qual foi a aldeia alemã em que ela nasceu, o nome do compositor; há até um museuzinho organizado na casa dele. Entretanto, o que fez a celebridade dessa música foi o consenso, expresso por ela, a respeito do que todos sentiam por ocasião do Natal.

Não houve uma bula do Papa mandando cantar o Stille Nacht, nem qualquer outro decreto. Nem se trata de um canto litúrgico. Entretanto, não se compreende uma festa de Natal onde, antes ou depois da celebração litúrgica, não se cante o Stille Nacht.

Vê-se que a mão da Providência não é alheia a isso; muito pelo contrário, graças a Ela chegou-se a esse ponto maravilhoso de consenso popular geral. Mas esta é uma questão tão fina, tão sutil, que seria impossível explicá-la à maior parte das pessoas que, ouvindo o Stille Nacht, puseram- se a cantar também.

O senso é uma coisa diferente do raciocínio quadrado, e um povo pode ter um grande senso até não tendo grande instrução. Essa é, por exemplo, uma forma magnífica de colaboração do fator popular na Igreja.

Na própria infalibilidade da Santa Igreja há certa participação daquilo que eu chamaria de fator democrático. É admitido pela Teologia que Deus não pode deixar cair em erro todos os católicos em todos os lugares. E quando a Igreja inteira, com sua Hierarquia e os fiéis, aceita durante muito tempo determinada doutrina, aquilo é verdade infalível, ainda que não tenha sido explicitamente definida pelo Magistério eclesiástico.

Para que a colaboração popular seja proveitosa e possa dar o seu melhor fruto é preciso saber interrogar o povo e deixá-lo exprimir-se, permitindo que os costumes — que são a boa voz do povo — vão se constituindo.

Uma pessoa que, vendo um vale qualquer, pensasse: “Esse vale e a altura desses montes são semelhantes aos do Roncal. Que tal fazer aqui uns quinze municípios independentes?” Seria uma bobagem. Essas coisas nascem e não têm cópia no mundo inteiro. É a originalidade da coisa popular que não é feita para ser copiada, nascida do profundo dos costumes, do dia a dia, sendo em cada lugar de um jeito.

A meu ver, a voz do povo não se faz ouvir simplesmente por meio de propaganda pelo rádio e pela televisão, convocando depois a população para dar opinião sobre problemas com os quais certas parcelas do povo não têm nada a ver.

Por exemplo, o Governo do Império ou da República no Brasil precisa dispor medidas sobre a navegação fluvial no Amazonas. Ora, o que o eleitor gaúcho, na outra ponta do País, vai entender desse assunto? Entretanto, quando chegar a hora de votar uma lei sobre a navegação no Amazonas, a bancada do Rio Grande do Sul, como todas as outras, vai ter que opinar.

O que o representante dos santistas ou dos cariocas, nascidos no litoral, pode decidir a respeito de problemas do Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais, onde não existe mar? Hoje as coisas entre nós estão organizadas assim, todos os problemas nacionais devem ser objeto de decisão da parte do País inteiro.

Entretanto, ninguém tem tempo de tomar nota de tudo isso. O regionalismo sadio, deixando às várias partes do povo a liberdade de opinar de um jeito ou de outro, tem muitos elementos para a solução dos problemas nacionais. Nesse sentido, eu seria inimigo de quem, no Brasil, fosse separatista. Creio que o Brasil poderia ser mais largo como federação.

Os Estados Unidos têm federação muito mais ampla do que o Brasil e, mesmo assim, parece-me que poderiam ser mais descentralizados ainda, porque aí se ouve a “vox populi”.

Tirar o colete de cem mil leis

Alguém dirá: “Mas o que o senhor pensa do sistema representativo moderno, com votos, câmaras, etc.?” Penso que ele, habitualmente, é menos mau do que as ditaduras. Porém, a meu ver, nem ele nem as ditaduras valem nada. E se me perguntassem qual é a opção entre uma coisa e outra, eu diria: Nada! Eu não tenho nada a escolher nessa bandeja.

A minha sugestão é muito simples: tirar o mundo inteiro de dentro desse colete de cem mil leis em que as pessoas se embaraçam, e deixar a liberdade respirar e organizar a si mesma, sob certo controle, certa vigilância, principalmente num ponto, isto é, que a Lei de Deus seja observada.

Porque se a Lei divina for conhecida, amada e praticada, tudo se arranja; se não for, não há o que conserte nada. Podem assar, cozinhar e fritar como quiserem, sai uma porcaria, seja monarquia, aristocracia ou democracia.

Tocamos, então, no ponto final: Nosso Senhor Jesus Cristo, visto sob seu aspecto democrático. O que quer dizer isto? Considerado enquanto Rei de infinita grandeza, de majestade insondável e de uma bondade tal que Ele mora realmente presente no pequeno sacrário de cada igrejinha no vale do Roncal e de todos os outros “Roncais” que possa haver espalhados pelo mundo, bem como em qualquer pequena aldeia existente nos Andes ou no centro montanhoso do Brasil — enfim, onde for—, ali, pela sua presença eucarística, Nosso Senhor Jesus Cristo fala ao fiel que se ajoelha. É um dom que não tem qualificativo, acima de toda dádiva, uma beleza, uma maravilha!

Pela sua Igreja, Ele ensina a doutrina, alimenta e salva as almas, tornando- as assim bastante ordenadas para que elas constituam, naturalmente, um concerto de grandes e pequenos, como os instrumentos diversos de uma orquestra quando tocam o Stille Nacht. Assim também, todos juntos vão contribuindo com a sua própria opinião para formar o consenso geral. Donde saem as instituições originais, os modos de ser, as peculiaridades de cada lugar, sem que um país se sinta obrigado a copiar nenhum outro.

Deixem vir de baixo para cima o consenso geral, então se estabelecerão as leis e os costumes que duram séculos. O Sagrado Coração de Jesus é a fonte de tudo isso, é a sanidade do povo garantida pela santidade da ação divina d’Ele sobre cada homem”.

1) Ancien Régime

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/12/1985)

Beato Sebastião

A vida do Beato Sebastião de Aparício foi cheia de zigue-zagues, mas sua alma sempre se manteve  no sendeiro da virtude. O universo da santidade é muito mais ordenado, elevado e bonito do que todas as estrelas do céu, as belezas da natureza, as magnificências da arte. Sem santidade o mundo não teria sentido nem graça.

 

No dia 25 de fevereiro comemora-se a memória do Beato Sebastião de Aparício. Sobre ele diz Rohrbacher(1):

Apostolado do exemplo

Nasceu na Galícia, em 1502, de família humilde de simples camponeses. Viveu até rapaz como pobre empregado, entregando suas economias aos pais e santificando essa vida árdua com uma enorme piedade. Embarcou em 1532 para o México, onde enriqueceu utilizando seus conhecimentos de agricultura. Teve êxito também no comércio, mas abandonou a profissão por achá-la  perigosa para a salvação eterna, e voltou à lavoura.

Casou-se duas vezes e nos dois casamentos, com o consentimento das esposas, observou a continência. Dele disse o decreto de beatificação: A Providência não o enviou à América para lá cultivar ciências, nem tampouco literatura, a ele absolutamente estranhas, mas para instigar os novos cristãos, mediante o exemplo, à prática de uma profunda humildade e da perfeição.

Com a avançada idade de setenta anos, renunciou às abundâncias e riquezas  de que dispunha, distribuiu-as pelos fiéis e assim despojado de qualquer bem terreno entrou num convento de  franciscanos da estrita observância. Lá, esquecendo do que deixara no mundo, fez profissão como irmão leigo. A partir de então, persistiu na prática de maravilhosa penitência, de simplicidade de coração, de prece e de fé, de obras de misericórdia espiritual e física, até a idade de noventa e oito anos.

Colheu então o fruto de cooperação com a graça e do fiel e laborioso cumprimento dos deveres religiosos. Embora entrado na vinha na última hora do dia, recebeu o prêmio inteiro que o pai de família prometeu aos que entram nas primeiras horas.

Variedade, unidade, ordem

Costuma-se dizer, a respeito da vida dos santos, que elas são admiráveis por aquilo que têm de parecido e pelo que possuem de diferente. Pelo que têm de parecido  porque indicam a unidade da santidade e a união da obra de Deus. Por aquilo que possuem de diverso, porque a variedade é um elemento complementar da unidade e é fonte, junto com esta, de toda beleza.

Nem sempre se nota que a ordem está apenas na conjugação dos fatores unidade-variedade, mas encontra- se também na conjugação do modo pelo qual as diferenças se completam  harmonicamente, por sua vez reproduzindo a unidade. E podemos então não só nos edificar na consideração da beleza da unidade que há na vida dos santos, quanto na verificação da surpreendente diversidade e da ordem que essas diferenças mantêm entre si.

Todos os estilos e tipos de vida humana honesta e honrada acabam sendo santificados por um bem-aventurado que daquela forma chegou aos altares; e mostrando que Deus tem seus desígnios muito variados a respeito de todos. Quando o Criador quer e a alma corresponde, de fato daí nasce a santidade.

Diversas mudanças em sua longa vida

Vejam como a vida desse Beato é singular. Nasceu pobre, filho de camponeses. Entretanto, vivia com muita piedade, entregava suas economias aos pais, respeitava o domingo. Isso em 1502. Mas em 1532 houve uma mudança brusca em sua vida.

Depois de uma existência muito simples e pobre, de um camponês arraigado na tradição de sua terra, embarca, de repente, para o México que naquele tempo era um lugar de aventura, de riqueza.

Ele sai de uma vida muito ordenada e singela para o pleno tumulto de um quadro de existência completamente novo. Lá ele se enriquece como agricultor.

Nova mudança: entra no comércio, exercendo profissão profundamente diversa da agricultura, e também obtém um êxito extraordinário.

Mais outra mudança: deixa o comércio e volta à lavoura. Por quê? Pela dificuldade de enriquecer honestamente.

Todos sabem como é fácil roubar no comércio. Deixou o estado de solteiro e casou-se duas vezes; e, circunstância imprevista, guardando continência as duas vezes.

Quer dizer, castidade perfeita dentro do casamento. Uma vida toda  de aspectos singulares. O decreto de beatificação acentua o último momento de sua vida: já tinha setenta anos quando entrou
para um convento de franciscanos.

Alguém dirá: só uma pontinha de sua existência… Não, são vinte e oito anos de vida religiosa. Depois de ter dado zigue-zagues de toda ordem, caiu na grande estabilidade de uma ordem religiosa, na qual levou a vida de um religioso. Então, o antigo agricultor, o antigo comerciante, o antigo homem de aventuras, o antigo esposo passa a ser um capuchinho de barba branca tranquilo, gentil, ressumando vida espiritual e morre numa espécie de apoteose.

Perfumou o convento, o México e a América coma beleza de sua vida

Analisando esses zigue-zagues, vê-se que não foram sinuosidades de uma pessoa que andou quebrando a cabeça de todos os lados, nem a correria do gato louco, mas que tudo isto teve uma certa continuidade. Por exemplo, quando se tornou comerciante ele já era tão direito que preferiu deixar o comércio a roubar. Tendo resolvido se casar, teve razões tão elevadas que guardou a castidade perfeita no casamento, e por duas vezes.

A vida dele rolando de todos os lados, mas sua alma, no sendeiro da virtude, afinal chega ao fim. E aos setenta anos entra para o convento, onde permanece por mais vinte e oito anos, o que ninguém esperava. É uma conjunção de vidas dentro das quais ele toma toda a personalidade de um papel e depois passa para outra função; no fim se sublima no papel dos papéis: um simples irmão leigo franciscano, perfumando todo o convento e todo o México e, de algum modo, toda a América com a beleza de sua vida.

Então, compreende-se bem que Deus é admirável nos seus santos. Ele é o autor, a fonte, o modelo da santidade; e o meio para ganhá-la é Maria Santíssima, nossa Medianeira. Ele é admirável porque todos os santos têm algo de parecido e algo de diferente, e porque essas diversidades se ordenam de um modo lindíssimo.

Qualquer alma é um tesouro inapreciável

Comparemos este Beato, por exemplo, com São Simeão Estilita rezando continuamente no alto de sua coluna, anos e anos, empolgando toda uma cidade; com o Venerável Pio Bruno Lanteri lutando contra a polícia de Napoleão, ou com Santa Teresinha do Menino Jesus morrendo vítima do amor misericordioso, em Lisieux.

Essas variedades têm umas harmonias profundas, que são uma espécie de post-visão da unidade.

O universo da santidade é muito mais ordenado, elevado e bonito do que todas as estrelas do céu, as belezas da natureza, as magnificências da arte. É a santidade o centro do mundo.

Sem santidade o mundo não teria sentido nem graça, mesmo no que ele possui de mais belo.

Peçamos a Nossa Senhora, por intermédio desse Beato, que nos dê uma consideração, uma compreensão, um amor cada vez maior pela santidade.

De outro lado, nos conceda a vontade de nós mesmos sermos santos e contribuirmos com nossa alma para a beleza desse firmamento para o qual fomos criados.

Qualquer alma, a última das almas do último homem, é um tesouro inapreciável porque é uma estrela que a Providência quer que brilhe por toda a eternidade nesse firmamento de santidade que deve substituir no Céu os anjos caídos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/2/1966)

Sorridente misericórdia

Os sentimentos da piedade católica, sempre corroborados pela Santa Igreja, não têm invocações suficientes para nos inculcar a ideia da misericórdia e da maternal liberalidade de Nossa Senhora, disposta a todo momento a nos alcançar graças especiais, a nos obter dons excelentes do Céu e, assim, convidar-nos a amá-La cada vez mais. Por isso, nunca devemos desviar nossos corações da clemência risonha e solícita da Virgem para conosco, e nela depositar inteira confiança.

(Extraído de conferência em 24/9/1965)