“Em vossa Cruz começastes a reinar!”

Já não estais por terra, meu Deus. A Cruz lentamente se levantou, não para Vos exaltar, mas para proclamar bem alto vossa ignomínia, vossa derrota, vosso extermínio. Entretanto, era o momento de se cumprir o que Vós mesmo havíeis anunciado: “Quando for elevado, atrairei a Mim todas as criaturas” (Jo 12, 32). Em vossa Cruz – humilhado, chagado, agonizante – começastes a  reinar sobre esta Terra. Numa visão profética, víeis todas as almas piedosas de todos os tempos, que viriam a Vós.

Meu Deus, foi na Cruz que começou vossa glória, e não na Ressurreição. Vossa nudez é um manto real, vossa coroa de espinhos um diadema sem preço, vossas chagas são a vossa púrpura.

Ó Cristo Rei, como é verdadeiro considerar- Vos na Cruz como um Rei! Mas como é certo que nenhum símbolo exprime melhor a autenticidade dessa realeza quanto a realidade histórica de vossa nudez, de vossa miséria, de vossa aparente derrota.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de “O Legionário”, abril de 1943)

Por vossa bondade, salvai-me!

Ó clemente, piedosa, doce e sempre Virgem Maria, rogai por nós, porque somos tudo o que somos, mas Vós sois tudo o que sois. Concebida sem pecado, nunca tivestes a menor falta, nunca  deixastes de progredir em graça e virtude, na medida inteira que se esperava de Vós. Sois a Virgem de uma virgindade insondavelmente preciosa. Sois a Mãe de Deus, a Filha do Pai Eterno, a  Esposa do Divino Espírito Santo.

Tendes tudo para ser atendida, e sois cheia de misericórdia para com os pecadores. Um destes sou eu, que me ajoelho a vossos pés, a Vos suplicar: perdoai-me! Não olheis para os meus pecados mas para a vossa bondade. Olhai para o sangue que vosso Divino Filho derramou a fim de que eu fosse salvo. Pensai nas lágrimas que Vós mesma vertestes pela minha redenção.

Assim, ó Mãe misericordiosa, não por meu mérito, mas por vossa bondade, salvai-me!

Plinio Corrêa de Oliveira

Hora certa, pensamento certo

Sob as maravilhosas irradiações da Santa Igreja, o relógio transcende sua função meramente utilitária para tornar-se um símbolo da infalibilidade da Esposa de Cristo a orientar o pensamento humano.

 

No tempo de Carlos Magno ignorava-se a existência do relógio mecânico. Um dos sistemas utilizados para marcar o tempo era a ampulheta, composta de dois recipientes ligados entre si por um gargalo finíssimo. Cada um desses recipientes tem a forma de um meio ovo, colocados de maneira a permitir que uma areia muito selecionada, com grãos bem finos, escoe durante determinado tempo de uma parte para outra da ampulheta.

Presente recebido por Carlos Magno

O primeiro relógio mecânico que chegou ao Ocidente foi mandado de presente a Carlos Magno, durante um intervalo de paz entre os mouros e os católicos, por um maometano inimigo da Cruz de Cristo: o Sultão Harun al-Rashid.

O espírito medieval, ao qual nós nos devemos reportar continuamente como um receptáculo do espírito da Igreja e do espírito da tradição, se debruçou sobre esta invenção.

Carlos Magno, logo que recebeu o relógio e viu o que era, incumbiu Alcuíno — uma espécie de ministro de finanças dele — e outras pessoas de o estudarem. Os europeus se puseram a aprender relojoaria, e daí decorreu que veio ao espírito deles fazer da relojoaria uma maravilha de precisão na marcação do tempo, mas, por outro lado, também verdadeiras obras de arte incomparáveis.

Na Alemanha, há numa torre um relógio em cujo quadrante, a cada hora, passa a figura de um Apóstolo. E quando bate meio-dia, aparecem as representações dos doze Apóstolos.

Outros relógios têm figuras que batem um sino. Por exemplo, em Veneza um relógio de um prédio que fica ao lado da Catedral de São Marcos. Há duas figuras de homens, que batem com toda a força num sino grande, marcando assim as horas. São bonecos de bronze, de bom gosto, e que exprimem inteligência; é uma coisa admirável!

Há relógios enormes e outros tão pequenos que se tornam facilmente portáteis: o homem pode levar um relógio no seu bolso e a senhora colocá-lo num anel. Mas observem o relógio que o homem leva no bolso ou aquele que a marquesa coloca no dedo: são feitos de esmalte, têm pedras preciosas e outras coisas bonitas; são usados por quem pode comprá-los. E há coisas mais modestas para quem precisa de um relógio a fim de marcar as suas horas dignamente.

Aspectos simbólicos e utilitários dos relógios

Entretanto, o relógio-pulseira, em certo momento, fez parte do progresso, e a aparição dele suprimiu alguns aspectos da vida concreta antiga. Por exemplo: na Europa inteira usavam-se relógios grandes, bonitos, com carrilhão, para pôr na sala de jantar, ou na sala de estar, e suas badaladas se ouviam nas demais dependências da casa, marcando a hora para a família inteira.

Passaram da moda, quase ninguém mais os tem. Por quê? Porque o relógio portátil de pulso tornou inúteis esses outros relógios.

Mas quanta coisa desapareceu em torno da ideia do relógio que dava o seu carrilhão solene, enchendo a casa e pondo certa uniformidade na vida de família!

São aspectos minúsculos, mas quanta riqueza e quantas coisas lindas dentro disso!

Existe, contudo, a ideia de que o esforço humano à procura da utilidade deve ser respeitado. E, debaixo desse ponto de vista, deve ser até admirado.

Mas é diferente do esforço do espírito humano quando busca as coisas contemplativas, que se voltam para a observação da vida, a análise sociológica, psicológica, a direção espiritual das multidões humanas, dos povos, das nações, os primores da estética. Tudo isto vale mais do que a coisa verdadeiramente valiosa que está colocada dentro de um bonito objeto.

Relógios nas torres de igrejas

Há, entretanto, um maravilhoso mais belo do que esse, porque já não é só do homem: é o maravilhoso divino, a presença da graça na alma; é a Igreja Católica enquanto sobrenatural, com tudo quanto dela se irradia e que deixa longe o meramente humano. Não há instituição tão bonita como a Igreja Católica!

Considerem só esta maravilha: os relógios nas torres de igrejas.

Quando o relógio foi inventado, não se possuía ainda a tecnologia necessária para fabricar relógios pequenos. Faziam-se, então, relógios enormes que cabiam bem nas torres das igrejas. Ademais, era preciso muito dinheiro para instalar um relógio, o que devia ser feito num lugar alto para servir à população inteira. Então a torre da igreja era o lugar adequado.

Mas a Igreja transformou isso num símbolo: assim como o relógio da torre indica a hora certa para toda a população, a Esposa de Cristo dá o pensamento certo para todos os homens.

Eu não conheço nada tão bonito quanto a instituição infalível, com aquela calma da Igreja — porque a verdadeira Igreja é eminentemente calma — que dá o pensamento certo para cada um a respeito de tudo, com aquela naturalidade da mãe que diz “Meu filho”, acaricia, honra, eleva e passa para outro assunto. Avançam os séculos, ela se mantém naquela serenidade majestosa…

Tudo isto é Igreja Católica, não tem igual, é outro ramo de maravilhoso!                v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 29/5/1974, 2/8/1990 e 16/11/1992)

Revista Dr Plinio 216 (Março de 2016)

 

Templo onde Jesus quer ser invocado

Ó Jesus que viveis em Maria, vinde e vivei em vossos servos, no espírito de vossa santidade, diz São Luís Grignion de Montfort na conhecida Oração a Jesus vivendo em Maria.

Nosso Senhor viveu em Maria, e d’Ela comunicou-se aos homens. Nossa Senhora é o sacrário onde está Jesus Cristo, e o santuário de dentro do qual todas as graças se difundem para o gênero  humano. Por isso, rezemos a Jesus enquanto vivendo em Maria, porque Ele quer ser invocado dentro do seu templo, que é a Santíssima Virgem.

Pedir a Ele o quê? Que Ele venha e viva em nós, como vivia n’Ela. Jesus viver em nós significa termos o espírito da santidade d’Ele, o espírito da santidade de Maria, que é o mesmo espírito da  Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Isto é o que devemos pedir, por meio de Nossa Senhora, a Jesus enquanto vivendo n’Ela.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Símbolo da santidade, majestade e força – II

Percorrendo o périplo que nos conduz das realidades visíveis às invisíveis, por meio da bondade e beleza das criaturas, chegamos a Deus, Nosso Senhor. Nada torna a vida tão agradável e interessante quanto fazer este tipo de meditação.

 

Estamos longe de analisar o leão simplesmente enquanto um animal forte que domina os outros. Consideramo-lo, isto sim, como um ser de uma rara beleza, que exprime certos predicados intrínsecos de sua natureza, entre os quais um determinado tipo de força e de coragem.

Força régia a serviço da majestade

A força possui todas as características do vigor a serviço de quem é rei. É uma força régia, quer dizer, de quem tem o direito e a missão de mandar, possui a nobreza intrínseca de uma superioridade de alma inerente ao ser dele, tem um direito normal a ocupar os cargos de mando e deve normalmente ocupar esses cargos. E por causa disto o leão exprime a ideia de força régia a serviço de uma majestade régia e dominadora. O papel da heráldica é exatamente pintá-lo de um modo meio irreal, que exprima o melhor da realidade dele, de maneira que se percebe mais facilmente do que num leão de verdade. O que, aliás, é sempre o papel da arte: desfigurar um pouco a realidade para obter o melhor da realidade.

O leão é, em última análise, o símbolo da majestade, a qual inclui, entre outras coisas, a força. É próprio da majestade ser suprema dentro da ordem e da lei, um ente supremo que funciona segundo a ordem natural das coisas e mantém esta ordem. O adequado da lei é ser um ditame da razão, promulgado pela autoridade competente; essa é a definição de lei. O próprio do rei, que é o autor da lei, é de ser o auge do bem, o auge da sabedoria, o auge da justiça e o auge da força.

O leão tem exatamente isto: está numa harmonia com toda a natureza, é uma espécie de obra-prima da natureza. E, enquanto tal, é verdadeiramente régio porque supremo na boa linha, na boa ordem; supremo considerado como tendo uma força que lhe assegura o exercício da supremacia que lhe compete.

Um animal ordenador

De onde, então, existe uma ideia de santidade ligada ao conceito de leão. Ele representa o que há de santo na dignidade régia. Porque o que há de santo, de reto conforme a ordem estabelecida pelo Criador, de supremo, de excelente feito por Deus, o leão representa. De maneira tal que assim como, por exemplo, na heráldica, temos águias com halos de santos, nós poderíamos ter um leão com um halo de santidade. Pelo mesmo título; e até a um título mais alto. O que quer dizer a santidade da majestade?

A majestade é o poder supremo legítimo, e toda autoridade legítima enquanto tal é santa. Quer dizer, foi instituída por Deus para um fim santo. Posso falar da santidade de qualquer autoridade: por exemplo, de um professor dentro da sala de aula. Segundo a própria expressão da palavra “santo”, a autoridade do professor sobre os alunos decorre da ordem natural estabelecida por Deus. E enquanto querida pelo Criador para um fim bom aquela função é santa. Nesse sentido a função de rei é ainda mais santa, porque mais alta, mais nobre; é a mais alta de todas na esfera temporal, portanto enquanto tal ela é a mais santa de todas.

 O resultado disso é que se eu souber fazer uma boa interpretação do leão, nele deverei ver a majestade santa, portanto sabedoria santa pelo discernimento com que ele cumpre o seu papel; força santa porque colocada a serviço de quem precisa mandar e para o estabelecimento da ordem que deve reinar. O leão é um animal ordenador. O contrário de um chacal, por exemplo, que tira os cadáveres da tumba, os devora e deixa toda a sujeira sobre a terra.

Quem considera assim a figura de leão fica conhecendo o que é santidade, majestade e força.

A convergência da teoria com o concreto proporciona o conhecimento pleno

Alguém poderia objetar que esse é um modo medíocre de conhecer esses predicados. Melhor seria tomar um compêndio de Moral católica ou uma enciclopédia e ver a definição de majestade, santidade e força. Para que toda essa explicação sobre o leão? A definição abstrata é muito mais enriquecedora do que a noção de leão.

Eu digo: é preciso ter as duas coisas. Para um completo conhecimento do que é a santidade, a majestade e a força é necessário conhecer a definição e depois ir ao leão e verificar como essa definição se aplica a ele. A meu ver, quem se contenta com apenas uma dessas duas formas de conhecimento faz o papel de um homem que diz o seguinte: “Eu posso perfeitamente vender um olho para um transplante, porque com um olho só vejo bem. Basta-me ver com um olho só”.

Ora, embora se veja com um olho, a visão completa se obtém pela conjugação dos dois olhos. É aí que a noção completa da coisa se estabelece. A convergência da noção teórica com a coisa concreta bem analisada é que dá o conhecimento pleno. Nós não podemos nos contentar com uma coisa ou com outra. O espírito integralmente formado quer as duas coisas.

Um homem que tenha tido a oportunidade de ir a um parque de leões e analisar tal atributo em um leão, tal predicado em outro, tal atitude num terceiro, e depois considerar o leão heráldico como reunindo todas as características vistas nos vários leões, e só então conferir com a noção consignada no dicionário, ficará com a ideia completa e íntegra de santidade, majestade e força.

O Leão de Judá

Vendo as coisas assim, uma pessoa com a mentalidade bem constituída ficaria com a alma cheia de cogitações. Ao invés de pôr um ponto final no processo intelectual, começaria a levantar uma pergunta: Se a santidade e a majestade são qualidades tão belas, a santidade de uma função é algo tão bonito, se é tão esplêndida a força quando colocada a serviço da majestade, não haverá outros seres nos quais eu possa considerar, para nutrimento de minha alma, maior majestade, maior força, maior santidade? Minha alma já se extasia vendo esses atributos simbolizados no leão, mas eu quisera ver mais.

Vem, então, a conclusão: no homem precisa haver mais majestade. Devem existir homens que me deem essa ideia de um modo mais perfeito do que o leão. Que homens terão sido?

A pessoa passará, então, a estudar os homens que foram majestosos na Terra como, por exemplo, Carlos Magno, São Luís IX. E, de majestade em majestade, chegará Àquele que a Escritura qualificou de Leão de Judá: Nosso Senhor Jesus Cristo.

Contempla o Santo Sudário de Turim e diz: “Nenhuma majestade realizada por um filho de homem atingiu a daquele infortúnio, daquela dor, daquela certeza, daquela esperança e daquela recusa. Aquela é a majestade das majestades, a mais alta das majestades que a face humana possa exprimir!”

Então, na sua peregrinação pelas majestades, essa pessoa vai estudar a figura de Nosso Senhor Jesus Cristo no Evangelho. E, após ter considerado a própria humanidade do Redentor, dirá: “Nosso Senhor Jesus Cristo, na sua humanidade, é Corpo e Alma. Entretanto, eu vejo apenas os reflexos da Alma no Corpo, não vejo a Alma. Que feliz seria eu se contemplasse a Alma d’Ele diretamente! Como veria melhor a majestade e a santidade d’Ele se eu pudesse ver a Alma d’Ele, e não apenas a sua face divina!”

E depois dirá mais ainda: “A Alma d’Ele é humana, e tudo quanto é humano é limitado. Deve haver algo infinitamente maior do que a Alma humana d’Ele, e que tem uma majestade, uma santidade e uma força que, estas sim, concebidas em último grau, enchem completamente a minha alma. Para contemplá-las eu serei capaz de todos os esforços, todas as renúncias, todos os sacrifícios. É a natureza divina d’Ele. Porque Deus é infinito, supremo, perfeito, Ele tem tudo. Há, portanto, um Ser incriado que foi o ponto de partida de todas as coisas, e que possui num grau infinito aquilo que eu comecei a considerar no leão de um modo finito”.

Meditação com seu périplo total

Neste ponto os olhos se voltam novamente para o leão e a pessoa passa a ver nele, em todos os seus movimentos, em toda a sua sublimidade, reflexos criados da natureza divina; um espelho de perfeições inexcogitáveis e infinitas de Deus das quais, entretanto, a cada movimento do leão pode-se ter uma certa ideia. Porque, ao contemplar aquilo e perguntar-se como seria em ponto infinito, fica no fundo da alma algo de indizível, objeto de uma meditação propriamente religiosa e que lhe dá a verdadeira apetência do Céu.

Esta é a fase religiosa e final da meditação. É um tipo de meditação caracteristicamente da quarta via de São Tomás de Aquino(1) que, através de um ente criado, nos eleva até o Céu, mas depois nos faz voltar aos entes criados para ir degustando-os como prelibações do Paraíso, ocasiões de sentirmos um antegozo do Céu. Assim levamos a vida cercados de coisas palpáveis e visíveis, sempre considerando as coisas impalpáveis, supremas e invisíveis que elas representam.

Então eu tenho o leão, acima dele o rei, acima do rei os Anjos, acima dos Anjos Nossa Senhora, infinitamente acima de Nossa Senhora, Nosso Senhor Jesus Cristo, e em Nosso Senhor Jesus Cristo tenho o próprio Deus.

Quer dizer, por esta forma eu faço todo um circuito. E compreendo perfeitamente que no Reino de Maria houvesse, por exemplo, uma igreja consagrada a Nosso Senhor Jesus Cristo, onde existisse, quiçá do lado de fora, na praça pública, um leão heráldico, escultura talvez fundida em ouro, na base da qual estivesse escrito “Imagem do Leão de Judá”. Sei que essa escultura deixaria muita gente furiosa, mas isso seria exatamente fazer uma meditação com seu périplo total.

A graça de ver os imponderáveis da Criação

É próprio à natureza humana desejar levar uma vida agradável sobre a Terra. Eu lhes posso garantir que nada, no sentido mais estrito da palavra, torna a vida tão agradável e interessante quanto vivê-la assim. Um homem que não vive desse modo está para quem vive pior do que um cego em relação a quem enxerga normalmente. Mas muito pior, não há comparação.

Poderíamos encerrar estas considerações com a seguinte súplica a Nossa Senhora:

Ó Maria, Esposa Imaculada do Espírito Santo, dai-me a graça de ver os imponderáveis da Criação, de me enlevar por eles e de ser impelido assim, por um amor desinteressado, à contemplação das perfeições que a alma humana possui pela natureza e pela graça.

Fazei-me subir dessa consideração à da natureza angélica, puramente espiritual e, por fim, à de vosso Divino Filho que na sua humanidade santíssima é o ápice e a síntese de toda a Criação. Fazei-me em seguida, por um voo ainda mais possante de desinteresse e enlevo, fixar a minha mente na consideração da própria essência divina, da qual toda a Criação é imagem ou semelhança, de maneira que, analisando depois as criaturas, possa antegozar o Céu, preparando-me assim para entrar nele e lá Vos louvar por toda a eternidade.          v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/1/1973)

Revista Dr Plinio 252 (Março de 2019)

 

 

1) Cf. Suma Teológica I, q. 2, a. 3.

 

Chambord – magnifico crepúsculo da Idade Média

Expressiva característica das grandes construções medievais é o fato de elas solicitarem, de quem as contempla, o tributo de um eminente e abnegado amor, estimando-as mais do que a si próprio.

Exemplo disso é a belíssima Catedral de Notre-Dame de Paris, que manifesta, ante os que dela se aproximam, perene convite para essa superior dileção. O mesmo pedido nos é feito, à maneira de sussurro, por outra preciosa joia de arquitetura, esta já não medieval, mas que conserva algo de medievalizante: o castelo de Chambord.

Quando o visitei, em fins de 1988, tive ocasião de ali perceber restos da graça que soprou sobre a Europa e deu origem à Idade Média, pondo-se séculos depois, lentamente, como um sol  esplendoroso.

Chambord é uma das irradiações desse ocaso da Cristandade medieval, mas um ocaso magnífico, como magnífica é também a Cristandade.

Durante minha visita, voltei a vista continuamente para esta consideração: cada detalhe do castelo espelha de modo esplêndido o espírito católico, ainda que sob a forma de um glorioso crepúsculo. No fundo, eu contemplava em Chambord cintilações da Santa Igreja Católica, à qual amamos de um amor tão imenso, que este amor se torna a razão e o fundamento de todas as nossas demais benquerenças.

E é porque a alma católica me encanta, é porque nela discirno o reluzimento do Divino Espírito Santo, que me apraz admirar Chambord. Nesse castelo, tudo é amabilidade, harmonia, leveza, elegância, força e coragem. Ora, é a graça de  Deus que concede aos homens a possibilidade de serem assim e de imprimirem nas suas obras reflexos desses predicados. E a graça lhes vem através da Igreja Católica, de seus ensinamentos, de seu apostolado e maternal influência. Graças e influxo materno que, em Chambord, tocaram profundamente minha sensibilidade.

Essa maravilha que eu sonhava em conhecer, achava-se fechada aos turistas na tarde em que ali cheguei. Sozinha, silenciosa, envolta nas  discretas penumbras do pré-anoitecer que começava. O conjunto refletia aquela espécie de poesia, de tristeza e de beleza especiais das coisas abandonadas. Separava-me do castelo um terreno coberto por uma erva que nasceu de modo mais ou menos fortuito, mas que adquiriu extraordinário encanto, realçado aqui e ali por graciosas florzinhas brancas surgindo inocentemente da relva.

À direita, destacava-se uma capelinha de gótico “flamboyant”, do século passado, em perfeita harmonia com o estilo de Chambord. A floresta, sobre a qual incidia uma luminosidade amena, pareceu-me de rara beleza, imersa em suave e discreta melancolia. Contemplando aquelas árvores, tinha-se a impressão de ver um mundo de personagens que participaram de toda a existência áurea de Chambord, e que agora se encontravam para além do rio que nos separa da eternidade, considerando com certo pesar a derrota de tudo quanto eles conheceram e representaram.

Já o castelo, com sua imensa beleza, altivez e fantasia, erguia-se à maneira de um “grand-seigneur “passeando por seus domínios. Hierático, algum tanto distante do mundo ao seu redor, um “grand-seigneur” que, no mesmo dia, pela manhã tomou parte numa batalha, à tarde recebeu convidados para uma festa na qual dançou, e no fim da noite se pôs a caminhar sozinho pela floresta.

E leva consigo alguma coisa da batalha, da dança e do mato. O que tem o castelo? Proporções muito bonitas e um universo de chaminés de tamanhos variegados, surdindo como “champignons” por toda parte, numa verdadeira feeria de pequenas cúpulas e torres, algumas maiores, outras menores, causando a impressão de que um certo húmus passou do solo para o castelo, e deste para o ar.

Esse húmus, indescritível, é o responsável pela grande fantasia que existe em Chambord, emoldurada por uma regra, uma linha e uma harmonia que nos deixam encantados. De vez em quando, o silêncio daqueles instantes era interrompido por diferentes piados de pássaros. Ora era um longo trinado, como se do fundo dos séculos algo dissesse: “Eu ainda vivo!” Ora era uma ave que, perseguida por outra, exalava um grito de desespero, atraindo nossa atenção para uma espécie de pungente e oculto drama que se desenrolava no meio daquele arvoredo.

Dali a pouco os pássaros emudeciam, o silêncio se recompunha em torno do castelo, e Chambord continuava seu velho sonho, triste, digno, seguro de si mesmo e abandonado. E as penumbras do entardecer, e as derradeiras incidências de um lindo crepúsculo, tremeluzindo sobre um extenso gramado de relva selvagem, mal plantada mas que deveria ser assim — tudo se tornava úmido de absoluto, impregnado de graças celestiais.

Sim, mais uma vez é a graça que nos faz admirar em Chambord o que, sem o auxílio dela, não nos seria perceptível. São expressões do castelo, são impressões e sentimentos que ele só transmite a quem é favorecido com essa assistência sobrenatural.

E deixamos o tempo transcorrer ali com a intenção de vislumbrar a graça como uma luz acesa no interior de Chambord. O próprio castelo seria o “abat-jour”, esplendoroso, extraordinário, porém o  mais aprazível era considerar essa luz celeste que acentua sua inenarrável beleza, sua tranqüilidade recolhida, sua majestade.

Era impossível que Chambord fosse tão belo, tão perfeito, e que Deus não estivesse presente ali. Era impossível que aquele castelo possuísse essa perfeição e essa beleza, se estas não fossem fruto das lágrimas de Maria e do preciosíssimo sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira

O cântico da fidelidade na noite do crime

Os Anjos puderam contemplar, após o sepultamento de Nosso Senhor, talvez no próprio edifício onde se realizou a Santa Ceia, Nossa Senhora sozinha, no silêncio daquela noite, a Terra inteira pecando, e Ela interrompendo as suas orações para, com melodias que só os espíritos angélicos conheceram e nós conheceremos quando formos para o  Céu, cantar as suas reparações.

Ali estava a Santíssima Virgem, que compôs o Magnificat, tomando ponto por ponto, descendo ao abismo de cada infidelidade e rematando a meditação por um cântico de fidelidade. Que cena tocantíssima deveria ser essa! A Mãe de Deus a passou sozinha, porque ninguém era digno de presenciá-la, somente os Anjos.

É uma magnífica maneira de meditarmos a Paixão nos associarmos a esse canto da Soledade de Nossa Senhora; inteiramente só, na noite do crime. O cântico da maior virtude de toda a Terra, elevando-se até o Céu.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraída de conferência de 13/4/1968)

Parece um conto de fadas!

A Torre de Belém dá a impressão de ser um castelo completo e não apenas uma torre. Ela tem a pompa, a imponência, o entretenimento de uma fortificação. Suas pedras brancas ao Sol possuem  particular encanto, parecendo um conto de fadas. Já a Catedral de Sevilha é uma fortaleza meio eclesiástica e uma igreja meio fortaleza.

 

A simples vista da Torre de Belém sempre me produziu uma impressão parecida, na ordem natural, com o que seria um êxtase na ordem sobrenatural. Êxtase é uma atitude da alma quando há  uma comunicação de Deus para com ela, que a faz ficar fora de si. Há coisas que na ordem natural podem produzir êxtases. Essa torre me produziu sempre um êxtase.

Pompa, imponência e entretenimento de um castelo

Quando fui a Lisboa, visitei-a detida, prolongada e embevecidamente, mas não realizei o programa que tinha a respeito dela. Quem sabe se Nossa Senhora me dará a oportunidade de fazer isso  algum dia: ir até lá à noite, inteiramente só, dar várias voltas à torre. Mais ainda, ter uma lancha à minha disposição, de maneira a poder contemplá-la a várias distâncias no Tejo.

Isso para me  fazer a ideia de qual era a atitude de alma de um missionário ou de um navegante português quando saía em direção ao Atlântico e via a Torre de Belém ficando menor… que saudades e  embevecimento ela lhe causaria. E quando voltava e a observava ficar cada vez maior, que impressão ele experimentava.

Esse edifício dá de tal maneira a impressão de ser um castelo inteiro, e não uma simples torre, que nos perguntamos como uma torre pode ser tão bela. Ela tem a pompa, a imponência, o  entretenimento de um castelo, com isso de lindo: parece um conto de fadas! Sensação causada pela pedra branca com que é construída, e cujo brilho ao Sol tem um particular encanto, mas  também por um predicado que se encontra em várias obras de arte portuguesas, e me agrada muito: o contraste entre o liso e o sobrecarregado.

Notamos que as paredes da torre são inteiramente lisas, e sua monotonia é remediada, com vantagem, apenas pelo seguinte: de alto a baixo, uma linha constituída de uma primeira janela, depois  dois pequenos arcos geminados e divididos por uma coluna graciosa, formando uma só janela.

Em seguida, um terraço com dossel e dois pequenos arcos que repetem os de cima. Esse terraço é intensamente ornamentado e muito bonito. Temos então, reunidos numa superfície pequena,  uma sobrecarga de ornatos que seria quase uma caixa de joias, um escrínio e não um terraço.

Beleza artística e utilidade militar

Logo abaixo temos a unidade assegurada pela última janela, muito simples, que repete a primeira. Assim, o  epílogo lembra o início. São Tomás dizia que o círculo é uma figura perfeita porque  volta à sua origem, pois tudo quanto retorna ao seu ponto de partida é perfeito. É bonito que o ponto de chegada desta linha perpendicular seja tão semelhante ao ponto de partida, pois essas duas janelas – a primeira e a última – são iguais.

Notem também, para quebrar a monotonia, essas guaritas colocadas simetricamente bem nos ângulos da torre, todas com as mesmas características: o teto muito sobrecarregado, constituído de  vários gomos e encimado por um cone, no alto do qual encontra-se uma esfera.

O resto, simplicíssimo. Uma simples janela, como costumam ter as guaritas, cuja pobreza, nudez e singeleza lembram a primeira e última janelas acima comentadas. Considerem as ameias da  torre. É um alto terraço circular destinado, evidentemente, a verificar o que dia e noite se passa ao redor. A torre é concebida para se defender ela mesma contra um ataque do adversário.

Mostrarei, em breve, os aspectos militares da torre. No que seria o parapeito, a torre tem uma série de brasões das casas fidalgas ilustres de Portugal. Cada uma dessas pontas é um brasão,  lembrando as glórias das casas aristocráticas portuguesas. Uma porta dá  acesso para um salão interno, onde os guardas descansavam e tomavam refeição.

É muito bonita a altaneria e dignidade dessas várias divisas lembrando as glórias de Portugal. Assim, ao invés dos muros “dentados”, como costumam ser as edificações deste tipo da Idade Média,  os “dentes” são representados por esses emblemas. Reparem como eles têm uma dignidade, um peso, um tamanho e uma força extraordinários. No intervalo entre um brasão e outro, o  soldado   atirava setas e, mais raramente, projéteis de armas de fogo primitivas que, na época em que a torre foi construída, apenas começavam a ser usadas. Feito o disparo, os combatentes se escondiam  atrás dos brasões de pedra, de maneira a não serem facilmente apanhados.

Vemos, assim, como a beleza artística coincide com a utilidade militar. O fato mesmo de haver tão poucas janelas é para defesa, limitando a entrada na torre. Por isso também a janela de baixo é  muito simples e não tem terraço, para ninguém se pendurar e ficar atacando para dentro. Ademais, é janela com grade. Tudo com a preocupação de fazer da torre um uso militar.

O “unum” se perde no céu

No centro da torre ergue-se um torreão menor do que ela a fim de dar espaço para a ronda. Há, portanto, duas rondas: uma no alto, e outra embaixo. Há nisso uma razão militar muito boa, pois  amplia muito o campo de visão e a possibilidade do acerto nos disparos. Mas além da razão militar existe uma vantagem estética.

A torre assim como está impressiona muito, mas deixa na vista uma ilusão que resolve o seguinte problema: vemos a parte mais larga da torre e, acima dela, a mais estreita. Entretanto, em cima  não existe um “unum”. Ora, tudo nesse monumento pede que haja um “unum”; essas guaritas pedem um “unum”. Onde ele está?

A ideia é que o “unum” se perde no céu. É um “unum” meio imaginário, como seria e do cone do Fuji-Yama. Essa ideia é insinuada pela diferença da largura entre as duas partes da torre. A parte  menor cria na imaginação, subconscientemente, a ilusão de outras menores que se sucedem, perdendo-se no céu, o que tem, portanto, uma grande beleza.

Se considerarmos esse terraço na base da torre, que é a primeira linha da defesa dessa fortificação, percebemos mais uma vez os escudos e as guaritas repetindo o elemento ornamental de cima.  Embaixo vemos janelas gradeadas, que dão para o calabouço, pois no porão da torre existiam prisões.

É muito bonita a largura desse terraço, porque tem uma certa relação estética com a altura da torre, fazendo com que o todo pareça muito amplo, quando na realidade é simplesmente uma torre.  Essa torre está para o terraço mais ou menos como a rainha estaria para a cauda de seu vestido. O terraço é uma espécie de projeção, de cauda magnífica da torre. A rainha de pedra tem uma cauda também de pedra e olha altiva para a cidade, e dominadora para o mar. A posição é muito bonita.

Cabral e Dom João VI

Nesse terraço, quando partiam as esquadras portuguesas, às vezes o próprio rei vinha apreciar a partida da armada, acompanhado da rainha e outros membros da família real, com a corte,  prelados, guerreiros, magistrados, que enchiam as muralhas e janelas da torre com pessoas esplendidamente vestidas.

Desses terraços pendiam tapeçarias, e o colorido era magnífico. Podemos imaginar a beleza daqueles galeões avançando com o estandarte da Ordem de Cristo. Uma esquadra com cinco, oito navios, cânticos do lado de cá, cânticos do lado de lá. Quando as naus passavam diante do rei, reverência, com salvas de tiros no tempo das armas de fogo; e as naus desapareciam aos poucos no Atlântico.

Pela Torre de Belém passou a esquadra de Cabral que vinha introduzir no mundo essa realidade chamada Brasil. Por ali passou também – em condições quão diferentes, mas não despidas de  dignidade, nem de glória – a esquadra na qual Dom João VI vinha fugindo de Junot.

À última hora, quando estava tudo pronto para partir, deu-se um episódio pitoresco. Ouviu-se do cais: “Para! Para!” Era um homem que vinha trazendo mais uma escrivaninha preciosa, esquecida no palácio real.

Aliás, a partida de Dom João VI foi muito bem preparada. O monarca trouxe todo o ouro do tesouro de Portugal, o mobiliário dos palácios dele, obras de arte, joias, e até sardinhas, das quais ele  gostava muito e sabia não haver no Brasil. De maneira que quando comermos sardinhas frescas, lembremo-nos de que elas descendem das sardinhas trazidas por Dom João VI.

“Quem não viu Sevilha, não viu maravilha”

Consideremos um outro monumento, agora na Espanha: a Catedral de Sevilha. Ela nos lembra um antigo provérbio português: “Quem não viu Sevilha, não viu maravilha”. Encontramos nesse  edifício algo, mas muito pouco, do que elogiei na Torre de Belém. Essas duas torres laterais são muito ornadas. Entre elas, um espaço simples, com fundo claro e um gradeado muito bonito de ogivas e rosáceas, que fazem o contraste do simples com o muito embelezado.

Vê-se uma faixa grande e muito ornada com imagens de Santos encimados por dosséis. Por cima do fundo simples ao qual aludi, encontra-se o portal com um triângulo Gabriel magnífico, que é uma expressão da ogiva e, embaixo, uma porta ogival profunda. Em cima há algo parecido com aquela diminuição da Torre de Belém e, depois, também um terraço como no alto daquela torre.

Essas guaritas no canto lembram igualmente a Torre de Belém. Não creio que isso tenha sido inspirado nela, mas são afinidades de estilo, muito compreensíveis entre Espanha e Portugal. A meu  ver, o bonito dessa porta é que ela tem qualquer coisa de monumental. As torres têm uma altivez, levantam-se do chão com muita decisão e galhardia. Temos a impressão de que elas seguram o   chão como se fossem garras, e sobem ao céu com uma segurança, uma inteira despreocupação do perigo de cair, e que sustentam o peso em cima com uma completa facilidade. Mais ainda, tenho a impressão de que elas olham do alto de si mesmas para a terra e para os pobres transeuntes, de cima para baixo, numa atitude de desafio, quase como quem diz: “Se ousas, experimenta. Só pela  minha fisionomia, te afugento. É assim que eu sinto a terra”.

Modos inocentes de aproveitar a vida

Notem como esses arcos, que são arrimos das torres, foram transformados em verdadeiros ornatos pelos arquitetos muito artísticos do tempo. Há qualquer coisa de porta de fortaleza nesse magnífico portal. É uma característica muito sensível para mim, agrada-me muito essa fusão. Uma fortaleza meio eclesiástica e uma igreja meio fortaleza realizam a síntese de que eu gosto, isto é, os mais altos valores do espírito defendidos pela força e postos dentro da luta, com a entrega do homem e o risco da vida.

É, por exemplo, a guerra religiosa, a guerra das almas e dos corpos, com uma integridade que constitui sua beleza. Um minúsculo pormenor característico da Península Ibérica é a palmeirinha, tão presente no Sul da Itália, da Espanha, de Portugal, mais rara no restante da Europa, frequente no litoral da África do Norte, tão comum no Brasil.

Outra coisa também minúscula, mas que compõe o ambiente e o panorama: esse chafariz que provavelmente servia para os cavalos beberem água. Termino com um pequeno comentário a respeito as árvores. Em Granada se vê muito isso: no interior do Alhambra, aquelas partes muito bonitas, com os chafarizes cantando. Mais ainda: da fonte vêm sulcos para dentro dos quartos, com regozinhos que fazem com que a água brinque e corra em pequenos sulcos dentro do próprio quarto. Para um lugar quente, que maravilha! Esses  são modos inocentes de aproveitar a vida, que tiram a mania e a obsessão de impureza. Por causa disso a Revolução combate o quanto pode para fazer com que a vida virtuosa seja sem graça. Contra isso, devemos nos levantar.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/1/1977)

 

A Paixão trajada de pulcro

Desde os remotos tempos de minha juventude tocaram-me de modo muito particular as celebrações da Semana Santa. Recordo-me, por exemplo, de assisti-las na Igreja de Santa Ifigênia (então a Catedral provisória de São Paulo), onde me colocava junto ao coro e, lá do alto, contemplava as cerimônias se desenvolverem, enquanto a música sacra ungia o ambiente com seus acentos de dor e contrição.

Aquele conjunto de movimentos e cânticos se me apresentavam com uma majestade santa, uma grandeza divina e incomparável, cumulando minha alma de veneração, respeito e desvelo religioso. Em última análise, através do cerimonial, dos símbolos e personagens, a graça agia no meu interior, fazendo-me compreender a sublime beleza com que a Igreja rememora o trágico e glorioso fato da Redenção.

Tais sentimentos se intensificaram quando tive ocasião de conhecer as célebres procissões da Paixão realizadas na Andaluzia, notadamente as de Sevilha, talvez as mais belas do mundo. Ainda os menos sensíveis e os afeitos a ritos singelos não podem negar um elogio ao esplendor dessas celebrações.

Sob dosséis recamados de ouro e prata, cintilantes à luz de centenas de velas, desfilam os passos das várias Confrarias, cada qual excedendo-se no brilho, na compenetração e devoção com os quais reverenciam os sofrimentos do Homem-Deus. E embora uma crítica rigorosa não deixasse de ver, nestes ou naqueles pormenores, nestas ou naquelas imagens, certas concessões aos exageros do renascentismo, isto não impede que nos entusiasmemos diante do maravilhoso ornando as dores de Jesus e de sua Mãe Santíssima, recordadas em verdadeiros espetáculos esculturais e cenográficos.

Por ruelas e becos, às vezes tendo ao fundo a silhueta da famosa torre da Giralda, vão passando lentamente aqueles penitentes cuja identidade se refugia sob o distinto anonimato de suas lindas vestimentas: a grande túnica e o capuz pontiagudo, no meio do qual apenas se percebe o olhar sério e contristado do que caminha junto ao andor.

E como a procissão monumental lucra em percorrer aquelas vielas centenárias, tortas, traçadas sem planos nem medidas! É o que lhe confere vida e expressão de alma! Ela morreria ou perderia muito de sua beleza se tivesse de atravessar largas avenidas, povoadas de prestigiosos hotéis, bancos e lojas de luxo.

Não, é por entre as ladeiras e ruas estreitas que se apresentam em todo o seu esplendor aquelas obras de escultura magnificíssimas, a profusão de rendas, os mantos de veludo bordados a ouro, as jóias e coroas ricamente lavoradas, os lindos candelabros, os andores cobertos de flores vermelhas “éclatantes”, como só lá existem, e que combinam de maneira perfeita com as imagens da Paixão, como se quisessem dizer a Jesus: “Meu Senhor, se me fosse dado estar convosco na Via Dolorosa, aos vossos pés eu teria posto cravos. Os mais rubros cravos de Andaluzia para vossos pés divinos!”

É o pulcro, o belo oferecido a Nosso Senhor como ato de reparação. E nessa atitude só podemos ver nobreza e seriedade de espírito, cercando de ornato a dor multiplicada pela dor: ora é o Filho de Deus carregando sua Cruz, ora flagelado e coroado de espinhos, ora posto diante de seus algozes sem ter como se defender. Jesus humilhado e grandioso, isolado na sua inocência, suportando no silêncio o gravame de nossos pecados.

E a procissão continua o seu lento caminhar, deixando à sua passagem um rastro de tristeza e maravilhamento.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

São Teófanes e os peculiares esplendores da Igreja no Oriente

Pertencendo a uma das mais nobres famílias do Império Bizantino, Teófanes abandonou todas as suas riquezas e dirigiu-se para um mosteiro, do qual se tornou abade. Um imperador adepto da seita dos iconoclastas lançou-o num calabouço, onde permaneceu por dois anos sofrendo horríveis privações e chicotadas. Depois foi exilado para a Samotrácia e ali entregou sua bela alma a Deus.

 

Temos para comentar uma ficha biográfica a respeito de São Teófanes, abade, que me dá a oportunidade, antes mesmo de entrar na consideração da vida deste Santo, de analisar a expressão, o valor simbólico e o efeito que o nome produz para se considerar o indivíduo.

Um nome que evoca teofania: a manifestação de Deus

Um homem comum, da vida corrente, que se chamasse Teófanes poderia nos dar a impressão, antes de conhecê-lo, de alguém pertencente ao que se costuma chamar classe média baixa, de um jeito extremamente anacrônico dentro dessa classe, vestido à conservador, com um colarinho engomado alto e amarelado, uma gravatinha pequenininha ensebada, tossindo abundantemente, com os óculos à meia distância entre a ponta e o topo do nariz, com uma vozinha roufenha, magrelinho e pretensioso. Esse poderia ser, segundo nossa imaginação, o Sr. Teófanes.

Para a sensibilidade de certas pessoas, o nome “Teófanes” tem qualquer coisa de glacialmente sentencioso, hirto. Entretanto, o sentido etimológico da palavra é lindo, porque teofania é a manifestação de Deus. Ora, um homem chamado Teófanes deveria ser uma pessoa maravilhosa, ter um jeito de Anjo celeste, herói, um São Miguel Arcanjo, algo assim. Mas os conceitos variam e os nomes acabam tomando essa conotação pejorativa.

Contudo, quando se pensa num Abade Teófanes, já a coisa muda completamente. Porque abade é um título que evoca um homem meio misterioso, isolado, colocado acima de seus monges, com pouca comunicação, em geral, com os outros homens, e correspondendo à frase que uma revista de História, a qual li outro dia, punha nos lábios de Moisés: “Senhor, fizestes de mim um homem solitário e poderoso.” É bem a ideia que faço de um abade: poderoso na ordem espiritual, mas solitário. Todo vestido com um grande traje beneditino preto, com aquelas pregas que se desdobram, um capuz que vira um pouquinho para trás, um bastão na mão e um ar cheio de ideias, de pensamentos, que fala pouco, mas domina toda uma comunidade de cenobitas, todos eles em silêncio ou entoando o cantochão, em longos corredores com arcadas regulares, e que voltando para as celas rezam de novo, fazem iluminuras e trabalhos de pesquisas inimagináveis.

O abade mantém na abadia uma atmosfera de bom gosto, de luta guerreira, de polêmica e, ao mesmo tempo, de recolhimento e de silêncio que dá todo o perfume da Idade Média e, mais ainda, do antigo monaquismo do Oriente, mosteiros gregos situados em montes de nomes fabulosos, em ilhas do Mediterrâneo onde os Apóstolos ensinaram, em colinas da Terra Santa onde Nosso Senhor fez milagres, etc. Essa é a ideia que me dá um Teófanes abade, e me incentiva a conhecer sua biografia.

Membro de uma das mais nobres famílias do Império Bizantino

Teófanes, nascido em Constantinopla, pertencia a uma das mais nobres famílias do Império Bizantino. Perdendo seu pai aos três anos de idade, foi educado pelo próprio Imperador Constantino Coprônimo.

Casou muito jovem ainda, praticamente obrigado, com uma jovem patrícia. Mas ambos, de comum acordo, fizeram voto de continência perpétua. Seu sogro, vindo a descobrir isso mais tarde, encheu-se de furor, pois desejava herdeiros que entrassem no gozo da imensa fortuna do genro. Queixou-se assim ao imperador e este enviou Teófanes para Sísico com o título de Intendente Real dos Trabalhos Públicos no Helesponto e na Lísia. Aí o Santo encontrou um monge que o iniciou nos caminhos da contemplação e Teófanes abandonou o mundo, recolhendo-se a um mosteiro, onde veio a ser abade.

Que coisa linda: um dignatário da corte imperial de Constantinopla! Para pensar nisso é preciso imaginar aqueles basileus, aqueles imperadores de Constantinopla hirtos, com aquelas caras de ícones, todos rodeados de pérolas, com ar sentencioso, com uma mão que ensina ou com uma vara toda de marfim, com uma imagem de ouro de São Miguel em cima, e olhando para todos os séculos, imóveis sobre um fundo de ouro.

Podemos imaginar como era o palácio imperial em Constantinopla, junto às margens poéticas do Bósforo e à Basílica de Santa Sofia, onde o Imperador Coprônimo educou Teófanes.

Teófanes é um homem puro que se casa com uma moça pura; e os dois, coisa ainda mais rara, resolvem guardar a castidade perfeita.

O Imperador intervém e manda esse homem para uma espécie de exílio dourado. Ele vai com um título meramente administrativo, mas pomposo – todos os títulos bizantinos eram pomposos –, para essa região exercer suas funções. Imaginem como era uma cidade de província daquele tempo: pequena, com um pequeno palácio destinado ao representante do imperador, com um tronozinho, sendo a miniatura – mas que miniatura! – do fausto imperial, e Teófanes movendo-se dentro daquilo diante de um povo genuflexo.

Abandona tudo e vai para o deserto

Entre os que vão falar com Teófanes aparece um monge vindo de algum deserto, de onde saiu levando consigo todos os silêncios daqueles pores de sol incandescentes, daquelas montanhas torradas pelo Sol, ou batidas por um vento tremendo, daquelas contemplações caracteristicamente orientais, com aqueles olhos enormes olhando para um firmamento lindíssimo e rezando. Esse monge sai de repente de seu isolamento, vai para a cidade e encontra Teófanes.

Pode-se imaginar a conversa dos dois:

— Teófanes, o que te adianta gozar essas coisas da Terra? Vejo em ti que és um homem puro, Deus te chama para uma pureza maior. Deixaste as delícias da carne, deixa, ó Teófanes, os outros deleites, pois maiores maravilhas te aguardam.

E Teófanes pergunta:

— Pai santo, o que farei?

— Vai comigo ao deserto, onde os varões amados de Deus se separam de tudo quanto é do mundo e vivem exclusivamente na familiaridade do Senhor.

Então, Teófanes deixa tudo e vai para o deserto. Isso é ambiente, isso é vida, isso é história.

Após fazer promessas de benefícios, o Imperador o ameaça

Anos depois, quando Leão, o Armênio…

Que lindo nome para um imperador! Todas essas coisas em Constantinopla têm um outro jeito. Há uma coisa mais banal do que um homem chamado Leão? Há coisa mais comum do que um homem ser um armênio? Mas “Leão, o Armênio”, Imperador de Constantinopla, é uma coisa que se destaca de uma série de outras por vários imponderáveis. O Imperador Leão, o Armênio, que traz consigo os luxos e os mistérios da Armênia para o trono de Bizâncio, é uma coisa muito mais evocativa.

Continua a ficha:

Leão, o Armênio, renovou a perseguição às santas imagens…

Era a heresia dos iconoclastas, que quebravam as imagens nas igrejas, uma forma ancestral de protestantismo e de progressismo.

…e soube que Teófanes gozava de alta consideração entre os ortodoxos.

Ortodoxos aqui somos nós, católicos, porque não tinha ainda havido o cisma.

Querendo atraí-lo à sua causa, chamou-o à Constantinopla. Quando ele ali chegou, recebeu uma carta do soberano: “Vossas disposições pacíficas me fazem crer que aqui viestes para confirmar com vossos votos minhas opiniões sobre esse problema. Esse, aliás, é o meio certo de obter meus favores e de conseguir para vós, vossos parentes e vossos mosteiros, todas as graças que estão ao alcance do imperador conceder…”

Portanto, todas as que existem, porque o Imperador de Constantinopla era onipotente.

Se, ao contrário, vos recusardes a aquiescer comigo, incorrereis em minha indignação e dela sentireis todo o peso, vós e vossos amigos.

É bem claro, o Armênio. No meio de frases amáveis, a coisa é suborno ou tiro. 

Jogado num calabouço

Teófanes, que nunca se intimidara com promessas ou ameaças, assim respondeu:

“Idoso e enfermo como estou, tenho cuidado em não ambicionar as coisas que desprezei por Jesus Cristo, em minha juventude, quando me era fácil usufruir das coisas do mundo.”

Linda resposta. “Você me oferece o que eu desdenhei quando podia gozar? Você pensa em me comprar com essas coisas, agora que não estou em idade de gozá-las? Oh!” Vê-se o Armênio minguar…

“Quanto ao meu mosteiro e aos meus amigos, coloco sua sorte nas mãos de Deus. Quanto ao mais, se acreditais assustar-me com vossas esperanças como se assusta uma criança com as varas, vos enganais. Porque, embora não tenha forças para caminhar e esteja sujeito a numerosas outras enfermidades corporais, espero que Jesus Cristo me dará coragem de sofrer pela sua causa todos os suplícios aos quais poderíeis me condenar.”

Tudo dito, está acabado. Quer dizer: “Seus subornos não me interessam, suas ameaças não me fazem recuar. Está feito seu balanço, ó Leão, o Armênio.” É um Teófanes, a manifestação de Deus através da boca de um homem.

Encolerizado, o imperador enviou Teófanes a um calabouço, onde o Santo permaneceu por dois anos, sofrendo horríveis privações. Chegaram, um dia, a dar-lhe trezentos golpes de chicote.

Num velho enfermo, hein!

Saindo da prisão, exilaram-no na Samotrácia, onde ele morreu a 12 de março de 817.

Aqui está a história de São Teófanes. Nós podemos imaginar a Samotrácia e São Teófanes morrendo. Talvez embaixo de uma palmeira, ao ar livre, assistido apenas por um auxiliar. Mas na hora em que ele morreu, uma bola de fogo subiu ao céu, e na cidade tal viram isso e comentaram: “Morreu Teófanes, o virtuoso…” Ou algo nessa linha. Seria o desfecho legendário e simétrico dessa história. Com isso nos familiarizamos um pouco com os esplendores peculiares que a Igreja teve no Oriente.        

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/3/1971)

Revista Dr Plinio 252 (Março de 2019)