Vigilância e oração

“Tomai o elmo da salvação e a  espada do espírito, que é a palavra de Deus; orando continuamente em espírito com toda a sorte de orações e súplicas, e vigiando nisto mesmo com toda a perseverança”, recomenda-nos com inflamada solicitude o Apóstolo São Paulo. Baseado em tal ensinamento, Dr. Plinio nos alenta a enfrentarmos com determinação as provações interiores e exteriores que encontramos em nossa busca da santidade.

 

Enganam-se os que pensam que o Novo Testamento abriu para nós a era de uma vida espiritual sem lutas. Pelo contrário, São Paulo põe diante de nossos olhos a perspectiva de uma luta incessante do homem contra suas inclinações inferiores, luta esta tão dolorosa que o Apóstolo chega a compará-la ao pior dos martírios, isto é, à Crucifixão:

Digo-vos pois: Andai segundo o Espírito e não satisfareis os desejos da carne. Porque a carne tem desejos contrários ao espírito, e o espírito, desejos contrários à carne; porque estas coisas são contrárias entre si, para que não façais tudo aquilo que quereis.

Se vós, porém, sois guiados pelo Espírito, não estais debaixo da lei. Ora, as obras da carne são manifestas, são a fornicação, a impureza, a desonestidade, a luxúria, a idolatria, os malefícios, as inimizades, as contendas, as rivalidades, as iras, as rixas, as discórdias, as seitas, as invejas, os homicídios, a embriaguez, as glutonerias, e outras coisas semelhantes, sobre as quais vos previno, como já vos disse, que os que fazem tais coisas não possuirão o reino de Deus.

Ao contrário, o fruto do Espírito é a caridade, o gozo, a paz, a paciência, a benignidade, a bondade, a longanimidade, a mansidão, a fidelidade, a modéstia, a continência, a castidade. Contra estas coisas não há lei. E os que são de Cristo crucificaram a sua própria carne com os vícios e concupiscências. Se vivemos pelo Espírito, conduzamo-nos também pelo Espírito (Gal 5, 16-25).

Velar pelo frágil edifício da santificação

E com quanto cuidado deve o cristão velar pelo edifício sempre frágil de sua santificação, posto à prova por toda a sorte de provações interiores e exteriores!

Leiamos este texto: Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a superioridade da virtude seja de Deus e não de nós.

Em tudo sofremos tribulação, mas não somos oprimidos; somos cercados de dificuldades, mas não desesperamos; somos perseguidos, mas não desamparados; somos abatidos, mas não perecemos; trazendo sempre em nosso corpo a mortificação de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste nos nossos corpos.

Porque nós que vivemos somos continuamente entregues à morte por amor de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal. A morte, pois, opera em nós, e a vida em vós (2 Cor 4, 7-12). Este último versículo quer dizer que São Paulo morria a si mesmo para dar a vida espiritual aos outros.

A virtude, de que se fala acima, é a virtude da pregação, isto é, a virtude do apostolado.

Sem a luta interior não se chega à glória do Céu

É orgulho ou ingenuidade imaginar que não encontramos terríveis relutâncias interiores: Efetivamente, nós sabemos que a lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido ao pecado. Porque não entendo o que faço; não faço o bem que quero, mas o mal que aborreço, esse é que faço (Rom 7, 14-15).

Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita o bem. Porque o querer está ao meu alcance; mas não acho o meio de o fazer perfeitamente. Porque eu não faço o bem que quero, mas o mal que não quero (Ibid 18-19).

Eu encontro, pois, esta lei em mim: quando quero fazer o bem, o mal está junto de mim; porque me deleito na lei de Deus, segundo o homem interior; mas vejo nos meus membros outra lei que se opõe à lei do meu espírito, e que me faz escravo da lei do pecado, que está nos meus membros. Infeliz de mim. Quem me livrará deste corpo de morte? (Rom 7, 21-24).

É dura esta luta, mas sem ela não se chega a glória: Se (somos) filhos, também (somos) herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo; mas isto se sofremos com ele, para ser com ele glorificados (Rom. 8, 17).

Só as obras de apostolado, sem a mortificação, não bastam para este fim: Quanto a mim, corro, não como à ventura; combato, não como quem açoita o ar; mas castigo o meu corpo e o reduzo à escravidão, para que não suceda que, tendo pregado aos outros, eu mesmo venha a ser réprobo (1 Cor 9, 26-27).

Vigiar e orar continuamente

Seja, pois, de vigilância nossa vida interior: Aquele pois que crê estar de pé, veja, não caia” (1 Cor 10, 12).

A conclusão, portanto, não pode deixar de ser esta: Irmãos, fortalecei-vos no Senhor e no poder da sua virtude. Revesti-vos da armadura de Deus, para que possais resistir às ciladas do demônio. Porque nós não temos que lutar (somente) contra a carne e o sangue, mas sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra os espíritos malignos (espalhados) pelos ares. Portanto, tomai a armadura de Deus, para que possais resistir no dia mau, e ficar de pé depois de ter vencido tudo.

Estai, pois, firmes, tendo cingido os vossos rins com a verdade, e vestido a couraça da justiça, e tendo os pés calçados para ir anunciar o Evangelho de paz; sobretudo tomai o escudo da fé com que possais apagar todos os dardos inflamados do maligno; tomai o elmo da salvação e a espada do espírito, que é a palavra de Deus; orando continuamente em espírito com toda a sorte de orações e súplicas, e vigiando nisto mesmo com toda a perseverança, rogando por todos os santos e por mim, para que me seja dado abrir a minha boca e pregar com liberdade o mistério do Evangelho, do qual eu, mesmo com as algemas, sou embaixador, e para que eu fale corajosamente dele como devo (Efes 6, 10-20).

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito de “Em defesa da Ação Católica”, Editora Ave Maria, São Paulo, 1943, 5ª parte)

A CENA DO HORTO SE REPETE…

Sempre causou profunda impressão em Dr. Plinio o paralelo entre o odioso tratamento recebido por nosso Redentor, durante a Paixão, e as ofensas e ingratidões de que é alvo a Igreja Católica.  Reproduzimos aqui algumas reflexões a esse respeito, escritas em 1947.

 

A verdadeira piedade deve impregnar toda a alma humana, e, portanto, também deve despertar e estimular a emoção. Mas a piedade não é só emoção, e nem mesmo é principalmente emoção. A  piedade brota da inteligência, seriamente formada por um estudo catequético cuidadoso, por um conhecimento exato de nossa Fé, e, portanto, das verdades que devem reger nossa vida interior. A  piedade reside ainda na vontade.

Devemos querer seriamente o bem que conhecemos. Não nos basta, por exemplo, saber que Deus é perfeito. Precisamos amar a perfeição de Deus, e, portanto, devemos desejar para nós algo dessa perfeição: é o anseio para a santidade. “Desejar” não significa apenas sentir veleidades vagas e estéreis. Só queremos seriamente algo, quando estamos dispostos a todos os sacrifícios para conseguir  o que queremos. Assim, só queremos seriamente nossa santificação e o amor de Deus, quando estamos dispostos a todos os sacrifícios para alcançar esta meta suprema. Sem esta disposição, todo  o “querer” não é senão ilusão e mentira.

Podemos ter a maior ternura na contemplação das verdades e mistérios da Religião: se daí não tirarmos resoluções sérias, eficazes, de nada valerá nossa piedade. É o que se deve dizer  especialmente nos dias da Paixão de Nosso Senhor. Não nos adianta apenas o acompanhar com ternura os vários episódios da Paixão: isto seria excelente, não porém suficiente. Devemos dar a  Nosso Senhor, nestes dias, provas sinceras de nossa devoção e amor.

Estas provas, nós as damos pelo propósito de emendar nossa vida, e de lutar com todas as forças pela Santa Igreja Católica. A  Igreja é o Corpo Místico de Cristo. Quando Nosso Senhor interpelou São Paulo, no caminho da Damasco, perguntou-lhe: “Saulo, Saulo, por que me persegues? ” Saulo perseguia a Igreja. Nosso  Senhor lhe dizia que era a Ele mesmo que Saulo perseguia. Se perseguir a Igreja é perseguir a Jesus Cristo, e se hoje também a Igreja é perseguida, hoje Cristo é perseguido.

A Paixão de Cristo se repete de algum modo também em nossos dias. Como se persegue a Igreja? Atentando contra os seus  direitos ou trabalhando para dela afastar as almas. Todo ato pelo qual  se afasta da Igreja uma alma, é um ato de perseguição a Cristo. Toda alma é, na Igreja, um membro vivo. Arrancar uma alma à Igreja é arrancar um membro ao Corpo Místico de Cristo. Arrancar  uma alma à Igreja é  fazer a Nosso Senhor, em certo sentido, o mesmo que a nós nos fariam se nos arrancassem a menina dos olhos.

Se queremos, pois, condoer-nos com a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, meditemos sobre o que Ele sofreu nas mãos de seus algozes, mas não nos esqueçamos de tudo quanto ainda hoje se faz  ara ferir o Divino Coração. E isto tanto mais quanto Nosso Senhor, durante sua Paixão, previu tudo quanto se passaria depois. Previu, pois, todos os pecados de todos os tempos, e também os  pecados de nossos dias. Ele previu os nossos pecados, e por eles sofreu antecipadamente. Estivemos presentes no Horto como algozes, e como algozes seguimos passo a passo a Paixão até o alto do Gólgota.

Arrependamo-nos, pois, e choremos. A Igreja, sofredora, perseguida, vilipendiada, aí está a nossos olhos indiferentes ou cruéis. Ela está diante de nós como Cristo diante de Verônica. Condoamo-nos com os padecimentos  dela. Com nosso carinho, consolemos a Santa Igreja de tudo quanto ela sofre. Podemos estar certos de que, com isto, estaremos dando ao próprio Cristo uma consolação  idêntica à que Lhe deu Verônica.

Indiferença para com Deus

Comecemos pela Fé. Certas verdades referentes a Deus e a nosso destino eterno, podemos conhecê-las pela simples razão. Outras, conhecemo-las porque Deus no-las ensinou. Em sua infinita  bondade, Deus se revelou aos homens no Antigo e Novo Testamento, ensinando-nos não apenas o que nossa razão não poderia desvendar, mas ainda muitas verdades que poderíamos conhecer  racionalmente, mas que por culpa própria a humanidade já não conhecia de fato.

A virtude pela qual cremos na Revelação é a Fé. Ninguém pode praticar um ato de Fé, sem o auxílio sobrenatural da graça de Deus. Essa graça, Deus a dá a todas as criaturas e, em abundância  torrencial, aos membros da Igreja Católica. Essa graça é a condição da salvação deles. Ninguém chegará à eterna bem-aventurança, se rejeitar a Fé. Pela Fé, o Espírito Santo habita em nossos corações. Rejeitar a Fé é rejeitar o Espírito Santo, é expulsar de sua alma a Jesus Cristo.

Vejamos, agora, em torno de nós, quantos católicos rejeitam a Fé. Foram batizados, mas no curso do tempo perderam a Fé. Perderam-na por culpa própria, porque ninguém perde a Fé sem culpa,  e culpa mortal. Ei-los que, indiferentes ou hostis, pensam, sentem e vivem como pagãos.

São nossos parentes, nossos próximos, quiçá nossos amigos! Sua desgraça é imensa. Indelével, está neles o sinal do Batismo. Estão marcados para o Céu, e caminham para o inferno. Em sua alma  redimida, a aspersão do Sangue de Cristo está marcada. Ninguém a apagará. É de certo modo o próprio Sangue de Cristo que eles profanam quando nesta alma resgatada acolhem princípios,  máximas, normas contrárias à doutrina da Igreja. O católico apóstata tem qualquer coisa de análogo ao sacerdote apóstata.

Arrasta consigo os restos de sua grandeza, profana-os, degrada-os e se degrada com eles. Mas não os perde. E nós? Importamo-nos com isto? Sofremos com isto? Rezamos para que estas almas se  convertam? Fazemos penitências? Fazemos apostolado? Onde nosso conselho? Onde nossa argumentação? Onde nossa caridade? Onde nossa altiva e enérgica defesa das verdades que eles negam  ou injuriam? O Sagrado Coração sangra com isto. Sangra pela apostasia deles, e por nossa indiferença. Indiferença duplamente censurável, porque é indiferença para com nosso próximo e  sobretudo indiferença para com Deus.

Coincidência ou conspiração? Quantas almas, no mundo inteiro, vão perdendo a Fé? Pensemos no incalculável número de jornais ímpios, rádio-emissões ímpias, de que diariamente se enche o  orbe. Pensemos nos inúmeros obreiros de Satanás que, nas cátedras, no recesso da família, nos lugares de reunião ou diversão, propagam idéias ímpias. De todo este esforço, quem há de admitir que nada resulte? Os efeitos de tudo isto estão diante de nós. Diariamente, as instituições, os costumes, a arte se vão descristianizando, indício insofismável de que o próprio mundo se vai perdendo para Deus.

Não haverá em tudo isto uma grande conjuração? Tantos esforços, harmônicos entre si, uniformes em seus mé- todos, em seus objetivos, em seu desenvolvimento, serão mera obra de  coincidências? Onde e quando, intuitos desarticulados produziram articuladamente a mais formidável ofensiva ideológica que a história conhece, a mais completa, a mais ordenada, a mais  extensa, a mais engenhosa, a mais uniforme em sua essência, em seus fins, em seu evoluir?

Não pensamos nisto. Nem percebemos isto. Dormimos na modorra de nossa vida de todos os dias. Por que não somos mais vigilantes? A Igreja sofre todos os tormentos, mas está só. Longe, bem  longe dela, cochilamos. É a cena do Horto que se repete. (…) Incontável falange de almas tíbias E entre nós? Esta Fé que tantos combatem, perseguem, atraiçoam, graças a Deus nós a possuímos. Que uso fazemos dela? Amamo-la? Compreendemos que nossa maior ventura na vida consiste em sermos membros da Santa Igreja, que nossa maior glória é o título de cristão? Em caso  afirmativo — e quão raros são os que poderiam em sã consciência responder afirmativamente — estamos dispostos a todos os sacrifícios para conservar a Fé?

Não digamos num assomo de romantismo, que sim. Sejamos positivos. Vejamos friamente os fatos. Não está junto de nós o algoz que nos vai colocar na alternativa da cruz ou da apostasia. Mas  todos os dias, a conservação da Fé exige de nós sacrifícios. Fazemo-los? Será bem exato que, para conservar a Fé, evitamos tudo que a pode pôr em risco? Evitamos as leituras que a podem  ofender? Evitamos as companhias nas quais ela está exposta a risco? Procuramos os ambientes nos quais a Fé floresce e cria raízes? Ou, em troca de prazeres mundanos e passageiros, vivemos em  ambientes em que a Fé se estiola e ameaça cair  em ruínas?

Todo homem, pelo próprio fato do instinto de sociabilidade, tende a aceitar as opiniões dos outros. Em geral, hoje em dia, as opiniões dominantes são anticristãs. Pensa- se contrariamente à Igreja em matéria de filosofia, de sociologia, de história, de ciências positivas, de arte, de tudo enfim. Os nossos amigos, seguem a corrente. Temos nós a coragem de divergir? Resguardamos nosso  espírito de qualquer infiltração de idéias erradas? Pensamos com a Igreja em tudo e por tudo? Ou contentamo-nos negligentemente em ir vivendo, aceitando tudo quanto o espírito do século nos inculca, e simplesmente porque ele no-lo inculca?

É possível que não tenhamos enxotado Nosso Senhor de nossa alma. Mas como tratamos este Divino Hóspede? É Ele o objeto de todas as atenções, o centro de nossa vida intelectual, moral e  afetiva? É Ele o Rei? Ou, simplesmente, há para Ele um pequeno espaço onde se O tolera, como hóspede secundário, desinteressante, algum tanto importuno? Quando o Divino Mestre gemeu,  chorou, suou sangue durante a Paixão, não O atormentavam apenas as dores físicas, nem sequer os sofrimentos ocasionados pelo ódio dos que no momento O perseguiam. Atormentava-O ainda tudo quanto contra Ele e a Igreja faríamos nos séculos vindouros. Ele chorou pelo ódio de todos os maus, de todos os Arios, Nestórios, Luteros mas chorou também porque via diante de si o cortejo interminável das almas tíbias, das almas indiferentes que, sem O perseguir, não O amavam como deviam.

É a falange incontável dos que passaram a vida sem ódio e sem amor, os quais, segundo Dante, ficavam de fora do inferno porque nem no inferno havia para eles lugar adequado. Estamos nós  neste cortejo? Eis a grande pergunta a que, com a graça de Deus, devemos dar resposta nos dias de recolhimento, de piedade e de expiação em que vamos entrar agora.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do Legionário, nº 764, de 30/3/1947. Título e subtítulos nossos.)

Semana Santa

Sob o peso da Cruz, o Divino Redentor suportava o fardo das nossas fraquezas, padecendo por nós todas as suas dores. Que esta verdade incite a profunda gratidão de nossa alma e nos seja motivo de ilimitada confiança. Pois quem se viu resgatado por preço tão imenso, embora pouco mereça, deve esperar que esse Sangue preciosíssimo se derrame sobre ele para regenerá-lo e salvá-lo, despertando em seu coração o movimento que o reconduza ao caminho da virtude e o leve, finalmente, ao Céu.

Cântico da fidelidade

Segundo as revelações de Sóror Maria de Ágreda, na noite do sábado da Paixão, Nossa Senhora “fazia heroicos atos de Fé, esperança, amor, veneração e culto à divindade e humanidade de seu Filho e Deus verdadeiro; com genuflexões e prostrações O adorava, e com admiráveis cânticos O bendizia”.

Um quadro extraordinário se nos apresenta à imaginação: Maria Santíssima, sozinha no silêncio daquela noite trágica, talvez no próprio recinto onde se realizou a Última Ceia, interrompendo suas preces para cantar as suas reparações ao Criador.

Ela que entoara o “Magnificat” num momento de gáudio indizível, agora compensava, pelo seu cântico de fidelidade, todas as injúrias e ofensas sofridas por Jesus.

Cena em extremo tocante, contemplada apenas pelos Anjos: na noite da desolação, o canto da alma mais virtuosa em toda a Terra elevando-se até o Céu…

Plinio Corrêa de Oliveira

Como um mendigo

Importa à nossa devoção filial formarmos uma ideia inteira da bondade e do perdão ilimitados de Maria Santíssima para conosco; reconhecermos a necessidade do nosso contínuo apelo a esse perdão e a essa bondade maternais.

Cumpre recorrermos a Ela em todos os momentos, de joelhos em terra, como humildes e confiantes mendigos, batendo no peito e estendendo-lhe o chapéu de nossa indigência. Então Nossa Senhora se faz toda doçura, suavidade e paciência em relação a nós; perdoa-nos e nos cura, até mesmo de nossas ingratidões mais descabidas…

Olhar de insondável desvelo

Se, em meio às nossas aflições, acaso nos assalte a dúvida de que Maria Santíssima nos socorrerá, lembremos com que imensidade de ternura Ela olhava para o seu Filho perseguido durante a Paixão, e pensemos: “Com que maternal e insondável desvelo não estará também fitando a mim, nessa hora de provação?”

Não duvidemos. Nossa Senhora nos alcançará graças, e incutirá na alma de cada um a força necessária para transformarmos o momento de angústia em fator de crescimento espiritual, em período de preparação para realizarmos, em nome d’Ele, grandes feitos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 22/3/1967)

Dor e glória

Em Nosso Senhor Jesus Cristo o que mais atraía Dr. Plinio era seu sofrimento, com o matiz de majestade, de sabedoria profunda, de transcendência em relação a tudo, com uma bondade que  chega até o último ser.

Passemos à consideração da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, com base em um bonito Crucifixo.

Dor, majestade, paz e misericórdia

A meu ver a fotografia faz ver uma beleza do Crucifixo — porque a fotografia não pode inventar —, mas que só um olhar muito atilado de um bom crítico de arte percebe. Arte só, não, piedade. Como o estado de alma de Nosso Senhor no alto da Cruz está bem interpretado!

Os dois pontos da escultura em que mais o trabalho artístico e a expressão se aprimoram são: os lábios abertos, os dentes separados ligeiramente, dando a ideia, também levemente, do queixo caído; depois, os olhos que fitam, triste e desoladamente, alguma coisa que eles estão contemplando, mas não estão vendo.

O olhar está distante, na consideração de algo muito diverso que o enche de tristeza. O queixo, assim ligeiramente caído, dá a impressão de tal abandono das forças, que não há mais vigor nem sequer para manter cerrados os lábios.

Contudo, apesar do extremo dessa dor moral, mais do que física — de fato, Nosso Senhor sofreu mais a Alma do que no Corpo durante a sua Paixão —, nós notamos uma paz, uma misericórdia, uma delicadeza de sentimentos, em que o furor não está presente. A tristeza, sim, está em tudo e por tudo. Mas uma tristeza tal que, Esse condenado à morte, privado dos trajes que qualquer passante possui, entretanto tem uma atitude que deixa longe a majestade de qualquer rei!

O artista soube muito bem representar os cabelos de Nosso Senhor, não penteados direito — porque isso não teria propósito depois de tudo quanto Ele sofreu —, mas lindamente desgrenhados, de maneira a formarem cachos lindíssimos! A barba é tão pequena que não daria jeito para pô- -la revolta. Então, ela cai ordenadamente para emoldurar o rosto.

Nosso Senhor chorou também a decadência das nações católicas

A pessoa que contempla essa imagem tem quase a impressão de que entrará, de um momento para outro, no campo de visão desse olhar. O aspecto de tristeza é pungente.

Durante sua Paixão e Morte, Nosso Senhor Jesus Cristo previa tudo quanto iria acontecer até o fim do mundo, como a humanidade tomaria aquele sacrifício extraordinário, único, realizado por  Ele; gemia e sofria por todas as ingratidões que os homens teriam para com Ele. De vez em quando, o horizonte da História era cortado, diante de seus olhos proféticos, por esta ou aquela figura, este ou aquele Santo, esta ou aquela Ordem religiosa, esta ou aquela escola de pensamento, esta ou aquela Cruzada cheia de fervor.

E o Divino Redentor sentia-Se confortado em meio a sua dor. Isso não O terá ajudado a carregar a Cruz e a sofrer sua Paixão até o último alento, até o último ponto em que Ele disse: “Meu Deus,  meu Deus, por que Me abandonaste?” (Mt 27, 46).

Podemos ter certeza de uma coisa: em determinado momento, Ele chorou a decadência das nações católicas do Ocidente. Tudo quanto nos causa horror nos dias de hoje, que repulsa terá provocado à santidade infinita do próprio Deus?

Percebem-se os grandes espinhos que transpassaram a fronte de Nosso Senhor. No alto do olho esquerdo nota-se uma machucadura terrível. Tem-se a impressão de que um espinho esteve lá e caiu, deixando um ferimento medonho.

Vejam com quanta delicadeza escorre o Sangue ao longo do Corpo Divino, de maneira a formar dois longos filetes, na ponta de cada um dos quais está um rubi!

O primeiro canonizado da História

A impressão de desolação e de desamparo é muito acentuada nesta fotografia. É uma dor de quem sabe não ter remédio, nem limite, e caminha para a morte que se anuncia, não com as  consolações de quem está esperando o Céu, mas na tristeza do que vai acontecer, porque Ele percebe a maldade dos homens que estão se jogando contra Ele.

Podemos imaginar a diferença entre essa fisionomia e a que deve ter feito o bom ladrão, no momento em que ouviu Nosso Senhor lhe dizer: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43).

Ao dizer ao bom ladrão que ele estaria no Paraíso, Jesus afirmava, antes de tudo, que Ele estaria lá, e o ladrão se encontraria com  Ele. O bom ladrão foi o primeiro canonizado na história das  canonizações; teve ali o Céu garantido.

Por que Nosso Senhor disse isso a ele? O bom ladrão pediu perdão e Jesus o perdoou. Mas na hora de perdoá-lo o Redentor quis dar-lhe essa alegria, para ele transpor com ânimo os terríveis  umbrais da morte.

Ora, essa alegria não se nota neste semblante. Alguém dirá: “Dr. Plinio, não há uma contradição?” Não. Jesus quis beber a taça da dor até o fim, sofrer tudo quanto era possível sofrer. Ao outro Ele  deu uma alegria no momento do passo final. Nosso Senhor entrou triste na hora de sua Morte, mas logo depois Ele teve, naturalmente, a alegria em que sua Alma santíssima, hipostaticamente unida à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, deixava de sofrer as dores do Corpo. Começava o período em que Ele ia ao Limbo para encontrar todas as almas que estavam lá e levá-las para o Céu.

A boa tristeza e a má alegria

Nesse semblante a desolação parece tão profunda que se tem a impressão de não tardar para sobrevir a morte. A desolação moral é maior do que a física. Dir-se-ia ser uma longa meditação que vai chegando às suas últimas e mais amargas consequências.

Os autores que comentam a construção das grandes catedrais da Idade Média observam que elas são construídas na consideração da glória de Cristo Ressurrecto. E que a ideia da alegria e da vitória d’Ele encheu de luz a piedade dos medievais.

É verdade que, quando a Idade Média começava talvez a entrar no seu declínio — é difícil precisar —, iniciou-se um movimento extraordinário de devoção a Nosso Senhor Jesus Cristo crucificado.

Esse movimento foi se difundindo por São Francisco de Assis com os estigmas, etc. Mas o que a Idade Média deixou de mais característico foi Cristo Ressurrecto.

Entretanto, desde menino, o que mais me impressionou foi Jesus Cristo na sua dor. Estivesse Ele crucificado ou não; numa atitude como o Sagrado Coração de Jesus, mostrando seu Coração aos  homens e dirigindo- -Se a eles; ou em qualquer outro episódio  de sua vida, como naquele conjunto escultural da Igreja do Sagrado Coração de Jesus que O representa entre os doutores no  Templo, etc.; o que sempre me atraiu mais para considerar e adorar foi a Ele enquanto, naquele determinado episódio, sofrendo.

E dando ao seu sofrimento aquele matiz de majestade, de sabedoria profunda, de transcendência em relação a tudo, mas de bondade que chega até o último ser, o último verme,  o último pecador  que se coloque diante d’Ele. Isto foi o que sempre, de modo muitíssimo especial, atraiu- -me n’Ele e me levou a adorá-Lo. Não custei a perceber que essa disposição de minha alma estava em contraste diametralmente com a alegria de fandango que dominava a minha época de menino, com a difusão de toda a atmosfera de Hollywood, de todo o ambiente do cinema moderno, criando  um clima de alegria artificial, doida, tonta, agitada, sedenta de pecado e já meio imersa no pecado, que caracterizava o meu tempo de infância. Então, era uma alegria má. E eu ficava colocado  entre a boa tristeza e a má alegria.

Eu não sabia discernir bem entre a boa e a má alegria, e me parecia que havia no mundo duas correntes, considerado o mundo do ponto de vista psicológico: uma era a dos que amavam a dor e  que, portanto, adoravam a Nosso Senhor; e a outra a dos que amavam a alegria e eram os partidários do cinema. E isso formava uma contradição que eu não sabia explicar inteiramente.

Porém, eu era levado a um equívoco de ponto de vista, segundo o qual toda pessoa alegre era suspeita de certa adesão ao fandango cinematográfico, que ia arrastando tantas e tantas almas para o  pecado. Pelo contrário, a pessoa triste eu considerava que estava sempre no caminho certo, pelo menos para se converter, se não era uma pessoa inteiramente virtuosa.

Levei anos para perceber que aqueles que estão tristes com Nosso Senhor são os alegres desta vida, e aqueles que estão alegres com satanás são os tristes desta vida.

Tristeza digna, nobre, varonil

Sempre me pareceu que, apesar disso ser verdadeiro, por estarmos nesta época de tanto pecado e  tanta ignomínia — que determinou  a mensagem de Fátima com tudo o que ela contém —, o  autêntico católico poderia ter sua alma alegre, estaria bem, mas essa alegria nunca deixaria de ter um véu de tristeza digna, nobre, varonil, como quem acompanha Nosso Senhor até o alto da Cruz.

Observando as cerimônias religiosas daquele tempo, eu notava isto: mesmo nas cerimônias mais gaudiosas estava presente um traço de dor, certa compaixão a qual tinha por objeto a Nosso  Senhor Jesus Cristo. Inclusive na festa mais límpida, mais alegre, mais desanuviada, o  Natal, havia uma nota de tristeza, de compaixão do Menino que nasce tão pequenino, no frio, deitado na  mera palha, e que vem começar sua longa jornada na Terra… Essa nota de compaixão perpassava as alegrias luminosas  e magníficas do Natal.

Na própria Páscoa da Ressurreição, Nosso Senhor é apresentado ressurrecto, mas com suas chagas brilhando.

As chagas lembram tudo aquilo pelo que Ele passou. Quer dizer, uma reminiscência da dor, da Cruz sempre presente, de um modo ou de outro, numa cerimônia católica. Foi por essa razão  também que eu quis sempre ter a cruz nas nossas sedes: cruzeiros pretos, altos, secos, como foi negra e sem consolações a Paixão de Nosso Senhor. E dois magníficos crucifixos na Sede do Reino  de Maria, um dos quais acabamos de comentar. Assim me veio a ideia de ser esta a posição natural da alma do católico.

Daí nasce a seguinte convicção: a vida, para ser tomada catolicamente, tem que levar consigo esse traço de grandeza e de seriedade, sem o qual ela não vale nada. A vida é uma participação na Cruz  e Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu tenho que sofrer como Ele sofreu. E quanto mais eu padecer, tanto melhor será, porque terei tido maior honra de me achegar mais a Ele.

E, diante do sofrimento, adestrar a nossa sensibilidade. Não para fugir, não para rogar incondicionalmente a Nossa Senhora que afaste de nós a dor. Pedir pode-se. Ele mesmo pediu: “Se for  possível, afastai de Mim este cálice”. Mas Ele acrescentou: “faça-se a vossa vontade e não a minha” (cf. Lc 22,42).

Assim nós devemos olhar para a dor que nos espreita no caminho: “Se for possível, afastai de mim este cálice; se não for possível, faça-se a vossa vontade e não a minha”. E estar com a alma  preparada e temperada para, a qualquer momento, com paz, com varonilidade e, sobretudo, com espírito de Fé suportar qualquer dor: a mais inopinada, a mais injusta, a que abalaria mais nosso   princípio axiológico. Seja lá o que for, aguentar, porque foi assim que Ele sofreu.

Que Nossa Senhora nos ajude a ter essas reflexões bem no fundo de nossas almas.

Penetramos nos tempos cujo dia seguinte nós não conhecemos. Espreitar-nos-á a dor? Talvez! Se nos espreitar a dor, nos espreita a glória. Vamos para a frente!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/8/1985)

REFRIGÉRIO, LUZ E PAZ

Belo ao extremo é o fato de que, no Novo Testamento, Deus tenha diminuído a distância entre Ele e os homens, descendo até nós e tomando a nossa natureza, através da Encarnação do Verbo, efundindo largamente suas graças e dádivas celestiais, de modo ainda mais intenso do que o fazia no Antigo Testamento.

Essa disposição divina determina, então, uma mudança na ótica da história humana: aquilo que era próprio das almas muito eleitas e grandes, transforma-se em dom esplêndido também para as  menores e até para as muito pequenas. Tal é a prodigiosa efusão de graças do Novo Testamento.

Exemplo eloquente — embora pouco frisado — de manifestação dessa riqueza espiritual encontramos nos “gisants” das sepulturas medievais. Sempre me entusiasmou a visão daquelas imagens de cavaleiros jacentes, estendidos sobre a laje de seus túmulos, revestidos de armadura, a espada cingida ao lado, as mãos postas e os olhos fechados para o tempo, fitando a eternidade.

Figuras de cruzados prontos para a batalha, porém, enquanto a hora desta não soa, eles repousam. Não é a imagem de quem morre, mas de quem descansa à espera do Céu. Claro, sob aquela silhueta talhada em mármore ou granito, acha-se um corpo em decomposição. Provavelmente, já agora, séculos transcorridos, apenas um punhado de pó. Entretanto, se viveu e morreu naquela  bendita atmosfera de bênçãos e graças, terá alcançado a bem aventurança eterna. No dia do Juízo, esse mesmo corpo ressurgirá e se unirá de novo àquela alma que mereceu a visão beatífica.

Outras sepulturas ostentam a imagem de algum importante prelado, numa postura compenetrada e séria, como se preparado estivesse para sua última e solene celebração eucarística: vestido com seus paramentos de gala, a mitra cingindo sua fronte, e o báculo ao seu lado, símbolo perene de seu poder eclesiástico.

Pode-se ver, ainda, as esculturas de nobres casais, dormindo o sono da morte sobre seus túmulos. Em geral, trazem a coroa correspondente ao grau de nobreza a que pertenciam, e suas vestes são aquelas que trajariam para uma grandiosa festa que dessem em seus domínios. Ambos, marido e mulher, numa união admirável percebida até na representação fria da pedra e do mármore. Ao mesmo tempo recendendo uma tal pureza e castidade, que é edificante contemplá-los estendidos na laje sepulcral, eles também aguardando a ressurreição da carne.

Há nessas imagens um reflexo daquele recolhimento profundo, daquela sensação experimentada por almas que se encontravam estavelmente, sem perder o fôlego, sob a dita efusão de graças que  a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo trouxe para o mundo.

Símbolos de uma ordenação de espírito, de seriedade, deliberação e orientação conformes os desígnios de Deus para todos e cada um dos homens, de tal maneira que, vendo-os ali, silenciosos e  serenos, tem-se a impressão de entrarmos em outro universo: abandonamos essa frigideira de pecados que é a civilização contemporânea, e imergimos num lugar onde só existem refrigério, luz e paz…

 

Magnífica expressão do holocausto divino

Entre os tesouros da arte barroca conservados em Minas Gerais reluz uma peça de extrema beleza, exposta à veneração dos fiéis na Igreja de São Francisco de Assis, na histórica cidade de São João del Rei. A origem dessa preciosidade é assim narrada pelas crônicas:

Estava já a igreja no século XVII inteiramente terminada, inclusive em sua decoração interna, quando se percebeu faltar o elemento que deveria coroar o cimo do altar-mor: o Crucifixo, em que o Divino Crucificado dirigia a palavra a São Francisco.

Pasmo da comissão encarregada da decoração! O que fazer? Os artistas contratados negavam-se a continuar por mais tempo os afazeres naquela igreja, alegando contratos a cumprir em outros lugares. E assim, ficou-se numa grande indecisão. Foi quando por aquelas plagas apareceu um nobre ancião, de feições muito dignas, oferecendo-se para esculpir o Crucificado, e desse modo encerrar a obra artística daquele templo. Não sendo conhecido de ninguém, e não podendo apresentar referências à altura da tarefa, mandaram-no embora.

Passado um certo período, voltou o ancião, reiterando a sua oferta. Novamente, por falta de referências, foi rejeitado sem escrúpulos. Após mais um tempo, e não se tendo achado ainda nenhum  outro artista que quisesse levar a obra a cabo, voltou pela terceira vez o bom velho, apresentando seus serviços. Não tendo outra escolha, os encarregados decidiram aceitá-lo, perguntando-lhe quais eram suas condições.

Respondeu o ancião que não pedia nada antes de findo o serviço. Terminado, retribuiriam, caso julgassem a obra bem feita. Solicitava apenas que recebesse uma refeição e uma medida de água por dia, à hora do almoço. Por outro lado, exigia fazer todo o trabalho sozinho, trancado em uma sala, sem comunicação com o exterior, a qual só seria rompida estando tudo acabado.

Assim foi-lhe concedido. Transcorridos vários dias, verificaram os responsáveis que os alimentos deixados para o bom velho junto à porta da sala não estavam mais sendo retirados por ele. Reuniram-se então as autoridades e tomaram a decisão de arrombar a porta, a fim de saberem o que ali estava se passando. Entraram  e… surpresa! O respeitável ancião havia desaparecido, e um Crucifixo magnífico, de traços como jamais se vira, estava ali inteiramente esculpido! Esse Crucifixo é o que se encontra hoje no topo do altar-mor da Igreja de São Francisco de Assis, em São João del Rei.

Muitos crucifixos exprimem com doçura, dignidade e profundidade de alma extraordinárias a dor d’Aquele que está para expirar, e até o sangue divino escorre nobremente pelo corpo chagado.

Dir-se-ia um desenho de beleza, os filetes vermelhos irrigando magnificamente a figura do Salvador. Mas nesse de São João del Rei —  um dos mais belos e comovedores  Crucifixos que tenho visto  em minha vida —, está expresso de modo único, preciso e extremo o sofrimento espantoso de Nosso Senhor no alto da cruz. Não O magoa apenas a imensa tristeza causada pela perseguição injusta e pela ingratidão de que Ele é objeto.

Os olhos escancarados e salientes, a tensão de toda a carnatura da face e a posição do pescoço incutem a impressão de algo muito mais aflitivo do que a dor: é o mal-estar. Um mal-estar terrível,   pior do que qualquer padecimento, inundando completamente a Alma adorável e o sagrado Corpo de Nosso Senhor no madeiro.

Dir-se-ia que, nesta posição e com essa expressão fisionômica, o Divino Redentor não estaria distante de exalar o brado sublime que precedeu de momentos a sua morte: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?

Tudo n’Ele está prestes a estalar, a desaparecer. O “consummatum est” se aproxima. Sofrimento indizível cuja consideração deve nos preparar para nos unirmos a Jesus, pelos rogos de Maria Santíssima, em nossas dores, em nossas perplexidades e aflições de espírito, nas horas em que parecemos sucumbir ao peso da angústia e pensamos estar, nós também, abandonados pela Providência.

Sim, também para nos infundir ânimo e coragem esse Crucifixo é verdadeiramente sublime! Como não nos enchermos de confiança e de força de alma, ao considerarmos tudo quanto Ele padeceu por nós? Ei-Lo no auge do estertor, do não caber mais em Si. É o mal-estar nos seus aspectos mais terríveis. E assim como o poeta francês cantou “le charme plus beau que la beauté” — o encanto mais belo que a beleza —, deste Crucificado eu diria que sofre “o mal-estar mais dolorido que a própria dor!”

É o holocausto do Homem-Deus retratado de um modo magnífico. E essa perfeição de talhes justifica a suspeita de que o artífice, aquele “bom velho” desaparecido misteriosamente, não era senão um anjo, enviado por Deus para esculpir ali essa obra prima da arte católica. Esse é um Crucifixo cinzelado por mãos angélicas.

Dir-se-ia, mesmo, que o artista celestial esteve presente no Calvário, viu a Nosso Senhor nesse estado, lembrou-se da adorável fisionomia que então contemplou e a reproduziu. De tal maneira essa face divina corresponde, não ao que poderíamos imaginar, mas ao que não logramos conceber. Somente depois de admirá-lo, percebemos que deve ter sido realmente assim…

De passagem, cabe outro comentário. Nada há de mais contagioso do que o mal-estar. Por exemplo, se nos achamos perto de alguém que esteja padecendo de asfixia, facilmente nos deixamos  tomar pela aflição dele, e logo parecemos acometidos por igual tormento. Ora, o divino mal-estar de Jesus, como seria contagioso para quem tivesse um mínimo de compaixão! Quiçá, não terá sido a consideração desse mal-estar em sua fase ascensional que tocou e converteu o bom ladrão?

Mais. Incomparavelmente mais. Ao pé da Cruz encontrava-se Maria Santíssima: como A terá contagiado esse mal-estar? Que disposições de alma, que permuta de sentimentos determinou entre Ele e Ela, tão íntima, tão profunda, tão completa, tão total como nem podemos imaginar! Era preciso que um artista se inspirasse nesse Crucifixo para esculpir uma “Mater Dolorosa”. Então compreender íamos melhor Nossa Senhora das Dores, a sua aflição, o gemido do mal-estar levado, n’Ela também, ao seu extremo.

O exemplo de Simão Cireneu

Enquanto O conduziam, detiveram um certo Simão de Cirene, que voltava do campo, e impuseram-lhe a cruz para que a carregasse atrás de Jesus” (Lc 23, 26). Falando de improviso para um  auditório de jovens, Dr. Plinio compôs um quadro em torno desse episódio da Paixão.

A figura de Simão Cireneu nos aparece de passagem, na breve porém eloquente narração do evangelista. Uma só frase, através da qual podemos fazer peregrinar nossa imaginação.

Assim, devemos pensar no Cireneu como um homem modesto, pobre, levando a sua existência rural do melhor modo que lhe era possível, com aquela felicidade própria dos menos abastados,  livres dos problemas e apreensões que muitas vezes rondam os donos de maiores posses.

A perspectiva de aceitar a dor

Vinha ele, portanto, caminhando despreocupadamente, a atenção voltada para as miudezas de sua vida simples e alegre: a sandália meia desgastada que era preciso consertar; um passarinho avistado num arbusto da estrada, e que talvez fosse divertido apanhar e levar para comer ou conservar numa gaiola, etc., etc. Quiçá viesse cantarolando e assoviando, sem ter a mínima ideia do que o aguardava pela frente.

De súbito, ouve os gritos de uma turbamulta: “Mata! Mata! Crucifica! Crucifica!” Logo depois, fortes gemidos: “Ai, ai! Tende pena de mim!” E a tragédia irrompeu na tranquila vida do Cireneu. Ele nunca ouvira ninguém gemer daquele modo. Que dor lancinante! “Quem seria o homem que bradava assim? Mas, estaria gritando ou cantando? Que voz harmoniosa, que timbre bonito! Que  vontade eu teria de ajudar esse homem que geme de maneira tão celeste. Quem será ele?”

Sentiu-se meio atraído, pela primeira vez, por algo que nunca o interessara na vida. Quando ele via alguém sofrer, tinha desejo de fugir. A dor é o que a sua alegria despreocupada não queria. Seu impulso era o de se esquivar a todas as mágoas, escapar dos que sofrem, pois de repente o padecimento alheio o contagiaria. Entretanto, aquele homem à sua frente necessita de uma ajuda, implora por um apoio. O Cireneu tem pena, e vislumbra a tragédia na qual ele jamais gostaria de entrar. Securitário, quer se afastar daquele caminho.

Ao mesmo tempo, porém, a voz chegava mais perto, e os berros dos algozes também se tornavam mais altos. Simão pensava: “Que contraste! Quando este homem geme, seus lamentos são uma música; e esses que gritam contra Ele, que o perseguem, que barulho medonho, que vozes horrorosas, que charanga sem harmonia, que gente má! Estou com vontade de tomar um partido”.

Era a graça que, sem ele saber, penetrava na sua alma, em seu coração rachado de pena, inclinando-o a fazer o bem. Mas, de outro lado, vinha o egoísmo, a tentação do demônio: “Cuidado! Pense em si, não se incomode. Fuja!

Isto aqui dará encrenca, e de repente você vai para a dor junto com ele. Dor, não! Fuja da dor! Idiota, não se comova”.

O encontro com Jesus

Indeciso, ele continua a ir para a frente. Em certo momento dá-se o encontro: o Cireneu vê um homem de trinta e três anos, longos cabelos desalinhados, gotejando sangue, o rosto coberto de contusões que o tornavam azul num ponto e noutro, o nariz naturalmente arqueado, quebrado por uma pancada brutal, os olhos pisados, a cabeça coroada de espinhos, e com uma cruz pesadíssima às costas, penosamente arrastada por Ele.

Simão se enche de horror: “Mas, há tanta dor assim na vida? Pode acontecer isso a alguém? Eu nunca pensei que isso pudesse acontecer a ninguém, e de repente aconteceu a Ele. Não pode, então, acontecer a mim?”

Um dos legionários romanos, um dos senhores da Terra Santa, reluzindo no seu capacete magnífico, sua armadura lustrosa, lanças e armas de César, avista o Cireneu nessa indecisão e lhe diz  brutalmente: — Pegue a ponta da cruz!

Ele pensa: “Como?! Essa cruz ensopada de sangue? Eu vou me molhar com ele”. Mas, enquanto racionava assim, um raio de sol incide sobre o sangue, e este brilha com uma linda cor rubi. Simão se sente atraído, algo lhe diz: “Esse sangue é a salvação, agarre-o!” Mas… mas… mas… e a dor, e o peso dessa cruz?

—Pegue já! — insiste o legionário. — Porque este homem não está aguentando mais, e ainda tem de subir até o alto daquela montanha! “Mas, então tenho de levar essa cruz até aquele monte, atrás desse pobre coitado, gemendo? Não tenho coragem, é muito esforço e não gosto de fazer esforço. Oh! Como é isso?”

—Pegue, se não você apanha! “Agora a situação se complica, porque se trata do meu sangue. Dessa não fujo… Devia ter escapado antes. Vou ter de pegar”.

Diálogo de olhares

Simão apanha a cruz. Aquele que a carrega o fita, e ele percebe que esse olhar o penetra completamente. Sente algo de único em sua vida, pois ninguém jamais o olhou assim. Um olhar extraordinário, demonstrando que o conhecia desde sempre, e o envolvia de um afeto incomparável.

Ele se viu conhecido e compreendido nas suas peculiaridades mais pessoais, nas suas dores, das quais aquele olhar tinha pena. Mais do que antes, Simão se sentiu atraidíssimo. Já pegava a cruz, o sangue quente que nela escorria lhe batia nas mãos, e ele se envolvendo naquela tragédia que o cativava.

Um diálogo mudo se estabelece entre o Homem-Deus e o Cirineu. Nosso Senhor lhe diz: “Meu filho, é por você que Eu sofro. Você me vê no auge do abandono, da desgraça, no último ponto do desprezo humano. Mas olhe para Mim. Que misteriosa grandeza, que enigmática e envolvente bondade, que dedilha sua alma como um bom médico toma uma chaga para nela colocar unguento!

Você não sente que está sofrendo fisicamente com o peso da minha cruz, mas a sua alma experimenta uma leveza inusitada? Não percebe um horizonte novo abrindo-se para você?”

Estão ao pé do Calvário. É preciso continuar a subir e a cruz para Simão é cada vez mais pesada. Ele pensa: “É terrível isso, mas mais terrível seria se eu jogasse a cruz no chão e Ele caísse sob o  peso dela, quebrando as palmas das suas mãos nas pedras desse caminho. Eu não suportaria isso. Agora eu vou até em cima.”

Subiu e, lá no alto, humilde, respeitoso, com bondade ajudou Nosso Senhor a deitar a cruz no chão. Jesus lhe dirigiu um olhar de reconhecimento, o último que deu para Simão. O Cireneu afastou-se e notou que os romanos já não estavam pensando nele. Achava-se fora da tragédia. Enquanto se distanciava, ouviu as ordens gritadas pelos esbirros: “Abra os braços! Estenda bem as pernas!

Vamos cravar esses pregos nas suas mãos e nos seus pés!” E a pancadaria começou.

Feliz encontro com Nossa Senhora

De longe, ao mesmo tempo apavorado e fascinado, ainda limpando na sua  túnica as mãos tintas do sangue de Jesus, o Cireneu acompanhou todo  o desenrolar daquele terrível drama em que se consumava a Redenção da humanidade. Observou o diálogo de Nosso Senhor com os dois ladrões, soube da promessa do Paraíso que Ele assegurou a Dimas; viu o povinho que passava sob a cruz; alguns que vaiavam o Crucificado, outros que O apedrejavam, e outros que choravam. Reparou no céu que ia se escurecendo, a tarde que se transformou em noite, e então ouviu o derradeiro brado de Jesus: “Tudo acabou!

Aos pés da cruz havia um grupo de mulheres, entre as quais uma que trazia o rosto encoberto, mas exercia sobre o Cireneu atração parecida com aquela exercida pelo Homem-Deus. Ele  perguntou: — Quem é aquela que se esconde?

— É a Mãe d’Ele. A Mãe d’Ele? Mas, para mim Ela vale mais que uma rainha, mais que uma imperatriz, mais que todo o mundo! Que honra ser Mãe desse homem fracassado, desse homem tão inábil que, sendo inocente, não evitou a própria morte. Que sabedoria a desse homem derrotado, e que vitória essa cena!

O Cireneu continuava a olhar para aquele quadro grandioso à sua frente, e teve medo. Sobretudo quando sentiu a terra tremer, o Templo balançar, e viu estranhas figuras andando de um lado para outro, olhos fechados, envoltas em faixas de panos brancos (como eram então sepultados os cadáveres), e dizendo terríveis censuras ao povo.

Simão quis falar com aquela Senhora, mas não ousou. Achou-a tão pura, que ele não tinha o direito de dirigir-Lhe a palavra. Logo depois, Ela se afastava com o cortejo que conduzia o Divino  Redentor para a sepultura, com todo o ritual que precedia a deposição do corpo no seu túmulo. Ele não teve coragem de acompanhá-La, e pensou: “Afinal de contas, o que me acontecerá? Vejo-me tão cheio de idéias, de preocupações, e estou perdendo a esperança, porque sou um miserável, um medroso, um homem carregado de pecados, e nunca estarei à altura de tudo quanto presenciei…”

O cortejo aproximou-se dele, aquela Senhora deitou um olhar de bondade e só lhe disse duas palavras: “Meu filho!”

Ele pensou: “Ganhei o dia, ganhei a vida, estou perdoado! Vou para casa”.

Ao chegar na sua modesta residência, encontrou a mulher e os filhos dormindo. Tudo estava tranqüilo. Teve então o cuidado de trocar de roupa, tomou a túnica ensanguentada e osculou-a com  reverência. Era o seu primeiro ato de adoração e de fé: “Esse Homem, cujo sangue tinge a minha vestimenta, é Deus!”

Dobrou a túnica como se fosse o maior tesouro do mundo e a guardou onde ninguém podia mexer. Em seguida, dirigiu-se ao pequeno jardim de sua casa, sentou-se num rústico banco de madeira e se pôs a pensar em tudo quanto vira naquele dia. De repente, percebe que algumas pessoas daquele cortejo voltavam do sepulcro, entre elas a Senhora que tanto o impressionara. Simão saiu de novo atrás delas, acompanhando-as até a casa onde moravam. Antes de entrar, a Senhora voltou-se para ele e, do fundo da dor d’Ela, deu-lhe um machucado, mas florido sorriso. Como se lhe dissesse: “Eu vivo aqui”. Entrou e desapareceu.

Simão compreendeu que se tratava de um convite para ele. Passou então a frequentar o convívio com Nossa Senhora e os Apóstolos. Tudo leva a crer que se santificou.

O silêncio paira sobre o desenrolar desta vida que, para a história, começa também no silêncio. Um homem adulto, saído bruscamente da vulgaridade, entra nesse arco de dor e de glória. Acaba cumprindo o seu dever depois de mil dificuldades, e some de novo no anonimato. Mas a sua alma, sem dúvida, foi recebida no Céu. Ele havia tido a honra, a vocação única de, sozinho, carregar a cruz do Cordeiro de Deus.

Sofrendo por Nosso Senhor, O ajudamos a carregar a cruz

E nós, podemos carregar a cruz de Nosso Senhor? Do madeiro em que Ele foi pregado resta apenas um pedaço, em Roma, do qual se extraem fragmentos de um valor moral e religioso inapreciável: são as relíquias do Santo Lenho. Mas, a grande cruz em que o Salvador morreu, esta não existe mais. Como podemos, então, carregá-la?

Há inúmeros modos de fazê-lo, pois inúmeros são os tipos de sofrimento pelos quais passamos. E quando padecemos por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo, estamos carregando com Ele o Santo  Lenho. Sejam as penas físicas que se abatem sobre nós, sejam as dores e provações morais, sejam os desprezos e malquerença de que somos objetos por nossa fidelidade à Igreja Católica, sejam  ainda os duros esforços que, não raras vezes, nos custa a prática exímia dos Mandamentos: sempre que o sofremos, é um passo a mais que damos junto com o Divino Redentor, aliviando-Lhe o peso da cruz.

Cumpre, porém, não nos esquecermos de outra verdade. Ajudando assim a Jesus na sua “Via Crucis”, a exemplo de Simão Cireneu, estaremos, como este, nos tornando merecedores de uma  recompensa demasiadamente grande, de um prêmio de valor incomensurável, que o próprio Salvador nos tem reservado no Céu.