Um reto caminho para a santidade…

A retidão está no âmago de todas as outras virtudes; sem ela,  pequenos defeitos tornam-se monstros gigantescos.

 

Para entendermos o que é a retidão, comecemos tratando a respeito do contrário dela: a falsidade. A falsidade do homem para consigo mesmo, para com os outros e para com Deus, de si, é repelente.

Por falta de retidão, um pequeno problema pode tornar-se gigante

Quando uma alma recebe graças de Nossa Senhora, ela é muitas vezes tocada tão a fundo que o demônio fica impossibilitado de agir sobre ela. Quando este percebe tal impossibilidade, ele propõe, então, a falta de retidão. Quer dizer, um compromisso, um arranjo, um meio-termo, em função do qual a alma, sem abandonar aquilo que amou, passa a amar aquilo que abandonou. Não há aí um jogo de palavras; vou dar um exemplo, para que o tema seja bem entendido.

Uma pessoa tem um problema que não quer ver nem explicitar para si mesma; e isto lhe dá um misto de prazer e sofrimento, no qual ela se deixa refocilar, pelo gosto de ter uma encrenca, pela satisfação da coisa mal explicada dentro da alma. E, por falta de retidão, o micróbio que ela possui na própria alma se transforma numa cobra, a qual pode vir a ser uma sucuri. Ao cabo de um, dois, cinco anos ela está numa crise, e numa crise enorme. Qual foi a origem dessa crise?

Quem desvia os passos do caminho reto é levado para onde não quer ir…

O ponto inicial foi um problema para o qual a pessoa não quis abrir os olhos; a respeito do qual ela não quis abrir-se para alguém, nem ouvir um conselho ou receber uma refutação. Ela desviou seus passos do caminho reto, o qual seria o seguinte:

Primeiro, reconhecer: “Tal ponto constitui em mim uma dificuldade”. Segundo: “Não posso continuar assim. Tenho que me abrir com alguém, e rezar a Nossa Senhora para ver claro”. Terceiro: “Ainda que eu não veja claro, minha fidelidade em nada se abala, porque quanto mais demorar, tanto mais claramente eu verei um dia. Debaixo deste cupim colocado no chão, onde eu não consigo ver nada, um sol está nascendo para me iluminar no futuro”.

Mas se a pessoa sai da verdadeira via, ela começa a andar no oblíquo, e do oblíquo ela derrapa para longe. Se o demônio a tivesse tentado num ponto onde ela adere muito, a pessoa teria rejeitado; entretanto, ele a tenta num ponto pequeno e inicia-se assim o caminho oblíquo. Não é o caminho para baixo, direto para o inferno, mas oblíquo intencionalmente: cada passo a afasta mais um pouco; ao cabo de algum tempo, a pessoa foi levada longe, aonde não queria. Por que ela foi levada longe? Porque lhe faltou a retidão.

Assim somos nós com quase todos os nossos defeitos. Para dizer pouco, não gostamos de olhá-los de frente e, quando os analisamos, só reconhecemos os que saltam aos olhos e não podem ser negados. Entretanto, não abrimos inteiramente o mapa de nossa mentalidade; não temos a coragem de nos censurar de frente e totalmente, procurando as agravantes, ponto por ponto, implacavelmente.

A retidão de uma alma que reconheceu suas faltas

Um famoso escritor francês do século XIX, Louis Veuillot, escreveu um livro com o título “Le parfum de Rome — O perfume de Roma”. Referia-se à Roma pré-garibaldina, anterior aos Saboias; a Roma magnífica do tempo em que os Papas eram reis da Cidade Eterna e de uma província vizinha que formavam os Estados Pontifícios.

Conta Veuillot que, em Roma, ele visitou uma velha basílica a qual o encantou; percorreu-a por dentro e por fora. Passando detrás do templo, numa pedra que fazia parte do fundamento de seu muro externo, ele notou que alguma coisa estava escrita.

Então ele se agachou para olhar e verificou que estava escrito o seguinte: “No dia tal de tal ano pequei! Meu Deus, tenha pena de mim! No dia tal pequei de novo! Meu Deus, tenha pena de mim! Dia tal não pequei, graças a Deus!” Assim, caindo em pecado ou se mantendo em estado de graça, essa alma tinha escrito o seu diário espiritual.

E, um belo dia, ela anotou o seguinte: “Meu Deus, há tanto tempo — digamos seis meses, um ano — eu não peco! “Gloria in excelsis Deo” — Glória a Deus no mais alto dos Céus!” Louis Veuillot fez, a este propósito, um comentário magnífico, dizendo que se ele tivesse encontrado sangue de mártires naquela pedra, não a teria venerado mais do que o fez ao ver esse itinerário que exprimia o sacrifício de uma alma para se libertar de um pecado e readquirir o estado de graça.

Humildade e admiração: frutos da retidão

Isso nos mostra exatamente o que é a retidão. Trata-se de uma alma que o tempo inteiro analisou-se como era e se increpou como merecia. E teve humildade: “Como eu sou torto e errado! Minha Mãe, que estais no mais alto dos Céus, bem junto a Deus, como Vós sois diferente de mim!” Nesse abismo de diferença, ergue-se uma coluna de incenso, de encanto e de admiração.

Quando sabemos increpar os nossos próprios defeitos, nos tornamos capazes de admirar. Porque, quando vemos o mal que há em nós, podemos admirar o bem que não há em nós; assim nós temos admiração sem inveja. Então, do fundo da nossa miséria, sobe aquela coluna de incenso: “Minha Mãe, eu me dobro diante de Vós, não só por execração aos meus defeitos, mas por um corolário necessário dessa execração: a admiração de vossas qualidades”.

Mas quando uma pessoa não tem a coragem de olhar de frente para seu próprio defeito, ela não é capaz de admirar. E o defeito pelo qual não se olha bem a própria alma chama-se falta de retidão. A virtude pela qual nós nos vemos como somos, e admiramos quem não é como nós, chama-se retidão.

A retidão do Imaculado Coração de Maria

A retidão é a integridade por onde a alma realiza tudo quanto deve, e como deve, sem delongas, sem tapeação, sem protelação; e o faz total e inteiramente, ainda que, devido à fraqueza humana, caindo, mas pedindo perdão e se levantando, dizendo a verdade para si mesma. Desta virtude da retidão nascem as famílias de alma retas, das quais surgem as grandes correntes de retidão dentro da História; tudo isso é um reflexo do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria, eu diria, do retíssimo Coração de Maria.

Alguém perguntará: “Mas haverá um símbolo que fale da retidão do Imaculado Coração de Maria?” Sim. É o Coração da Virgem transpassado por sete espadas, representando suas sete dores, que poderiam ser chamadas as sete retidões.

Sete é um número simbólico na Escritura, que indica totalidade. “As Sete Dores de Nossa Senhora” simbolizam as principais, não as únicas.

Assim também podemos dizer que cada espada retilínea foi uma posição firme e reta que Ela tomou diante de tudo. De todas as suas “retilineidades” veio toda a sua dor. E toda a sua dor Lhe veio porque tinha retidão. Maria Santíssima olhou tudo de frente, sofreu e foi até o fim!

Para sermos retos, não devemos olhar para nossas qualidades

O que se passa com os nossos defeitos que não queremos ver de frente, ocorre também com os nossos sofrimentos.

Poucas pessoas têm a coragem de pôr diante de si a ideia seguinte: a vida é um vale de lágrimas, para usar uma expressão mais rigorosa, um campo de batalha. Portanto, só vive uma vida digna de ser vivida quem luta contra o mal, a favor do bem, e se expõe a todos os sofrimentos inerentes à luta! E, então, observa as coisas como o guerreiro dirige seu olhar para o adversário: olha de frente e desfere o golpe.

Outra condição para possuir a virtude da retidão é não olhar para as próprias qualidades. Olhando-as, a pessoa as perde. O melhor meio de perder uma qualidade é olhar para ela. O melhor meio de perder um defeito é olhar para ele.

Por falta de retidão, as pessoas formam uma ideia falsa a seu próprio respeito

A maior parte das pessoas tem preguiça de pensar, e, por causa disso, não prestam real atenção em si mesmas. Fazem, então, uma análise incompleta de si. E a análise incompleta de si própria tem dois aspectos: a pessoa não olha inteiramente seus defeitos e, por causa disso, cai num outro erro, também por falta de retidão: ela começa a imaginar que tem qualidades que não possui. Porque quem não quer ver os defeitos que tem, imagina possuir qualidades que não tem. É forçoso.

A partir desse momento, ela forma uma ideia falsa a seu próprio respeito. Formando uma ideia falsa de sua pessoa, segue um itinerário errado na vida. Quem, por exemplo, está andando de bicicleta e imagina-se num automóvel, não pode chegar ao termo da viagem. Quem tem automóvel e pensa que este é um tanque de guerra, dirige-o de tal maneira que ele se espandonga inteiramente. Nós somos o veículo de nós mesmos ao longo da vida, e se cada um não sabe que tipo de veículo é, como pode bem dirigir-se a si próprio, de maneira a chegar até ao fim da vida?

As frustrações de quem vive um sonho

Por causa disso o indivíduo cai num erro pior do que os outros: começa a viver uma vida que não era para ele. Então dá tudo errado. O indivíduo sonha ter uma vida que não é para ele; e vive a vida que ele não sonhou, porque nessa situação ninguém realiza o próprio sonho. Nota que está tudo torto dentro de si, porque percebe que ele é outro. E tem frustrações horrorosas.

Lembro-me de um velho senhor que conheci, o qual era muito distinto de maneiras e agradável de trato. Eu o vi, num dia de calor, sentado junto a uma mesa, com o aspecto mais emburrado e desagradado que possa haver. De vez em quando, ele retirava seu relógio do bolso, o olhava e o guardava novamente. Eu francamente fiquei com medo de que ele quisesse se suicidar. Então, com o desejo de ser-lhe útil e para aliviar um pouco sua vida, me aproximei dele e perguntei:

— O senhor precisaria de alguma coisa?
Ele levantou a cabeça e me disse:
— Você não sabe o que é a vida.
Eu era muito mais moço que ele; tinha uns vinte e dois anos.
— Você pensa que sabe o que é a vida, mas você não sabe. Cada vez que eu tiro o relógio, não consigo ver o quadrante dele, porque aos meus olhos se apresenta a figura de algo de irreal que sonhei.

E quando eu vou verificar a hora, consulto as velhas reminiscências dos meus sonhos que não se realizaram, e por causa disso me desespero dessa maneira.

Achei aquilo uma coisa terrível. Era o horror da falta de retidão.

Duas reações diante de tal problema

Diante do que estou dizendo, alguém poderia ter a seguinte reação: “Isto mexe tanto com os fundos de minha moleza e do meu amor-próprio, que eu não tenho nenhuma coragem de fazer o que Dr. Plinio está recomendando. Portanto, eu ouço o que ele diz, não contesto, mas, sobretudo, não adiro; e saio daqui como entrei”.

Essa pessoa, máxime depois do que estou explicando, compreende que se pede pouco para ela. É que ela acuse a si mesma, eventualmente em Confissão — mas não se trata aqui de questão de Confissão —, acuse a si mesma o defeito que vê, com todas as agravantes. Não estou pedindo que ela olhe desde logo até o fundo de sua alma, mas observe o que está ao alcance de seu olhar, e o descreva para si mesma com clareza. De camada em camada, de defeito em defeito ela chegará até a profundidade e acabará vendo-se totalmente.

A Providência se serve de modos variados para fazer cessar os nossos defeitos. Às vezes, eles cessam como não imaginávamos. Desde que peçamos, conseguimos, por assim dizer, o absurdo. E se não corrigimos os nossos defeitos é porque, no fundo, não temos retidão.

Para reparar seus pecados, Santo Agostinho escreve as “Confissões”

Em suas “Confissões”, Santo Agostinho narra que, em certa ocasião, estava sozinho e angustiado. Ele era gnóstico, corrupto, tinha um filho ilegítimo. Era, portanto, herege e impuro. De repente, ele ouve uma voz interior que lhe diz: “Tolle lege! tolle lege! — Toma e lê! Toma e lê!” Era a voz de Deus mandando que ele lesse, se não me engano, um livro da Escritura. Ele faz a leitura e encontra um trecho que resolvia o seu problema. A partir daquele momento ele se converteu, e depois se tornou o grande Doutor da Igreja.

Esse Doutor da Igreja, para castigar-se dos pecados que cometeu, escreveu essa biografia à qual deu o título de “Confissões”, para se confessar a si próprio diante do mundo inteiro pelos seus defeitos. E a morte dele foi a mais bela morte de penitente, que se possa imaginar. Elevado a Bispo da cidade de Hipona, ele foi um luminar na Igreja Católica.

Hipona, situada no Norte da África, era uma cidade de cultura e língua romanas, que estava cercada pelos vândalos, os quais vieram da Germânia, atravessaram a França, a Espanha e desceram pela África, e sitiaram várias cidades que encontravam pelo caminho. Hipona ia ser tomada por eles, e Santo Agostinho, moribundo, provavelmente já com a vista enfraquecida, mandou que os Salmos Penitenciais fossem escritos numa parede diante do seu leito, em letras bem grandes, para ele poder ler. E ele, então, no fim de sua vida, lia os Salmos pedindo perdão, para ser recebido por Nossa Senhora.

Foi uma alma que com muita retidão e lealdade se examinou a si mesma, e confiou na misericórdia de Maria Santíssima. A essa alma as portas do Céu se abriram e ele entrou pelo eixo reto que conduz a Deus. Por quê? Porque ele tinha sido reto durante a vida.

A alma reta que comparece diante de Deus

Linda frase a respeito da retidão é a de São Paulo: “Bonum certamen certavi cursum consummavi fidem servavi — Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a Fé” (2 Tm 4, 7). Não pode haver coisa mais bonita do que um homem olhar para o decorrer de sua vida e dizer isto. Em latim, ao pé da letra, “bonum certamen certavi” não quer dizer “eu travei um bom combate”, mas “combati todo o bom combate que eu tinha que combater”. “Cursum consummavi” significa “percorri todo caminho longo e difícil que eu tinha que percorrer”; ou seja, “fui reto”. Combatendo, combateu tudo. Tendo que percorrer o caminho, percorreu-o inteiro. E com a calma, a paz de espírito dos retos, o Apóstolo se voltava para Deus e dizia: “Resta-me agora receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia” (2 Tm 4, 8). E o recebeu! Esse é o modo de expirar da alma reta. Ou é na penitência confiante de Santo Agostinho, ou nessa quase respeitosa cobrança de cheque de São Paulo: “Eu paguei, meu Deus! Chegou a hora dos vossos juros! Eu entro na eternidade”. É uma beleza!

Não se sabe qual é a mais bonita das duas formas de morte reta.

Nossa Senhora, exemplo de retidão

Consideremos também a retidão de Nossa Senhora, pura criatura concebida sem pecado original! Qual foi o primeiro momento em que Maria Santíssima soube que Jesus seria crucificado? Ela certamente o conheceu pelas Escrituras, porque possuía uma visão, um conhecimento lucidíssimo da Bíblia. E, como Esposa do Espírito Santo, Ela não se tornou Mestra infalível, mas era pessoalmente infalível, não caia mais em erro.

Ela acompanhava cada passo da vida de Jesus, ciente de todos os horrores que iriam acontecer até o momento da morte d’Ele na Cruz, em que o Padre Eterno pediu-Lhe, como Mãe e Senhora do Filho, que Ela consentisse na morte d’Ele. E Ela, no meio das agonias de Jesus, disse mais uma vez: “Faça-se n’Ele segundo a vossa palavra!” Quer dizer, Ela levou retilineamente o sacrifício até o fim.

Depois Nossa Senhora recebeu em suas mãos o cadáver d’Aquele que é a própria Retidão, o fruto do consentimento que Ela havia dado. Através da morte Ele nos deu a vida; era a vitória esplendorosa dentro do esmagamento completo.

Podemos, então, perceber e amar o “pulchrum” da retidão; e compreender como se consegue obtê-la. Dirijamos nossas orações desta noite a Nossa Senhora, pedindo que Ela nos obtenha a virtude da retidão.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/11/1978)

Oração da alma reta

Minha Mãe, se é verdade que, infelizmente, permaneço com este defeito, consegui, pelo menos, vê-lo e detestá-lo por inteiro! Eu me inclino diante de Vós e Vos peço perdão porque pequei e andei mal. Dai-me vossa misericórdia e vossa ajuda!

Estou certo de que virá o dia no qual Vós tereis pena de mim e me atendereis! Então, depois de tanto me humilhar, bater no peito e detestar minha maldade, acabará nascendo em mim uma luz, uma força, uma capacidade de me modificar, por onde me sentirei outro; e, de repente, estarei felizmente resgatado, livre do defeito que eu tinha.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/11/1978)

O mais belo mar! — III

Depois de nos fazer velejar pelos mares da Filosofia, Dr. Plinio chega ao auge de sua conferência. Ao concluí-la, ele descreve  as diversas espécies de raciocínio mostrando o papel da abstração  no conhecimento humano.

 

Dou tornar mais concreto o meu pensamento. Quando cogitamos em nosso pai Adão e em nossa mãe Eva, pensamos no pecado. Mas não devemos pensar neles só por ocasião do pecado, mas antes do pecado.

Adão e Eva: duas cordas de um alaúde

Adão e Eva continham todo o gênero humano, como a árvore contém os frutos. Por causa disso o pecado deles foi o pecado do gênero humano. Mais ou menos parecido ao que ocorre com uma árvore atingida por uma doença: adoecem os frutos que vão nascer. O fruto ainda não foi concebido na árvore, mas nasce doentio porque a árvore está enferma.

Devemos, então, imaginá-los como eles eram antes do pecado: inocentes e tinham em si, em gérmen, todas as qualidades que o gênero humano iria possuir, até o fim do mundo. Eles eram, portanto, inteligentíssimos, inocentíssimos, retíssimos, pulquérrimos, distintíssimos, nobilíssimos, autoritários, amenos e gentis.

Se cada homem conseguisse contemplar Adão e Eva na sua inocência, poderia, como que, reconhecer-se a si próprio em um veio da personalidade deles, levado a um grau de esplendor originário e extraordinário! Adão era como que o homem dos homens, no qual havia a raiz de todos os homens, daquele Homem que havia de superá-lo tanto: a humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo. E Eva, a mulher das mulheres, contendo em si todas as variedades possíveis de mulheres, com todos os seus charmes, mas, sobretudo, d’Aquela que por vontade de Deus a superaria tanto: Nossa Senhora.

Poder-se-ia dizer que Adão e Eva eram como duas cordas de um alaúde: Deus tocando a masculinidade emitiria o som “Jesus”, e tocando a feminilidade, o som “Maria”! O dedo de Deus tem incomparavelmente mais poder do que uma corda inerte ou tocada pelos ventos. É sabido que certas harpas se deixam tocar pelos ventos. Mas o dedo de Deus extrai de uma harpa uma harmonia que ninguém consegue tirar.

Para dar uma noção do que é ideia abstrata, digo que esta seria como que um Adão e uma Eva de todo o gênero. A ideia abstrata de navio, bem concebida, não se reduz ao seco que apresentei, mas à soma do seco que indiquei com aquilo que ficou no fundo de minha imaginação, quando virei todo o meu caleidoscópio a respeito dos navios.

Complemento cultural da abstração

Então nós agarramos a ideia abstrata e nos deleitamos.

Seria como alguém que, vendo uma bolha de sabão na minha mão, não a furasse, mas me dissesse: “Dr. Plínio, sabe o que é essa bolha? É água cristalina de tal fonte, misturada com o melhor e o mais perfumado dos sabonetes: o “Pears” da Inglaterra!” Ele definiu a bolha sem estourá-la. E para o meu espírito foi um lucro saber o que era aquela bolha.

Não sei se estou conseguindo fazer andar esse barco complicado…

A bolha de sabão é feita de água e de sabão, dois elementos tão comuns que formam uma casca tão ligeira, uma esfera tão perfeita, maravilhosa. Ela como que se estende e constitui uma espécie de membrana tão delicada, que eu nunca pensei que dormisse na água a possibilidade de se deixar “membranar” assim por um pouquinho de sabão. “Ó cristal! Água, como eu te entendo melhor! Sabão, que benemérito!” E, sentindo um pouco do bom perfume do “Pears” inglês, eu digo: “Ah! Categoria! Classe!”

Sem estourar a bolha, eu lucrei. Então o que é o estourar?

Um indivíduo com espírito “ploc-ploc(1)” fura a bolha e diz: “Está vendo? Não era senão água e sabão! Quá-quá-quá”. Esse é um celerado porque destruiu uma coisa bela. Mas, sobretudo porque ele mentiu. Pois a bolha não se reduz a simples água e sabão; senão qualquer água com sabão, que está escorrendo dentro da pia, seria bolha.

A bolha é água com sabão mais certa relação de ambos, própria a sofrer do ar uma pressão por onde ela se mantém coesa em forma esférica. Eu dei a definição.

Mas não é apenas isto. A bolha é água com sabão mais algo.

Quanto à definição de barco que apresentei, a mentira está no seguinte: o barco se reduz àquela definição. Porque seria uma substância — vou usar uma expressão filosófica — sem acidentes, uma coisa sem predicados, sem qualidades. Nada existe sem qualidades.

Barco não é só isto! De fato, todas as espécies possíveis de barcos estão contidas na definição. É uma coisa diferente, um jogo diverso.

Então qual é a definição verdadeira? Eu completo agora a definição de barco com um pressuposto: é um veículo aquático destinado ao transporte de homens, mercadorias e, digamos, correspondência. Está bem! Eu acrescentaria algo que filosoficamente não é preciso, porque está subentendido; eu completaria dizendo o seguinte: variável indefinidamente, segundo as mentalidades e os lugares.

Assim, os que estão neste auditório estariam reconciliados com a definição. Ela não lhes pareceria mais “ploc-ploc”; sentiriam o Bucentauro pendurado no ponto final da frase.

Por que a definição não contém esse acréscimo? Porque está pressuposto! Tudo quanto existe nesta Terra fugidia é variável ao infinito, segundo as circunstâncias de tempo e de lugar. Então o barco não se reduz a isto, mas é isto com todas as suas variabilidades. Está pego algo, sem o qual uma pessoa não entenderia o que é barco.

Dessa forma, fica expresso qual é o complemento cultural da abstração. Com isso bem entendido, demos um passo no caminho da Metafísica.

O que é a Metafísica aqui? Notem que o conceito de barco contém, portanto, todos os graus de perfeição e de excelência que uma embarcação pode abranger, e se une à imagem do barco dos barcos.

Alguém dirá: “Mas Dr. Plinio, há também barcos furados, rachados, grotescos; por que tais barcos cheios de defeitos não estão contidos na definição?” Respondo: Porque não fazem parte da definição! O barco rachado, por exemplo, em algo escapa à categoria de barco. Quem fabricasse um barco rachado não poderia dizer que construiu um barco, porque não é destinado à navegação. Posto na água, ele vai ao fundo.

Quer dizer, os defeitos da coisa são o contrário da sua natureza; o que está conforme com a natureza de uma coisa são as qualidades dela.

O raciocínio é mais belo quando ele é rápido como um corisco

Será bem verdade que o conceito de barco nasceu em minha mente só depois de eu pensar numa porção deles? Eu apresentei assim, e é verdade. Mas a verdade é só essa? Vejo um barco e me encanto, depois observo outro e prefiro este ao primeiro; faço essa comparação porque, no fundo, já formei um conceito abstrato de barco. Se eu digo que um barco é melhor do que outro, é porque fiz antes uma ideia subconsciente de como é o barco teoricamente e comparei os dois com o barco teórico.

Ou seja, eu não seria capaz de comparar os dois barcos se, de um modo subconsciente, eu já não tivesse feito, no primeiro olhar, aquela ideia que vai aflorar ao final da minha longa elucubração explicitamente.

Rápido como um clarão; não percebi que raciocinei. No total, quando eu raciocinei talvez estivesse esfregando os olhos ou caçando um mosquito. Mas meu raciocínio pegou logo. Aliás, essa é uma das belezas do raciocínio.

O raciocínio é muito bonito quando sobe uma longa escada majestosa e chega até suas conclusões. Mas como é mais belo quando ele é como um corisco! A pessoa nem teve tempo de perceber os vários elementos que o constituíram, e chega à conclusão. Um fulgor!

Seres criados desde todo o sempre

Passemos para outro ponto.

A respeito de tudo que vejo na Terra, formo ideias abstratas: cadeira, mesa, barco, pão, homem, espada, lustre. Ao que me conduzem essas ideias?

Pela superposição das figuras do meu caleidoscópio, formei uma ideia de cadeira enquanto cadeira, mas é uma cadeira “cadeiríssima”, em comparação com a qual eu confiro todas as cadeiras que vejo. Analogamente, elaborei a ideia de espada “espadíssima”, que contém todas as qualidades imagináveis de uma espada; eu não a desenho, mas sou capaz de concebê-la. E assim vou concebendo com a abstração a ideia de outra ordem de seres que não existem, mas poderiam existir.

E, com uma perfeição incomparável, o Homem prototípico: A humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo! A mulher prototípica: Nossa Senhora! Jesus Cristo e Maria Santíssima, eu poderia imaginá-los na sua mera humanidade e, abstração feita do sobrenatural, numa ordem de coisas que também ainda não existiu.

São Tomás de Aquino nos ensina que, quando Deus criou as criaturas e elas começaram a se relacionar, iniciou o tempo. Vejam o livro do Gênesis: primeiro dia, Ele faz o primeiro ato criador e, como em roldana, começa a série de dias: entrou o tempo.

Mas São Tomás diz uma coisa curiosa: Deus poderia ter criado criaturas desde todo o sempre, fora do tempo, e que, naturalmente, seriam mais excelentes do que nós, que somos sujeitos a essas mudanças. Mais excelentes do que Adão e Eva e até mesmo do que os anjos! Porque os anjos não foram criados desde todo o sempre.

E nossa imaginação, nosso senso do ser, palpita com essa ideia de conhecer criaturas criadas desde todo o sempre. Se houvesse uma espada criada desde todo o sempre e reunindo em si todos os predicados de uma espada, na medida em que isso coubesse nas limitações da matéria; e se existisse também um puro espírito criado desde todo o sempre, e assim por diante, a ponta de nossa alma sente o mais alto frêmito da admiração, mas não consegue precisar nem definir.

É a ponta mais alcandorada da inocência que vibra sem sabermos como. É uma chispa que constitui em cada pessoa certo traço de genialidade, porque quando o homem chega a essa ponta, um pouco de genialidade que há nas mentes de homens comuns, e que existe às torrentes nas mentes dos gênios — São Tomás de Aquino, por exemplo —, essa ponta vibra com uma luz especial. Aí, temos o metafísico!

Termo último da Metafísica

E se nos voltarmos para esse mundo que não foi, mas poderia ter sido criado, mesmo assim nossa alma ainda não fica satisfeita. Porque se imagino um anjo criado desde todo o sempre, eu penso: “Do vale da Criação onde nasci, eu venero a tua culminância e te admiro, mas tu és para mim algo que revela e que vela. Revela porque no teu esplendor, para mim inimaginável, eu compreendo algo; vela porque, olhando-te, não posso ver o que está por detrás de ti. Anjo altíssimo, puríssimo, Alguém te deu o ser e tudo o que tens; foi teu Criador, logo há Alguém melhor do que tu. Tu és para mim uma imagem d’Ele, oh deleite! Mas tu não és senão imagem. Como será Ele?”

Aqui nós subimos ao ponto dos pontos, quer dizer, tudo que tem o anjo está para o Criador numa relação inferior àquela de uma árvore — que passasse mil anos dando constantemente frutas em todas as estações do ano — com uma só de suas frutas. Todas as frutas que a árvore produziu têm um fundamento no ser da árvore; senão não existiriam. Mas o Criador é eterno, Ele é absoluto, ninguém O criou. Tudo, para existir, tem um fundamento n’Ele. Logo, todas as belezas, perfeições, santidades, retidões têm um fundamento n’Ele, que é o padrão. Ele não é reto, mas a Retidão, não é santo, mas a Santidade!

De onde a santidade se identifica com o Ser d’Ele. Ele é suas qualidades, e suas qualidades são Ele. Ah! “Te Deum laudamus, Te Dominum confitemur…” Aqui é o caso de passar a palavra a Santo Ambrósio e Santo Agostinho.

Nossa admiração toca num Ser de uma densidade tal que Ele não é como as qualidades que nós temos. Como estas qualidades são efêmeras! Eu estou falando neste auditório não só com uma facilidade, mas, digamos, com um relativo desembaraço.

Estou com setenta anos, e devo fazer setenta e um no próximo mês. Sejamos muito otimistas, e otimistas até o delírio; daqui a trinta anos, se eu estivesse vivo, tudo se teria apagado! Aonde a facilidade de conjugar as palavras? De escolher a esmo os exemplos? Aonde a comunicação com o auditório? Uma voz hesitante, arrastante, um olhar vidrado…

Ou morto! Nós não nos identificamos com nossas qualidades. Nossas qualidades passam e nós ficamos. Nós as recebemos quando pequenos e as desenvolvemos a duras penas. E quando elas atingirem o apogeu, o ciclo de nossa vida está fechado; nós baixamos para a sepultura.

É verdade que nossa alma vai para o Céu, e no dia da ressurreição nossos corpos renascerão. Aí é a eternidade! Mas nessa vida, como tudo é instável, mutável! Lembro-me de uma frase de Bossuet, uma trilogia, num dos seus sermões sobre a Semana Santa. Falando a respeito de Nosso Senhor Jesus Cristo, ele faz uma linda conjugação de adjetivos, mandando os fiéis contemplarem “un Dieu brisé, rompu, anéanti”. Um Homem-Deus quebrado, roto, aniquilado, na sua humanidade.

Até a musicalidade é bonita: “brisé, rompu, anéanti”!

Tudo que está em nós é destinado a ser “brisé, rompu, anéanti”, porque tudo passa.

Porque nós não somos nossas qualidades. E Deus é tudo! Ele pode tudo, sabe tudo! Ele sobrepaira a todos! Puríssimo espírito! Ele cria ao infinito, sem o menor esforço, apenas para criar. Compreendemos assim o que é o termo último para onde a Metafísica se dirige.

Esses paradoxos, que são próprios à ordem do ser, ao menos para mim, dão certo repouso.

A beleza do movimento tem fundamento no Ser imutável

Encontro aí algo que talvez seja uma peculiaridade minha. Essa eterna mutabilidade das coisas me cansa. Por um lado, ela me deleita, pois se não houvesse mutabilidade também me cansaria. A imobilidade me cansa e a mobilidade também. Mas há alguns homens que se cansam mais com a imobilidade, e outros que se cansam mais com a mobilidade. Cada um dos presentes neste auditório se examine um pouco. É um ponto interessante para se definirem.

A mim a mobilidade cansa mais do que imobilidade. Eu posso ficar, no mesmo lugar, durante um ano sem me cansar. Enquanto que, ao cabo de uma hora de mobilidade, eu já estou aspirando à imobilidade. Assim sou eu.

Por isso, quando viajo de automóvel logo me pergunto quanto tempo vai demorar até chegar ao destino: “Acaba com esse perpétuo roda-roda! Vamos fazer uma coisa fixa em que se possa olhar e pensar!”

Gosto de sentar-me para analisar, refletir e distender-me. Há outros que são o contrário: quanto mais mobilidade, melhor.

Depois dessa longa caminhada, no decurso da qual eu colhi cada flor que fui capaz de ver, e comi cada fruto que consegui notar, tenho um alívio quando penso no Absoluto. Então, tudo isto para num Ser terminal e inicial supremo, fixo e eterno. Ele não muda nunca e a sucessão dos aspectos das coisas n’Ele está parada. E numa posição eterna! Riquíssima! Esplendorosa!

Imutável? Sim, mas com toda a força e a graça do motor primeiro, que move sem se mover e do qual todo movimento nasce. De maneira que a própria beleza do movimento tem seu fundamento nesse Ser imutável. E tudo que eu vejo de belo na mutabilidade, no Imutável com “I” maiúsculo existe também.

Repouso, afinal! Encontrei o que eu queria! A minha vida teve sua razão de ser. Adoremo-Lo e percamo-nos n’Ele.

O que eu fiz? Metafísica! Fazendo Metafísica, atendi ao pedido que me foi feito no início de nossa reunião.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/11/1979)

1) Expressão criada por Dr. Plinio para designar o defeito de certas pessoas que, desprovidas de intuição, minoram a importância dos símbolos e negam o valor da ação de presença. Querem tudo explicar por raciocínios desenvolvidos de modo lento e pesado, à maneira de um paralelepípedo que, ao ser girado sobre o solo, emite o ruído “ploc-ploc”.

Pela dor do santo Encontro…

Quem, Senhora, vendo-Vos assim em pranto, ousaria perguntar por que chorais? Nem a terra, nem o mar, nem todo o firmamento poderiam servir de termo de comparação à Vossa dor. Dai-me, minha Mãe, um pouco, pelo menos, dessa dor. Dai-me a graça de chorar a Jesus, com as lágrimas de uma compunção sincera e profunda:

“Ó minha Mãe, pela dor do santo Encontro, obtende-me a graça de ter sempre diante dos olhos Jesus Sofredor e Chagado, precisamente como O vistes neste passo da Paixão.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Da Via-Sacra composta por Dr. Plinio em 1951).

 

Sainte Chapele – a capela da inocência.

Concebida por São Luís IX, a Sainte Chapelle (Capela Santa) foi edificada para servir de magnífico relicário a um dos espinhos da dolorosa coroa da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Já no seu exterior aparece sua pulcritude, deixando ver a leveza, o esguio, o elegante desse templo-escrínio e o sobrenatural que o impregna. Chama a atenção, de modo especial, o telhado com  seus adornos e suas torres. Está construído em ângulo bem fechado, o que lhe confere maior graciosidade e ligeireza, dando a impressão de que está prestes a alçar voo. Pode-se imaginar que,  soprando um vento forte, a Sainte Chapelle se lançaria em direção às imensidões do firmamento, e ali, em meio às nuvens e ao azul, tornar-se-ia ainda mais bela que na terra.

A torre central, antes um campanário, termina numa flecha que se atira para o alto, constituindo uma espécie de símbolo e de gráfico do desejo do homem de subir até Deus. Em uma das  extremidades do telhado há um florão sobre o qual pousou um anjo. São tão bem-proporcionados um ao outro, o pedestal e seu anjo, que, dir-se-ia, se este último fizesse qualquer movimento, o  florão vergaria. O anjo perderia o equilíbrio. É quase como se um pássaro estivesse pousado sobre uma delicada flor…

* * *

Quem, pela primeira vez, visita o pavimento inferior da Sainte Chapelle, ignorando tratar-se apenas de uma antecâmara do andar de cima, dificilmente retém uma exclamação  de encanto e deslumbramento, pensando ter encontrado a suprema beleza desse edifício. Depara-se com proporções inusitadas, que conseguem conciliar numa mesma perspectiva a elevação e a intimidade, e incutem no fiel que ali reza a impressão de estar sendo recebido carinhosa e afetuosamente por Deus, na sua sala mais interna.

Esse efeito extraordinário é obtido por meio das tênues e esguias colunas. Ora formam ogivas aderentes às paredes, ora se abrem de modo tão harmonioso, tão gradual e tão perfeito, que parecem  palmeiras cujas folhas se tocam no teto.

É preciso dizer que as ogivas exercem um incomparável fascínio. Cada uma é linda, tomada isoladamente, mas o conjunto delas é ainda mais gracioso. As colunas, igualmente, são de uma  particular formosura, acentuada pelas pinturas; juntas, porém, são de uma beleza indescritível. Narra a Sagrada Escritura que Deus, quando criou o universo, repousou no sétimo dia, contemplando a obra que havia realizado.

Então se Lhe tornou patente que, se as criaturas eram individualmente belas, a criação vista no seu  todo as vencia em esplendor. É o que se dá com a Sainte Chapelle. Esse andar inferior, de tão  arrebatadora beleza, era o local onde o povo e os servidores do palácio real assistiam à Missa, ao mesmo tempo em que na capela alta se celebrava outro Santo Sacrifício, para São Luís IX e os nobres da corte.

* * *

Ao penetrar no pavimento superior, o visitante fica arrebatado de imediato, extasiando-se com a feeria do conjunto das colunas, ogivas e sobretudo vitrais! Tão predominante é o papel dos vitrais    que a capela parece toda feita deles. De pedra há apenas o necessário para escorar o teto e suportar os caixilhos nos quais repousam cristais e vidros bem trabalhados em sua diversidade de cores, precisão dos desenhos e elegância das formas. Ao admirar o efeito produzido, vem-nos ao espírito esta ideia: “Não pensei que fosse possível, com os elementos desta terra, realizar algo assim tão  parecido com o Céu!”

Pois bem, essa maravilhosa edificação só se tornou factível em virtude da fé católica. Quer dizer, não fosse o fato de ela ter sido construída em séculos de fé, por artistas de fé, e, antes de tudo,  concebida por almas resgatadas pelo preciosíssimo sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, que lhes abriu a porta do Céu e as elevou à vida sobrenatural por meio de uma abundante infusão da  graça — o gênio humano não lograria idealizar semelhante prodígio de  beleza.

Nascida da devoção de almas profundamente impregnadas de fé e pureza batismal, essa se poderia chamar a Capela da Inocência. Pela candura que se faz notar no esguio, no elevado de suas  linhas tendentes ao mais alto, realizando um extraordinário equilíbrio de espírito, ela empolga, conduz ao auge do entusiasmo, porém um auge tão calmo, sereno e refletido, que não produz frenesi nem sensações por demais fortes ou intemperantes. Que obra prima da temperança! Tudo é lindo, magnífico, tudo arrebata. Mas tudo recolhe e tudo reza. É o ápice da candura, da  contemplação e da meditação.

Cada peça de vitral, cada pedra e cada ogiva é como uma prece, em torno do centro da oração: o altar, onde se renova de modo incruento o Santo Sacrifício do Calvário. No seu alto é exposto um  espinho da Coroa do Divino Salvador, trazido a pé e com indizível devoção, por São Luís IX, dos confins da França até Paris. É a pedra de ângulo de toda a extraordinária beleza dessa obra de arte.

Harmonia e variação, movimento e consonância, estabilidade e agilidade. É a Sainte Chapelle.

Plinio Corrêa de Oliveira

“Carregou nossos pecados e suportou nossas dores”

Os comovedores acentos de um cântico que recorda as dores de Nosso Senhor Jesus Cristo durante sua Paixão, oferece a Dr. Plinio a oportunidade de meditar na infinita misericórdia do Divino Redentor ao abraçar a cruz e se entregar à morte para redimir os homens e lhes abrir as portas do Céu.

Entre os belos e tocantes cânticos que a piedade católica engendrou para honrar a Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo está o “Ecce vidimus”, que evoca os atrozes desfiguramentos que as injúrias físicas provocaram na pessoa do Divino Redentor.

“Eis que O vimos sem formosura”

O texto dessa música, retirado do Profeta Isaías (53, 4-5), nos sugere a ideia desses padecimentos, e assim diz: Eis que O vimos disforme e sem formosura. Ele está irreconhecível. Carregou nossos pecados e sofreu por nós. Está ferido por causa de nossas iniquidades. Somos curados em virtude de suas chagas. Na verdade, Ele carregou nossas fraquezas e suportou nossas dores.

Trecho em extremo significativo, pois é uma apóstrofe ao ilogismo e à contradição do que se abateu sobre Nosso Senhor.

De fato, não podemos sequer imaginar a extraordinária formosura do Filho de Deus, toda a beleza do seu corpo e de sua face sagrada. Sem dúvida, o conjunto dos princípios da estética do universo estavam condensados no semblante de Jesus. E quem fala da face, deve pensar no olhar. O olhar divino d’Ele, espelho da alma, certamente ainda mais esplendorosa que o corpo. Só esse olhar seria suficiente para encantar os anjos por toda a eternidade.

Além disso, devemos pensar em Nosso Senhor caminhando, com movimentos repassados de graciosidade, nobreza no andar, distinção no porte, sobriedade de maneiras, e sua infinita bondade se irradiando a todo momento de modo incomparável.

Que dizer então da voz do Divino Mestre dirigindo-se ao povo que O seguia? Quem pode conceber a variação dos timbres, a capacidade de expressão e de santa sedução que Ele imprimia em suas frases? Terá sido o som mais cativante que foi dado ao homem ouvir, desde o começo até o fim do mundo.

Ora, diz o cântico, este que reunia em si toda a beleza do universo foi visto passar carregando a cruz, palmilhando a via dos tormentos, disforme e sem formosura. Todo aquele esplendor fenecera; seus traços maravilhosos perderam a forma. Tudo desaparecera por força dos maus tratos, dos flagelos, dos açoites que Lhe arrancaram pedaços da carne e espalharam seu sangue por todos os lados. Na aparência externa de Nosso Senhor, tudo deixara de ser atraente. Ele não era senão uma imensa chaga sanguinolenta que passava, levando a cruz às costas.

O mais formoso dos homens com uma aparência de feiúra: que insondável paradoxo!

Irreconhecível porque carregou nossos pecados

À vista desse fato inaudito, a letra acrescenta, com acentos de profunda ternura: Ele está irreconhecível. Carregou nossos pecados e sofreu por nós.

Ou seja, nada mais lembra a figura do suave Jesus, Filho de Maria. Ele todo é sangue, ferida, irreconhecível porque pagou pelos nossos pecados.

Não carregava os pecados d’Ele, nem sofria por suas faltas. Verbo Encarnado, Jesus era a própria virtude, não tinha pecados a expiar. Essa grande vítima, acabrunhada sob o peso de tantos castigos, era a inocência infinita. E Ele padeceu nessa proporção desmesurada por causa da enormidade dos nossos pecados. Pecamos tanto e de tal maneira, que o Filho de Deus aceitou de oferecer ao Pai Eterno essa incalculável reparação: transformar-se nessa chaga trágica e pavorosa, acumulando outros sofrimentos até chegar ao alto do Calvário e ali, crucificado, pronunciar o “consummatum est”.

Cumpre a cada um de nós, redimidos por este holocausto, lembrar-se de que foi o pecado a causa de todo esse horror padecido por Jesus. Foram minhas fraquezas e minha maldade que Ele carregou vinte séculos antes de eu nascer. Naqueles dolorosos momentos de sua Paixão, Nosso Senhor pensou em mim, conheceu minha iniquidade, os lados miseráveis de meu caráter, e quis sofrer para me resgatar, pagar o preço de minhas culpas e abrir para mim as portas do Céu.

Essa verdade deve me tanger de gratidão. Deve, sobretudo, varar-me de lado a lado de compunção e de tristeza o pensar que Quem carregou os meus pecados era a pureza, a santidade, o sacrossanto por excelência, o Filho de Deus e de Maria Santíssima.

Não há, na capacidade humana, compunção nem intensidade de adoração, de reconhecimento e de reparação suficientes para agradecer o infinito benefício que recebemos do nosso Salvador.

O remédio das misérias humanas

Com efeito, prossegue o cântico: somos curados em virtude de suas chagas. Ou seja, todo esse sacrifício não foi em vão. Em cada chaga, em cada gota de sangue vertida por Nosso Senhor, estava a cura de nossos males e de nossas misérias morais. Contemplemos o corpo desfigurado e machucado do Divino Mestre: esta ferida, aquela outra, curaram minha alma. Se nesta existe algo de bom, é por causa daqueles ferimentos sagrados que vejo passar diante de mim.

Na verdade, Ele carregou nossas fraquezas e suportou nossas dores.

Quer dizer, o peso daquela cruz é o fardo das minhas fraquezas. Jesus as carregou. As dores que eu, por justiça, deveria sofrer, Ele, o inocente, padeceu-as por mim.

Mais uma vez, deve resultar dessa consideração um sentimento de gratidão indizível a Nosso Senhor, de reconhecimento a Nossa Senhora porque Ela consentiu no holocausto de seu Divino Filho por nós. Além disso, uma atitude de completa confiança em relação a Eles: pois quem foi resgatado por preço tão imenso, por pouco que confie no valor desse preço, por menos que peça seja aquele sangue derramado sobre nós para nos regenerar, este pode esperar sua salvação. Pode ter a certeza de que, mais dia menos dia, uma moção da graça, um movimento interior o reconduzirá ao caminho da virtude e do Céu.

Súplicas em nome das santas chagas de Jesus

Há, nesse sentido, duas lindas súplicas que exprimem as verdades acima consideradas. Uma: “Perdão e misericórdia meu Jesus, pelos méritos de vossas santas chagas”.

Quer dizer, “não mereço perdão nem misericórdia, mas vossas chagas, Redentor Divino, têm mérito infinito e foram oferecidas ao Altíssimo em meu favor. Constituem meu tesouro infinitamente grande. Peço-vos, pelos méritos de vossas santas chagas, perdão e misericórdia para mim”.

É uma súplica que dificilmente não tocará a bondade infinita de Nosso Senhor, pois invoca as próprias chagas com as quais Ele curou nossas almas, alcançou-nos graças para corrigirmos nossos defeitos e crescer no amor que devemos ter a Ele.

Outra jaculatória muito substanciosa e bela, despertada pela consideração das chagas de Nosso Senhor, é esta: “Padre Eterno, eu vos ofereço as santas chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo para curar a minha alma”.

Ou seja, eu, diante do Padre Eterno, posso ter defeitos e pecados, mas apresento a Ele as santas feridas de Nosso Senhor Jesus Cristo a fim de obter de sua infinita misericórdia o remédio para as minhas doenças de alma.

Pedir por meio de Nossa Senhora, “dona” das chagas de seu Filho

A essas considerações devemos acrescentar um ponto muito importante: não convém e nem será próprio do devoto de Maria Santíssima, meditar nos lances da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, abstraindo da figura co-redentora de sua Mãe.

E ao invocarmos as chagas do Salvador como a cura de nossos pecados, é preciso lembrar que tal impetração passa pelos rogos da Medianeira de todas as graças. Dispensadora, por vontade divina, de todos os dons celestiais, os méritos dessas chagas como que foram todos entregues a Ela, para deles dispor em benefício dos homens. Em certo sentido, Ela é, pois, a dona dessas chagas. Aliás, as imagens de Nossa Senhora da Piedade — inclusive a famosa Pietà de Michelangelo —, que representam Jesus morto no colo de Maria, exprimem muito bem a ideia desse augusto senhorio: a Mãe é a dona daquele cadáver e, portanto, de todos os méritos infinitos que aquele Homem inanimado em seus braços conquistou para nós. Tudo nos vem através d’Ela, e por mais extraordinário que seja o valor dessas chagas, sem a intercessão de Maria nada obteremos.

Peçamos, então, o patrocínio de Nossa Senhora das Dores, a invocação propícia para essas súplicas. É a figura da Santíssima Virgem que traz seu próprio coração chagado e ferido pela consideração dos padecimentos do Filho. Nunca a alma de uma mãe carregou chaga semelhante à que feriu o coração de Maria, tomado por imensurável tristeza durante a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Esse Imaculado Coração transpassado pela espada da dor é a porta por onde atingimos as chagas de Jesus. Rezemos a Nossa Senhora, do fundo de nossa alma, confiantes e humildes, na certeza de que Ela alcançará em nosso favor a aplicação dos méritos infinitos dos sofrimentos redentores de seu Divino Filho.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 22/3/1967)

Nossa Senhora da Soledade

O que é a soledade de Nossa Senhora? É o período da vida de Maria Santíssima que vai desde o “Consummatum est” até o instante em que Ela tomou conhecimento da Ressurreição. Ali esteve Ela inteiramente só!

Peçam a Nossa Senhora da Soledade que os faça compreender a sublimidade e a elevação de espírito da soledade d’Ela e tomar a resolução de aceitarem a soledade sem amargura, sem rancor, sem pena de si mesmos, com naturalidade, como um herói aceita a luta e a morte.

Não sejam desses isolados amargos, ácidos, orgulhosos, que se julgam os incompreendidos do gênero humano. Não! Sejam naturais, bons, alegres.

É esse o holocausto, o sacrifício que temos de fazer. Alguém dirá: “Eu não tenho coragem”. Meu filho, se você não tem, diga assim: “Por enquanto não tenho coragem”. E reze para tê-la.

Todas as portas se abrem para quem rezar! Peça, portanto, a Nossa Senhora da Soledade para lhe dar a coragem de suportar o isolamento.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/2/1989)

Divina fecundidade

Quando, através de seu humilde “fiat”, a Virgem Santíssima consentiu na Encarnação do Verbo, a Ela foi comunicada a fecundidade do Padre Eterno. Quer isto dizer que a capacidade concedida a Maria de gerar o Filho divino é quase uma participação no próprio poder criador de Deus. Ora, tornar-se digna de privilégio tão augusto supõe uma riqueza de vida espiritual inimaginável, uma elevação de virtudes e uma intimidade de alma com Deus que excede à nossa limitada inteligência. Na medida em que uma simples criatura podia receber aquela fecundidade, Nossa Senhora a recebeu, plenamente.

Compreende-se, pois, como na ordem da criação nada haja, nem de longe, comparável a Maria, Mãe de Jesus.

O gládio que transpassou o Coração da Santíssima Virgem

Durante trinta e três anos, Nossa Senhora, em meio a alegrias inenarráveis, previu a Paixão e Morte de seu Divino Filho. E junto à Cruz, enquanto tantos homens  desertaram, Ela estava de pé. Nunca  ninguém sofreu tanto, com força e sobranceria, quanto a Mãe de Deus. Unindo-Se às intenções da Trindade Santíssima, Ela queria o esmagamento do demônio e da Revolução por todo o sempre.

Na apresentação do Menino Jesus no Templo, em profeta Simeão que a respeito do Divino Infante fez esta esplêndida profecia: “Agora, Senhor, podeis deixar vosso servo  partir em paz, segundo vossa palavra, porque meus olhos viram a salvação que preparastes ante a face de todos os povos, luz para iluminar as nações e glória de Israel, vosso  povo” (Lc 2, 29-32).

Destinados à maior glória, percorrendo os mais extremos sofrimentos

Nossa Senhora, à vista dessa profecia, ficou ainda mais inteirada de toda a glória do Menino Divino que carregava nos braços. Depois de abençoar o Menino e sua Mãe, disse Simeão: “Este Menino está posto para ruína e a ressurreição de muitos em Israel, e para ser alvo de contradição” (Lc 2, 34).

Assim, depois de um futuro esplêndido, o venerável ancião predizia uma vida e uma luta tremenda para aquele Menino e prenunciava para Maria Santíssima um sacrifício:  “Uma espada transpassará tua alma” (Lc 2, 35). Quer dizer, Ela terá um dos sofrimentos mais atrozes que uma pessoa pode suportar. E ele anuncia isso com trinta e três    anos de antecedência.

Temos aqui dois fatos a considerar, muito elucidativos para a mentalidade do homem moderno: em primeiro lugar, uma vez que Deus decretara que esse Menino fosse o Rei vitorioso de que falava a profecia de Simeão, como explicar que, lógica e sabiamente, houvesse de querer, ao mesmo tempo, que Ele passasse por todas essas lutas, as quais importassem num determinado momento em revés? Porque não se podia compreender de outro modo essa espada de dor que atravessaria o Coração de Nossa Senhora.

Não seria natural, arquitetônico, de acordo com a ordem estabelecida pela sabedoria divina, que, uma vez sendo da vontade de Deus que o Menino Jesus fosse o Rei de todos os povos, em todos os tempos, que nada viesse atrapalhar essa carreira gloriosa? Que esta se fizesse de trabalhos bonitos, sapientes, triunfais, de lutas vencidas facilmente com um golpe “mágico” que faria tudo retroceder diante de Jesus, e assim Ele chegasse à sua glória?

Por que o mistério desse momento terrível, em relação ao qual estava anunciado que um gládio atravessaria o Coração de Nossa Senhora? Como se pode compreender que  Deus permita, no meio dessa trajetória, um sofrimento tão grande e uma aparente derrota? Isso não é uma coisa estranha?

A mentalidade “happy end” nos impede de compreender o modo pelo qual as obras de Deus se realizam

O estado de espírito do homem  moderno correspondente a isso reflete-se, com frequência, no modo pelo qual somos levados a considerar os reveses de nossa vida espiritual e de nosso apostolado. Muitas  vezes percebo em algumas pessoas dificuldades para explicarem a si mesmas a razão pela qual, embora estejam andando bem espiritualmente, podem ser tentadas.

A ideia é esta: se Nossa Senhora, se Deus querem que me santifique, por que, então, devo ser tentado? Por que até permitem que eu peque e Lhes desagrade? Isso não é uma contradição? Se o fim é um, não é normal que tudo caminhe direitinho e coerentemente para ele? Como explicar a ocorrência de coisas que parecem contrariar esse fim?

Vê-se nessas interrogações o reflexo daquela mentalidade “happy end” do cinema norte-americano. As coisas têm que correr certinhas; quando não correm, são atrapalhações  que podem ser até grossas, mas já se sabe que terminará tudo direitinho, porque o homem é chamado para ser feliz nesta Terra, entender tudo quanto se passa com ele e  triunfar.

E quando as coisas não acontecem assim, ele tem a sensação de que a vida humana não está em ordem. Tal como os heróis de um romance de filme, que sofrem durante o  enredo, mas o expectador já sabe – e tem a sensação de que os atores também – que tudo vai terminar à beira de um lago, olhando-se amorosamente, navegando num  barquinho, os passarinhos cantando, a fita acabando, e o burguês que a assistiu voltando prosaicamente para casa, satisfeito.

Essa mentalidade “happy end” intoxica nosso espírito e não podemos compreender o modo pelo qual as obras de Deus se realizam. Uma vez posto o pecado, com a queda dos  anjos, e posteriormente a do homem, a vida humana tem um caráter não só de prova, mas de expiação e de luta.

Aceitar o sofrimento não choramingando, mas como o  soldado que vai para a luta

A Providência Divina age de acordo com sua sabedoria, permitindo para os bons os reveses, as doenças, as tentações, a luta contra o adversário, e exigindo deles a aceitação  de que essas coisas lhes podem vir em ocasiões onde isso lhes pareça incompreensível, pois o normal nessa vida é sofrer e que muitas coisas, de fato, não deem bom resultado, ou tenham consequências diferentes do que se quereria. Desse resultado errado Deus tira, para sua glória, algo de melhor e mais brilhante do que o sucesso por  nós imaginado.

As provações e os sofrimentos inesperados não só constituem algo pelo qual o homem decaído deve passar, mas podem corresponder também a uma punição pelos pecados cometidos, ou esconderem uma prova de amor querida por Deus de sua criatura; uma prova de confiança cega, de desprendimento e de abnegação que a criatura deve dar e  que constitui um elemento altamente pedagógico para ela, porque a criatura só vale na medida em que realmente aceita esses sofrimentos com espírito sobrenatural, não  choramingando, mas como o soldado que vai para a luta.

Compreende-se, então, o mistério que há no seguinte fato: segundo a mentalidade moderna, não seria o caso de avisar Nossa Senhora, trinta e três anos antes, que Ela iria  sofrer essa dor. Mas fazer o contrário: ir tapeando ou ficar quieto. Mesmo na hora de Nosso Senhor ser morto, enfim, de Maria Santíssima tomar conhecimento da Paixão,  adiar, contar-Lhe aos poucos para Ela não se assustar muito. Afinal, quando não houvesse mais remédio, Ela saberia, e ainda assim haveria os calmantes.

A ação da Providência não é essa. Com trinta e três anos de antecedência, Ela avisa Nossa Senhora. Exatamente porque a previsão dessa dor já é uma tremenda dor. Maria  Santíssima carregou a previsão desse sofrimento durante todo esse tempo e o viu chegando de longe. Com isso, sua alma imaculada, criada sem pecado original, foi-se  aperfeiçoando e santificando na longa previsão e aceitação da dor que deveria vir.

Trinta e três anos de Horto das Oliveiras

Compreende-se que até para a alma imaculada da Santíssima Virgem a previsão forte, corajosa, razoável – eu diria, mesmo varonil – da dor vindoura era um elemento para uma crescente união com Deus, a qual Ela já possuía num grau insondável desde o primeiro instante de seu ser. Entretanto, essa profecia de Simeão foi intencionada para que Ela carregasse essa dor durante trinta e três anos, na compreensão desse fato de que o homem nasceu para sofrer, é normal que sofra, que é preciso aceitar a dor por  inteiro antes dela vir, e, quando chegar, que ela nos encontre calmos, fiéis, sobranceiros e heroicos, porque assim se deve ser diante do sofrimento.

Então, encontramos essa analogia entre a vida de Nosso Senhor e a de sua Mãe Santíssima: a vida de Nossa Senhora foi trinta e três anos de Horto das Oliveiras, ao longo  dos quais Ela previu a Paixão e a Cruz no meio de alegrias inenarráveis.

Ela foi vendo seu Divino Filho crescer, preparar- Se para a vida pública – durante a qual esse gládio de dor A esperava –, sair de casa, ouvindo falar dos rumores criados em  torno d’Ele e do ódio que subia e O rodeava de todos os lados. Era o mal que haveria de armar contra seu Filho o golpe mais atroz possível. E Ela que O adorava como seu  Deus e seu Filho, sentindo o pecado horrível que estava sendo preparado, considerava de frente os tormentos que deveriam vir.

O resultado foi a hora magnífica de sua fidelidade: enquanto tantos homens desertaram, Nossa Senhora se encontrava de pé junto à Cruz. Não era de duvidar que estivesse, pois estava confirmada em graça; mas Ela ali se encontrava como fruto dessa longa preparação. Quer dizer, não desmaiada, nem desfalecendo, nem alquebrada pelos  acontecimentos. A iconografia católica apresenta, em todos os séculos, Maria Santíssima muito firme, de nenhum modo desorientada, sem domínio de  Si, ou desejando  fugir. Essas são paixões vis que não caberiam em sua alma,  às quais se contrapunham, na ordem teórica, virtudes mais excelsas que Ela tinha elevado ao mais alto  dos  supremos graus. Nunca ninguém  sofreu tanto, com tanto domínio dos acontecimentos, compreendendo tanto a lógica do que se passava, com tanta força e sobranceria, com  anto ódio ao mal, quanto Nossa Senhora.

Para esmagar o demônio, Nossa Senhora desejou os mais atrozes sofrimentos

Ela sabia que todo o mal no mundo seria esmagado no momento em que o seu Divino Filho expirasse. Durante todo o tempo, a Santíssima Virgem esteve na seguinte  disposição: “Adoro meu Filho, mas se for preciso sacrificá-Lo para esmagar o demônio, derrotar o poder das trevas, concordo que meu próprio Filho morra. Eu O entrego,  por assim dizer, O imolo. Esse gládio Eu mesma enfio em meu próprio Coração. Mas é preciso que o demônio seja esmagado. É necessário  que o mal – que hoje chamamos   Revolução – seja estraçalhado por todo o sempre. Uno-me às intenções santíssimas do Pai, do Filho e do Espírito Santo e faço esse sacrifício horroroso.

Mas isso que está acontecendo no alto da Cruz Eu quero, e não deixo de querer um instante, com toda a intensidade de meu ser”.

Se isto não é espírito de combate,  disposição para arrasar o adversário, então não sei mais o que significam essas palavras.

Trinta e três anos de preparação! O que tem isso de comum com a vida de Nosso Senhor? Para não falar de preparação remota, no Horto das Oliveiras Nosso Senhor quis  meditar e prever tudo o que Lhe aconteceria. Então, Ele começou a sentir horror e pavor do que viria, e fez aquela oração: “Meu Pai, se for possível, afaste-se de Mim esse cálice” (Mt 26, 39). Quer dizer, se não for condição para o gênero humano ser redimido, enfim, se dentro de vossos desígnios for possível derrotar o demônio sem isso.

Porém, faça-se a vossa vontade e não a minha. Eu aceito e quero todo esse sofrimento para chegar a esse resultado. Ordem mental, lógica, calma e ante a dor, e o amor ao  sofrimento que se deve ter.

Gládio representando a dor e a luta

Muitas vezes, em nossa vida, há aspectos triunfais, no meio de toda a guerra em que nos movemos. Mas precisamos nos compenetrar bem de que o  normal, na luta tremenda que  estamos tendo, é virem vários momentos nos quais um gládio de dor transpasse a alma de cada um de nós. Por vezes  pareceremos derrotados, desorientados, abandonados pela Providência, como diz o Salmo que Nosso Senhor recitou no alto da Cruz: “Deus meu, Deus meu, por que Me abandonaste?” (Mt 27, 46).

Devemos nos colocar diante desta perspectiva: essas são as coisas que podem acontecer, nossa luta não será sempre uma parada de vitórias. Não seríamos dignos de Nosso Senhor Jesus Cristo, nem de sua Mãe Santíssima, se isso fosse assim. É mister termos diante dos olhos sempre a ideia de que um gládio de dor nos atravessará em determinado momento.

Devemos pedir a Nossa Senhora que nos alcance a graça – que, sob determinado ponto de vista, não temo chamar de suprema – de desejarmos, amarmos e, desde logo,  prepararmos nossa vida para essa hora.

Porque assim como a hora do gládio, junto com a da Encarnação, foi a grande hora da vida da Santíssima Virgem, a hora da fidelidade, assim também podemos dizer não ter  sido a grande hora de nossa vida somente a vocação, mas vai ser a hora da perseverança, que corresponderá à hora do gládio.

Tivéssemos nós um gládio que, com maior furor guerreiro e de um modo mais terrível, representasse ao mesmo tempo a dor que deve transpassar nossas almas e a luta  contra nossos adversários, e eu o poria como símbolo em nossa capela, porque, mais do que uma resignação, uma sadia e equilibrada apetência desse gládio deve nos caracterizar.

Conta-se que Nosso Senhor, quando recebeu a Cruz, antes de colocá-la nas costas chorou de emoção, abraçou-a e a beijou com muito carinho, porque desde sempre a  desejara. Oxalá, na hora de nosso gládio, possamos também chorar varonilmente de emoção, osculá-lo com muito carinho e dizer que desde sempre o desejávamos. É o  pedido do amor a esse gládio que devemos apresentar a Nossa Senhora das Dores.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/4/1965)

São Casimiro e a supremacia do exemplo

Mais do que agir e realizar grandes feitos, a excelência espiritual consiste em ser e em difundir no universo da Igreja o aroma da perfeição: eis o valioso ensinamento que nos transmite Dr. Plinio, ao comentar alguns traços da vida de São Casimiro, príncipe da Polônia.

 

No dia 4 de março a Igreja celebra a festa de São Casimiro, da estirpe real polonesa e patrono desta nação. Sua breve existência foi profundamente marcada pela intensa piedade que o caracterizava, conforme lemos no Pe. Rohrbacher:

Espírito continuamente unido a Deus

São Casimiro, príncipe da Polônia, foi o terceiro dos treze filhos de Casimiro III com Isabel da Áustria, filha do Imperador Alberto II. Veio ao mundo em 5 de outubro de 1458 e demonstrou, desde a infância, muita inclinação para a virtude.

Teve por preceptor João Dlugosz, denominado Longino, cônego de Cracóvia e historiador da Polônia, homem que aliava rara piedade a grande extensão de conhecimentos. Casimiro e os outros príncipes, seus irmãos, lhe eram tão ternamente afeiçoados que não podiam tolerar que os separassem dele um momento. Mas, nosso Santo foi aquele que mais aproveitou as lições de tão hábil mestre.

Viram-no, na flor da idade, entregar-se com ardor aos exercícios de piedade e às práticas da mortificação. Trazia um cilício sob as vestes, que eram sempre muito simples. Diversas vezes deitava-se no chão duro e passava boa parte da noite a orar e meditar. A Paixão de Jesus Cristo era o assunto mais costumeiro de suas meditações. Saía com freqüência à noite para ir rezar à porta das igrejas, onde esperava se abrissem para assistir às matinas.

Espírito e coração continuamente unidos a Deus, a paz interior de sua alma se manifestava a toda a gente pela serenidade da face. Cheio de respeito por tudo o que concernia ao culto divino, as menores cerimônias eclesiásticas lhe tocavam a piedade. Tinha particular devoção a Jesus padecente pelos homens, e jamais pensava no mistério da Redenção sem desfazer-se em lágrimas e sentir-se abrasado de amor.

Quanto ao santo sacrifício da Missa, a ele assistia com tanto fervor e recolhimento que parecia maravilhado em êxtase. Para marcar a confiança que possuía na proteção da Santíssima Virgem, compôs em honra d’Ela o hino que traz seu nome, e do qual desejou que uma cópia fosse depositada em seu túmulo, quando morresse. (Esse cântico iniciava-se com as palavras “Omni die, dic Mariae, mea laudis anima”.)

Amava tão ternamente os pobres que lhes sentia de certo modo as misérias. Não contente de lhes distribuir os bens, empregava ainda, para aliviá-los, tudo o que tinha de crédito junto a seu pai e a seu irmão Vlasdilau, Rei da Boêmia.

Consumando a obra da santificação

Os húngaros, insatisfeitos com Matias, seu monarca, quiseram elevar nosso Santo ao trono, em 1471. Enviaram para esse fim uma deputação ao Rei da Polônia, seu pai. O jovem Casimiro, que não completara ainda 13 anos, desejaria bem recusar a coroa que lhe ofereceram.

Mas, para agradar ao pai, partiu à testa de um exército, a fim de sustentar o direito de sua eleição. Tendo chegado às fronteiras da Hungria, soube que Matias acabava de reunir dezesseis mil homens para ir à frente dos poloneses e que tornara a conquistar o coração dos súditos. Soube também que o Papa Sisto IV se declarara pelo rei destronado e enviara uma embaixada a seu pai, para fazê-lo abandonar a empresa.

Todas essas circunstâncias reunidas deram secreta alegria ao jovem príncipe. Pediu ao pai que voltasse sobre os próprios passos, o que só com muita dificuldade lhe foi concedido. Porém, para não aumentar o desgosto que o pai sentia por ter visto malograr seus desígnios, evitou a princípio aparecer na presença dele. Em lugar de ir direto a Cracóvia, retirou-se ao Castelo de Dobzski, situado a uma légua da cidade, e lá passou três meses na prática de austera penitência.

Tendo reconhecido, em seguida, a injustiça da expedição que o tinham forçado a empreender contra o Rei da Hungria, recusou constantemente render-se a segundo convite que lhe fizeram os húngaros, e isso malgrado as solicitações e reiteradas ordens do pai.

Casimiro empregou os doze últimos anos de vida em consumar a obra de sua santificação. Viveu na maior continência, apesar das razões prementes que se alegavam para levá-lo ao casamento. Morreu de tísica em Vilna, capital da Lituânia, em 4 de março de 1483, com a idade de vinte e quatro anos e cinco meses. Predissera a morte e para esta se preparou através de um redobramento de fervor e pela recepção dos sacramentos da Igreja.

Operou-se grande número de milagres por sua intercessão, sendo canonizado pelo Papa Leão X em 1522. Cento e vinte anos após sua morte, encontraram-lhe o corpo incorrupto, assim como foram achados intactos os ricos tecidos com os quais o tinham envolvido, apesar da excessiva umidade do jazigo onde fora enterrado. Mandaram então construir magnífica capela de mármore para nela serem depositadas suas relíquias.

São Casimiro é patrono da Polônia, e o propõem comumente aos jovens como perfeito modelo de pureza.

Santidade é sobretudo o ser e o não agir

A respeito de São Casimiro, convém notar de modo especial três traços.

Há santos fundadores de povos, outros dão origem a ciclos de civilização, e por sua ação extraordinária eles movem a História.

Existe também a categoria dos santos que se tornam exímios na prática de uma determinada virtude, da qual são modelos em toda a vida da Igreja. E para que a atenção dos fiéis não se desvie deste ponto central, esses heróis da Fé morrem relativamente jovens e a biografia deles permanece marcada por aquela virtude.

São Luís Gonzaga, por exemplo, pouco realizou em sua breve existência. Morreu ainda adolescente, mas havia atingido um apogeu na prática da castidade. Se ele tivesse feito muitas obras, a tendência dos que o admirassem seria de se voltar para o que ele produziu e não para o que foi.

Tais santos nos mostram, assim, que a excelência espiritual consiste sobretudo em ser, em manter uma ação de presença dentro da Igreja, difundir o aroma da perfeição, não só enquanto estão vivos, mas depois de mortos. E que os dias deles, tão precocemente imolados e em geral oferecidos em benefício da Igreja Católica, são elementos preciosíssimos para a salvação das almas.

Elementos, portanto, valiosos na ordem do sacrificar-se e não no terreno do agir.

A supremacia do exemplo, da imolação, da realização interior de uma obra própria que justifica inteiramente a existência, apesar de externamente não se ter feito nada, esse é o ensinamento que almas como São Casimiro, São Domingos Sávio, São Luís Gonzaga e tantos outros, nos trazem à mente. É um aspecto deste sol de santidade que é a Igreja Católica Apostólica Romana.

Pompa e penitência

Há ainda um traço interessante na vida de São Casimiro: trajava roupas régias, embora simples, enquanto portava o cilício sob elas. Vemos nisso o equilíbrio do verdadeiro santo. Ele deseja fazer penitência, mas sabe que sua condição lhe impõe o vestir-se com a pompa inerente à sua categoria. E como não é um igualitário, usa todo o necessário para a manutenção de seu estado, sem descuidar da penitência: coloca sobre si um instrumento de sacrifício, mas o leva às ocultas.

Por fim, uma nota curiosa que pode ser especialmente útil para nós.

São Casimiro teve dificuldades com seu pai, pois este desejava que ele conquistasse a Hungria, e não compreenderia a recusa do filho alegando um motivo — no juízo do monarca — frívola: o Papa dava razão ao outro e o príncipe seria, portanto, um usurpador.

Dando provas de muito tato e sabedoria, o jovem santo evitou comparecer de imediato à presença do pai. Retirou-se para um castelo distante da corte, e ali permaneceu durante três meses, até que os ânimos serenassem. Só então retornou.

Foi um santo apuro e depois um santo ardil, que deve servir de inspiração para todos nós.

Plinio Corrêa de Oliveira