Perfeição do espírito da Contra-Revolução

Encarnação do Verbo é a Festa da escravidão a Nossa Senhora e da Contra-Revolução, na qual se celebra o espírito de obediência, o amor à hierarquia, à ordem, à dependência, a tudo quanto a Revolução odeia.

O espírito humilde e contrarrevolucionário de Maria Santíssima se manifesta em face deste mistério, pois quando Ela soube que o Verbo Se encarnaria n’Ela, sua reação não foi de Se vangloriar, mas de proferir esta frase humílima: “Eis a escrava do Senhor, faça-se em Mim segundo a tua palavra”.

Como se dissesse: “Se Deus quer de Mim essa coisa inimaginável, isto é, que Eu mande n’Ele, por obediência a Ele, n’Ele mandarei. Porque Ele é o Senhor, e em tudo farei a sua vontade”.

À luz deste mistério, ganha especial realce a atitude da Santíssima Virgem dizendo-Se escrava de Deus no momento em que Ele queria fazer um ato de escravidão em relação a Ela.

Aí vemos a perfeição do espírito da Contra-Revolução.

Plinio Corrêa de Oliveira – (Extraído de conferência de 16/3/1971)

Revista Dr Plinio (Março de 2016)

Sagrada intimidade com Nossa Senhora e com a Santa Igreja

Encarnação do Verbo, celebrada em 25 de março, é a Festa da Escravidão a Maria Santíssima.

Com efeito, durante o tempo de sua gestação no claustro virginal de Maria, o Verbo Encarnado viveu uma dependência incomparável em relação a Ela. É o maior estado de submissão que se possa imaginar, pois a criança que está no seio materno vive da vida da mãe, e em tudo é conduzida e, por assim dizer, circunscrita por ela.

Como no estado de escravidão voluntária o escravo renuncia completamente à sua liberdade para ficar inteiramente contido e circunscrito pela vontade de seu senhor – de maneira que a sua vida é para o serviço de seu senhor, os seus pensamentos tendem ao seu senhor, os seus atos são para o serviço de seu senhor –, assim também era Nosso Senhor em relação a Nossa Senhora.

Portanto, quem quiser ser verdadeiro escravo de Nossa Senhora deve venerar, de modo muito especial, essa miraculosa e insondável sujeição de Jesus a Maria, em que o infinitamente maior se deixou dominar e conter pelo menor, na realização de um plano de Deus, de uma sabedoria que excede a qualquer cogitação humana.

Por outro lado, se tomarmos a sério a devoção apregoada por São Luís Maria Grignion de Montfort, compreenderemos que a Sagrada Escravidão comporta uma espécie de intimidade com Maria Santíssima por onde cada escravo trata à sua maneira com Ela, e Nossa Senhora aceita benignamente o modo de ser de cada um.

Desta forma, a Sagrada Escravidão à Santíssima Virgem tem um aspecto que poderia chamar-se “a sagrada intimidade com Nossa Senhora”, um sagrado e personalíssimo trato em que Ela é toda inteira como se existisse só para nós.

O mesmo poderíamos dizer a respeito da Igreja Católica. Para cada um dos que nela entram, a Santa Igreja abre um firmamento de beleza particular. Ela tem um jeito de encher até os bordos tanto a alma pequena quanto a grande, sendo para cada fiel como o maná que no paladar espiritual tem um sabor próprio feito completamente para aquele.

Assim, por mais diferentes que sejam os homens, cada católico sempre poderá afirmar: “A Igreja Católica é tal que se fosse feita para mim, ela seria exatamente como é”.(*)

 

Plinio Corrêa de Oliveira
* Excertos de conferências de 15/8/1970 e 16/3/1971.

 

Revista Dr Plinio 228 (Março de 2017)

Paixão de Cristo, Senhor nosso: dai-me forças!

Sexta-feira Santa de 1991. Aos pés do Crucifixo diante do qual sua mãe costumava recordar, nesse dia, a Paixão e Morte do Redentor, Dr. Plinio, reunido com alguns de seus discípulos, medita na indizível misericórdia do Filho de Deus em se imolar pela salvação dos homens, e na necessária reforma de vida com que devemos retribuir esse resgate de valor infinito.

 

O sacrifício da Vítima Divina no alto do Calvário nos propõe diversos e importantes pontos para nossa reflexão. Tomemos em consideração alguns deles.

Nosso Senhor Jesus Cristo consumou seu holocausto e acabou de morrer por nós. Como narra o Evangelho, após o brado lancinante de “Eli, Eli, lamma sabactani — meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes” — Ele entregou seu espírito nas mãos do Padre Eterno e, em seguida, tendo inclinado a cabeça, expirou. Tudo estava terminado.

Pináculo da tristeza, aurora de uma imensa alegria

Até esse augusto e trágico momento, reinavam no mundo a desolação, o pecado e a miséria. Porém, sobre tudo isso derrama-se agora o preciosíssimo Sangue de Cristo. A Redenção acaba de se operar, o gênero humano é resgatado, e o caminho para o Céu novamente aberto para ele. Assim, o pináculo da tristeza, da tragédia e do horror vizinha a mais radiosa aurora da mais intensa das alegrias.

Aos pés da Cruz encontra-se Nossa Senhora, cujo Coração Imaculado e Sacratíssimo está rachado de dor. Ao mesmo tempo, Ela preliba todas as alegrias da salvação das almas. Maria tudo compreende, vê e mede, não só a regeneração do mundo nesta vida, mas, sobretudo, o esplendor eterno que todas as almas justas receberão para maior glória de Deus.

Diante dessa atitude da Santíssima Virgem, peçamos-Lhe que interceda por nós junto ao seu Divino Filho, e nos obtenha um inflamado zelo por nossa própria santificação. Desse modo, saberemos aproveitar tanto sangue vertido e tantas lágrimas, tanta dor e tanta tragédia, para igualmente sabermos participar da glória da Ressurreição de nosso Salvador.

As almas dos fiéis defuntos à espera da Redenção

Noutra consideração, pensemos como, há milhares de anos, as almas de Adão e Eva, juntamente com as de todos os seus descendentes justos, que cumpriram a Lei nesta vida, esperavam o momento bendito da Redenção. Aguardavam, naquela misteriosa mansão dos mortos à qual a própria alma de Cristo haveria de descer para libertá-las. Aguardam: espera longa, espera indefinida quase até à aflição, durante a qual a alma se torna cada vez mais sedenta de fazer cessar esse estado provisório em que se encontra, e de entrar na sua condição definitiva de bem-aventurada, repleta de glória e de grandeza!

Em seus insondáveis desígnios, quis a Providência que essas almas padecessem esse sofrimento da espera. Contudo, podemos imaginar também, após uma tão longa expectativa, a alegria inenarrável e ilimitada quando viram aparecer diante delas a luminosíssima e santíssima alma de Nosso Senhor Jesus Cristo!

Pensemos nessas almas justas. Antes de tudo, nas de nossos primeiros pais, Adão e Eva, cujas figuras devemos recordar nesse instante, com sumo amor e respeito. Lembremo-nos, no extremo oposto da perspectiva histórica, de São José, esposo castíssimo de Nossa Senhora e pai legal do Verbo Encarnado. Durante muitos anos esteve ele com a Santíssima Virgem e Jesus. Privado, pela morte, desse convívio que tanto o maravilhava e cumulava de contentamento, São José não terá se contido de felicidade, ao perceber ali, junto dele, o Redentor radioso e glorioso, trazendo-lhe a boa nova do término da longa espera e da sua passagem para o Céu.

Lá já estava, recém-chegada, a alma do bom ladrão, justificado pelos próprios lábios do Salvador: “Em verdade te digo, hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43).

Esperar com paciência nossa salvação

Pensemos, então, nessa libertação depois da prolongada espera. Comparemos a situação daquelas almas justas com a nossa, peregrinos neste mundo incerto, na esperança de alcançarmos o porto da bem-aventurança eterna. E peçamos a Nossa Senhora que nos auxilie e ampare a cada momento dessa nossa caminhada, a fim de que, salvando-nos, nossa libertação seja igualmente gloriosa — não para nós, mas para a honra d’Ela e de Nosso Senhor Jesus Cristo, e da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, à maneira da glória dos fâmulos que se associam ao triunfo dos mestres.

Que a Santíssima Virgem nos alcance a graça de esperarmos com paciência, não de uma espera negligente e indolente, mas sofrida e semeada de santas ansiedades. Espera sem nenhuma revolta; espera de almas que compreendem ter o Divino Senhor seu tempo para tudo, e, por isso, amam as horas de Deus.

“Sangue de Cristo, inebriai-me”

Num passo seguinte, consideremos que, tendo Nosso Senhor Jesus Cristo nos redimido e aberto para nós as portas do Céu, é o momento de olharmos para nossas almas pecadoras. Pensemos em todo o sangue vertido por ele para limpar e purificar nossas almas, e para inebriá-las com suas graças. E digamos: “Sanguis Christi, inebria me; acqua lateris Christi, lava me; passio Christi, conforta me”. Sangue de Cristo, inebriai-me; água do lado de Cristo, lavai-me; Paixão de Cristo Senhor nosso, dai‑me forças.

Que Nosso Senhor nos dê, pelos rogos de Maria, a graça de olharmos para nossas almas, com todos os seus defeitos, contorções e misérias, com tudo o que nos desvia do que deveríamos ser, que nos afasta do caminho da santidade para a qual somos todos chamados. Peçamos perdão por nós, por nossos próximos e por nossos irmãos de vocação, a fim de que, encarando cada um seus próprios defeitos, tenhamos coragem e força, alcançadas para nós pelo Sangue de Cristo, para empreender uma séria e honesta reforma de nossas almas.

Senhor Jesus, Maria Santíssima, Mãe dos pecadores, tende pena de nós. Amém.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído da meditação feita em 13/4/90)

São Dimas

São Dimas, o “bom ladrão”, foi escolhido por Nosso Senhor Jesus Cristo para simbolizar a sua infinita misericórdia para com os homens e, de modo especial, os pecadores. Além de padecer tudo o que sofreu por nós, quis o Filho de Deus dar-nos uma suprema prova de como seu perdão é ilimitado: no derradeiro momento de sua vida, pregado na Cruz, Ele perdoou o bom ladrão e lhe concedeu a graça da santificação. Como se nos quisesse afirmar: “Se esperardes numa clemência que desafia completamente o que sois capaz de imaginar, vossa alma será salva!”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 14/2/1972)

Os Impropérios cântico de dor e esperança

Na liturgia da Sexta-feira Santa, enquanto os fiéis se aproximam para adorar a Cruz do Salvador, ecoa pelo recinto sagrado o cântico dos Impropérios: dolorosas e compassivas admoestações postas nos lábios de Nosso Senhor em relação aos homens que Lhe retribuem com ofensas e pecados, o benefício infinito da Redenção.
Como assevera Dr. Plinio, essas estrofes nos devem incitar ao arrependimento e à conversão, bem como alimentar em nossa alma uma firme esperança na misericórdia divina.

 

Um dos mais belos modos de se fazer a meditação sobre a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo consiste em analisar os Impropérios, texto inspirado nos profetas do Antigo Testamento e cantado na liturgia da Sexta-feira Santa.

Em certo sentido, exprime o que há de mais dilacerante na Paixão do Redentor, tornando patente aos nossos olhos a suprema injustiça perpetrada contra o Filho de Deus. Por outro lado, como Nosso Senhor sofreu devido aos pecados dos homens de todos os tempos, os Impropérios se aplicam a cada um de nós.

Colher sentimentos de contrição

Assim, num ato de piedade, devemos imaginar Jesus — e também Nossa Senhora, presente espiritual ou corporalmente nos vários passos da Paixão — na agonia do Horto e, mais tarde, sendo flagelado, oprimido com a cruz às costas, crucificado e morto por nosso amor. Ao rezarmos a Via Sacra, convém considerarmos que Nosso Senhor nos dirige perguntas semelhantes às dos Impropérios, e cada estação nos reserva graças especiais de compunção e arrependimento.

Desse modo, podemos tomar as diversas estrofes desse texto e aplicá-las à nossa alma, colhendo ditos sentimentos de contrição. Aos pés do Bom Jesus, nosso remorso deve ser repleto de confiança, tranqüilo, suave, e ao mesmo tempo amargo como o de São Pedro. Não agitado, perturbado e horrendo como o de Judas. Será útil um exame de consciência para nos lembrarmos de nossos pecados da vida passada, das graças recebidas e o uso que delas fizemos, pois esses dons celestiais custaram pedaços da carne e gotas do sangue de Nosso Senhor, bem como lágrimas da Santíssima Virgem.

Cabe a nós, no momento em que recebemos tantas dádivas do alto, nos perguntarmos: “Ó Deus, não haverá um recanto de minha alma que eu poderia entregar e não o fiz? Não devo pedir a Nosso Senhor que me o faça conhecer? Se conheço, preciso rogar-Lhe — pelas suas chagas, pelo seu pranto dulcíssimo, pelos seus gemidos amargos, pelo “consummatum est” da última agonia — que tenha pena de mim e me conceda coragem para entregar tudo a Ele”.

Portanto, ao meditarmos na Paixão do Salvador, supliquemos graças superabundantes, pois essa é a hora da misericórdia, na qual até o bom ladrão foi perdoado, e de malfeitor que era tornou-se santo. Peçamos e confiemos: em toda Sexta-feira Santa, Nosso Senhor nos reserva dons semelhantes e até maiores aos por Ele concedidos no dia de sua morte.

Interpelação sem resposta

Analisemos, agora, os Impropérios 1.
Povo meu, que te fiz Eu, ou em que te contristei? Responde-me!

Nosso Senhor é perfeito, não contristou nem fez mal algum a ninguém. Conhecendo o silêncio da pessoa a quem se dirige, Ele diz: “responde-me”. Ou seja, “pelo mutismo de teus lábios, note até que ponto deves te arrepender de teu pecado”.

Porque Eu te tirei da terra do Egito, preparaste uma cruz para o teu Salvador?

A migração do povo judaico — que vivia como escravo no Egito — para a Terra Prometida é um símbolo da libertação do estado de pecado original, no qual nascemos, para a ordem da graça obtida pela Redenção de Nosso Senhor Jesus Cristo. Simboliza, também, nossas conversões ao longo da vida.

Quando alguém comete pecado mortal, perde a vida da graça, sua alma fica como que morta. Se ele falecesse neste estado, seria condenado ao inferno. Entretanto, pelo Sacramento da Penitência, Deus se compadece dele e o tira da “terra do Egito”. Ou seja, da “sepultura” do pecado, onde sua alma como que “jazia” morta, restitui-lhe a vida da graça. Porém, se o mesmo indivíduo recai no pecado, caberia a ele a pergunta feita por Nosso Senhor aos hebreus: “Eu tirei tua alma da lepra do pecado mortal, livremente contraído por ti; por causa disto tu agora me odeias?”

É uma indagação pungente, cujo significado mais profundo é este: “Meu filho, veja o estado de tua alma, converte-te!”

A única solução: mudar de vida

Porque Eu te conduzi quarenta anos pelo deserto, te alimentei com o maná e te introduzi na terra esplêndida: preparaste uma cruz para o teu Salvador?

O maná é um símbolo da Eucaristia, O Redentor pergunta a cada um de nós: “Eu me fiz hóstia no Santíssimo Sacramento para habitar no meio dos homens e ser alimento de suas almas, e tu me persegues? Eu te introduzi numa terra esplêndida (isto é, na Santa Igreja Católica Apostólica e Romana, a instituição perfeita, a pátria de nossas almas), te concedi a maior honra e felicidade que o homem possa ter no mundo, a de ser filho da Igreja: por causa disso tu me persegues?”

Nota-se que, ponto por ponto, ao mesmo tempo a recriminação é doce e repassada de uma lógica irretorquível. A possibilidade de uma justificação de nossa parte desaparece completamente.

A única solução para cada um de nós é mudar de vida, ajoelhar-se diante de Nosso Senhor e dizer: “Pequei, tende piedade de mim! Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, lavai minha alma, extirpai minhas faltas.”

Que mais devia ter feito por ti, e não fiz?

Tudo que é para nosso bem, Jesus realizou. Entre outras coisas inapreciáveis, deu-nos como Mãe a própria Mãe d’Ele. Que mais Ele deveria ter feito? Não há resposta…

Insisto, a única atitude conveniente de nossa parte é o pranto ou a batida do nosso punho no peito. O som dessa batida é o cântico no qual o Redentor pede nossa contrição, num misto de força e doçura que exprime bem a infinita santidade de Jesus.

Não ser como uvas amargas

Eu te plantei como vinha escolhida e preciosa: e tu te tornaste excessivamente amarga para Mim; vinagre me deste a beber na minha sede, e com uma lança atravessaste o lado do teu Salvador.

Quer dizer, o povo eleito foi colocado na Terra Prometida como uma vinha de grande qualidade a qual, ao invés de produzir uvas doces, deu frutos de excessivo amargor. Quando Jesus teve sede, deram-Lhe vinagre no lugar de água e, pela lança do centurião, transpassaram o flanco de Nosso Senhor. Fato pungente: foi ferido o coração, símbolo do amor, e dele jorraram as últimas gotas de sangue. A crueldade não poderia ter ido além.

Como nas estrofes anteriores, essas palavras são figurativas e se aplicam às nossas almas. Cada um de nós é uma vinha plantada pelo Divino Salvador no solo precioso da Igreja Católica, mais valioso que dez mil terras prometidas. A Igreja é a habitação de nossa alma, e cada um de nós poderia dizer a si mesmo: “Eu deveria produzir frutos de doçura para Nosso Senhor, amá-Lo, cumprir os Mandamentos, obedecê-Lo em tudo e não praticar ato algum que me afastasse d’Ele. Porém, não foi essa minha vida; cometi ações contrárias a meu Salvador, pequei e me transformei na uva amarga que depõe contra o agricultor cuidadoso. Pior. Quando Nosso Senhor, no auge de seus tormentos, tinha sede e me pedia Lhe desse ao menos água para beber, ou seja, reparação límpida, eu pequei…”

Ou seja, em todos os momentos, devo procurar consolar Nosso Senhor pregado na cruz. Do contrário, sou tíbio, imperfeito… E se cometi algum pecado mortal, fiz como o centurião romano, ferindo o Coração de Jesus. Preciso, então, bater no peito, pedir perdão. Não é apenas a ofensa grave, mas também o ensabugamento”2″, o ficar estacionado e não progredir na vida espiritual.

Não haverá aqui um impropério de Nosso Senhor para mim, em razão dos sofrimentos que Lhe causei? É-me necessário, pois, suplicar a Ele tenha pena de mim. E, repleto de esperança, lembrar-me do que nos diz a tradição a respeito de Longinos, o soldado de César cujo golpe de lança perfurou o coração do Redentor. Segundo escreveu alguém, parece que Longinos era catacego e foi milagrosamente curado das vistas quando o precioso Sangue de Cristo jorrou da ferida e respingou sobre a sua face. Converteu-se e tornou-se um santo. Quem sabe se, durante as cerimônias da Sexta-feira Santa, ao serem entoados os Impropérios, sou eu também curado de minha cegueira espiritual? Eis uma inestimável graça que devo pedir.

Como correspondemos aos favores divinos?

Por tua causa flagelei o Egito e os seus primogênitos; e tu aos açoites me entregastes.

Para que o povo hebreu finalmente pudesse sair do Egito, Deus feriu com uma praga todos os primogênitos da maior nação do mundo de então. E, durante sua Paixão, Nosso Senhor foi açoitado… Ora, quando cometo algum pecado, eu flagelo Nosso Senhor. Trata-se, aqui, de uma censura pungente, continuando sempre numa lógica inflexível.

Eu abri o mar à tua passagem; tu me abriste o lado com uma lança.

Há benefício mais esplêndido do que abrir o mar para um povo fugitivo passar? Existe forma mais ingrata de retribuir o autor de uma dádiva, que perfurar o seu coração com uma lança?

Caminhei diante de ti em uma coluna luminosa e tu me levaste ao pretório de Pilatos.

Deus, através de uma coluna luzente, orientou o povo de Israel pelo deserto. E Nosso Senhor foi conduzido ao pretório para ser julgado por Pôncio Pilatos…

Esta lamentação de Jesus também se aplica à minha vida. Deus iluminou meus caminhos à maneira de uma coluna de luz, constituindo a alegria de minha existência. E tive a desfaçatez de pecar contra Ele!

Alimentei-te com maná no deserto: e tu me feriste com bofetadas e açoites.

O maná era um alimento delicadíssimo, possuía toda espécie de gostos e caía do céu com abundância, para todos se fartarem. Ora, como acima mencionamos, a Sagrada Eucaristia é como um maná: abundante, contém para as almas todos os sabores, a fim de saciá-las. Quando pecamos, retribuímos esse dom divino com bofetadas! Note-se, mais uma vez, a contradição flagrante. Fiz brotar da pedra a água de salvação para te saciar; e tu me deste a beber fel e vinagre.

Em determinado momento de sua peregrinação pelo deserto, os judeus desfaleciam de sede. Então Moisés bateu com seu cajado numa pedra e desta começou a jorrar água suficiente para dessedentar todo o povo. Quando ofendo Nosso Senhor, pago-Lhe com vinagre e fel os refrigérios que Ele misericordiosamente me concede…

Por tua causa feri os reis de Canaã; e tu com uma cana feriste a minha cabeça.

Antes de tudo, vale observar que essa estrofe contém um interessante jogo de palavras: cana e Canaã. Pois bem, Deus feriu de morte os reis de Canaã — ou seja, da Terra Prometida — para esvaziá-la de povos impuros e entregá-la aos hebreus. Jesus, por sua vez, foi coroado de espinhos e golpeado na cabeça pelos esbirros com a vara da ignomínia, aumentando suas dores.

Da Cruz de Cristo nasce a verdadeira alegria

Senhor, nós adoramos a vossa Cruz, celebramos e glorificamos a vossa santa Ressurreição porque foi pelo madeiro da cruz que veio a alegria para todo o mundo.

Percebe-se aqui o belo contraste apontado na liturgia. Esta fala da tristeza, do sofrimento representados pela cruz, e também da esperança, da alegria que ela trouxe para o mundo. E quão autêntica é a alegria católica! Pensemos no júbilo do verdadeiro Natal, não o do comercializado de hoje, e compreenderemos a felicidade que a fé católica nos proporciona. Ora, foi do sofrimento de Nosso Senhor, das lágrimas de Nossa Senhora, que nasceu a alegria genuína, fruto da virtude e não do vício.

A esse propósito, lembro-me das alegrias da Páscoa no meu tempo de moço. As cidades ainda pouco ruidosas nos permitiam ouvir, próximo ao meio-dia de sábado, o bimbalhar dos sinos anunciando a Ressurreição de Cristo. Alguns meninos saíam pelas ruas espancando bonecos que representavam Judas, e por toda a parte se cantava o Aleluia.

Iniciavam-se, então, as festas: parentes e amigos se cumprimentavam, trocavam ovos de chocolate; algumas famílias faziam piquenique nos parques, para exprimir seu contentamento. As igrejas ficavam repletas, a liturgia se revestia de imensa pompa. Essa alegria, no fundo, originou-se no episódio mais trágico da Paixão, quando Nosso Senhor, ao morrer, disse aquelas palavras lancinantes, as quais podem até parecer de desespero: “Meu Pai, meu Pai, por que me abandonaste?” (Mt 27, 46).

Entretanto, são essas as primeiras palavras de um salmo que, ao final, contém manifestações de alegria (cf. Sl 21), porque de fato o abandono não foi real, e de toda aquela tristeza e dor nasceu o grande júbilo da Páscoa.

Uma vez mais, é a afirmação da alegria da cruz.

Manifestação da infinita misericórdia divina

Deus se compadeça de nós e nos abençoe. Faça resplandecer sobre nós a luz de sua face e tenha piedade de nós. Senhor, nós adoramos a vossa cruz.

A beleza dessas frases está em que os Impropérios poderiam nos causar atitude de alma quase de liquidação, de prostração, porém a liturgia nos lembra o contrário. Deus é a fonte de todas as misericórdias. Daí o reiterado pedido: Tenha piedade de nós!

Nosso Senhor se compadece de nós, mas deseja receber a nossa súplica nesse sentido. O Redentor nos salvará se soubermos recorrer a Ele por meio das lágrimas e preces de Nossa Senhora, Medianeira Universal. Portanto, tenhamos coragem, confiança e ânimo.

Termina-se essa meditação compungido, mas repleto de esperança e com alegria de alma. Em determinado momento, receberei uma graça tão insigne que serei limpo de meus pecados e defeitos espirituais. Donde a beleza do pedido: “Deus faça resplandecer sobre nós a sua face”, exprimindo o fato de que Deus, ao se alegrar com os homens, volta sua face para eles e tudo se torna fácil, suave, brilhante. Pelo contrário, nas épocas de castigo, o Altíssimo desvia seu rosto e não olha para os homens, como se o sol desaparecesse…

Nosso Senhor Jesus Cristo volta para nós sua face divina — não mais com aquele aspecto sublime e sob certo ângulo um tanto terrificante do Santo Sudário — com semblante de misericórdia, com bondade e perdão, como fitou São Pedro. E neste momento, em que também o rosto de Nossa Senhora se dirige para nós, a graça nos ilumina, sentimos piedade, devoção, como que ressurgimos e nossa vida espiritual ganha novo impulso.

Com o auxílio da Virgem, abracemos nossa própria cruz

Quando dizemos a Deus que adoramos sua cruz, podemos acrescentar uma súplica.

Peçamos-Lhe amor à nossa própria cruz. Cada um de nós gostaria de ser algo que não é, ter algo que não tem, poder algo que não pode, realizar algo que não realiza. Precisamos, então, fazer uma renúncia e aceitar a realidade concreta. É a cruz que devemos carregar.

Se possuíssemos uma relíquia do Santo Lenho, a adoraríamos, como nos ensina a liturgia. Imaginemos que alguém nos desse um pedaço de madeira o qual simbolizasse aos olhos de Deus nosso próprio sofrimento. Deveríamos amá-lo, depositá-lo sobre nosso leito, portá-lo à maneira de relíquia, rogando a Nosso Senhor que abençoasse nossos dias e nossas noites.

Aquilo que Deus pede de nós, evidentemente nos dói mais, exige maior renúncia. Importa querermos fazê-la, pois Ele merece toda nossa dedicação. Contudo, essa atitude de espírito só se alcança por meio da graça. Assim, peçamos a Nosso Senhor que pela santidade da sua Cruz, O imitemos e abracemos a nossa: com lágrimas, com carinho, embora nos custe. E, à força de rezar, cada um poderá dizer: “É isto que eu quero; tomarei esta cruz e a levarei até o alto do meu calvário!”

Estejamos certos de que Nossa Senhora nos acompanhará, como seguiu Jesus pela Via Crucis, bendizendo nosso holocausto e martírio interior, porque Ela deseja que todos carreguem a própria cruz, a exemplo de seu adorável Filho.

1) Tradução do Missal Romano de 1967.
2) Processo pelo qual o indivíduo se torna “sabugo”, ou seja, estagnado na vida interior (cf. “Dr. Plinio” número 79).

São Dimas: “Roubaste o Céu!”

O  que se passou com São Dimas é algo inimaginável! É o auge do perdão porque, embora fosse um pecador péssimo, ele não só foi perdoado, mas confirmado em graça, pois ao dizer-lhe “tu, hoje, estarás comigo no Paraíso”, implicitamente Jesus afirmava: “Tu perseverarás!”

Assim, de um ladrão crucificado, o Salvador fez o primeiro santo canonizado. Ele, que tinha podido transformar a água em vinho, podia também transformar um ladrão num santo, e o fez. Feliz ladrão que, ao morrer, roubaste o Céu! Os méritos dele não estavam na proporção de alcançar o Céu, mas ele o alcançou porque Deus quis.

É o símbolo da via misericordiosa das almas que sabem valerem pouca coisa, mas se entregam a Deus Nosso Senhor e são cumuladas pela misericórdia divina.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/4/1971)

A escravidão a Maria e o mistério da Encarnação

Enviaram-me uma ficha com trechos do “Tratado da Verdadeira Devoção”(1), que dizem respeito ao mistério da Encarnação do Verbo. Referem-se não só ao fato de o Verbo ter-Se encarnado pela ação do Divino Espírito Santo nas entranhas puríssimas de Maria, mas também à vida oculta de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, durante o tempo da gestação. Então, São Luís Maria Grignion de Montfort diz o seguinte:

A Encarnação é um resumo de todos os mistérios

Os verdadeiros escravos de Nossa Senhora terão uma devoção especial pelo mistério da Encarnação do Verbo […], que é o mistério adequado a esta devoção, pois que esta devoção foi inspirada pelo Espírito Santo:

1. Para honrar e imitar a dependência em que Deus Filho quis estar de Maria, para glória de Deus seu Pai e para nossa salvação; dependência que transparece particularmente neste mistério, em que Jesus se torna cativo e escravo no seio de Maria Santíssima, aí dependendo d’Ela em tudo;

2. Para agradecer a Deus as graças incomparáveis que concedeu a Maria, principalmente por tê-La escolhido para sua Mãe digníssima, escolha feita neste mistério. São estes os dois fins principais da escravização a Jesus Cristo em Maria.

Em outro trecho, afirma São Luís Grignion:

O tempo não me permite deter-me aqui para explicar as excelências e as grandezas do mistério de Jesus vivendo e reinando em Maria, ou da Encarnação do Verbo.

Contento-me, por isso, em dizer, em três palavras, que é este o primeiro mistério de Jesus Cristo, o mais oculto, o mais elevado e o menos conhecido; que é neste mistério que Jesus, em colaboração com Maria, em seu seio, e por isto chamado pelos santos “aula sacramentorum”, sala dos segredos de Deus, escolheu todos os eleitos; que foi neste mistério que Ele operou todos os mistérios subsequentes de sua vida, pela aceitação deles: “Iesus ingrediens mundum dicit: Ecce venio ut faciam, Deus, voluntatem tuam(2)” (cf. Hb 10, 5-9).

Por conseguinte, este mistério é um resumo de todos os mistérios, e contém a vontade e a graça de todos. Este mistério é, enfim, o trono da misericórdia, da liberdade e da glória de Deus.

Um livro profético por seu misterioso conteúdo sobre a devoção a Nossa Senhora

Há aqui duas notas correlatas e que convém acentuar: Na primeira delas, São Luís Maria Grignion de Montfort declara que esta é a devoção por excelência dos verdadeiros escravos de Nossa Senhora. Na segunda, ele afirma que o mistério da Encarnação — mistério da vida oculta de Jesus em Maria Santíssima — contém todos os outros mistérios. Foi em Nossa Senhora que Ele resolveu fazer todas as coisas que realizou e, portanto, o ponto de partida de todas as maravilhas d’Ele está nesta vida oculta em Maria.

Vamos analisar cada uma dessas notas.

O “Tratado da Verdadeira Devoção”, a meu ver, é um livro eminentemente profético, pelo que contém de misterioso sobre a devoção a Nossa Senhora. Vê-se que há coisas insondáveis ditas por ele, as quais, com certeza, vão se revelar com o progresso da Teologia no Reino de Maria, mas que, por enquanto, não se conhecem devidamente.

Jesus quis depender de Maria mais do que um escravo de seu senhor

Por exemplo: quem poderá aprofundar convenientemente este fato posto em realce?

Nosso Senhor, vivendo em Nossa Senhora, estava completamente escravizado a Ela, e a situação d’Ele era a de um ente consciente — porque Jesus teve uma perfeita consciência desde o primeiro instante do seu ser — que formou, inteiramente lúcido, o seu próprio Corpo nas entranhas da Santíssima Virgem e começou a viver ali. Ele ficou contido só por uma criatura, vivendo no contato exclusivo com Ela e na dependência a mais completa que uma pessoa possa estar em relação à outra.

Para termos um pouco a ideia deste mistério, imaginemos um homem adulto a quem fosse dado viver no ventre materno. Até que ponto ele se sentiria circunscrito, aprisionado, dependente, escravo, englobado por sua mãe completamente?

Pois bem, nesta situação viveu o Verbo de Deus feito carne. E Ele, lúcido desde o primeiro instante do seu ser, quis, por um desígnio d’Ele, viver assim dentro deste templo, deste palácio, numa relação misteriosa com Nossa Senhora.

Aquele que teve o poder suficiente para fazer com que a Encarnação se desse em Maria Virgem, com que Ela fosse virgem antes, durante e depois do parto, também poderia fazer com que, por exemplo, realizada a concepção, um minuto depois se desse o nascimento. Não era nem um pouco condição obrigatória Deus Encarnado, Deus Humanado, viver nove meses em Maria. Ele quis que fosse assim, ou seja, desejou ter com Ela esta forma de dependência, de relação de alma que não chegamos a compreender completamente, de tal maneira ela é profunda, misteriosa e inesgotável.

Em suma, Ele quis ser verdadeiro escravo d’Ela. É uma inversão de valores que nos deixa desnorteados. Ele dependeu d’Ela mais do que um escravo depende do seu senhor. O escravo tem vida, respiração e movimentação próprias. Ele não. Jesus, antes de nascer, quis depender assim de Nossa Senhora.

Jesus, verdadeiro Homem e verdadeiro Deus

Qual foi a forma de união que assim se fez? Qual o estilo de relação entre Criador e criatura que ali se estabeleceu? É uma questão insondável, mas para a qual temos um certo termo de comparação no mistério que Ele mesmo operou.

Jesus Cristo, verdadeiro Homem, era verdadeiro Deus. Do homem Ele tinha a alma, o corpo e o sangue. Na sua humanidade era tão homem como nós, naturalmente concebido sem pecado original, mas descendente de Adão e Eva. E a sua natureza humana, unida à sua natureza divina, forma uma só Pessoa divina. É um mistério.

Por outro lado, quando Nosso Senhor, no alto da Cruz, sofrendo tudo quanto sofreu, pronunciou estas palavras do salmo que prediz a Ressurreição d’Ele: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”(3). Sendo Ele a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, tendo, portanto, a plenitude de todas as felicidades, como pôde dizer que estava abandonado? E Jesus também disse: “A minha alma está triste até a morte”(4), embora, como Deus, estivesse nadando no oceano infinito de todas as alegrias e de todas as glórias do Céu.

A escravidão a Maria: imagem da união de almas entre Ela e Jesus

Há também um mistério na relação de almas de Nossa Senhora com Nosso Senhor. É um mistério, naturalmente, menos augusto, menor, mas infinito também, e por isto, para nós, completamente insondável. Mas que algum dia, suponho eu, deitará mais luzes para a humanidade.

Eu creio que no Reino de Maria vai aparecer uma explicação teológica mais completa de alguns desses segredos, e então se compreenderá melhor o próprio Reino de Maria, e também um mistério já bem menor, mas ainda superior ao nosso entendimento, que é nossa escravidão a Maria Santíssima.

Quer dizer, Nossa Senhora consente em estabelecer com seu escravo uma união de almas incomparavelmente menor, mas que é imagem da união de almas entre Nosso Senhor e Ela na Encarnação.

Mistérios que só no Reino de Maria serão desvendados

São mistérios encaixados, imbricados, que não sabemos absolutamente como desvendar, e constituem uma espécie de linha admirável, mas, para dizer tudo numa palavra, misteriosa, em oposição a dois erros da Revolução. Esses dois erros, igualmente abjetos, detestáveis, da Revolução são, de um lado, o individualismo e, de outro, o socialismo que chega até a forma mais inumana: o panteísmo.

O panteísmo afirma: “Todas as coisas que existem são deus e não há uma distinção de pessoa a pessoa, mas tudo é uma pessoa só no universo”. O individualismo diz: “Cada homem é inteiramente irredutível — e nisto ele tem razão, ou seja, pois o homem não se reduz a nenhum outro ser —, e as relações entre alma e alma são apenas essas que nós vemos e das quais podemos nos dar conta”.

Há algum mistério da graça, insondável, que não cai nem no extremo do individualismo nem do panteísmo, e que indica uma possibilidade de relação de almas a qual não se sabe bem como é, mas que, creio eu, no Reino de Maria se desvendará.

Em um livro de revelações privadas — não me lembro se de Santa Catarina de Siena ou de Maria de Ágreda — está dito o seguinte: um dia o Apocalipse seria desvendado, porque apareceria alguém que daria a chave de sua explicação. Quando acontecesse isso, o mistério de Maria se esclareceria, e então raiaria para o mundo a riqueza de um horizonte teológico novo, que iria se somar a todos os horizontes teológicos anteriores.

Creio que devemos colocar nossas esperanças nisso, e que esses mistérios conjuntos possam algum dia ter alguma explicação para nós; à espera do momento em que no Céu esta explicação se dilate um tanto, porque tenho a impressão de que compreender até o fundo, o homem jamais compreenderá.

Forma de comungar indicada por São Luís Maria Grignion de Montfort

Devemos atentar para o fato de que está dito nessa ficha que o mistério da Encarnação — e este é o segundo ponto — contém todos os outros mistérios. E dado que cada festa da Igreja traz graças especiais, próprias ao que é comemorado, no dia da Encarnação todos os mistérios da Igreja devem ter uma espécie de fragrância, irradiação do perfume espiritual inicial.

E devemos nos recomendar muito a Nossa Senhora da Encarnação para isto: que Ela venha a nós e penetre em nós na fecundidade e na sacralidade dos seus mistérios, e que Ela tome conta de nossas almas e inicie conosco esta relação de almas, esta plenitude de união da Senhora com o escravo para nos dominar, nos conter e sermos com Ela humildes e submissos como o Menino Jesus foi. Esta deve ser a nossa súplica.

Seria, por exemplo, um bonito tema para a meditação, ao recebermos a Sagrada Comunhão no dia da Encarnação, lembrarmo-nos desta coisa admirável: Nosso Senhor repete em nós, de algum modo, a presença d’Ele em Nossa Senhora. É fora de dúvida. Devemos pedir à Santíssima Virgem que venha a nós espiritualmente receber Nosso Senhor, que Ela prepare as nossas almas e que Ela esteja, tanto quanto se possa entender, presente em nós, para Ele ser dignamente recebido, já que não estamos à altura de fazê-lo. Então, nosso ato de adoração ser praticado por meio d’Ela. É uma forma de comungar indicada por São Luís: os quatro atos de piedade — adoração, ação de graças, reparação e petição — serem feitos por meio d’Ela.

Quer dizer, que Ela faça tudo isso a Nosso Senhor quando Ele estiver presente em nós e que nos unimos a Ela. Há depois outro aspecto: deveríamos fazer a Nosso Senhor, presente em nós, uma adoração bem feita, que é a das nossas almas com toda a perfeição que elas deveriam ter, segundo o plano da Providência. Entretanto não estamos nesta situação. Precisamos pedir então a Nossa Senhora que ame a Deus daquele jeito como deveríamos amar, de maneira que O reparamos mais completamente. É um modo de indenizar um pouco a Nosso Senhor pelo muito que Lhe negamos, recusamos e decepcionamos.

Eis o esquema para uma Comunhão no dia da Encarnação, e oxalá para todos os dias. Não sou favorável a esquemas obrigatórios para a Comunhão. O Espírito sopra onde quer, mas serão felizes aqueles em cuja alma o Espírito soprar a ideia de comungar todos os dias assim.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/3/1970)

1) GRIGNION DE MONTFORT, São Luís Maria. Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. Petrópolis: Editora Vozes, 2002, n. 243 e 248. pp. 230; 232-233.
2) “Ao entrar no mundo, Jesus declara: ‘Eis que Eu vim, ó Deus, para fazer vossa vontade’”.
3) Mt 27, 46.
4) Mt 26, 38.

As três quedas de Nosso Senhor

Ao discorrer sobre o profundo significado das três quedas de Nosso Senhor na Via Dolorosa, Dr. Plinio estabelece tocante paralelo entre elas e os graus de cansaço do homem na sua vida espiritual e em seu esforço para alcançar o reino dos Céus. A exemplo do Divino Salvador, com o auxílio da graça, devemos sempre recobrar alento, reerguermo-nos e seguir adiante, até atingirmos o almejado objetivo.

Conforme secular tradição da igreja, a piedosa prática da Via Sacra nos recorda os últimos momentos de Nosso Senhor Jesus Cristo em sua dolorosíssima Paixão. Entre as meditações, contemplamos suas três quedas no caminho do Calvário, as quais nos fazem refletir acerca do cansaço do Homem-Deus naqueles angustiantes momentos.

Nós, que sofremos o peso do cansaço quotidiano, que proveito podemos obter ao considerarmos as três quedas de Nosso Senhor Jesus Cristo? E por que foram três? Esse número não é aleatório, fortuito, mas corresponde a altas cogitações a respeito da fadiga, do sofrimento, do simbolismo envolto nesses passos da Paixão, etc., aspectos estes que não se deve ignorar.

Procurarei tecer alguma resposta, não como a daria um exegeta, mas baseado nas observações da vida feita por um homem de bom senso.

Duas formas de cansaço

Podemos distinguir duas formas de cansaço. Um, ilegítimo, procede da falta de amor a Deus e de generosidade. Alguém, desfrutando de perfeita saúde mental e física, viciou-se por exemplo em dormir nove horas durante todas as noites, e acorda pela manhã cansado, sonolento, e assim passa o resto do seu dia: é o cansaço do preguiçoso. Em Nosso Senhor, pela razão óbvia de que é Ele a própria perfeição, tal forma de exaustão não poderia caber.

Mas, existe também o cansaço do homem ativo e dedicado. Demonstra-nos a experiência que há três graus de resistência humana para se fazer o esforço necessário e, provavelmente, têm eles relação com as três quedas do Divino Redentor.

Mobilização de energias latentes

O primeiro grau de cansaço se verifica quando a pessoa, carregando um fardo, sente seu vigor comum exaurido e cai sob o peso que a acabrunha. Porém, ao se deter no caminho, ela não só consegue se recompor um tanto, mas, devido ao admirável império da alma sobre o corpo, opera uma mobilização de todas as energias mais profundas, latentes dentro dela, as quais não se manifestam na vida habitual. Então faz este raciocínio: “Que peso imenso! Não consigo prosseguir; entretanto, é necessário e quero absolutamente levar esse fardo, esse esforço, esse ato de dedicação até o último ponto”. E se pergunta: “Analisando bem, encontrarei razões para um novo alento, um novo impulso, arrancando de dentro de mim insuspeitadas energias, a fim de chegar onde desejo?!”

Nesse momento, ele recobra ânimo, ergue-se e retoma seus passos, até cair novamente. É o segundo grau de cansaço.

Ainda algo a imolar

Agora o homem pensa: “Fiz tudo quanto podia, e eis que me acho uma vez mais vergado sob o peso desta dor. Tirei de mim aquilo que não imaginava. Contudo, não quero parar, mas continuar para frente. Como é santo e nobre o que desejo! Como é digno de ser atingido o objetivo que tenho em vista! Mas, sinto um peso maior que o anterior me esmagando. É o fardo do desalento, da perplexidade. Não tenho mais energias e, por isso, rezo mais do que o fiz nas outras vezes e digo a Nossa Senhora: Minha Mãe, vedes que dei tudo quanto podia. Ou Vós me ajudais nesse instante, mais do que nas etapas anteriores, ou não serei capaz de fazer o que esperais de mim.

“Entretanto, observando-me melhor, e, por assim dizer, correndo honestamente a mão na sacola onde estão as reservas de minhas forças, encontro ainda algo a imolar.

Tenho energias por mim mesmo desconhecidas, que constituem uma suprema reserva para eu lutar. Tendo sido atendida minha oração, vejo-me também assistido por forças sobrenaturais capazes de me levar até onde desejo. Assim, levanto-me uma segunda vez e continuo, mais sustentado pelos anjos do que por meus próprios pés.

Arrasto-me mais do que ando; porém, resolvi prosseguir. Chegarei até o fim, realizarei meus anelos, mesmo que para tal seja preciso pedir a Deus um milagre completo.”

Confiança contra toda esperança

Quando o homem cai pela terceira vez, torna-se um molambo. Percebe que no farnel de energias disponíveis nada mais existe. Então ele espera contra toda esperança. Põe-se de pé e dá um passo. O resto é confiança cega, a noite escura, o despojamento total. Nesse momento, brota do seu interior algo que é realmente o último fôlego de sua alma, a mais lúcida visão de seu ideal, o ato mais completo de seu amor, sua entrega inteira. Dá mais alguns passos cambaleantes, é pregado na cruz e se deixa sacrificar.

Estes são os três graus de cansaço, correspondentes às etapas da dedicação humana. Na primeira, o homem despende as energias que sabe possuir e suplica o auxílio de Nossa Senhora dentro da assistência comum da graça.

Na segunda, emprega as forças que entrevia, mas não conhecia exatamente. Roga à Santíssima Virgem com maior instância que lhe conceda socorros especiais, pois pela economia normal da graça não conseguirá.

Na última, entrega uma capacidade de dedicação e de esforço que lhe era inteiramente ignorada. Caminha mais por milagre, pela fé absoluta em meio à escuridão, do que por qualquer outro motivo. E chega até o fim por um extraordinário socorro do Céu. Ou seja, ele está completamente unido ao sobrenatural.

Abnegação que atrai os outros para o bem

A alma humana, à medida que se levanta de cada prostração — não de uma queda moral — vai espargindo de si a incomparável beleza da abnegação. Para atrair os outros ao bem, cumpre que o homem seja desprendido, desapegado. Somente assim as pessoas o seguirão. Ele conquistará as almas para Deus, quando chegar no último ponto de seu desprendimento, quando tiver dado tudo quanto podia.

Embora, absolutamente falando, Nosso Senhor não precisasse se submeter a essa regra geral, quis entretanto nos deixar seu divino exemplo e, após as três quedas, estava pronto para ser mostrado do alto da cruz a todos os homens. O Redentor passara por essa imolação interior, em que tudo Lhe havia sido tirado. Por mais sublime que seja a crucifixão — não há palavras suficientes para exaltá-la — ela é um ato no qual o sacrifício já estava feito. Ele carregou a cruz até onde devia. E no alto do Calvário, com dores ainda maiores, se deixa crucificar. Sofre cada vez mais até o derradeiro momento do “consummatum est” (tudo está consumado), mas aquela imolação de levar sua própria cruz, cessa com a crucifixão. Jesus se deita sobre o madeiro; doravante, é a cruz que O carrega.

No último alento, a proclamação da vitória

Como frisamos, sendo Nosso Senhor Jesus Cristo a própria perfeição, o Homem-Deus, n’Ele as coisas se passam de modo misterioso e não exatamente da maneira que se dá em relação a nós, meras criaturas. Contudo, em sua natureza humana, ter-se-á verificado algo de análogo. Assim, percorreu as três etapas do cansaço e os três graus de forças recobradas. Considerado na sua humanidade santíssima, teve Ele de desenvolver cada vez mais esforço à medida em que maior era o peso da cruz, devido ao depauperamento de seu organismo extenuado pela Paixão.

E no alto do Calvário, já pregado na cruz, o Salvador deixou registrado para todos os homens, até o fim dos tempos, que Ele sofrera tormentos inimagináveis, insondáveis até para Si próprio, ao bradar: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”. À primeira vista, tem-se a impressão de que tais palavras exprimem uma ideia de derrota.

Porém, logo depois, como verdadeiro Herói no seu último alento, Jesus acrescentou: “Tudo está consumado!”, como se dissesse: “Sofri quanto Eu devia sofrer; minha vontade não se alquebrou porque meu Pai Eterno me ajudou. Venci. A morte está aniquilada: para o homem, redimido do pecado original, abriram-se as portas do Céu. Sou o Rei da glória por todos os séculos!”

Noutros termos, quando tudo parecia perdido, Jesus proclamou sua vitória.

Aplicação à nossa vida espiritual

Ao concluirmos essas reflexões, importa considerarmos que, também nós, em nossa vida espiritual, temos de carregar a cruz, devemos passar por etapas de cansaço e de energias reavivadas. Nosso Senhor deseja que, por amor a Ele, ponhamos os sofrimentos sobre os ombros e tomemos a iniciativa de caminhar de encontro à dor, à renúncia, ao desagradável. Depois de caminharmos por nossas próprias forças, o Redentor nos socorre com o auxílio do alto, nos toma e nos crava na cruz, unindo-nos a Ele estreitamente.

Que essas considerações nos ajudem a nos dedicarmos cada vez mais ao nosso apostolado. E ao sentirmos o peso da fadiga nos vergar, lembremo-nos das três quedas de Nosso Senhor: supliquemos o amparo de Maria Santíssima e recobremos ânimo. Não há dúvida de que sairemos vitoriosos.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 20/9/1970)

Admirável lição de humildade

Entre tantas e tão insondáveis belezas que refulgem no Mistério da Encarnação do Verbo, o maravilhoso relacionamento — todo feito de amor e humildade — que Mãe e Filho mantiveram durante os nove meses da gloriosa gestação, tocava de modo particular a alma de Dr. Plinio. Acompanhemos outros expressivos comentários dele a esse propósito.

No dia 25 de março a Igreja celebra a festa da Anunciação e da Encarnação do Verbo no seio puríssimo de Nossa Senhora. Para se avaliar a extraordinária importância desse fato, convém estabelecermos algumas considerações prévias.

Em Nazaré, a realização de um anseio milenar

Há quatro mil anos, ou mais, em todos os homens — e de certo modo em todos os seres — latejava um desejo de que, afinal, nascesse Quem seria o centro de todas as criaturas e em função do qual tudo se ordenaria.

Devido ao pecado original e aos pecados atuais da humanidade, o mundo se achava imerso em grande desordem, cujos efeitos se faziam sentir não apenas entre os pagãos como também no povo eleito, que fora escolhido para o cumprimento da promessa messiânica. Decadência e afastamento dos preceitos divinos: a terra inteira estava desolada.

Entretanto, uma virgem pura, concebida sem a mácula original expressamente em vista da missão de gerar o Verbo Encarnado, nascera de Santa Ana e de São Joaquim. Unida em matrimônio com o varão virgem São José, Ela meditava, sabendo que a única solução para o gênero humano era a vinda do Redentor. Maria percorria as páginas das Escrituras, das quais possuía perfeita ciência, considerava as promessas e refletia a respeito do Messias.

Segundo revelações privadas, Nossa Senhora compunha em sua alma a figura moral e física do Filho de Deus, e quando delineou o último traço nessa obra-prima da sabedoria d’Ela, fruto de sua virtude e amor a Deus, eis que se vê envolta num intensíssimo fulgor: São Gabriel Lhe aparece e diz: “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo” (Lc 1, 28).

Ela se perturbou, pois não entendeu o significado dessa saudação. O mensageiro celeste então Lhe explicou que o Verbo eterno se encarnaria em seu claustro virginal. Podemos imaginar o humílimo susto que A tomou! “Como se fará isso, pois não conheço homem?”, indagou a Virgem. E o anjo respondeu: “Serás a Esposa do Espírito Santo, que em Ti engendrará o Filho do Altíssimo”.

Esse anúncio representava um tal cúmulo de graças e de favores, uma tão superlativa generosidade que nos é difícil calcular como Nossa Senhora se sentiu confundida naquele momento. Ao mesmo tempo, porém, enlevada e feliz, conhecendo que Deus A escolhera para tão sublime obra. Sua gratidão foi ilimitada, e a alegria de se sentir unida dessa forma a Deus, houve de ser maior que todos os mares e oceanos!

Donde sua resposta: “Eis a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a vossa palavra!” (Lc, 1, 38).

Maravilhoso mistério

Realizou-se, então, o estupendo milagre, o maravilhoso mistério dos desponsórios do Espírito Santo com Nossa Senhora e a concepção de Jesus Cristo no seio puríssimo d’Ela, recebendo da Virgem e unicamente da Virgem os elementos para a formação de seu Corpo: “caro Christi caro Mariae” — a carne de Cristo é a carne de Maria.

E desde o primeiro instante dessa augusta gestação, teve início o indizível relacionamento entre Mãe e Filho, com recíprocos atos de amor e carinho que excedem a qualquer imaginação.

Belo ao extremo, aliás, é o paralelo que se pode traçar considerando-se, de um lado, o primeiro ato de veneração de Jesus a Maria Santíssima quando Ele se encarnou, e de outro, o último, por ocasião da morte d’Ele no alto do Calvário. De fato, nada nos impede de supor que, antes de exalar o derradeiro suspiro, esse Filho infinitamente amorável voltou os olhos da alma para a Mãe e Lhe dirigiu uma carícia suprema.

E como terá sido a correspondência de Maria a essa ternura filial? Quanto mais Ela O via sofrer de modo tão trágico e terrível, mais O amava. Não se terá lembrado, então, dos primeiros afagos, da primeira troca de carícias?

Tais correlações esplendem tantas e tão especiais pulcritudes que só podem nos encantar e entusiasmar!

União e santidade incomparáveis

Por mais magníficas que sejam, porém, elas apenas abrem o pórtico para uma série de maravilhas ainda maiores. Ressaltemos, à guisa de exemplo, o fato de que durante nove meses o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo ia se nutrindo dos elementos necessários para crescer até atingir o tamanho normal próprio ao nascimento. Houve, portanto, durante esse período, uma entrega de elementos (se assim se pode dizer) do corpo d’Ela para o d’Ele, e de assimilações do que a natureza humana do Filho recebia da mãe.

Ora, à medida que essa comunicação de elementos se dava no terreno orgânico, verificava-se uma crescente união de amor entre as duas almas, maior a cada etapa sucessiva da gestação. Donde se supor que, quando o Corpo do Verbo Encarnado estava pronto para nascer, a alma de Nossa Senhora se encontrava embelezada com todos os adornos inexprimíveis que Lhe vinham dessa íntima união com Ele.

Aguardado há quatro ou cinco mil anos por todos os justos, cantado pelos profetas, glorificado pelos anjos, Nosso Senhor Jesus Cristo ali estava. Mas, antes de tomar contato com os homens, quis passar nove meses exclusivamente em companhia de Maria, dizendo-Lhe palavras, confidenciando-Lhe maravilhas, instruindo-A acerca das grandezas divinas, como não faria com nenhuma outra criatura.

Ou seja, estabeleceu-se entre os dois uma união, nimbada de santidade, incomparável. Com esse algo de contraditório e magnífico, no que diz respeito a Nossa Senhora: Ela possuía todo o esplendor de uma Virgem e toda a majestade de uma Mãe. Virgem antes, durante e após o parto; Mãe acima de todas as mães. De maneira que, olhando para Ela não se sabe o que exclamar: Ó Virgem! Ó Mãe!

O Filho de Deus se fez escravo de Nossa Senhora

Cumpre observar que o mistério da Encarnação encerra outra insondável maravilha, à qual São ­Luís Grignion de Montfort alude com a força e delicadeza de expressão que lhe são características. Conforme ele nos ensina, quando Nossa Senhora disse a São Gabriel: “Eis aqui a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a vossa palavra”, realizou-se o inimaginável e o próprio Deus Encarnado se fez escravo d’Ela. Não há maior sujeição nesta Terra do que a do filho para com sua mãe, enquanto esta o traz consigo em seu seio. E durante nove meses consecutivos Jesus, com essa submissão, quis pertencer inteiramente à Virgem Santíssima. O esperado das nações, o Homem-Deus, tornou-se escravo de Maria(1).

Ao discorrer sobre essa completa dependência de Nosso Senhor Jesus Cristo em relação a Nossa Senhora, São Luís Grignion acentua que o Divino Salvador, no sentido mais estrito da palavra, quis vir a nós por meio de Maria. Ela como que O produziu para a humanidade; devemos a Ela o fato de termos recebido o Redentor, e se algo quisermos d’Ele, importa recorrermos à divina Mãe. Ela foi o caminho para Jesus vir até nós; é o caminho para irmos até Ele(2).

Durante esse período, Jesus e Maria propiciaram aos homens uma admirável lição de humildade. Pois, sem dúvida, Nossa Senhora, sendo como que um ostensório vivo, deveria se sentir aniquilada pela desproporção entre Ela e o Hóspede divino que habitava no seu interior. Por seu lado, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, onipotente, superior a todas as coisas, tomou nossa natureza, abateu-se, reduziu-se a uma espécie de cárcere maravilhoso, sujeitou-se a uma simples criatura. Mostrou-nos como é belo e nobre obedecer.

Glória acima de todas as glórias

Vemos, assim, como o Divino Salvador, em sua sabedoria, dispõe de meios admiráveis para nos instruir. Modelo de todas as virtudes, Ele o é, portanto, da humildade, e a demonstrou desse modo magnífico. Supremo, perfeito, absoluto, a praticou em relação a uma mulher. Lição concludente, dir-se-ia até “desconcertante”: o Criador do universo se sujeitou a Nossa Senhora.

Glória existe em ser rei de um reino, imperador de um império, superior de um convento, bispo de uma diocese, Papa da Santa Igreja. Que são essas glórias diante do augusto privilégio de se tornar Senhora do Senhor da criação? Essa glória, Deus a reservou à Santíssima Virgem, da qual quis ser Filho e escravo. Mistério fascinante, refulgente de cores e luminosidades indizíveis!

No Céu, filiais perguntas…

Ao concluirmos essas breves reflexões sugeridas pela festa da Anunciação, caberia exprimirmos um desejo repassado de veneração e respeito.

Nossa Senhora se encontra no Céu em corpo e alma. Quando — pela misericórdia d’Ela — lá também estivermos e nos lembrarmos dessas considerações, quiçá nos aproximemos de seu trono, tão junto ao de seu Divino Filho, e Lhe peçamos: “Minha Senhora e Mãe, podeis me contar tudo o que meditastes desde o momento da Encarnação até o do nascimento de Jesus? Quero saber tudo, e que nada me fique ignoto. Minha Mãe, perdoai meu atrevimento, mas peço que me seja contado por Vós mesma!”

E Nossa Senhora, régia, bondosíssima, dulcíssima, condescenderia em nos responder: “Filho, começou assim…”

Imagine quem puder, a torrente de alegria, de emoção e de felicidade que nos inundaria ao ouvirmos dos próprios lábios puríssimos de Maria, a narração de tudo quanto Ela sentiu e viveu a partir do instante em que, por obra do Espírito Santo, o Verbo de Deus se fez carne no seu claustro materno!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência em 24/3/1984)

1) Cf. Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, n. 18 e 139.
2) Cf. Idem, n. 50.

A hora do beijo

Por um desses insondáveis desígnios da Providência, a semana em que se comemoram os 500 anos do descobrimento da Terra de Santa Cruz é também a semana da Cruz por excelência, a de nosso Divino Salvador. Que ela seja a luz a indicar os rumos da nação brasileira, são os nossos mais ardentes votos, ao transcrevermos alguns  comentários de Dr. Plinio sobre a Paixão e Morte de Jesus, redigidos há mais de meio século.

 

O Domingo de Ramos é o pórtico jubiloso que transpomos hoje, para entrar nas tristezas da Semana Santa. E, sempre que em terras cristãs se celebra a Paixão e Morte do Senhor, vem à lembrança dos fiéis a cena empolgante e ignominiosa, em que o filho da perdição mostra aos esbirros, com um beijo, Aquele a quem tinha vendido.

Nesta hora em que a malícia humana parecia ter atingido extremos incríveis, a misericórdia de Deus superabundava. Dizem os autores espirituais que ninguém pode calcular a intensidade da graça que Judas recebeu e rejeitou, quando ouviu da Vítima Divina o último apelo: “Judas, com um beijo trais o Filho do Homem”? Hora de imensa  misericórdia para com o miserável vendilhão, sem dúvida. Mas hora, também, de imensa misericórdia para conosco. Os atos que o Divino Mestre praticou, nessa ocasião, são para nós ensinamentos de um valor sem limites. Paremos, para pensar neles um pouco.

Muito se tem falado sobre os trinta dinheiros, e sobre o beijo… Hoje em dia, a lembrança de tudo isto ainda é mais insistentemente aguçada porque vivemos na época da “quinta-coluna”, época em que todos os ideais espirituais e temporais têm seus “quintacolunistas”, seus “Papen” ou seus “Quislings”(1), e em que, portanto, não é possível não  lembrar o “Quinta-Colunista ” por excelência, aquele que por preço mais barato fez o serviço maior, com “êxito” mais completo. Mas, precisamente porque o tema já tem sido muito tratado, meditando a “hora do beijo” não é do beijo que vamos falar.

Quando foi preso, Nosso Senhor praticou duas ações aparentemente contraditórias, e é sobre esta contradição que queremos meditar.

Lição para nós: o Mesmo que aterroriza, consola

A contradição se resume em poucas palavras. De um lado, falou tão alto, atroou tanto os ouvidos, que os esbirros caíram por terra. De outro lado, abaixou-Se Ele mesmo até  o chão, para tomar uma orelha e a recolocar no lugar. O Mesmo que aterroriza, consola. O Mesmo que fala com voz insuportável para os tímpanos, reintegra uma orelha  cortada.

Não há nisto, para nós, algum ensinamento? Nosso Senhor é sempre infinitamente bom, e foi bom quando disse aos que O procuravam, que era Ele Jesus de Nazaré, a quem  queriam, como foi bom quando consertou a orelha de Malco. Se queremos ser bons, devemos imitar a bondade de Nosso Senhor, e aprender com Ele, que há momentos em que é preciso saber prostrar por terra com santa energia os inimigos da Fé, como há ocasiões em que é preciso saber curar os próprios males daqueles que nos fazem mal.

Por vezes, para curar é preciso gritar…

Por que falou Nosso Senhor tão alto, quando respondeu “Ego Sum”? Só para atordoar fisicamente os que O prendiam? Mas para quê, se Ele Se entregava voluntariamente à  prisão? É que Ele falou ainda mais alto a seus corações, do que a seus ouvidos, e se lhes falou alto aos ouvidos, não foi senão para lhes falar ainda mais alto aos corações. Não sabemos qual foi o proveito que aqueles homens fizeram da graça que receberam. Mas certamente o temor que tiveram, quando tombaram à voz do Mestre, lhes foi salutar como foi salutar a Saulo, quando a mesma Voz lhe gritou “Saulo, Saulo, por que me persegues?”

Nosso Senhor lhes falou alto aos ouvidos. Prostrou-os por terra. Mas sua voz que abatia corpos e ensurdecia ouvidos, erguia almas que estavam prostradas, e lhes abria os  ouvidos dos espíritos, que estavam surdos. Às vezes, pois, para curar é preciso gritar.

“Senhor, que ouçamos!”

Com Malco, Nosso Senhor procedeu de outra maneira. Quando lhe restituiu a orelha cortada pela fogosidade de Pedro, Nosso Senhor certamente lhe queria fazer um bem  temporal. Mas curando-lhe o ouvido, Nosso Senhor lhe quis sobretudo abrir o ouvido da alma. E Ele que a uns curara da surdez espiritual com o estrondejar divino da sua  voz, Ele mesmo curou da mesma surdez espiritual a Malco, dizendo-lhe palavras de bondade, e restituindo-lhe a orelha que perdera.

Vivemos em um século afetado, por certo, pela mais terrível surdez espiritual. Se há época em que os homens ouvem a voz de Deus, é a nossa. Se há época em que contra ela  endurecem os corações, é por certo a nossa.

O Divino Mestre nos mostra que se queremos dissolver em nós e no próximo esta terrível surdez, é Ele só que o pode fazer, e os meios humanos em si mesmos de nada  valem.

Nesta ocasião, façamos nosso um pedido que se encontra nos Santos Evangelhos. Quando um cego viu certa vez a Nosso Senhor, lhe bradou: “Domine, ut videam” — Senhor, que eu veja! Hoje, aproveitemos as comemorações da Semana Santa para Lhe pedir que ouçamos: “Domine, ut audiam”. Não sabemos, na sabedoria de sua misericórdia, de que maneira Nosso Senhor curará nossa surdez espiritual.

Sangramos como Malco, e estamos surdos como os esbirros. Pouco nos importa que Ele queira curar-nos por este ou aquele meio: cumpra-se sua vontade divina. Fale-nos  Ele pela voz terrível das provações e dos castigos, fale-nos Ele pela voz branda das consolações, uma coisa sobretudo Lhe pedimos: Senhor, que ouçamos!

Nosso Senhor vencerá, e com Ele, a Igreja

Que pelo menos nós, católicos, ouçamos plenamente a voz de Nosso Senhor, e que, correspondendo em nossa santificação interior, de modo completo e irrestrito, às graças  que Ele nos dá, realizemos dentro de nós aquele pleno reinado de Nosso Senhor, de que os inimigos da Igreja parecem esperançados de arrancar os últimos vestígios sobre a face da terra.

Nosso Senhor prometeu indestrutibilidade à sua Igreja, e prometeu que se salvaria toda alma verdadeiramente fiel. Confortados nessa esperança, meditemos com serenidade  s tristezas destes dias de universal conturbação, como as agonias desta Semana da Paixão. Nosso Senhor é o grande Vencedor. Ele vencerá, e com Ele vencerá a  Igreja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do “Legionário”, nº 659, 25/3/1945. A nota e os subtítulos são nossos.)

1) Von Papen, embaixador alemão, e Quisling, dirigente norueguês: personagens da II Guerra Mundial, cujos nomes se transformaram em sinônimo de “traidor”, por terem  favorecido, nos seus respectivos cargos, as ações criminosas do nazismo.