CANDURA E AFABILIDADE MEDIEVAIS

No último artigo desta seção, vimos Dr. Plinio ressaltando a coragem e a Jé que caracterizaram a Idade Média. No de hoje, ele sublinha outras facetas dessa época áurea da Cristandade: a candura e a serenidade que permeavam as almas daqueles homens e mulheres de outrora, cuja mentalidade, pode-se dizer, era mais própria a habitantes do Paraíso do que aos desta terra de exílio.

Quando vemos nas pinturas e gravuras que retratam a idade média aqueles altos castelos com ameias, torres e barbacãs, o fosso com ponte levadiça, etc., concebemos a ideia de um edifício construído para a luta. E como o castelo é, junto com a igreja, o principal tipo de edificação que nos restou da época medieval, facilmente pensamos nesta como sendo uma época de extraordinária gravidade, de seriedade admirável, de compostura perfeita. Época onde todos se encontravam perpetuamente numa atitude tendente ao severo. E dessa concepção deduzimos que na Idade Média não cabia um sorriso, não cabiam a alegria nem as manifestações de contentamento; e que aquela magnífica apresentação hierática dir-se-ia decorativa dos seus personagens excluía uma certa intimidade, uma qualquer bondade e abertura de alma.

Alegria do cotidiano e das festas medievais

Nada mais falso. Quem conhece o bê-a-bá a respeito da Idade Média, tem noção dos grandes festins que a caracterizaram. Não só as celebrações aristocráticas nos castelos e residências reais, mas também as grandes festas populares, quando nas praças públicas de certas cidades as fontes jorravam vinho ou leite durante horas seguidas, por conta do rei ou do senhor feudal. Além da bebida copiosa, organizavam-se churrascos, com cantorias e danças em torno de fogueiras e dos espetos em que se assavam as carnes. Como término e ápice da festa, o senhor do lugar se aproximava e jogava peças de ouro a mancheias sobre o povo, para imenso regozijo de seus súditos.

Há mais, porém, do que essa marcante alegria das festas. Há um sorriso da vida de todos os dias, há uma beleza inocente e cândida do contato das almas nas ocasiões normais da existência, que podemos apreciar bem nas iluminuras e às vezes nos vitrais que, com suas magníficas policromias, nos apresentam as cenas mais diversas do cotidiano medieval. Por exemplo, um boi que vai puxando o arado e um camponês que vai jogando as sementes. Mais adiante, um grupo de mulheres que lavam roupa, esfregando-as em pedras junto ao rio. Noutro, um copista, homem do povo, sentado ao lado de uma janela cujos vidros “fundo de garrafa” coam uma luz irisada; perto dele, um pequeno vaso bem medieval, de onde surde uma única flor, enorme, colhida em algum jardim maravilhoso. Céus claros, azul anil, onde voam aves brancas ou de cores variadas, em vôos também bonitos. Modestas cercas de agricultura, fileiras de legumes, de outras plantações, tudo apresentado com um colorido tão lindo e tão real que se percebe a alma inocente do homem medievo.

Nas pompas litúrgicas, intimidade com Deus

O mesmo se dava com a piedade. A Igreja Católica já realizava naquele tempo cerimônias magníficas, de uma pompa extraordinária, em catedrais cujos interiores se iluminavam com as cores dos vitrais trespassados pelos raios do sol, enquanto a Missa se desenrolava no altar-mor, o órgão tocando, os paramentos sacerdotais reluzindo, o incenso perfumando o templo e o povo, todo de joelhos, acompanhando enlevada e devotamente o Santo Sacrifício. Dir-se-ia que nessa pompa não caberia intimidade. Mas é o contrário. Se houve época em que os homens sentiram a sua intimidade com Deus, experimentaram a misericórdia e a bondade divinas, bem como o convite da afabilidade para uma aproximação com o Criador, esta época foi a Idade Média.

Os contos medievais alguns floreados de fantasias, outros bastante verídicos no total celebram a extraordinária amenidade de Deus, de seus Anjos, de seus Santos, sobretudo de Nossa Senhora, Rainha de todas as virtudes, e portanto também Rainha da ternura para com seus fiéis.

Milagre da afabilidade divina

Nesse sentido, vem a propósito recordar aqui um episódio da Idade Média em que está envolvido Aquele que é o próprio símbolo da amenidade cristã: Nosso Senhor Jesus Cristo Menino. O fato é extraído de uma antiga tradução portuguesa da “Vie des Saints” (“Vida dos Santos”), da  Bonne Presse de Paris. Embora sempre pese a dúvida quanto à credibilidade de narrações como essa, não se pode negar que, segundo a doutrina católica, tal acontecimento poderia ter se verificado. Ou seja, nada nele contraria a ortodoxia cristã, e está na onipotência divina o realizar esplêndidos milagres como o do seguinte exemplo:

São Bernardo de Morlat, da Ordem dos Dominicanos, era sacristão no convento de Santarém, em Portugal. Tomara ele como discípulos dois meninos, filhos de um cavaleiro de Santarém, os quais receberam logo o hábito e a tonsura monástica, e daí por diante passavam os dias no convento, ajudando as Missas e estudando com Frei Bernardo.

A pedagogia antiga preceituava que as crianças se vestissem desde pequenas como pessoas adultas. Por isso vemos nas pinturas de pouco antes da Revolução Francesa as meninas com saia balão, os meninos com trajes de homens que poderiam se dirigir a uma reunião de negócios ou a um evento na Corte. Os trajes propriamente infantis foram introduzidos pelo Marquês de Girardin, no Jardim do Luxembourg, pouco antes da Revolução Francesa. Eram inspirados na moda inglesa e visavam não mais a apresentar a criança com a compostura e gravidade de um adulto, e sim como um ente que pula, salta e não se quebra. Então, as roupas triviais que hoje conhecemos.

A   Igreja,  porém, sempre mais conservadora do que a sociedade temporal, ainda preservou esse costume.  Não  posso  deixar de me lembrar de uma visita que fiz a um monge na austera e magnífica Abadia dos beneditinos, no Rio de Janeiro, quando presenciei esta cena que me pareceu uma visão de outros tempos: dois meninos de talvez 10 ou 11 anos, vestidos como monges e andando com toda gravidade pelo meio do claustro. Eles passaram conversando tão direitos e tão sérios, que eu tive a vaga impressão de que se tratava de uma aparição. Quando o religioso chegou, perguntei-lhe:

Dom Fulano, o que fazem esses meninos aqui, vestidos de monges?

Trata-se de um velho costume beneditino. Recebemos vocações da mais tenra idade e, para os meninos se adaptarem à vida religiosa, já vestem o hábito desde pequenos.

Assim, podemos também imaginar esses dois meninos da narração, recebidos na Ordem Dominicana e vestidos de “fradinhos”. É-nos familiar o hábito de São Domingos. Aliás, um dos predicados da Igreja é que ela sabe, como nenhuma outra instituição, a partir das coisas muito simples, produzir efeitos estéticos extraordinários. O hábito dominicano é uma túnica com escapulário brancos, cobertos por uma grande capa negra; por cima desta, sobressai o capuz branco do escapulário. É a simplicidade extrema da Igreja, aliada ao magnífico senso da beleza que ela coloca em tudo quanto faz.

O convite para um banquete no Céu

Prossegue a narração:

Todos os dias os dois meninos saíam bem cedo da casa de seus pais para se dirigirem ao convento, levando consigo a provisão diária. Uma manhã, com uma familiaridade toda infantil, sentaram-se aos pés de uma imagem de Nossa Senhora, que trazia ao colo o Menino Jesus, diante da qual sempre rezavam o Rosário, para em seguida tomarem o seu desjejum. Com a mesma candura, concertaram entre eles que não seria muito gentil comerem a refeição sem para ela convidarem o outro Menino ali presente. E, todas as vezes, o hóspede divino dignou-se aceitá-lo, até que se tornou desnecessário convidá-Lo. Mal os pequenos entravam na capela e abriam o embrulho de alimentos, o Menino Jesus lá estava entre eles. Isso tornou-se tão familiar que não só comiam juntos, mas também conversavam, e Jesus os ajudava nas dificuldades que tinham no estudo.

Apraz imaginar essas duas crianças fazendo toda sorte de perguntas, e Nosso Senhor que lhes responde, no aconchego de uma capelinha do interior de Portugal. Contudo, ao lado de tanta candura, não tarda em se manifestar o drama que freqüentemente aparece nas relações entre a criatura e o Criador: a miséria humana vai mostrar-se nesses meninos magníficos, do modo mais incoerente e mais inesperado. E nesse conto encantador, ouve-se de súbito o guizo da serpente, como no mais belo do Paraíso veio a tentação. Uma coisa somente surpreendia os dois inocentes: é que o Menino Jesus nunca trazia sua quota de comida, enquanto eles eram obrigados a conseguir mais alimentos, embora seus pais fossem muito pobres. “Não haverá muitas coisas boas no Paraíso?” perguntavam. A surpresa dos dois degenerou em murmúrios. E resolveram confiar a Frei Bernardo suas angústias. Esse, tendo examinado bem o relato, ficou tocado por tão grande prodígio. Rogou a Deus que o iluminasse e o fizesse conhecer seus desígnios sobre os meninos. Um dia, dirigindo-se aos pequenos discípulos, ele sugeriu: “Se o Menino Jesus continua não trazendo nenhuma provisão, não vos agradaria que Ele vos convidasse, ao

menos uma vez, à casa de seu pai?”

A saída do padre é muito inteligente. Não é pedir ao Menino Jesus que traga pão, que traga comida, mas rogar que os deixe ver o Céu.

“Oh, sim! gostaríamos muito”, responderam, “mas Ele nunca nos falou sobre isso”. Disse o frade: “É preciso que Lhe peçais. Se Ele atender vosso pedido, não tereis perdido nada, pois de um só convite d’Ele recebereis mil vezes mais do que Lhe destes”.

Note-se que o padre sentiu necessidade de pôr o argumento em termos um tanto comerciais, a fim de mover aquelas almas, entretanto tão cândidas, tão puras. Não nos façamos ilusão! Essa é a criatura humana e assim todos nos devemos olhar. Ou há muita vigilância sobre nossas más inclinações, ou saem misérias como essas.

E continuando a falar-lhes, Frei Bernardo fez entrever simbolicamente o palácio do Pai Celeste, com suas magnificências e delícias, e concluiu: “Quando o Menino  da capela vier novamente comer convosco, não vos esqueçais de pedir que vos convide, por sua vez. Mas dizei a Ele que quero também ser convidado. Não vos permito que vades sozinhos à festa. Eu vos acompanharei, ou tereis de recusar o convite, porque desejo muito ter parte neste festim.

“Nosso mestre gostaria de participar também da festa.

Jesus então lhes disse: “Dentro de três dias será a Ascensão. Haverá grande alegria na casa de meu Pai. Dizei a Frei Bernardo que Eu o convido convosco à minha mesa, onde estareis com os Anjos e os Santos”.

Contentíssimos, os dois correram para comunicar ao mestre a boa notícia. Ao chegarem a suas casas, avisaram aos pais que dentro de três dias iam participar de um banquete no Céu. Frei Bernardo comunicou o mesmo ao seu Diretor Espiritual. Durante os três dias, mestre e discípulos permaneceram em oração, ajoelhados ao pé do altar do Rosário. O frade explicou aos meninos o sentido do convite de Jesus e eles, abrasados de amor, não queriam outra coisa senão deixar este mundo e entrar sem tardança na verdadeira Pátria.

Chegou o dia da Ascensão. Todas as missas já haviam sido celebradas na aldeia. Enquanto os frades estavam no refeitório, Frei Bernardo dirigiu-se ao altar do Rosário, acompanhado por seus acólitos, e começou o Santo Sacrifício. Os dois discípulos receberam com grandíssima devoção, pela primeira vez, o Pão Eucarístico. Chegou a hora da ação de graças. Os três ajoelharam-se nos degraus do altar, aguardando com confiança o momento de partida para a morada celeste. Mais tarde, quando a comunidade voltou à igreja para a recitação das orações após a refeição, encontraram o frade e os dois acólitos imóveis, as mãos levantadas ao céu e os olhos fixos no Menino Jesus. Aproximaram-se deles e oh! morte preciosa e mil vezes digna de inveja! constataram que haviam trocado a vida terrestre pela bem-aventurança eterna.

Os seus corpos foram enterrados ao pé do altar. Em 1577, quando foi aberto o túmulo para a transladação das relíquias, os ossos sagrados exalavam um delicioso perfume. A imagem da Virgem com o Menino Jesus conserva-se até hoje num rico tabernáculo.

No dia 21 de Maio de 1227, segunda-feira das Rogações, o Menino Jesus desceu de novo para tomar o desjejum com as duas crianças. Terminada a refeição, antes que o Divino Infante se pusesse de pé sobre o pedestal de pedra para subir aos braços de Nossa Senhora, os dois pequenos expressaram timidamente o seu desejo:

“Não nos convidais também uma vez?” Jesus fez um sinal de afirmação, enquanto os pequenos acrescentavam:

Candura e amenidade, vigilância e holocausto

Aí temos a candura com seus dois contrafortes: a vigilância e o holocausto. Sem tais complementos, ela jamais é autêntica. O homem verdadeiramente cândido deve ter uma vigilância constante sobre si mesmo, noite e dia, uma vigilância infatigável, para não ceder aos maus impulsos inumeráveis que formigam no interior de cada alma. Este é um primeiro ponto a considerar.

Em segundo lugar, quando é genuína, a candura recebe o convite para o holocausto. Quer dizer, há um determinado momento em que a Providência pede a ela sua própria imolação. Donde vermos esses meninos, que tiveram seu mau momento, serem perdoados e, depois, convidados para o holocausto. Seguramente souberam que iam morrer. Foram consultados sobre se desejavam a morte e a aceitaram. Tiveram suas almas levadas para o Céu, envoltas na doçura e na suavidade dos que adormecem no Senhor.

Depois desse relato que tanto nos fala da inocência medieval, fica-nos muito menos a imagem das duas crianças ou a de Frei Bernardo, do que a figura do Menino Jesus, tão bondoso, tão misericordioso, tão capaz de condescender a todos os desejos dos homens e entrar com eles nessa familiaridade. D’Ele está dito na Escritura: “Minhas delícias consistem em estar com os filhos dos homens” (Pr. 8, 31). Ao mesmo tempo, entretanto, pedindo um preço, igual ao que Ele próprio pagou: o preço do holocausto. Em certo momento Ele nos convida ao sacrifício e é preciso aceitá-lo. Então a vida termina maravilhosamente bem.

Candura e amenidade, vigilância e conformidade com o sacrifício eram disposições de alma correntes na Idade Média, as quais merecem ser lembradas e imitadas pelos homens de hoje, assim como pelos das épocas vindouras.

 

Revista Dr Plinio 36 (Março de 2001)

 

Frutos esplendorosos do Sangue de Cristo

Segundo o ensinamento da Igreja, no Paraíso Celeste, além da visão beatífica que inunda de gáudio as almas dos justos, há também uma realidade material — o Céu Empíreo — onde Deus semeou maravilhas inimagináveis, para que os corpos ressurrectos vivam imersos num universo físico que lhes fale das grandezas de seu Criador.

Por essa disposição divina percebe-se quão necessário é ao homem alimentar o seu espírito, não só na consideração dos aspectos teóricos e doutrinários da Religião, mas igualmente através das coisas temporais que o façam desejar aquelas superiores belezas da bem-aventurança eterna.

Compreenderam-no muito bem os filhos da velha Europa, a Europa da Civilização Cristã, os quais corresponderam de modo único às graças que receberam da Providência, alcançando realizações magníficas nesta terra. Por isso, até hoje olha-se para os esplendores europeus como para uma espécie de mito que a Religião Católica elevou à condição de ante-câmara ou de “seminário” do Éden celestial.

Tempo houve, pois, em que todo o teor da vida era diverso do de nossos dias, num continente onde foi possível ao homem idealizar e construir um mundo de maravilhas, de coisas arquitetônicas e sapienciais capazes de nos falar do Céu e, ao mesmo tempo, deleitar de maneira virtuosa o “irmão corpo” de quem as contempla. São os símbolos excelentes e nobres daquelas magnificências que nos aguardam no Céu Empíreo.

Dado, porém, que o efeito é sempre menor que a causa, comprazo-me em salientar que a maior dessas pulcritudes da antiga Europa é precisamente o espírito daqueles que as conceberam, as almas sedentas das grandezas celestiais, os corações nos quais se sentia este anseio de modo mais intenso do que naquilo que produziram e legaram à posteridade.

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Pensa-se nisto, ao considerar uma Sainte Chapelle e o monarca que a construiu, São Luís IX; ao admirar um Eremo delle Carceri e seu mais ilustre habitante, São Francisco de Assis; ou ao examinar a pujança e beleza de formas de uma Torre de Belém, diante da qual poderia se  passar uma noite inteira, sob as refulgências do luar, meditando no heroísmo dos valorosos portugueses de que ela é portentosa expressão.

E por que não lembrar do palácio do Rei Sol, do Versailles de Luís XIV, cujas linhas e arquiteturas, no que têm de virtude e catolicidade, nasceram da Igreja e, a “fortiori”, estavam contidas na mentalidade e no modo de ser dos homens e instituições sagrados que incutiram nos seus artífices o espírito católico? Logo, num São Vicente de Paulo, por exemplo, insigne santo do tempo do pai de Luís XIV e que frequentava a corte, proporcionando uma abertura de alma para as virtudes que realizaram Versailles.

O mesmo se poderia dizer do Escorial, concebido por Felipe II de Espanha, o qual era mais “Escorial” que todo o seu famoso palácio. E como não imaginar a influência sobre essa idealização de uma alma que sobrepujava a do próprio Rei: a grande Santa Teresa de Jesus, ela mesma um “Escorial do Céu”?

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Portanto, na causa de tantas maravilhas que duram há séculos e que ainda hoje encantam o mundo, havia toda uma estrutura moral, virtudes e qualidades de alma, havia um portentoso vínculo entre Igreja, Religião e civilização, concorrendo para realizá-las.

Para se dizer tudo, havia o Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo e as lágrimas de Nossa Senhora, fontes de graças inapreciáveis que fecundaram e geraram um mundo inteiro posto na perspectiva das grandezas eternas, apetecendo-as e procurando espelhá-las do modo mais perfeito possível nesta terra de exílio.

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E assim são os esplendores da Europa cristã, da Europa sacrossanta, cujos passado e relíquias nos enchem do desejo de, ali chegando, oscular o solo em que primeiro pousam nossos pés. Porque, seja como for, é a parte do mundo por excelência onde os sofrimentos de Cristo e as dores de sua Mãe Santíssima engendraram uma grandiosa civilização, antecâmara do Paraíso Celeste.

Arca da Aliança e velo de Gedeão

No Ofício consagrado a Nossa Senhora, Ela é cognominada Arca da Aliança e Velo de Gedeão. Conforme prefigurado pelo manto deste guerreiro bíblico, apenas Maria Santíssima foi isenta, desde o momento de sua concepção, na mancha original, enquanto toda a terra a seu redor estava úmida de pecado. E porque concebida sem mácula, na alma d’Ela estão gravados os Mandamentos do Altíssimo, de modo mais perfeito do que nas tábuas de Moisés, encerradas na Arca da Aliança.

É a partir do Imaculado Coração de Nossa Senhora que, pelo ministério da Santa Igreja Católica, a Lei de Deus se irradia para a humanidade inteira.

Ardorosa certeza

Na hora trágica da dúvida e do abandono, enquanto o Corpo do Redentor jazia no sepulcro, para todos tudo parecia acabado. Todos, exceto Aquela em cuja alma a crença nas promessas divinas jamais vacilara. Como uma tocha de fé e de convicção, Maria Santíssima ardia na certeza de que Nosso Senhor ressuscitaria conforme dissera. Fé sem sombra de hesitações. Certeza absoluta. E uma expectativa imensamente dolorida (porque pensava nos cruéis padecimentos de seu Filho), mas imensamente calma, serena, porque confiante na vitória d’Ele que se aproximava.

“Durante a noite que é belo acreditar na luz”, escreveu o poeta. Na noite mais escura da história cristã, só a Virgem acreditou na luz. Por isso, foi esse um dos mais belos instantes de sua gloriosa existência…

Hosana

Passar por reveses, derrotas, angústias, ansiedades, ver-se à beira da extinção, diante de imensos perigos, enfrentar aparentes decadências e, entretanto, pela graça de Deus acabar vencendo — eis o sentido cristão da palavra “admirável”. Exemplo paradigmático, a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Os maiores milagres, os maiores êxitos, uma verdadeira aclamação como Rei em Jerusalém no Domingo de Ramos, e uma súbita e inesperada derrocada que desfecharia nas dores e aflições da cruz. Pouco depois, o espetacular triunfo da Ressurreição. Isto é ser, na inteira força do termo, admirável!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

A verdadeira devoção a Maria

Damos início neste número à publicação de alguns trechos dos comentários de Dr. Plinio ao “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”, escrito por São Luís Maria Grignion de  Montfort. Conhecida por Dr. Plinio quando moço, esta obra era por ele considerada como um marco fundamental de sua espiritualidade.

 

São Luís Maria nos explica o motivo que o levou a escrever o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem: “Meu coração ditou tudo o que acabo de escrever com especial alegria, para demonstrar que Maria Santíssima tem sido, até aqui, desconhecida, e que é esta uma das razões por que Jesus Cristo não é conhecido como deve ser” (nº 12). 

Eis a razão da introdução e de todo o livro. Maria Santíssima é desconhecida, e deve ser conhecida, pois assim virá o reino de Cristo. O livro se destina, portanto, a propagar a devoção a Nossa  Senhora para que venha o reino de Nosso Senhor. Por “desconhecida” entenda-se “muito menos conhecida do que sua excelência e seus admiráveis predicados exigem”. 

Trata-se, por conseguinte, de uma obra de larga visão e alcance histórico muito amplo, fixando-se no desejo de trazer o reino de Cristo para um mundo que não o possui, através da devoção a Maria Santíssima. 

O fundamento teológico, São Luís Grignion o coloca no tópico 1: “Foi por intermédio da Santíssima Virgem Maria que Jesus Cristo veio ao mundo”, isto é, se Maria Santíssima não tivesse existido, Jesus Cristo não teria vindo; “e é também por meio d’Ela que Ele deve reinar no mundo”, ou seja, a devoção a Jesus Cristo deve expandir-se a toda a humanidade por intermédio de Maria Santíssima. Difundir a devoção a Nossa Senhora é, pois, nesta perspectiva, de importância capital. O afervoramento da piedade: passo essencial Esse objetivo de São Luís Grignion se presta desde logo a um comentário. 

O Santo profeta se propõe a preparar o futuro reino de Cristo fazendo o que lhe parece ser o mais essencial,  importante, urgente, e que, na ordem concreta dos fatos, produzirá quase que automaticamente o resto: difundir a perfeita devoção a Maria. 

A derrota do espírito do mundo e a restauração da civilização baseada nos princípios da Igreja Católica não se começam, portanto, por meio da política, das obras, do talento ou da ciência.

Na época mesma de São Luís Grignion, Bossuet deslumbrava Versailles e Paris com seus sermões; entretanto, para evitar a derrocada religiosa da França, não foram decisivos. O começo da regeneração de todas as coisas está na piedade, no afervoramento da vida interior, nos fundamentos religiosos da vida de um povo. O apostolado essencial é de caráter estritamente religioso: afervorar, educar na piedade, formar caracteres; as outras coisas são conseqüências, complementos, importantes realmente, mas complementos.

Eis a grande lição que São Luís Maria Grignion de Montfort fixa já no início do Tratado, e depois desenvolve mais longamente: na formação dos caracteres a condição básica e indispensável é a devoção a Nossa Senhora. Possuindo-a de modo autêntico, as pessoas terão todos os meios sobrenaturais necessários para, com a correspondência da vontade, florescerem. Não se formando esta devoção, o próprio regime de expansão da graça na alma fica comprometido. Portanto, a devoção a Nossa Senhora é condição vital para tudo quanto diz respeito à salvação individual e da civilização, bem como à salvação eterna de todos quantos constituem, em dado momento, a Igreja militante. 

São Luís Grignion tinha, pois, em mente, com este livro, fazer uma obra da mais alta importância para a renovação dos séculos futuros. Cabe-nos, portanto, ser sôfregos em possuir esta devoção a Nossa Senhora por ele pregada. Em outros termos, fomos chamados pela Providência para uma obra definida, com objetivos definidos, e só a realizaremos se tivermos em nosso espírito esta devoção. Sendo ela, como vimos, indispensável para que o mundo se regenere em Nosso Senhor, se queremos com este escopo trabalhar, é necessário ir em busca desta devoção.

O Tratado não é, pois, um livro qualquer de piedade, apresentando uma devoção a algum santo, boa por certo, mas que se pode ou não ter, indiferentemente, “conditio sine qua non” para nosso trabalho. E só a atingiremos no mais alto grau, utilizando a forma com os fundamentos desenvolvidos por São Luís Grignion de Montfort;

Maria é a obra-prima do Altíssimo

Escreve o Santo: “Maria é a obra prima por excelência do Altíssimo, cujo conhecimento e domínio Ele reservou para Si” (nº 5).  Que belíssima noção! Maria Santíssima é tão grande que São Luís Grignion, sendo apenas um seu pequeno menestrel, é quase inesgotável quando fala d’Ela. Ele afirma ser Nossa Senhora tão extraordinária, colossal — pouco dizem estes adjetivos, aos quais de longe Ela transcende — que só Deus conhece em toda a extensão suas perfeições. Não podemos sequer ter uma pálida ideia disto. Há n’Ela belezas, culminâncias, encantos, perfeições, excelências 
que escapam e sempre escaparão completamente ao nosso olhar, e são somente por Deus contempladas. Imaginemos esses universos, essas constelações imensas de estrelas que o  homem não conhece e possivelmente jamais conhecerá, cujas maravilhas ficam reservadas à exclusiva contemplação de Deus:  assim é Maria Santíssima. 

N’Ela há esta nota de incognoscibilidade: paramos extasiados a seus pés, compreendendo que, após ter entendido muito, quase nada compreendemos. Estamos sempre no seu pórtico, que é para nós demasiadamente grande, tal a sua excelência.  

Ao olharmos uma noite de céu estrelado, em lugar de considerarmos apenas as grandezas de Deus — pensamento aliás muito louvável — sabemos contemplar também Maria Santíssima, incomparavelmente maior e mais formosa do que cada um dos astros do céu e do que todos eles no seu conjunto? Porque, sendo Ela a obra-prima da criação, toda a beleza, grandeza, excelência que Deus colocou no firmamento é pequena em relação às postas n’Ela pelo Criador; este céu não é senão uma imagem, uma figura da magnificência de Nossa Senhora. Apesar de ser mera criatura, tudo quanto n’Ela há, excede muito em perfeição todas as belezas criadas, de um modo inexprimível. Continua São Luís Grignion: “Maria é a Mãe admirável do Filho, a quem aprovou humilhá-La e ocultá-La durante a vida para Lhe favorecer a humildade, tratando-A de mulher — mulier — (Jo 2, 4; 19, 26), como a uma estrangeira, conquanto em seu coração A estimasse e amasse mais que a todos os anjos e homens” (nº 5). O Santo defende aqui a ideia de que, durante sua vida, também Nosso Senhor A manteve ignorada; apenas Ele A conhecia.

“Maria é a fonte selada (Ct 4, 12) e a esposa fiel do Espírito Santo, onde só Ele pode penetrar” (idem). É o retorno à ideia de Nossa Senhora como criatura reservada ao conhecimento de Deus.

“Maria é o santuário, o repouso da Santíssima Trindade, em que Deus está mais magnífica e divinamente que em qualquer outro lugar do universo, sem excetuar seu trono sobre os querubins e serafins…” Os anjos da guarda ocupam os graus inferiores na hierarquia celeste. 

Porém, tendo certa vez aparecido a uma santa o seu anjo da guarda, ela se ajoelhou, pensando estar na presença do Altíssimo. A grandeza dos anjos é tal que, no Antigo Testamento, em várias de suas aparições, os homens julgavam tratar-se do próprio Deus. E no Céu há miríades de anjos. Em que assombro ficaríamos se os víssemos todos e ao mesmo tempo! Nossa Senhora, contudo, está  acima de todos eles reunidos. Assim, diante de sua insondável alma, deparamo-nos novamente com termos de comparação, embora os melhores que possamos empregar, imperfeitos e totalmente insuficientes. 

“…e criatura alguma, pura que seja, pode aí penetrar sem um grande privilégio”. Existe, pois, uma categoria de criaturas privilegiadas que podem penetrar no conhecimento de Nossa Senhora. Tais criaturas, o Santo no-lo explica, são aquelas a quem Deus dá, por liberalidade, o dom que o comum das pessoas não têm, de conhecerem e praticarem a devoção a Nossa Senhora conforme o modo especial por ele ensinado. E os “apóstolos dos últimos tempos”, de que ele nos fala, possuirão este dom; por isso, serão terríveis no combate ao mal e eficacíssimos na defesa do bem. Serão almas elevadíssimas, que terão a graça de penetrar neste umbral da devoção a Nossa Senhora.

O paraíso do novo Adão

Continua São Luís Grignon: “Digo com os santos: Maria Santíssima é o paraíso terrestre do novo Adão…” 2 (nº 6). 

O paraíso terrestre era cheio de encantos, delícias, perfeições. São Luís Grignion diz que Nosso Senhor estava no ventre puríssimo de Maria Santíssima de modo análogo àquele — excelente e perfeito — com que Adão permanecia no Éden. Portanto, durante  gestação, Nossa Senhora era o paraíso do novo Adão, Jesus Cristo. Quando, na comunhão, recebemos este mesmo Jesus Cristo acostumado que está a tais paraísos, perguntamo-nos o que Ele achará da nossa hospitalidade? Oferecemos-Lhe ao menos, a Ele que condescende em descer à nossa choupana, o modestíssimo luxo de uma casa limpa? “… no qual Este se encarnou por  obra do Espírito Santo, para aí operar maravilhas incompreensíveis…” 

Nosso Senhor, durante sua vida em Maria Santíssima — e esta é uma belíssima ideia que São Luís Grignion desenvolverá mais tarde —, quando Ela era o tabernáculo no qual Ele habitava, já aí operou maravilhas. 

São Luís Grignion compôs inclusive uma oração dirigida a Nosso Senhor enquanto vivendo em Maria Santíssima — “O Jesu, vivens in Maria”… “É o grande, o divino mundo de Deus, onde há belezas e tesouros inefáveis. 

É a magnificência de Deus (Ricardo de S. Lourenço, De Laud. Virg., lib IV.), em que Ele escondeu, como em seu seio, seu Filho único, e n’Ele tudo que há de mais excelente e mais precioso. Oh! que grandes coisas e escondidas Deus todo-poderoso realizou nesta criatura admirável, di-lo Ela mesma, como obrigada, apesar de sua humildade profunda: ‘Fecit mihi magna qui potens est’” (Lc 1, 49).

O sentido inteiro do cântico do Magnificat só o entenderemos se considerarmos quem é Nossa Senhora. Realmente, é preciso nos lembrarmos do poder de Deus, para compreender que Ele possa ter operado essas maravilhas que n’Ela operou. “O mundo desconhece estas coisas porque é inapto e indigno”. Se antes o Santo nos falou que Deus concede a pessoas privilegiadas o favor único de poder penetrar nos umbrais desta devoção, agora se refere a uma geração (no sentido teológico e não biológico) que por sua maldade, impureza, indignidade, de detesta tudo isto. É o reverso da medalha. 

A devoção mariana é característica de todos os santos 

Afirma São Luís: “Os santos disseram coisas admiráveis desta cidade santa de Deus; e nunca foram tão eloquentes nem mais felizes — eles o confessam — que ao tomá-La como tema de suas palavras e de seus escritos” (nº 7). 

Esse trecho nos evidencia uma verdade muito importante. Não se deve pensar que a devoção a Nossa Senhora é um estilo de santidade inaugurado por São Luís Grignion, ou levado por ele ao último grau de intensidade. A devoção especialíssima e intensíssima a Nossa Senhora é característica de todos os santos. E, embora não se possa dizer que todos a tenham conduzido ao ponto levado por São Luís Maria, estudando a vida de piedade de qualquer deles notamos sempre uma devoção ardentíssima a Ela, a qual é a dominante logo abaixo do culto a Deus Nosso Senhor.

Essa devoção, contudo, se reveste em cada um de aspectos particulares. É raro, neste sentido, encontrar algum santo que não tenha cultivado um aspecto novo de piedade em relação à Nossa Senhora. E nenhum deles desconhece dever à intercessão d’Ela, não só seu progresso espiritual, mas até mesmo sua perseverança. 

Todos passaram por duras provas espirituais, das quais se viram livres por uma intervenção especial d’Ela. São Francisco de Sales, por exemplo, teve em sua juventude uma terrível crise, relativa ao problema de sua predestinação. Pensando no assunto, ficou quase tragado pelo abismo do tema e foi duramente assediado pelo demônio, o qual lhe insuflava que estava condenado. Isto lhe causou uma tremenda depressão. Começou a emagrecer, perder a saúde, nada havia que lhe restituísse a paz à alma. Certo dia, rezando diante de uma imagem de Nossa Senhora, pediu-Lhe, ainda que tivesse de ir para o inferno, lhe fosse dado não ofender a Deus na Terra — pois seu pavor do inferno não provinha do tormento, mas da ideia de ultrajar eternamente a Deus — e recitou a ração
“Memorare o piíssima Virgo Maria”, a qual estava escrita no pedestal da imagem. Ele mesmo nos conta que, logo após o término da oração, restabeleceu-se em sua alma uma paz admirável; percebeu então, claramente, o jogo do demônio de que estava sendo vítima, e recuperou aquela serenidade que viria a ser a nota dominante de sua vida espiritual.

Encontramos, assim, na existência de todos os santos, esta constante de uma particular devoção a Nossa Senhora. Ela é, pois, uma característica segura da verdadeira piedade, e devemos absolutamente duvidar da santidade de alguém que não a possua. Seria sofisma dizer: algo que é especial para todos não o será, por isso, para ninguém. A isto se pode responder: uma mãe com muitos filhos tem, para cada um deles, um carinho especial; e cada filho ama a própria mãe de um modo particular. Assim, cada um de nós deve amar Nossa Senhora de maneira inteiramente própria, especial e inconfundível. Ela, por sua vez, terá para conosco um carinho, que não será genérico, como de quem dissesse: “Eu amo toda aquela gente”; mas sim um afeto particular, que pousará sobre cada um de nós, individualmente considerados, como se só nós existíssemos na face da Terra.

Plinio Corrêa de Oliveira

SOBERANA INTERCESSORA

No alto do Calvário, Maria teve presente a vida de todos os homens que passaram e passariam sobre a Terra, até o fim dos tempos. Ela conheceu as virtudes de cada um, assim como seus lamentáveis pecados. E a cada um amou, por todos rezou, e para todos alcançou o perdão de seu Divino Filho, que acabara de ser imolado na Cruz. Mais do que nunca, com o Redentor exânime em seus braços, Ela era a nossa soberana intercessora, a incansável medianeira que jamais abandonou e jamais abandonará qualquer homem.

Plinio Corrêa de Oliveira 

O mundo aos pés do Trono da Verdade

Já tivemos ocasião de publicar numerosos artigos nos quais Dr. Plinio manifesta seu amor ao Papado. E muitos outros ainda se seguirão, pois este era um de seus temas prediletos. Transcrevemos aqui um artigo para o “Legionário” em 1946.

 

As notícias provenientes da Cidade do Vaticano informam que o Corpo Diplomático junto à Santa Sé fez uma démarche coletiva para obter da Secretaria do Estado o privilégio de participar de Consistório em que vão ser concedidos os chapéus vermelhos aos Cardeais recentemente nomeados. A atitude dos diplomatas não terá sido tomada sem o consentimento, pelo menos tácito, dos  respectivos governos. 

Assim, pode-se considerar que quase todas as nações do mundo  quiseram expressamente estar presentes àquele ato, manifestando de modo delicado e nobre, seu agradecimento pela honra que o Papa Pio XII lhes concedeu, com a internacionalização ainda mais ampla do Sacro Colégio.

Por sua vez, este gesto vem demonstrar o alto grau de importância moral e política que todos os governos do mundo reconhecem ao Papado. 

Em toda a longa e gloriosa história do Vaticano, durante a qual tantas cerimônias brilhantes se desenrolaram sob o teto de Pedro, em nenhuma talvez, a universalidade da Igreja se tenha patenteado de modo mais evidente. Aos pés do Trono da Verdade, estarão os embaixadores de quase todas as nações do mundo. E, nos lugares reservados ao Sacro Colégio, figurarão lado a lado Cardeais europeus, americanos, asiáticos e africanos. 

Nunca se viu na História da Igreja, que a Púrpura cardinalícia cobrisse uma tão grande porção da terra. Dir-se-ia que a sombra do báculo de Pedro cresceu, que entre suas extremidades que vão de mar a mar, de monte a monte, dos Alpes ao Himalaia, fica o mundo inteiro. O quadro é de uma grandeza apocalíptica. É impossível não pensar nas lágrimas, no suor e no sangue, nas  fortificações, nas preces, na paciência e no heroísmo por meio do qual a Igreja ajudada por Deus chegou a tamanha glória. Quando se pensa nos primórdios do Catolicismo, comparado por seu Divino Fundador com o pequenino grão de mostarda, e se vê hoje que a copa da árvore é maior que os mais extensos desertos e as mais vastas nações, são todas as fibras católicas que vibram e se dilatam nos nossos
corações. 

Do esplendor desta magnifica realidade se desprende uma voz, porque os fatos falam. E esta voz, eco de outra Voz, nos diz com firmeza mais do que nunca: “non praevalebunt”! Do que adiantou a [tantos inimigos] investir contra a Igreja com uma fúria desabrida e ferina? Do que adiantou […] procurar infiltrar-se como um cupim silencioso e cheio de lepra, nas próprias fileiras dos católicos? “Non praevalebunt”. Não prevaleceram.

Está dito, porém, que as alegrias neste vale de lágrimas nunca serão completas. Uma sombra passa diante de nossos olhos. Se é tal, tão universal, tão incontrastável o prestígio da Igreja, como explicar que ela esteja à margem da Organização das Nações Unidas? Como explicar que, precisamente neste fastígio de sua universalidade, ela seja mantida à margem da universal organização dos povos? Se a circunda uma auréola de prestígio, é impossível não reconhecer que é no exílio, é fora de seu trono natural, que é a presidência das nações cristãs, é fora  de tudo isto, que nasce em torno dela este arrebol de glória. Extraordinária expressão de sua força, que brilha até mesmo no isolamento. Mas motivo não menos extraordinário para que temamos por esta humanidade que vê a Luz, mas que não se utiliza dela para “iluminar a casa inteira”, para iluminar e dirigir a sociedade universal das nações. […] 

Como de direito, o máximo de nosso filial afeto voa aos pés do Santo Padre. “Ubi Christus ibi Deus; ubi Ecclésia ibi Christus; ubi Petrus ibi Ecclésia” (Onde está Cristo, aí está Deus; onde esta a Igreja, aí está Cristo; onde está Pedro, aí está a Igreja). E só nos unimos a Deus em Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Homem e verdadeiro Deus. Só nos unimos a Jesus Cristo na Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana que é o próprio Corpo Místico do Senhor. E só estaremos unidos a Nosso Senhor Jesus Cristo, mediante uma união sobrenaturalmente forte, união de vida e de morte, à Cátedra de São Pedro. Onde está Pedro, aí está a Igreja de Deus. Dizem as notícias telegráficas que o Santo Padre pronunciará nesta ocasião um discurso de grande importância, seguido poucos dias depois de mais outro, igualmente importante. Aguardamos sua palavra com amor e confiança. Amor e confiança que, como de costume, se traduzem num inabalável propósito de adesão e submissão. 

Não há melhor meio de testemunhar amor ao Papa, senão obedecendo- lhe. E obedecer significa fazer aquilo com que estamos de acordo, e aquilo que por nossa própria vontade faríamos; significa aceitar como verdadeiro o que ele ensina e nós vemos que é verdadeiro, e o que ele ensina e a nossos olhos mortais pareceria fraco e errôneo. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Excertos de artigo publicado no “Legionário”, nº 706, de 17/2/1946. Título nosso.)

IX Estação: Jesus cai pela terceira vez

Nesta meditação extraída de uma Via Sacra composta por Dr. Plinio em 1943, ele nos ensina a evitar uma concepção errada sobre uma importante virtude cardeal: na maior parte das vezes é mais  prudente recuar do que avançar.

 

Há mistérios que o vosso Santo Evangelho não narra. E entre eles eu gostaria de saber se me engano ao supor que essa vossa terceira queda foi feita, meu Senhor, para expiar e salvar as almas dos prudentes. 

A prudência é a virtude pela qual escolhemos os meios adequados para obter o fim que temos em vista. Assim, os grandes atos de heroísmo podem ser tão prudentes quanto os recuos estratégicos.

Se o fim é vencer, em noventa por cento dos casos é mais prudente avançar do que recuar. Não é outra a virtude evangélica da prudência. 

Entretanto… entende-se que a prudência é só a arte de recuar. E, assim, o recuo sistemático e metódico passou a ser a única atitude reconhecida como prudente por muitos de vossos amigos, meu Senhor. E por isto se recua muito… A realização de uma grande obra para vossa glória está muito penosa? Recuasse por prudência. A santificação está muito dura? A escalada na virtude multiplica as lutas em vez de as aquietar? 

Recua-se para os pântanos da mediocridade, para evitar, por prudência, grandes catástrofes. A saúde periclita?  Abandona-se, por prudência, todo ou quase todo apostolado, mediocriza- se a vida interior, e transforma-se o repouso no supremo ideal da vida, porque a vida foi feita, antes de tudo, para ser longa. Viver muito passa a ser o ideal, em vez de viver bem. 

O elogio já não seria como o da Escritura: “Em uma curta vida percorreu uma longa carreira” (Sab. 4, 13). Seria, pelo contrário, “teve longa vida, para o que teve a sabedoria de renunciar a fazer uma grande carreira nas vias do apostolado e da virtude”. Vidas longas, obras pequenas. E vossa prudência como foi, ó Modelo divino de todas as virtudes?

Quantos amigos tendes, que Vos conselhariam a renunciar quando caístes da primeira vez? Da segunda vez, seriam legião. E vendo-Vos cair pela terceira, quantos Vos não abandonariam escandalizados, achando que éreis  temerário, falto de bom senso, que queríeis violar os manifestos desígnios de Deus!? Que esse passo de vossa Paixão nos dê graças, Senhor, para sermos de uma invencível constância no bem, conhecendo perfeitamente o caminho do verdadeiro heroísmo, que pode chegar a seus limites mais extremos e mais sublimes sem jamais se confundir com uma vil e presunçosa temeridade. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído do “Legionário”, de 18/04/1943)

Santa Bernadete Soubirous

Aos olhos de um século orgulhoso e cheio de incredulidade, Santa Bernadete Soubirous não passava de uma camponesa pequena e miserável, insignificante e pobre. Aos olhos da Providência, porém, ela era a escolhida para ser o arco através do qual um raio de sol das maravilhas divinas iluminaria o mundo inteiro.

Aceitando sua humilde condição e suportando o desprezo e o descaso de seus semelhantes, soube ela conduzir sua alma até os limites da sublimidade. E seu amor ao sofrimento, aceito como algo mais precioso que as próprias aparições de Lourdes, transformou-a numa das mais rutilantes estrelas do firmamento católico.