Santa Maria Madalena: fruto da penitência e do desapego!

Estando profundamente arrependida, Santa Maria Madalena perdeu o apego às coisas da Terra que lhe foram ocasião e motivo de pecado, e voou à contemplação.

Meditando na vida da Santa Penitente, Dr. Plinio põe-se a seguinte interrogação: existirá alguma correlação entre espírito de contemplação, espírito de arrependimento, e desprendimento das coisas desta Terra?

 

Santa Maria Madalena mereceu ser a primeira pessoa a contemplar o Salvador ressuscitado.

No famoso episódio do banquete, em que Maria Madalena — tudo leva a crer que dela se tratava — ungiu os pés de Nosso Senhor, há aspectos colaterais os quais nos fornecem algumas perspectivas da alma e da vida dela, bem como de sua posição no firmamento da Igreja, que seria o caso de comentarmos.

Contemplação e penitência

Ela era irmã de Lázaro, o qual segundo a tradição, pertencia à alta sociedade porque era um homem muito rico. Portanto, Lázaro e suas duas irmãs eram pessoas de alta categoria, mas Maria Madalena havia decaído muito e se tornara uma pecadora pública.

Depois do seu arrependimento, Santa Maria Madalena passou a representar duas coisas que se tornaram claras: de um lado a contemplação, e de outro a penitência.

Ela se diferenciou de Marta, no célebre episódio em que Nosso Senhor disse a esta última — que censurava Madalena porque não estava se ocupando das coisas da casa, mas se limitava a olhar para Ele e ouvi-Lo —: “Marta, Marta, Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada!”(1)

A partir de então, Santa Maria Madalena representou o estado puramente contemplativo, destacado da vida ativa. E, pelo seu grande arrependimento, pela sua fidelidade ao pé da Cruz, e pelo fato de ter sido a primeira que teve notícia da ressurreição do Redentor, ela passou a simbolizar não apenas a contemplação, mas a penitência, a penitência na sua glória, no estado do maior perdão e da maior intimidade com Nosso Senhor.

Com o exemplo da vida dela, e de outros santos, alguns teólogos pretenderam que o estado de penitência séria, profunda, é mais bonito que o estado de inocência.

Judas, o oposto de Santa Maria Madalena

Em terceiro lugar, ela representou também a afirmação dos direitos da inocência e dos direitos de Nosso Senhor.

Em que sentido?

Todos se lembram deste fato: estando o Divino Salvador em Betânia, foi oferecida uma ceia em sua honra. Madalena entrou e, quebrando um vidro de perfume, começou a ungir os pés de Nosso Senhor. Judas censurou-a a esse respeito, mas o Redentor justificou a atitude dela(2).

Vemos aí a penitência, juntamente com a contemplação, numa espécie de irredutível oposição ao espírito sem nenhum arrependimento de Judas. Este, em vez de arrepender-se, caiu no desespero, como mostra o ato pelo qual ele se enforcou na figueira.

Enquanto ela, como contemplativa e penitente, representava a renúncia aos bens da Terra, Judas, como ladrão, traidor — e traidor por dinheiro —, simbolizava o apego aos bens deste mundo.

Dois itinerários que se cruzaram

O que pode ter levado esse miserável a ter tanto apego ao dinheiro? Um apego que naturalmente chegou ao ódio ao Redentor, porque ninguém faz uma traição como aquela, apenas por lucro, sem ódio; no fundo, um ódio que domina o próprio espírito de lucro. A roubar as esmolas coletadas para os pobres? Ele que era o defensor dos direitos dos pobres, na hora em que se verteu o perfume nos pés de Divino Mestre… Ao desejo de se tornar rico, para ter uma carreira colateral à de apóstolo, e ser um homem considerado importante naquela sociedade de Jerusalém, julgando que ele perdia algo de sua carreira humana seguindo a Nosso Senhor Jesus Cristo, a quem os fariseus desdenhavam como um homem sem importância?

Judas fez tais coisas porque, quando ele estava junto a Nosso Senhor e ouvia as prédicas e assistia aos milagres do Divino Mestre, o seu espírito saía de lá e começava a pensar em Jerusalém, nas suas praças ou no Templo, onde ficavam os tão “finos, simpáticos e inteligentes” fariseus.

Porque não se reteve nas contemplações do Redentor e começou a aspirar às coisas do mundo, ele caiu em pecado. E esse pecado, chegando até o extremo, o conduziu ao desespero: Judas então se enforcou na figueira maldita.

Podemos admitir a possibilidade de que, em determinado momento, Judas esteve em estado de graça e Maria Madalena em pecado mortal. Ela saiu do pecado, para subir a um alto grau de virtude, e ele desceu da condição de apóstolo, para a qual tinha sido convidado por Nosso Senhor — houve, portanto, uma hora em que o Redentor não só o amou, mas o amou até o fim, e Judas amou a Nosso Senhor —, ele desceu desta condição, para ser o vendilhão do Salvador.

Vemos assim quanto pode subir uma alma que está no lodo, e quanto pode cair uma alma chamada para o que há de melhor. Foram dois itinerários que se cruzaram; é uma coisa que nos arrepia, enche de terror.

Santa Maria Madalena e Judas; espírito de Jacó e de Esaú

A oposição das figuras de Santa Maria Madalena e de Judas torna-se tão flagrante que vai até ao Calvário e à Ressurreição.

Ela estava ao pé da Cruz, e ele, o apóstolo maldito, o homem execrando, foi quem encaminhou Nosso Senhor para a Cruz. Santa Maria Madalena é a primeira a presenciar a Ressurreição, enquanto ele se enforca e sua alma cai porcamente no Inferno.

As antíteses entre um e outro estado de alma são tremendas; os espíritos são diferentes. Compete-nos fazer uma análise dos traços desses espíritos.

Que nexo há entre arrependimento, pura contemplação e desapego dos bens do mundo, de um lado; e de outro lado, impenitência final, desespero, apego aos bens do mundo, enchafurdamento na vida prática, ativa, como fazia Judas, homem que naturalmente roubava e fazia negócios desonestos? Que paralelismo existe entre uma coisa e outra?

Há algum tempo tratei neste auditório a respeito de Esaú e de Jacó, e falei sobre o espírito de ambos.

Santa Maria Madalena nos afigura como quem teve o espírito de Jacó. Quer dizer, espírito superior, voltado para as coisas elevadas, portanto para Deus, e indiferente às coisas materiais do mundo.

Judas é o tipo do Esaú. Mais do que vender o direito de primogenitura por um prato de lentilhas, ele vende seu Salvador por trinta dinheiros, o que é muitíssimo pior. E não teve verdadeiro arrependimento, porque nele não havia mais nenhuma forma de virtude sobrenatural. Fracassou totalmente, caiu no desespero e suicidou-se.

Contemplação nascida da penitência e do desapego

Então, que nexo existe entre estas três coisas: o espírito de contemplação, o espírito de arrependimento, e o desprendimento das coisas desta Terra?

É fácil compreender, pois uma pessoa, de qualquer um desses pontos parte para o outro. Estando profundamente arrependida, com arrependimento eficaz, ela perde o apego às coisas da Terra que lhe foram ocasião e motivo de pecado; e, tendo esse desapego, facilmente vai para a contemplação. A pura contemplação e a renúncia das coisas devido às quais ela pecou, levada ao último extremo, são o próprio da penitência. Quem pratica a verdadeira penitência não se limita a separar-se daquilo que o conduziu ao pecado; ele o execra. E por isso coloca, entre aquilo por onde pecou e si mesmo, a maior das distâncias.

Para praticar essa penitência tão grande, convinha a Santa Maria Madalena separar-se completamente do mundo. E não ficar apenas no estado de uma vida contemplativa e ativa, mas levar vida puramente contemplativa, em que tudo foi abandonado, e qualquer forma indireta de contato com a matéria execrada devido ao pecado foi também cortada; assim, não lhe restava outra coisa senão a contemplação. Contemplação que, nascida da penitência e do desapego, faz compreender a excelência das coisas do Céu, e que todas as coisas da Terra foram feitas para as do Céu. Portanto, era justo e bom derramar unguento nos pés sacrossantos de Nosso Senhor Jesus Cristo, mesmo quando houvesse pobre que precisasse de esmola.

A pecadora arrependida amava Nossa Senhora, e o traidor A detestava

Todos os que têm tratado deste particular dizem o seguinte: Judas com certeza não tinha devoção a Nossa Senhora. Se tivesse para com a Santíssima Virgem um mínimo de instinto filial, de simpatia, de amor, quando ele caiu inteiramente em si iria procurar por Ela; e ter-Lhe-ia pedido que arranjasse a situação dele. Mas Judas tinha antipatia por Nossa Senhora, e A detestava. O Evangelho diz, de modo taxativo, que o demônio tinha entrado nele. E o demônio afastava-o o quanto possível da Virgem Maria.

Qual o resultado? Ele não se dirigiu Àquela que é o canal das graças, e isto ocasionou a sua perdição.

São Pedro, depois de ter renegado Nosso Senhor, talvez tenha tido tentação de desespero. Mas é certo moralmente que ele procurou Nossa Senhora. Por isso, ele, que também tinha pecado muito, foi fiel, sendo o primeiro Papa da Santa Igreja Católica.

Santa Maria Madalena sempre aparece fazendo parte do cortejo da Santíssima Virgem, intimamente unida a Ela em todos os momentos, sobretudo na hora régia da vida de Nossa Senhora, quando Nosso Senhor Jesus Cristo, com dores indizíveis, disse “Consummatum est”.

Podemos imaginar Santa Maria Madalena junto a Nossa Senhora, na hora da piedade, quando  Mãe de Deus tinha Nosso Senhor Jesus Cristo sobre seu colo.

Naquele momento tremendo, Nossa Senhora ficou inteiramente abandonada: Nosso Senhor no sepulcro, o Colégio Apostólico vacilante, a cidade de Jerusalém entregue a terremotos, e os justos da Antiga Lei andando de um lado para o outro. A Santíssima Virgem, nessa situação tão pouco conhecida, estava completamente só.

Tenho a impressão de que não Lhe faltou a assistência de Santa Maria Madalena, a qual estava junto d’Ela. E porque permaneceu junto à Mãe de Deus, ela recebeu um rosário de glórias, cada uma mais extraordinária do que outra.

Quando vemos tudo isto, é impossível não estremecermos com a nossa própria fraqueza. Mas é impossível também que não nos sintamos concertados com este ponto: por mais fraco que o homem seja, desde que ele se apegue muito a Nossa Senhora, peça-Lhe muito por sua própria perseverança e para que Ela o ampare, nunca o abandone, ele encontra aí um ponto de firmeza, de solidez.

A última das pecadoras aproximou-se de Nossa Senhora e se tornou uma penitente gloriosíssima. Um apóstolo, que era distante de Nossa Senhora e frio para com Ela, tornou-se o filho da maldição e da perdição, que Dante coloca no Inferno dentro da boca de Satanás, com as pernas para fora, o eternamente triturado. Enquanto que podemos imaginar, no Céu, Santa Maria Madalena posta bem perto do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria, agradecendo os favores imerecidos de que ela foi repleta. 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/7/1965)

1) Lc 10,42.
2) Cf. Jo 12,1-8.

O poder das lágrimas de Maria

No momento de Jesus ser retirado da Cruz para ser depositado, como sobre um altar, nos joelhos virginais e santíssimos de sua Mãe, Nossa Senhora olhava para Ele e chorava amargamente.

As lágrimas de Maria Santíssima, vertidas tão abundantemente quanto o sangue por Ele derramado, operaram algo extraordinário: para que os efeitos da Redenção santíssima se aplicassem plenamente a nós, essas lágrimas mereceram o que nós não mereceríamos, aquilo que os nossos pecados rejeitaram afastando de nós o Sangue de Cristo.

Pelas lágrimas de Maria, intercessora onipotente junto a Deus, a misericórdia exalada pelo Sangue de Cristo mais uma vez desceu até nós, nos resgatou, nos deu forças e nos incitou à luta.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/4/1990)

A Quarta-Feira de Cinzas em seu nascedouro

Dentre as inúmeras luzes irradiadas pela Santa Igreja sobre a Civilização Cristã, encontra-se uma de inigualável valor: a Liturgia católica! Esta, quando vista em função do contexto no qual surgiu, apresenta brilhos e encantos próprios.

Analisando a gênese da Quarta-Feira de Cinzas, Dr. Plinio  aponta-nos o verdadeiro estado de espírito com que devemos  ingressar na Quaresma.

 

Para bem se compreender a intenção da Igreja ao instituir o cerimonial da Quarta‑Feira de Cinzas, é necessário considerar suas origens, bem como sua repercussão na época em que foi estabelecido.

Portanto, é necessário voltarmos nossa atenção a um longínquo passado, visto que essa prática litúrgica — à semelhança de como quase todas as outras — se constituiu, provavelmente, de modo definitivo na Idade Média. Algo ainda se acrescentou nos primeiros séculos dos tempos modernos, e depois disso quase nada foi acrescido.

A Igreja, centro da vida social

Como eram constituídas as cidades no tempo em que essa prática litúrgica surgiu?

Por aquilo que delas restou, ou pelo que ficou retratado nas iluminuras, vê-se que as cidades medievais eram pequeninas, com ruas estreitas a fim de caber dentro de muralhas, as quais eram necessariamente circunscritas, pois que serviam para defender os habitantes de ataques inimigos.

Por isso, as casas eram muito próximas umas das outras; o andar superior se projetava mais para a frente de modo a ficar sobre a rua, a ponto de, estando à janela de uma dessas casas, ao estender o braço, poder-se tocar na casa que estava adiante.

No centro desse emaranhado orgânico de edifícios erguia-se uma torre: o campanário da igreja. Mais próximo à igreja havia, às vezes, uma ou mais abadias ou conventos, em torno dos quais se agrupava a população. Deste modo, tudo quanto se passava na igreja constituía o centro da vida social.

Os pecadores ante a sociedade

Ora, o que se passava na igreja, na quarta-feira que marcava o início da Quaresma?

As pessoas que haviam se tornado claramente pecadores — tendo, por exemplo, matado alguém sem disso ter se arrependido e confessado, portanto, vivendo afastadas dos sacramentos; ou então blasfemado publicamente contra Deus e contra a Igreja, e apesar de repreendidas persistiram em sua obstinação; e até mesmo aquelas que notoriamente se tinham afastado da Igreja, deixando de comparecer à Missa e frequentar os sacramentos — eram chamadas pecadores públicos.

Como eram vistos pela sociedade estes pecadores?

O conceito do homem medieval a respeito deste tipo de gente era o seguinte: “Eles são pecadores, miseráveis e, por isso, altamente censuráveis, deles devemos viver afastados, pois o homem reto não convive com o pecador, e quando tem que tratar com um deles, o faz com distância e frieza, pois, até que se arrependa e faça penitência por seu pecado, sendo inimigo de Deus ele é também inimigo do gênero humano!”

Apesar disso, a centralidade da Igreja na sociedade medieval era tal que até mesmo esses pecadores compareciam à igreja por ocasião da Quarta-Feira de Cinzas, mesmo porque a maior parte deles sabia que estava no mau caminho e pesava-lhes viver naquele estado, apesar de não querer abandoná-lo.

Além desses pecadores, nesta ocasião havia outros que se denunciavam como tais. Às vezes, eram homens tidos como muito virtuosos, mas que nessas cerimônias apareciam entre os pecadores públicos, acusando‑se de algum pecado. E, por terem sido objeto de uma honraria e consideração à qual não tinham direito, estando arrependidos queriam receber o desprezo que mereciam.

Ademais, a estes se somavam muitos que, por terem cometido pecados que não eram públicos, mas se julgavam pecadores, juntavam-se àqueles para fazer penitência e assim reparar suas faltas.

Aproximai-vos de onde o perdão vos vem

Assim, quando os sinos começavam a tocar, as pessoas iam saindo de suas casas, e no grupo dos inocentes ou dos pecadores se dirigiam para a igreja. Imaginemos o estado de espírito desses homens pecadores, andando pela rua, ao lado da população inocente, vendo de longe a fachada imponente da igreja, adornada de santos e de anjos, tendo no centro uma imagem do Crucificado, ou de Nosso Senhor Jesus Cristo abençoando, ou então a imagem da Virgem das Virgens, concebida sem pecado original.

Ouvindo ainda o bimbalhar dos sinos, chegam diante da fachada da igreja que se ergue imponente, aparentando severidade, entretanto tão acolhedora que parece dizer: “Vinde, filhos! Vós pecastes, mas aproximai-vos de onde o perdão vos vem, confessai‑vos e arrependei‑vos”.

Entravam todos e, transcorrida a cerimônia, os pecadores se retiravam para um determinado lugar onde iriam fazer penitência.

Contudo, isto só tinha verdadeira autenticidade porque o homem na Idade Média possuía uma profunda noção da gravidade do pecado.

Alguém que não se toma a sério a si próprio

Como manter firme esta noção que inúmeras circunstâncias procuram desbotar em nós?

Para compreendermos isso, vou levantar uma pergunta um tanto estranha. O que meus ouvintes pensam de um homem, do qual se afirmasse o seguinte: “Você é um tipo leviano, que não se toma a sério a si próprio”. A resposta normal a tal injúria poderia ser uma bofetada! Pois, um homem que não se toma a sério a si próprio não vale nada; é próprio do homem tomar‑se a sério, e este é o primeiro passo para ele ser alguma coisa.

Ora, quanto mais descabida, para não dizer blásfema, a seguinte pergunta: Será que Deus se toma a sério a Si próprio?

Evidentemente, Deus Se toma infinitamente a sério, assim como Se ama infinitamente a Si próprio. Donde deflui que, tendo Ele apontado que determinadas atitudes constituem pecado, de tal forma que os homens que as praticam rompem com Deus e tornam-se seus inimigos, isto é tomado realmente a sério por Deus.

Tomando-Se a sério, Deus não diz algo que não produz efeito, não proclama uma inimizade que não é autêntica. Do contrário seria o caso de se perguntar se Deus existe.

A seriedade de tudo diante de Deus

Com esta seriedade, que participa de sua infinita sabedoria e santidade, Deus vê as ações dos homens.

Tudo é imensamente sério diante de Deus. O pecado, portanto, é profundamente sério, execrável e gravíssimo! Quem o comete rompe com Deus, pondo-se na mais miserável das situações.

Por mais rico que alguém possa ser, ao pecar torna-se o mais desafortunado dos homens, pois tendo tudo o que a Terra pode oferecer, não pode merecer o Céu. O pecador deve saber que é ainda pior o fato de ele estar na contingência de, a qualquer momento, advir-lhe a punição divina, seja com penas nesta vida, através de inúmeras e inopinadas desgraças que podem desabar sucessivamente sobre ele, ou então com a pior das punições, que é a do inferno, às quais nada nesta Terra serve como termo de comparação: as trevas eternas, onde o fogo queima e não ilumina, onde os piores tormentos atazanam continuamente os homens, os quais compreendem não haver para eles mais remédio.

O pecador tem a noção viva do mal que fez contra Deus e que não deveria ter feito, por ser Ele infinitamente Santo, Bom e Verdadeiro. Sabe igualmente que é pela infinita Justiça divina que aquela tremenda cólera desaba sobre os pecadores.

Esta noção os pecadores na Idade Média a tinham, e por isso iam à igreja pedir perdão e fazer penitência.

Sentir a gravidade do pecado

O que são essa penitência e esse perdão?

Em primeiro lugar, o pecador deve reconhecer todo o mal que fez. Para isso a Igreja incita-o a recitar os salmos penitenciais, os quais, de modo magnífico, estimulam o sentir da enorme gravidade e malícia do pecado. Através dos salmos penitenciais nota-se que sendo Deus tão insondavelmente bom, Ele cria o homem com a glória do estado de prova para assim poder adquirir méritos.

Contudo, tendo o homem pecado — ao invés de exterminá-lo de imediato conforme a ofensa mereceria —, Deus “cochicha” no ouvido do homem aquilo que o homem deve considerar a fim de medir a gravidade do mal cometido, além de ensiná-lo como pedir perdão, tal como um juiz que recebe o réu com uma majestade indizível, com aparatos de força e severidade tremendos, mas ao mesmo tempo manda alguém entregar ao réu um bilhete que diz: “Se rogares ao juiz na sinceridade de tua alma e pedires com as seguintes palavras que estão neste bilhete, o juiz te manda o recado que te atenderá!”

Assim, o pecador como um réu caminha para o Deus Juiz, com a oração ditada por Ele próprio. Não se pode imaginar maior manifestação de misericórdia do que esta.

Então, do fundo da igreja, vinha o mísero cortejo dos pecadores rezando: “Miserere mei Deus, secundum magnam misericordiam tuam, et secundum multitudinem miserationum tuarum, dele iniquitatem meam — Tende compaixão de mim ó Deus, segundo a vossa grande misericórdia. E segundo a multidão de vossas bondades, apagai a minha falta”.

Sentindo-se esmagados pela grandeza do Juiz e pela infâmia de sua culpa, eles rezam para pedir perdão. Mas, ao mesmo tempo, são alentados pela promessa do Juiz que lhes diz: “Reza desta forma, meu filho, sente isto, que eu me tornarei teu amigo!” Nisso vê-se o magnífico equilíbrio da atitude divina.

Havendo Deus “ditado” a oração que deve ser a Ele dirigida para pedirmos perdão, não poderia ter Ele resumido esta súplica numa jaculatória, com isso adiantando o momento do perdão?

De súplica em súplica, até a confiança no perdão

Tal como está constituído, este conjunto de salmos dá a impressão de que, enquanto a pessoa reza, permanece, entretanto, certa dúvida acerca do perdão de Deus. Por isso o penitente repete o pedido com um novo argumento. Por vezes apela-se à bondade de Deus, noutra parte à glória. Porém, cada uma dessas palavras é muito adequada e útil para preparar o espírito à compenetração da gravidade do pecado, mas também para que vá se adquirindo uma confiança inabalável de que Deus o perdoará.

À medida que os salmos se sucedem, tem-se a impressão de que o Salmo da Confiança vai despontando, até chegar à última palavra, a qual opera uma explosão de confiança: “Vós me salvareis ó Deus!”

Quando se chega a esta esperança cheia de alegria pelo fato de Deus ter dito no fundo da alma do pecador que ele será salvo, inicia-se a Quaresma. Movido por esta esperança o pecador quer sofrer para expiar suas faltas.

Então, aproximando-se do padre, o pecador se ajoelha e este lhe traça com cinza uma cruz sobre a fronte, dizendo: “Lembra‑te, homem, que és pó e ao pó hás de voltar”. O que naquela ocasião equivalia a dizer: “Cuidado! A morte ronda em torno de ti. Deus, apesar de infinitamente bom, é justo também. Agora vai e faze penitência”.

Ela fere, mas também cuida da ferida

Como eram as penitências?

Antes de tudo tratava-se de jejuar, alguns chegavam a passar os quarenta dias a pão e água. Mas havia também uma cerimônia da bênção dos cilícios, os quais geralmente eram cintos cheios de pequenos ganchos de ferro que arranhavam a carne em torno do tronco, causando dolorosas feridas. Estes eram usados por alguns durante todo o período da Quaresma.

Note-se a bela atitude da Igreja que aqui está contida. Ao mesmo tempo em que ela estimula o uso dos cilícios, institui uma cerimônia para abençoá-los, como se dissesse: Penitencia‑te até o sangue, mas sendo tu meu filho, aproxima-te que vou deitar minha bênção neste instrumento que te tortura!

Aí se vê mais uma vez o equilíbrio entre a justiça e a misericórdia. E justamente por dever existir este equilíbrio entre estas, bem como entre as demais virtudes, é que devemos amar a justiça tanto quanto a misericórdia.

De maneira que diante de uma afirmação como a seguinte: “Deus disse ao pecador: Eu te execro!” Nós devemos exclamar, assim como o faríamos diante de uma frase misericordiosa. Pois, quando o pecador compreende o mal de seu pecado, e percebe quanto Deus odeia o pecado, ele compreende também quanto Deus é a Pureza. E diante da Pureza infinita de Deus, como pode alguém não se entusiasmar?

Quem tem horror ao pecado, ama a virtude à qual este se opõe. Portanto, é sumamente necessário ter entusiasmo pela severidade de Deus.

Uma bela oração para se fazer nesta Quaresma é a seguinte: “Ó meu Senhor, como Vós odiais meus pecados! Eu Vos peço: dai‑me uma centelha de vosso ódio sagrado em relação a eles!” Porém, logo depois, nós devemos também pedir a misericórdia, pois sem ela quem pode subsistir?

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/3/1984)

Paixão

Cada festa celebrada pela Igreja é acompanhada de enorme efusão de graças correspondentes às dádivas recebidas em vida pelo santo então celebrado. Isto se dá também quanto aos mistérios da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou de Nossa Senhora, que eventualmente consideremos em determinada celebração.

Ora, aproxima-se o dia em que a Santa Igreja reserva para contemplarmos liturgicamente o “mistério dos mistérios”, ou seja, a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo e a redenção do gênero humano.

No momento em que Ele, expirando, disse “consummatum est” e sua Alma se separou do Corpo, a redenção se operou. O gênero humano, de perdido que era, passou a ser salvo. Nesse momento, nós fomos resgatados e a fonte de todas as graças se abriu para nós.

De fato, por causa de seu sacrifício, Nosso Senhor Jesus Cristo é uma fonte de graças aberta para todos nós; este sacrifício abriu para nós uma infinita torrente de misericórdia, que nos traz toda espécie de bem e de perdão, desde que verdadeiramente queiramos dela nos beneficiar.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/4/1966)

O caminho da dor – II

O caminho do sofrimento é, sem dúvida, o caminho da felicidade. Quanta alegria no meio da dor têm aqueles que, com serenidade e força, procuram unir-se a Deus!

A preguiça leva a criança a não estudar, mas se esta cumpre seu dever e estuda, ela se fortifica e abre para si um caminho de luz. Se, pelo contrário, ela não estuda e vai passear, no fim do ano leva bomba, perde um ano da vida… E o resultado é a frustração.

Tentações de uma criança e de um adulto

E isso se põe de tal maneira que nunca na História o número de suicídios entre crianças e adolescentes foi tão grande como em nossa época. Por quê? O mundo atual convida ao prazer de todos os modos possíveis. As pessoas aceitam e muito cedo ficam com a noção do próprio fracasso: “Fracassei, não vou ser nada, a vida não é nada. Vou entregar-me ao pecado. Ao menos assim, eu saio da realidade e gozo a vida como posso”.

Uma coisa traz outra. A criança adquiriu o hábito de não resistir às tentações, entra numa rampa que ninguém sabe até onde pode chegar.

Mas isso se repete a vida inteira. Entre vinte e cinco e trinta e cinco anos de idade, aparece para o homem outro tipo de tentação, embora as tentações contra a pureza continuem.

Ele vê os de sua idade, que estão fazendo carreira: um já é um médico ilustre; outro recebeu um prêmio para realizar estudos numa universidade da América do Norte ou da Europa, volta laureado e se torna cirurgião de um hospital. Um terceiro é um grande advogado que faz discursos e tira os criminosos da cadeia; quando ele efetua defesas no júri, a sala se enche de gente que vai somente para vê-lo falar e o aplaudem; por fim, o réu é absolvido devido à sua eloquência; então ele se dirige até o banco dos réus, felicita o réu e sai de braços com o mesmo; e as pessoas que foram assistir exclamam “Aahh!”. A vida é cheia de coisas dessas.

Enquanto aqueles vão para a frente, ele está parado, queimando o rojão da vida…

A perseverança na prática dos Dez Mandamentos é heroísmo

Conheci um professor público em Curitiba, Paraná. O pobre homem levou-me até sua casa e eu lhe propus certas atividades católicas; disse-me ele: “Dr. Plinio, não vale a pena o senhor me propor nada. Vou lhe explicar quais são as minhas condições. Eu sou católico praticante, nunca quis assumir compromisso com ninguém, estou numa situação de pobreza e imolando minha vida por minha família, para acabar de educar meus filhos. Meu médico me disse que, para eu não morrer do coração de uma hora para outra, preciso diminuir o número de minhas aulas pela metade. Se eu fizer isso, meus filhos não podem formar-se. Quero que eles estudem numa boa faculdade e isso custa dinheiro. Então estou carregando o dobro de trabalho que meu coração permite e, portanto, vou viver a metade do tempo que me restaria de existência. Diante disso, como assumir mais algum encargo apostólico?”

Tive vontade de dizer-lhe: “Professor, reze por mim!”, porque se respeita e se venera um homem que faz esse sacrifício.

Esse é o caminho da dor. Não é indispensável que sobre o homem caia uma grave doença, como a cegueira ou outra desgraça. Se cumprir bem os Mandamentos, ele vai encontrar em nossa época tantas dificuldades, que a perseverança é um heroísmo. Terá que rezar e refletir muito para manter-se no bom caminho, tornando-se um homem sério. E ainda que os outros o desprezem, desde que ele diga: “Eu me imolo por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo, o Qual morreu por mim na Cruz, e vou para a frente”, ele não só vai para a frente, mas para cima.

Alguém me dirá: “Dr. Plinio, há recompensas nesta vida. Um homem desses é pelo menos um pai tão venerado pelos seus filhos, que seu lar modesto se torna para ele um pequeno paraíso”.

Não se iluda, pois na maior parte dos casos os filhos caem debaixo da influência da Revolução(1) e ficam com raiva do pai que lhes dá exemplo em sentido oposto. Essa é a realidade. Eles seguem um caminho, o pai segue outro e ainda tem o desprazer de ver a ingratidão daqueles pelos quais se imolou. Ele morre abandonado, incompreendido por todos, como Nosso Senhor Jesus Cristo na Cruz. E, no momento de sua morte, poderá dizer em união com o Redentor: “Consummatum est”.

Devemos cumprir o dever, sem choramingar

Numa de suas cartas, São Paulo escreveu o seguinte: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Resta-me agora receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia” (2Tm 4,7-8). De fato, o prêmio da glória ele não viu na Terra, mas no Céu; entretanto, segundo uma bonita lenda, os que assistiram à morte dele viram esse prêmio na Terra. Ele estava ajoelhado diante de um tronco de árvore ou uma pedra, e o carrasco golpeou com a espada a nuca dele com tanta força que a cabeça de São Paulo saltou longe, batendo três vezes no solo. De cada um dos lugares onde ela tocou, nasceu uma fonte. Esse milagre mostrou aos homens para todo o sempre como Deus amou aquela alma que estava na Terra.

Então não podemos ter a ilusão, fazer uma ideia moleirona, de que, depois de nosso sacrifício, vem uma consagração. Às vezes ela ocorre, mas não devemos fazer isso por causa dessa consagração. É necessário estarmos prontos para a ideia de que venha a ingratidão e a incompreensão. Apesar disso, faremos o sacrifício!

O caminho da seriedade é este: fazer sempre aquilo que é o dever, ainda que doa; fazer logo e bem feito, sem choramingar.

Nunca tenham pena de si mesmos! A pena de si é o começo da moleza. Se um homem declara: “Pobre de mim”, tenho vontade de lhe dizer: “É pobre mesmo, porque agora você perdeu todo o mérito anterior. Não tenha pena de si mesmo, meta o peito por cima da espada da dor, custe o que custar, dê no que der! O seu prêmio no Céu será enorme”.

Os prazeres desta Terra nunca saciam

Essa é a dor e a luta do homem que anda bem. Como é a vida do homem que procede mal?

Na aparência pode ser uma vida cheia de delícias, mas acontece uma coisa curiosa em sua alma: o castigo das delícias que ele arranjou. Cada vez que esse homem tem uma delícia, ele fica com vontade de uma delícia maior e, quando não a consegue, ele sofre. E quando obtém mais alguma delícia, ele sofre porque não tem outra; não há o que lhe baste.

Dou um exemplo concreto.

Imaginemos um homem que começa a ganhar dinheiro indevidamente. Ele compra um automóvel Mercedes e, ao ir pegá-lo na loja, para prestigiar-se na família, diz aos de sua casa: “Passarei aqui à tarde, vamos jantar juntos num grande restaurante”. Para a mulher: “Fulana, vista-se bem porque aquele é um restaurante onde você nunca foi!” E aos filhos: “Fulano, sicrano, beltrano, preparem-se, todos com bom apetite!” Vão ao restaurante, comem, divertem-se etc. Naquela hora isso dá prestígio.

Voltam para casa e, entre as cartas por ele recebidas naquele dia, há um convite, mandado somente às pessoas ricas da cidade: “Foi preparado um cruzeiro magnífico no melhor hotel flutuante que há no mundo, o cruzador ‘Queen Elisabeth’, o maior navio de passageiros construído até hoje, no qual há todo o luxo moderno, todas as delícias da vida”.

O homem se lembra de que, conversando com um colega, este lhe perguntara: “Por que você não vai com sua família ao passeio do Queen Elisabeth?” Mas para isso ele não tem dinheiro… 

Sua mulher lhe diz, como se fosse por acaso: “Fulano, vamos fazer um passeio no Queen Elisabeth!” Eles dormem amargurados porque não podem viajar no Queen Elisabeth, quando há um ano atrás eles tinham apenas um Volkswagen qualquer, para se deslocar de um lugar para outro, e usando-o pouco para não estragar a máquina. O indivíduo passava as manhãs dos domingos limpando o Volkswagen como se fosse uma criança, e ele mesmo o consertava. Agora ele tem um automóvel Mercedes. Mas, porque não pode fazer uma viagem verdadeiramente fabulosa pelos pontos mais bonitos da Europa e do Oriente Próximo e, ao cabo de seis meses, estar de volta, ele tem a amargura que sentia no tempo em que apenas possuía o Volkswagen.

Às vezes sentimos isso na própria pele. Porque cada um de nós, em proporção maior ou menor, faz o papel do homem do automóvel Mercedes em comparação com outro indivíduo mais pobre. Todos os presentes neste auditório conheceram meninos mais pobres, que os olhavam como os que estão aqui consideram quem tem um automóvel Mercedes. Os que assistem a esta reunião tinham tudo o que um desses meninos desejava possuir, mas não se sentiam felizes.

Essa era uma reflexão que várias vezes fiz, por causa do bairro em que eu morava, onde havia casas muito boas, casas modestas e até de operários. Em minha residência, que ficava em frente a uma fila de casas de operários, existia do lado de fora uma escada, a qual eu subia e descia estrepitosamente; era barulhento por natureza.

Quando eu saía, uma ou outra pessoa de uma dessas casas metia a cabeça fora da janela para me ver: era uma velha, ou uma mocinha, querendo casar com o moço rico, ou então um rapaz da minha idade que se deslumbrava de ver o luxo que eu tinha. Mas de fato meu luxo inexistia, porque eu era o mais pobre da roda de amigos que frequentava. Era uma regra de três: ele queria ter o que eu possuía, como eu desejava possuir o que um rico tinha; e o rico queria ter o que o mais rico possuía. É uma sede que ninguém sacia.

Serenidade, força e alegria dos bons

Quer dizer, a infelicidade do filho das trevas é maior do que a do filho da luz, porque este possui, na sua infelicidade, a alegria da consciência tranquila; e o filho das trevas tem a recriminação da consciência, que a Escritura compara a um verme roedor, o medo da morte que pode vir de uma hora para outra e, além disso, a frustração nesta vida.

Aquele bom professor com quem conversei podia ter todos os desapontamentos, todas as decepções, passar a vida atracado na dor, carregando sua cruz, mas ele possuía a certeza de que fazia a vontade de Deus, que o estava abençoando; ele tinha a consciência tranquila e a confiança de que iria para o Céu.

Prestem atenção nas Vias Sacras bem escritas, leiam no Evangelho a Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo! Verão que não há um momento em que Ele tenta tirar o corpo da dor, ou está adotando um jeitinho para ver se sofre menos. Nosso Senhor vai para a frente, não cessa de caminhar um instante. E cai três vezes sob o peso da Cruz, porque não aguenta mais; readquire um pouco de fôlego, levanta-Se e continua.

Quando Ele chega ao alto do Monte Calvário, dir-se-ia que não tem mais nada para sofrer. Nessa hora Jesus é deitado sobre a Cruz e começa o pior: pregos são cravados, a coroa de espinhos O fere mais ainda, o Sangue verte. Ele sente uma sede tremenda, porque quem perde muito sangue fica com enorme sede, e é erguido no alto da Cruz. E o peso do Corpo começa a rasgar os tendões, as mãos a se crisparem, os pés estão atravessados por um prego, no qual Nosso Senhor procura Se apoiar. Em geral, nas cruzes se põe um pauzinho para apoio dos pés, mas não foi a realidade. Os pés ficavam torcidos e pregados na Cruz, causando-Lhe dores. Então, para sentir menos dor nos pés, Ele era obrigado a fazer força com as mãos para Se soerguer um pouco; sentia dores nas mãos, perdia o aprumo e voltava a Se apoiar nos pés. Era pêndulo de dores contínuo.

E o tempo inteiro Jesus ia cumprindo o seu dever e marchando resolutamente para o fim. E ainda organizando o que Lhe restava: a Mãe e o discípulo bem-amado, São João, que estavam ao pé da Cruz. O Redentor disse-lhes: “Mãe, eis o teu filho. Filho eis a tua Mãe”. Como quem afirma: “Eu vou deixar a Terra, mas quero que minha Mãe fique nas mãos virginais deste meu Apóstolo casto”. O Evangelho diz que a partir desse momento São João A tomou como Mãe.

Afinal, Ele ainda perdoa o bom ladrão, fazendo-lhe uma predição que é sua própria canonização, o que indica o oceano de esperança existente na alma d’Ele e, ao mesmo tempo, uma dor sem fim. Qual era o oceano de esperança? O que Ele disse ao bom ladrão: “Hoje estarás comigo no Paraíso”, o que queria dizer: “Hoje estarei no Paraíso”.

Depois Ele pronunciou as palavras de sua própria liberação: “Consummatum est”. Sua Alma santíssima desprendeu-se do Corpo, Ele morreu e terminou a Paixão. Desceu ao Limbo, onde foi recebido com uma alegria sem fim por todos os justos que lá estavam; anunciou-lhes que tinha havido a Encarnação do Verbo, explicou-lhes tudo. Ressurgiu e subiu ao Céu.

Quanta alegria no meio da dor! Disso não devemos nos esquecer. A serenidade, a força, a alegria daqueles que procuram unir-se a Nosso Senhor e Maria Santíssima, os ímpios não têm.

Certa vez, eu caminhava no entroncamento da Av. Ipiranga com a Rua da Consolação, no centro velho de São Paulo, onde havia então pouco trânsito. Eu tinha sido deputado, não fui reeleito e aceitara dois empreguinhos para manter a minha mãe. De longe reconheci um colega deputado que estava fazendo uma grande carreira na vida. Encontramo-nos, abraçamo-nos, e ele, que era um homem muito cordial, me perguntou alguma coisa sobre minha vida e eu lhe respondi. Depois nos despedimos, cada um tomou seu caminho e eu pensei: “Ele tem o que desejou; eu tenho o que quis”.

Um ou dois dias depois, lendo no jornal a secção “Falecimentos”, encontrei a notícia: Deputado fulano morreu logo depois de chegar a sua casa, dando-se um tiro na cabeça.

Minha ilusão seria: aqui está um homem feliz. Pela Fé, eu sabia que não o era, mas as aparências humanas indicavam que era feliz. Provavelmente ele se despediu de mim pensando: “O Plinio é que escolheu o caminho da felicidade”. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/8/1986)

1) Revolução: Dr. Plinio assim denominava o processo multissecular que procura destruir a Igreja e a civilização cristã. (cf. Revolução e Contra-Revolução, Editora Retornarei, São Paulo, 5ª edição em português.)

Fazei-me, enquanto viver, com meu Jesus condoer!

Um dos mais bonitos lances da Paixão foi o encontro de Nosso Senhor com sua Mãe.

Vinha Ele carregando a Cruz pela estrada, todo flagelado, coroado de espinhos, com todo o aparelhamento de horrores que conhecemos, quando, de repente, se encontra com Nossa Senhora. 

Imaginemos Jesus, o mais amoroso dos filhos, e Maria, a mais perfeita das mães. Como Ela há de ter chorado por ver seu Filho nessa situação, e como o Filho há de ter chorado por ver sua Mãe presenciar o infortúnio tremendo que acabava de cair sobre Ele?

Diante dessa cena, devemos nos perguntar: Como aliviar as dores de Nosso Senhor?

O ponto essencial para isso é pedir que sintamos verdadeira dor pelo que Ele sofreu. Devemos rezar a Nossa Senhora, fazendo esse pedido, pois, ao longo da Paixão, Jesus previa todo o futuro, previa todos nós que estamos passando pela vida e pela História, sofrendo como Ele, em união com os sofrimentos d’Ele.

Plinio Corrêa de Oliveira, 01/4/1995

Stabat Mater…

No Calvário, Nossa Senhora viu o céu encher-se de trevas, a terra tremer e o Templo sacudir-se. Ela, entretanto, manteve-se de pé!

Só A vemos sentada quando colocaram o Divino Cadáver sobre seus joelhos, para ungi-Lo com os aromas, conforme o costume judeu, antes de O depositarem na sepultura. Assim mesmo, Ela é representada com o busto ereto.

Daí vem a poesia famosa “Stabat Mater dolorosa, juxta Crucem lacrimosa” — Junto à Cruz, chorando, estava a Mãe cheia de dores. Mas “stabat”, em latim, não quer dizer simplesmente “estava”; significa “estava de pé”.

Assim deve ser a alma do verdadeiro católico!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/6/1988)

Cerimônia do Sábado Santo Ocasião de graças

Dr. Plinio possuía um amor intenso às cerimônias, não só as litúrgicas — pelas quais tinha um enlevo especial —, mas também as realizadas no Movimento por ele fundado. Na medida em que possuam o espírito militante da Igreja, as cerimônias constituem um modo eficacíssimo de fazer a Contra-Revolução.

 

Analisei profundamente a cerimônia do Sábado Santo da qual participei. A cerimônia é um conjunto de ritos. Por rito se entende o conjunto de ideias, de gestos realizados pelo celebrante, pelos acólitos e pelas outras pessoas que ali estavam participando da cerimônia eclesiástica propriamente dita, feita pelo sacerdote.

Oração pública e oração privada

Entretanto, a cerimônia não consistia apenas em gestos, mas também em palavras pronunciadas pelo padre e diante das quais todos os presentes reagiam ora por gestos, ora por palavras, ora por cânticos, ora pelo silêncio e pelo recolhimento, que manifestavam a impressão que tudo aquilo lhes estava causando.

O que faziam ali o clero e os fiéis? O clero, personificado pelo sacerdote, rezava uma oração oficial da Igreja. Quer dizer, não era apenas a pessoa do padre que orava. Ele poderia, eventualmente, fazer uma oração privada, por exemplo, se estivesse recitando um Terço acompanhado pelos presentes; como pessoa particular, rezaria em nome dele e, sendo sacerdote, por sua dignidade puxaria a oração e todos nós participaríamos, mas não passaria de uma oração privada.

Na cerimônia de ontem, porém, o padre estava fazendo o que se chama uma oração pública, isto é, em nome de toda a Igreja. De maneira que como ele é, dentro da Igreja, uma pessoa pública, fazendo aquela oração era a Igreja universal que falava por sua boca.

Notem especialmente o seguinte: não só era a Igreja universal, mas o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo Quem falava por ele. A Cabeça mística da Igreja é Cristo, e quando a Igreja fala oficialmente, é Ele Quem fala. E tudo quanto o sacerdote pede, Nosso Senhor Jesus Cristo está oficialmente rogando ao Padre Eterno. Eis o valor impetratório de uma oração oficial da Igreja.

A cerimônia se compõe de várias partes; há o Círio Pascal, o fogo, a renovação das promessas do Batismo, etc., que preparam a Missa e antecedem as alegrias da Páscoa, e de um ou outro modo se relacionam com a Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, comemorada na Santa Missa.

A Igreja militante, padecente e gloriosa

Tudo conflui, portanto, para a Missa, na qual se dá a renovação incruenta do Santo Sacrifício do Calvário, mas na alegria pela Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, festejada pela Igreja. A Igreja militante celebra na Terra, a Igreja gloriosa festeja no Céu, e há, portanto, uma especial alegria no Paraíso porque na Terra é Páscoa.

Alguém perguntará: “E a zona dolorosa da Igreja penitente?” Nesse dia, Nossa Senhora, sorridente, vai ao Purgatório e leva para o Céu uma quantidade enorme de almas, cujo tormento Ela abrevia. Ademais, Ela alivia o sofrimento de muitas que permanecem ali e as enche de gáudio pela presença d’Ela. É a Páscoa da Ressurreição!

Vejam que firmamento de ideias — cada uma mais rica do que a outra — povoam essa cerimônia!

A parte não litúrgica da cerimônia teve um complemento muito bonito: o momento em que se descerrou o véu e apareceu a Sagrada Imagem(1). Nesse instante, olhei para os outros também, e tive a impressão de que havia um estado de espírito coletivo por onde, no fundo da alma, numa zona que se sente pouco, todos estavam bebendo, em pequenos goles, o licor mais delicioso e mais seleto do espírito católico. Havia um recolhimento sacral, uma paz, uma alegria, um bem-estar que nem sequer pode ser adequadamente descrito com as palavras “felicidade de situação”. Porque a felicidade de situação é um comprazimento do homem com uma determinada circunstância terrena, e o bem-estar de alma que se sentia ali era muito mais do que isso; e lembrava mais o Céu empíreo, com lampejos de visão beatífica, do que qualquer outra coisa.

Um mistério cheio de luz, uma luz cheia de mistério

Na cerimônia, as pessoas estavam como que vendo uma fisionomia, que era a fisionomia da Igreja, e aprendendo, a respeito da Esposa de Cristo, um modo de ser, uma impostação de alma feita de uma seriedade cheia de alegria, de um bem-estar que não é nem um pouco o que no mundo entendem por bem-estar — aquela delícia horrível que a cibernética e outras coisas pretendem trazer —, mas é um bem-estar feito de harmonia e de equilíbrio, o qual reúne junto de si as coisas mais heterogêneas numa harmonia suprema.

Por exemplo, o maior recolhimento, mas ao mesmo tempo com a maior naturalidade. É o recolhimento sem esforço em que a alma, sem tentar pensar em outras coisas, é atraída para aquela seriedade, dignidade, que a música e tudo quanto está ali exprime, que faz entender fiapos do que é dito em latim, mas que tem um sentido, uma significação extraordinária, em que a pessoa se percebe num mistério cheio de luz — não é um jogo de palavras, mas um outro sentido da coisa —, uma luz cheia de mistério. E assim fica posto um estado de alma diante do qual, de bom grado, se passaria ao Céu.

E o efeito disso sobre a alma é diretamente o seguinte: torna-a suave e amoravelmente propensa a todas as virtudes.

Esta impressão é conjunta. Não é a impressão somada deste, daquele ou daquele outro, mas todos sentem que estão com esta impressão. E o fato de no conjunto todos terem esta impressão, ganha mais do que se as pessoas estivessem sozinhas.

A ação da graça é intensificada pelas aparências sensíveis

Tratamos há pouco do que se passou entre Deus e o celebrante, em nome da Igreja, e da participação daqueles que concorriam para a cerimônia à maneira de leigos. Existe, contudo, algo mais profundo. Esse estado de alma ao qual me referi, de onde nasce e o que ele é perante Deus? Esta impressão individual e coletiva que se teve ali, como se relaciona com a graça?

Nós temos a graça recebida no Batismo. Ademais, recebemos também a graça da vocação. Mas outras graças se acrescentaram a essas, de maneira a incrementá-las. Nessa ordem interior, o que se passou em nós?

É uma coisa correlata com o que o padre estava fazendo, porque tudo isso constitui um todo, não são dois pedaços. A correlação entra pelos olhos, mas são aspectos distintos. Apresentada a distinção, vou tratar disso.

A graça teve como ocasião a cerimônia. O que quer dizer aqui ocasião? É uma palavra de sentido muito precioso. Deus é o Autor da graça, a qual é um dom criado por onde o homem participa da própria vida do Criador. Contudo, Deus muitas vezes liga a concessão da graça a fatos externos que são, assim, ocasiões para Ele concedê-la. Por isso, ao considerarmos tal fato, ela fala a nossas almas.

Quando contemplamos esse conjunto de ações correlatas, sentimos e conhecemos um “verum, bonum, pulchrum” — uma verdade, ou todo um horizonte de verdades da Fé que vem ao nosso espírito, a santidade e a beleza dessas verdades em si — e, por outro lado, como o que está se passando exprime bem aquelas verdades, e faz sentir a santidade e a beleza delas. Então, as aparências sensíveis são também elas uma ocasião para que a graça intensifique em nós a sua ação.

E vendo, por exemplo, as respostas varonis dadas às perguntas do padre sobre a renovação das promessas do Batismo, aquilo tudo é ocasião para a graça da virtude da fortaleza operar em nossas almas.

Aspecto simbólico da cerimônia

Isso age de várias maneiras, porque nós raciocinamos e vemos o nexo entre as coisas, mas também — e eu queria chamar a atenção para este pormenor — pelo seu lado simbólico. Esses gestos, esses objetos, esses sons, esses paramentos, essas cerimônias são símbolos que nos fazem ver, de um modo para nós meio misterioso, por uma série de analogias, aquilo que está sendo simbolizado. É o próprio do símbolo.

Por exemplo, a Sagrada Imagem está com uma coroa, que é o símbolo da realeza. Vendo-a sobre a cabeça da Sagrada Imagem, nós temos uma ideia de realeza ainda mais plena de Nossa Senhora como Rainha, ainda mais perfeita, de maneira que o símbolo nos fala prodigiosamente dentro da alma. E essa simbolização serve de ocasião para a graça produzir em nós esse estado de espírito que notamos ali.

Então, a cerimônia assim vista é uma ocasião para a graça. Se olharmos os paramentos do padre, a cor e a forma deles, o barrete, os gestos que ele faz, o modo pelo qual o texto é cantado, tudo isso tem cintilações de grandezas, todo o passado da Igreja aparece, por assim dizer, em pequenas chamas.

Sente-se, por exemplo, quando o texto fala do fogo, que há uma certa grandeza patriarcal dos tempos primitivos, do Antigo Testamento; e tem-se a impressão de ver a Igreja sair das névoas mais profundas da História, cantando o fogo, quando ela nem era nascida, mas havia a pré-Igreja, que eram os justos do Antigo Testamento e o culto verdadeiro de Yaveh. E um padre em 1982 — face aos problemas da cibernética e de todos os horrores promovidos pela Revolução — de repente faz emergir misteriosamente esse passado. Assim são os aspectos da vida da Igreja.

Quem coligou esses trechos? Quem determinou que, para o Sábado Santo, essas deveriam ser as impressões causadas nos fiéis? Quem definiu que tais paramentos e tais gestos eram indicados para tal ocasião? Quem reuniu tudo isso para formar essa cerimônia?

É assombrosa a naturalidade com que o sacerdote segue os ritos; por exemplo, tirar o fogo da pedra para acender a chama pascal. Isso é do tempo em que não havia fósforo, quase a época da pedra lascada, da pedra polida! É até lá que aquilo nos leva! Em seguida, o padre faz uma invocação de algo tirado do Evangelho, e posteriormente se refere à Cristandade atual. Ele desliza pelos séculos como um pássaro…

O barrete, a estola, a capa magna, o cantochão, o órgão

Aquele barrete que o padre usa em certos momentos, no fundo, corresponde à ideia de que o homem deve ter adornos que o completem, porque sem eles o homem não realiza inteiramente aquela beleza que perdeu quando saiu do Paraíso. Portanto, é uma espécie de vergonha do pecado, não relativa ao pudor, ao sexto Mandamento, mas da condição de pecador, e vontade de algum modo recompor a dignidade humana, que leva os homens a usarem chapéus. Aquele barrete corresponde a esta ideia; é preto, em sinal de luto pela Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, como a batina é preta. O barrete é dividido em três gomos, e tem uma parte inteiramente lisa do outro lado: Deus Uno e Trino. Mas o barrete, do qual gosto muito, dá ao padre uma dignidade perfeita e acabada, porém não suprema. Para indicar a plenitude do sacerdócio a Igreja tem para a fronte humana um símbolo mais augusto, que é a mitra; e, para mostrar a plenitude conjunta dos três poderes, a tiara que pousa sobre a cabeça de um só: o Papa.

Símbolos e símbolos, graças e graças, dizendo coisas misteriosas à nossa alma. Até o sapato. Por exemplo, o sacerdote pode celebrar de sandálias, mas não de tênis. A capa magna, a capa de asperges, a estola, tudo tem beleza! O cantochão! O órgão! O harmônio é um filho do órgão. Que maravilha!

Mas como é que se juntou isso ao longo dos séculos? Historicamente, para quase todas essas coisas, ou para muitíssimas delas, há uma explicação, a qual, entretanto, é insuficiente, porque a pergunta não é quem propôs isto, aquilo, mas quem incrustou isso definitivamente na vida da Igreja.

Ação do Espírito Santo e espírito militante

Quem fez isso foi o Divino Espírito Santo. Ele é o Espírito da Igreja, e foi juntando, dispondo as coisas ao longo da História da Igreja, arranjando tudo isso para chegar àquela maravilha que vimos na cerimônia.

De maneira que tivemos, naquela simbolização toda, uma comunicação do Espírito Santo aos homens, indicando como o ambiente no qual habitualmente o homem se move, as mentalidades, a sociedade espiritual e a temporal deveriam ser.

Ali vimos, movendo-se, a Igreja de todos os tempos, e a Igreja do Reino de Maria que vai nascendo. E que, ou eu me engano muito, ou timbrará em conservar, mais saliente do que nunca e manifestado com todos os esplendores, o seu caráter de militante. Tudo naquela cerimônia entrava como uma moção do Espírito Santo, já dando os primeiros lampejos do Reino de Maria.

Nas graças que recebemos durante aquela solenidade há um nota preponderante, dizendo às nossas almas: “Tudo quanto constitui nesta cerimônia um chamado para toda espécie de virtudes, concebei-o, vede-o à luz da batalha. Sede militantes até o fim, que o resto vos será dado abundantemente! Sede filhos da luta, deixai-vos inspirar por ela, sede batalhadores vossa vida inteira e cada vez mais, e Deus fará convosco uma aliança”.

Mas não se trata apenas de ter a alma aberta a uma impressão enquanto se está na cerimônia. É preciso levá-la como uma recordação saudosa e analítica do que houve e, de vez em quando, retomá-la.

Então, compreendemos qual é o papel que nossas cerimônias têm. Naturalmente, num grau eminente, as solenidades ligadas à sagrada Liturgia, em que a Igreja fala e implora. Nosso Senhor Jesus Cristo pede oficialmente em nome de toda a Igreja. Mas também, e de modo autêntico, se bem que menos eminente, em todas as nossas cerimônias.

A cerimônia, enquanto tal, é ocasião para graças deste gênero. Ela exterioriza, torna sensível aquilo que não basta estar só na inteligência e na vontade. Mais ainda, não entra inteiramente na inteligência nem na vontade enquanto não tiver penetrado de algum modo na sensibilidade.

Compreendemos, assim, que a cerimônia é um modo de combater; é um modo eficacíssimo de fazer a Contra-Revolução, na medida em que levemos o espírito militante para dentro dela.

Evidentemente não é uma luta sem sentido, sem razão de ser. A causa pela qual se combate é a Fé; é por Deus que lutamos. Se não amássemos Nosso Senhor e Maria Santíssima, não teríamos razão para combater. Mas, diante do pecado que ofende a Ele e a Ela, a atitude é a luta. Não se compreende a oração sem luta, como não se compreenderia, a “fortiori”, a luta sem oração.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/4/1982)

1) Imagem de Nossa Senhora de Fátima que verteu lágrimas milagrosamente em Nova Orleans, em 1972.

Per lucem ad crucem

A constatação de nossa insuficiência em face dos sofrimentos pode nos levar a fugir do caminho da cruz, indispensável à nossa santificação. Como estarmos preparados para oferecer, sem pânicos nem desânimos, os sacrifícios que nos venham a ser pedidos?

 

Devo tratar nesta conferência a respeito de como acondicionar a cruz para que a pessoa saiba andar com ela, entendendo-se desde já como cruz não apenas os sofrimentos lancinantes que dilaceram e estraçalham, mas também a vida cotidiana nos seus aspectos normais, com uma dose de felicidade ou de bem-estar normal, que não é a alegria de delirar, e as dores também normais.

Portanto, a matalotagem que o indivíduo precisa levar no caminho da cruz, e como ele deve ver esse caminho e a suportabilidade da cruz para nele andar.

Os grandes e os pequenos sacrifícios

Muitos pregadores — não os censuro por isso, acho normal — quando falam da cruz, querem levar as almas num só voo para a admiração e a eventual aceitação da dor no que ela tem de mais lancinante e terrível.

Então dizem: “Eu vou falar da cruz. Olha, São Vicente sofreu tal martírio assim… Este outro fez isso e suportou tal situação, etc.” Pergunto: Isso é bom ou não?

Para tratar da questão da cruz é preciso, antes de tudo, um discernimento dos espíritos, porque de fato a graça chama a alma para a cruz conforme as ocasiões, os momentos. Há determinados lampejos em que ela convida de uma vez a pessoa para o pináculo da cruz, e pode ser um principiante. Às vezes, ela não chama para o pináculo, mas vai se revelando lentamente, gradualmente.

Então, pode ser que para um auditório, em certo momento, em determinada situação, um pregador seja levado, pelo discernimento dos espíritos, a ensinar a cruz no que ela tem de mais terrível: “Meus caros irmãos, quereis saber o que é a cruz? Ouvi essas palavras: ‘Eli, Eli, lamá sabactâni?’”(1). Começar por aí e produzir um choque. Como também pode acontecer que inicie pela doutrina dos pequenos sacrifícios, de Santa Teresinha do Menino Jesus, porque a cruz é tão divina, tão enorme, tão complexa, que não a pega quem quer, do jeito que deseja. Cada um é atraído pelo Espírito Santo, pela graça, a apanhá-la de um jeito. E se pegar do jeito errado, não entra no caminho da cruz.

Admirar as pessoas mais perfeitas

A grande maioria dos fiéis tem que viver a cruz nas condições de vida comum, porque, do contrário, a sociedade temporal desaparece. Isso está ligado à teoria do estado de perfeição. A perfeição é sempre uma cruz, e uma cruz insigne. E o estado de perfeição, vivido em toda a sua autenticidade, é um estado de cruz.

Entretanto, o estado de perfeição deve ser praticado por muitos, não porém por todos. E esses muitos constituem uma multidão e ao mesmo tempo uma minoria. Porque, em absoluto, o número dos que seguem a perfeição é muito grande. Por exemplo, podemos dizer que a Igreja tem um número colossal de Santos. Não há exagero nem mentira nisso. Mas, se for comparado com o número de homens, é um pingo.

Então, são tantos que se poderia falar que há um número infindável de Santos. Mas, de outro lado, se poderia dizer também: é pequeno o número de Santos canonizados.

Na perspectiva de que esse número é pequeno, que há uma quantidade infindável de almas que não são chamadas para determinada perfeição, mas a admiram, embora sabendo que não irão adquirir aquela perfeição, elas devem ter uma espécie de tristeza de não serem chamadas para aquela perfeição. E só a alma que admirou profundamente a cruz para a qual ela não é chamada consegue ser correta.

Aqueles que admiram os mais corretos e os mais exímios conseguem ser corretos. A partir do momento em que o indivíduo deixa de ter um amor abrasado, um entusiasmo pela perfeição para a qual não foi chamado, ele começa a relaxar.

É um modelo que ele sabe que não tem proporção para seguir, e fica com certa nostalgia de não poder acompanhar. Este ponto é muito importante.

Um cuidado ao se levantar o estandarte da cruz

Então, pode-se pregar a cruz no que ela tem de mais terrível, tranquilizando as pessoas: “Não se tomem de um escrúpulo torturante ao verem que não são capazes disso, mas compreendam que podem amar sem ser tragadas por esse sofrimento que não lhes será pedido. Ou, se for pedido — porque não se sabe qual é o futuro do homem —, vocês receberão outras graças que não têm agora. Sentirem-se proporcionadas com isso no momento, não é sua obrigação”. Tenho a impressão de que, ao levantar o estandarte da cruz, a primeira precaução é essa; do contrário, perde-se o rumo.

Lembro-me de uma experiência pessoal. Eu tinha muita admiração pelos mártires, mas um medo enorme de passar pelos sofrimentos que eles tiveram. E me perguntava: “Você está embevecido de admiração por eles. Do que vale essa sua admiração? Eu queria ver se você, diante de um leão, tomaria a atitude deles. Não toma! É um fracalhão. Essa sua admiração é hipócrita!”

Eu sentia que isso me perturbava a fundo. Parecia uma increpação virtuosa, tinha seu quê de virtude, mas com algo mal visto, mal compreendido. Até que ouvi um padre dizer, de passagem, diante de mim: “A maior parte desses mártires tinha a graça no momento de chegar diante da fera”.

Para mim foi uma descoberta! Comecei a admirar os mártires sem me causar nenhum arrepio. Isso eu vi repetido, depois, em mil situações e de mil modos.

Portanto, eu colocaria como primeiro problema entender bem isso. Com o seguinte acréscimo: aquilo que se dá com os sofrimentos lancinantes, ocorre também com os padecimentos menores que conhecemos na vida de todos os dias. Vemos, de repente, alguém fazer um sacrifício de que nós não somos capazes. Admiremos! E admiremos sem remorsos, nem increpações tontas contra nós mesmos.

Alguém poderia dizer: “É bem verdade, essa cruz no momento não tenho que carregar. Eu terei que carregar algum dia? Como vai ser de mim quando precisar levá-la?”

A resposta é a seguinte: Não se ponha o problema. Admire debandadamente e sem restrições, e peça a graça — caso se ponha para você esse sofrimento — de ter a coragem de enfrentá-lo, mas sem certa forma de angústia que faz mal à alma.

O cálice por onde algo de superior penetra em nós

Quem de nós seria capaz de arcar com o sofrimento que teve Nosso Senhor Jesus Cristo ou Nossa Senhora? Não há um! Nem de longe nós temos substância para isso. Mas, de tanto admirar aquilo de que não somos capazes, algo daquela graça entra em nós.

A admiração é o cálice por onde a coisa superior entra em nós.

E, na medida em que eu admiro a capacidade de outro sofrer, entra em mim essa capacidade. Não quero dizer que entre tanto quanto há nele, mas, dentro de minhas proporções, recebo esta capacidade à força de admirar.

A alma capaz de admirar é aberta a todas as estrelas, a todos os sóis. A alma fechada à admiração está entregue a si mesma. Da alma invejosa, então, nem sei o que dizer! Esta apedreja, insulta as estrelas!

Como entrada no caminho da cruz, devemos admirar a cruz, naturalmente antes de tudo o Crucificado e a Corredentora, mas não nos limitemos a exemplos históricos. Procuremos ver a cruz naqueles que, em torno de nós, praticam o amor à cruz.

Porque ficar no mundo do que passou, é permanecer no zero. Eu só entro em nexo com aquilo que passou quando admiro algo de congênere que ocorre em torno de mim, e por aí chego até o passado. A Paixão de Nosso Senhor não passou, pois de algum modo ela é permanente.

Então deveríamos olhar admirativamente em torno de nós. E se não temos o costume de fazer exame de consciência para saber o que se passa em nossas almas, entram pedregulhos de inveja que causam relutância em relação a essas considerações. Não tenhamos ilusões, porque entram. A inveja é tal que, ou temos a certeza de tê-la expulsado, ou ela habita em nós. Não é alentador, mas é a pura verdade. Tratemos de vencê-la, portanto, e procuremos admirar, pois temos importantes razões para querer que nossas almas progridam nisso.

Pedir forças a Nossa Senhora

Se fosse possível fazermos uma meditação sobre nossa própria cruz, precedida de uma cuidadosa preparação na linha do que estou dizendo, sairíamos da pura teoria e teríamos condições para entrar no caminho da cruz. Se não for assim, não entramos verdadeiramente.

Pode acontecer que alguém tenha diante de si um sacrifício que não tem coragem de fazer. E o pior é o seguinte: não se trata de algo extraordinário, mas está abaixo das reais resistências do indivíduo. Porém, por ser ele um poltrão, não tem forças.

Então, se sou um poltrão, rezo: “Salve Rainha, Mãe de Misericórdia, vida, doçura e esperança nossa, salve!” Vou pedir para Ela me dar as forças que eu deveria ter e não possuo, que Ela tenha pena de mim. Vou rezar, rezar, e acabarei obtendo. Mas nunca devo me aproximar da cruz em seco, porque isso costuma causar muitos desvios!

Com essa postura a cruz se torna manuseável. Fora disso, não. E o exemplo foi Nosso Senhor, o Qual como que Se manifestou sem proporção com a Cruz d’Ele, a tal ponto que disse “Pater, si fieri potest…”(2); e a oração d’Ele, como não podia deixar de ser, foi gratíssima a Deus Pai que Lhe mandou um Anjo. E depois o Cireneu no percurso da “Via Crucis”, que O ajudou a carregá-la; a Verônica; o encontro com Nossa Senhora, etc.

Tudo isso é muito matizado, e sem essas matizações nós fugimos da cruz, o que é um disparate, pois se Deus matiza tanto para nós o caminho do sofrimento, por que havemos de imaginá-lo sem matizes?

A meu ver, para percorrermos esse tema sem constrição para nossas almas, seria absolutamente necessário considerar esses matizes como pórtico do tema da cruz.

Cada pessoa é chamada para um grau de perfeição

Outro lado que ainda está no condicionamento da via da cruz é o seguinte: essas multidões de pessoas a quem nos referimos acima, aparentemente não são chamadas à perfeição. Por quê? Seria pelo fato de estarem destinadas à sociedade temporal? Esse é um erro.

É verdade que todos os que pertencem a Ordens religiosas são chamados para o estado de perfeição. O religioso que, consciente e voluntariamente, deixe de tender para a perfeição comete pecado grave. Essa é a doutrina da Igreja.

Contudo, se não houver entre os membros da sociedade temporal um bom número de pessoas que, dentro das condições próprias ao âmbito civil, pratiquem intencionalmente a perfeição, a sociedade temporal fenece, perece. De maneira tal que não devemos identificar a perfeição com a condição eclesiástica ou religiosa, e a imperfeição consentida e desavergonhada com a sociedade temporal. Cada pessoa é chamada para um grau de perfeição. Para o grau de perfeição dos religiosos, a grande maioria não é chamada, mas sim a um determinado teto de perfeição, dentro da vida que leva, e para isso deve tender.

Tomemos, por exemplo, a Igreja de São Basílio, em Moscou, com aquelas cúpulas. Aquilo poderia ser o gráfico das perfeições. Algumas perfeições são enormes, outras são pequenas, como os torreõezinhos que têm na ponta uma cúpula pequenininha também. Assim é a multidão das almas: cada uma é como um torreão que tem no alto uma cúpula, ou seja, uma perfeição própria para a qual deve tender.

Considerar que alguém pode até chegar ao Céu sem passar pelo Purgatório, por ter vivido retamente na sociedade temporal para uma perfeição menor que foi atingida, faz com que a pessoa esteja animada por ter encontrado para si um ideal muito belo. Com isso, creio que a alma fica arejada e balizada para entrar no caminho da cruz.

Esse caminho é lindo e cheio de surpresas, como uma navegação num mar ignoto, que apresenta as borrascas e as ciladas mais tenebrosas, mas também os panoramas mais magníficos.

Deus nos pede o sacrifício, mas nos sustenta com sua graça

Assim, há certas coisas que, para o comum das pessoas, constituiriam um sacrifício medonho a praticar; entretanto, quando se é chamado pela graça a uma vocação, a alma se enche de alegria e de consolação.

Exemplifico com a Gruta de Lourdes. Há voluntários que se esmeram em dar banho aos doentes em piscinas apropriadas.

Alguém diria: “Olhe, você vai ter contato com o que há de mais repugnante, mais terrível. Você precisará mexer naquela água de banhos imundos, onde há as cascas de feridas, o pus de todos os que por ali passaram e os micróbios mais ameaçadores de todas as doenças. Aquelas piscinas são anti-higiênicas no sentido mais violento e literal da palavra, e você porá as suas mãos limpas, que desinfetou antes, naquela água para lavar aqueles doentes! Isso será para você uma tortura todos os dias”.

Para quem se sentiu chamado por uma graça para fazer isso, não é uma tortura. Vá lá, mexa naquilo, a graça vai mexer na sua alma de outro jeito e você dará os banhos com naturalidade. Não considere, portanto, a situação como ela não vai ser.

Com muitas modalidades de sofrimento se dá isso. Sofre-se muito, mas não se percebe que a Providência pôs uma suavidade na alma a propósito daquele padecimento, de maneira que, quando o sofrimento acabou, tem-se gosto de se lembrar dele. E às vezes vai-se ao lugar onde se padeceu, para dar graças a Nossa Senhora por aquele sofrimento.

Convém, pois, cada um compreender que não deve confrontar o sofrimento futuro com o seu estado de espírito atual, porque, quando chegar a hora de sofrer, Maria Santíssima obterá as forças. Ainda mais, Ela, que é Mãe de Misericórdia, providenciará os meios para se padecer aquilo potavelmente.

Diz-se que quando Deus permite que fiquemos doentes, Ele mesmo prepara a cama para nos deitarmos.

Existe uma doçura especial no âmago do sofrimento, quando nos lembramos de que ele nos foi dado por Deus: é o travesseiro suave que a Mãe de Misericórdia nos preparou para aguentarmos tal padecimento. Vamos adiante porque, quando isso terminar, teremos saudades desses dias. Parece-me muito importante considerar isso também.

São das tais graças como a de Jesus com os discípulos de Emaús: no momento de ir embora, revela-Se. Na hora do sofrimento cessar, percebemos que uma mão estava nos segurando, e ficamos encantados!

Aversão à atitude de Múcio Cévola

Entretanto, as pessoas que tratam habitualmente da dor não a apresentam assim, mas à maneira de um Múcio Cévola(3). Sempre tive aversão àquele tipo de atitude. Queimar minha mão? Não! Fico apavorado, tenho horror ao fogo e não vou pôr nele meu braço! Porém, se eu receber uma graça especial, ponho. Mas numa perspectiva católica, como São Lourenço na grelha.

Há, portanto, atenuantes, acolchoados que nos conduzem àquilo. Não nos apavoremos! A entrada no caminho do sofrimento é, ao mesmo tempo, uma resolução heroica e viril, mas também uma ponderação dos mil acolchoados que entram dentro disso. Do contrário, não se viveu e não se sofreu catolicamente.

Fizemos juntos uma preparação para a entrada da cruz em nossas vidas e para o modo pelo qual devemos ver a cruz. Foi apresentado um equilíbrio entre a luz e a cruz, de tal maneira que se poderia dizer “per crucem ad lucem”(4), mas também “per lucem ad crucem”, que é o reverso da medalha que poucas pessoas consideram.

Plinio Corrêa de Oliveira(Extraído de conferência de 6/12/1985)

1) Mt 27, 46.
2) Do latim: “Pai, se for possível…” (cf. Mt 26, 39).
3) Conta Tito Lívio, historiador romano, em sua obra História de Roma desde a sua fundação, que em 508 a.C. Roma foi cercada por um rei etrusco de nome Porsena. Ante o perigo, um jovem romano chamado Gaio Múcio Cévola se voluntariou a matar o rei. Mas, ao entrar no acampamento inimigo, foi aprisionado. Levado ante o rei e questionado sobre a estratégia dos romanos, Gaio disse: “Sou um cidadão de Roma e vim para matar um inimigo ou morrer com valentia, e muitos como eu estão dispostos a fazer o mesmo.” O rei o ameaçou de queimá-lo vivo se não contasse detalhes dos planos romanos. Então, Gaio Múcio colocou sua mão direita em um fogo que havia ao seu lado, deixando-a queimar até os ossos, diante do rei e de outros nobres assombrados com tal ato de valentia.
4) Do latim: “pela cruz à luz”.

Na extrema aflição, a hora da Providência

Incutir em seus filhos espirituais a mesma confiança sem limites em Deus e na Santíssima Virgem que o animava, era este um dos cuidados constantes de Dr. Plinio. Ótima oportunidade para isto foi-lhe oferecida por uma maravilhosa narração do livro do Conde de Montalembert, “Les Moines d’Occident”, comentada por ele numa das conferências denominadas “Santo do dia”.

O Conde Raul de Chester voltava da Cruzada, na qual havia se coberto de glórias tomando Damieta [no Egito], quando uma violenta tempestade caiu sobre o navio em que viajava.

Eram já dez horas da noite. Como o perigo aumentava a cada instante, o conde exortou, pois, os viajantes a redobrar os esforços [para estabilizar a embarcação] por mais um minuto, prometendo que a tormenta passaria logo. Ele próprio se pôs a manobrar e a trabalhar mais do que os outros. O vento parou dentro em pouco, o mar serenou e, quando o piloto perguntou a Raul porque ele lhe tinha ordenado trabalhar apenas um minuto a mais, o nobre respondeu: “Porque, a partir dessa hora, os monges e outros religiosos que meus ancestrais e eu estabelecemos em vários lugares se preparavam para cantar o Ofício. Sabendo que nesse momento eles estariam rezando, eu esperava do Céu que, graças às orações deles, cessasse a tempestade”.

Embora não falte quem julgue controvertida a autenticidade histórica de acontecimentos como este, é muito provável que as coisas se tenham passado assim como narra o autor, não havendo, portanto, nenhuma razão especial para duvidarmos de sua veracidade. Para os que não têm espírito cético nem incréu, esse é um lindíssimo episódio que indica um igualmente belo princípio da doutrina católica.

Deus, o “vértice” para o qual olham os que oram e os que se afligem

O fato nos apresenta a imagem poética de um grupo de cruzados singrando o Mediterrâneo, numa época em que os meios de navegação eram ainda tão insuficientes que atravessar esse mar constituía uma façanha náutica.

Não é difícil imaginar o aperto da situação: uma forte tempestade que sopra, a nau repleta de combatentes extenuados, alguns feridos, cheia de pesadas armas das quais não podiam se desfazer, atirando-as às águas, pois sempre havia a possibilidade de, ao abordarem em terra firme, necessitarem delas para se defender de algum ataque. É noite, uma noite escura, sinistra, o mar povoado de incógnitas, e a tormenta que uiva e cai sobre os homens, deixando-os apavorados. É uma cena que evoca em algo o episódio da tempestade no Lago de Generazé, quando os Apóstolos se tomaram de medo e foram despertar Jesus, que dormia tranquilamente na barca.

No navio dos cruzados não estava Nosso Senhor, mas “christianus alter Christus”: encontrava-se ali presente um homem de fé, o Conde Raul de Chester. Ele sabe que a gratidão dos verdadeiros religiosos jamais se desmente e que, portanto, pode contar com as orações dos monges que viviam nas numerosas abadias fundadas por seus ancestrais. Ele tem a firme confiança de que, na hora costumeira, começará o Ofício Divino rezado naqueles mosteiros. E tem a certeza de que, desde as primeiras palavras recitadas, essas preces seriam feitas também nas intenções dos nobres fundadores e dos seus descendentes. Logo, nas intenções dele, Raul de Chester, provavelmente o primogênito na linha de descendência.

Então ele pede apenas mais um minuto de atenção, mais um minuto de paciência, de perseverança. Ele luta, mas roga que esperem ainda um pouco, porque a tempestade não demoraria em amainar. A tormenta cessa, e ele diz: “Os monges começaram a recitar o Ofício”. O Mar Mediterrâneo cede.

É o poder da prece, que ignora as distâncias. Naquele tempo de primitivos meios de locomoção, era muito longo o caminho por terra que ia do Mediterrâneo à Inglaterra. Devia ser percorrido devagar, atravessando regiões habitadas por povos muito diferentes e com estradas incertas. Por isso, no episódio do qual tratamos, a extensão que se interpunha entre o cenário da tragédia iminente o mar e os locais onde a salvação devia se operar, isto é, as abadias inglesas, era bastante considerável, física e psicologicamente.

Os monges não sabiam que os descendentes de seus benfeitores estavam em perigo. Tudo os separava, exceto um traço de união, o vértice para o qual as duas partes se voltavam: Deus Nosso Senhor. Os religiosos olham para Deus, ao recitar o Ofício nas intenções de seus fundadores; os cruzados olham para Deus, ao implorar o seu onipotente socorro. Em Deus se encontram a oração daquele que pede e a necessidade do que dela carece. E a prece de uns liberta os outros.

De passagem, é interessante notar uma circunstância que confere ainda maior beleza a esse episódio. A se tomar a narração ao pé-da-letra, é provável que os monges ingleses

 não estavam começando a cantar o Ofício no exato momento em que o imaginava o Conde Raul, devido à diferença dos fusos horários. Ou seja, a hora não podia ser a mesma no relógio (ou outro mecanismo para determinar o tempo) do navio e nos das abadias.

Contudo, Deus, que não se atrapalha com a ciência nem se deixa prender por esses pormenores, quis fazer jogar algo à maneira de uma coincidência de horários na realidade, inexistente e operou essa maravilha cuja narração nos enche de entusiasmo, e da qual podemos tirar algumas lições.

Prevalência da oração sobre todos os recursos humanos

A primeira delas, e a mais importante, é ficar compreendendo a prevalência da oração sobre todos os outros recursos humanos.

O Papa Leão XIII, ao redigir um de seus célebres documentos, escreveu umas frases que nunca mais me saíram do espírito. Dizia ele que, no tempo de seu pontificado, havia muitos homens que agiam para promover a causa católica, porém trabalhavam mais do que rezavam. Ora, afirmava o Pontífice, se esses homens rezassem tanto quanto agiam, obteriam eles resultados maiores do que os alcançados simplesmente pela ação. Porque o grande meio de vitória do homem é a prece. É um meio impreterível e supereminente em relação à ação: ele não a dispensa, ele a prepara e a torna fecunda.

Essa tese vem ilustrada de modo perfeito no episódio que acabamos de recordar. O Conde de Chester foi um cruzado. Atraído pela graça de Deus, ele se dirigiu até o Oriente. Ação. E uma forma de ação das mais belas e nobres, que é a luta por um ideal católico. Ele chega ao Oriente e arranca do poder dos maometanos uma cidade importante: Damieta. Êxito no seu empreendimento. Entretanto, logo se faz patente a necessidade da oração. O Conde tem a sua vida exposta a um perigo imenso, onde quase não lhe adiantaria nenhuma indústria humana: a tempestade açoitando o mar em cujas águas ele navegava de volta para casa.

Como se salvar? Oração. E a prece fervorosa assegura o regresso de Raul à terra de seus ancestrais, a preservação da sua própria vida e a dos seus bravos. Porém, muito mais do que isso, dá um exemplo de como Deus atende as nossas súplicas, e como Ele vela por aqueles que confiam na oração dos outros. Mostra-nos o dogma da Comunhão dos Santos, por assim dizer, funcionando e fazendo com que essas duas formas de heroísmo se encontrem: o heroísmo do cruzado no alto mar, e o do monge pontual na igreja de sua abadia, rezando com fé por aqueles que estão expostos a riscos.

Daí podemos deduzir como é importante nossa vida de oração, como tem um peso inestimável a reza diária do Rosário ou do Terço, e de nossas demais práticas de piedade, desde que imbuídos da certeza e da fé de que, para o êxito da causa católica, esse esforço de oração encerra um valor maior do que o próprio esforço nobre e indispensável da ação. Mesmo quando se trata de grandes guerreiros, que empreenderam feitos extraordinários e conquistaram magníficas vitórias e vantagens para a Igreja, o papel da oração ainda é preponderante. Essa é a principal nota que devemos tirar desse episódio.

Nas horas da extrema aflição, o sorriso de Nossa Senhora

Entretanto, outra lição há para se colher em tudo isso. Por que Deus permitiu que chegasse ao extremo de angústia a situação desses cruzados, para só então intervir?

Exatamente para provar a confiança n’Ele. As horas de extrema aflição são as horas da Providência, são as horas da misericórdia. O verdadeiro católico, quando sabe que tudo está perdido, reza e confia mais do que nunca, porque é a hora do sorriso de Maria Santíssima para ele, assim como o foi para aqueles valorosos guerreiros em meio à tempestade no Mediterrâneo. Quando já não havia mais esperanças nos recursos humanos, Nossa Senhora, a Estrela do Mar, interveio, libertou-os e resolveu a angustiante situação em que se encontravam.

Lembremo-nos sempre disso: nos momentos de nossas maiores provações e aflições, rezemos com redobrado fervor  e  confiança.  Nossa  Senhora  não  tardará  em  nos sorrir.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 36 (Março de 2001)