A longa demora permitida por Deus

Embora a Igreja Católica nunca irá morrer, por vezes, parece ter sido colocada num sepulcro. Entretanto, assim como Nossa Senhora tinha certeza de que Nosso Senhor Jesus Cristo ressurgiria, também nós devemos estar convictos de que a Igreja emergirá milagrosamente dessa espécie de morte aparente, e acreditar na realização das profecias, na vitória e no Reino de Maria.

 

Quando se chegou ao auge da Idade Média, pela ideia da Civilização Cristã que se afirmava, da Igreja que chegava àquela plenitude, acentuou-se nos medievais a devoção a Cristo Ressurrecto, e o número de igrejas consagradas a essa invocação aumentou consideravelmente, o que é muito bonito.

A Igreja está numa aparente morte

Eu não vi tratar desse tema em livros de piedade, mas um aspecto no qual se deveria fixar a atenção é a devoção de Nossa Senhora nos três dias em que Jesus esteve na sepultura. Porque existe uma analogia entre a situação da Igreja hoje em dia e Nosso Senhor no sepulcro.

A Igreja Católica não está morta, mas por vezes as aparências são de que ela foi posta num sepulcro. Ela não vai ressurgir porque não morreu, mas dessa espécie de morte aparente ela emergirá milagrosamente. Então, nós estamos nesses três dias – número historicamente real, mas de valor simbólico – de Nosso Senhor na sepultura.

Para a Santíssima Virgem era tremendo pelas saudades que sentia d’Ele. Analogamente, são as nossas saudades da Igreja como ela foi e, sobretudo, como nós não alcançamos. Essas saudades devem nos ser pungentes neste período.

Assim como Nossa Senhora tinha certeza de que Nosso Senhor Jesus Cristo ressurgiria, também nós devemos estar convictos de que a Igreja não morreu, e passar por esta provação: acreditar na realização das profecias feitas em Fátima, na vitória e no Reino de Maria.

Nossa Senhora adorava o cadáver de seu Divino Filho em união hipostática imutável com a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, mas que, entretanto, estava morto. Porém, o auge da devoção d’Ela era já adorá-Lo ressurrecto.

Também nós devemos amar a Santa Igreja nessa aparente morte em que está, mas tomando em consideração nossa certeza de que ela “ressurgirá”, amá-la desde já como ela será no futuro; ideias, esperanças, vislumbres do Reino de Maria devem nos alimentar e nos preparar para o dia da ressurreição.

Esta consideração eu gostaria de fazer por ocasião da Quaresma e da Semana Santa.

Um dos elementos de deterioração do homem

É uma coisa curiosa, mas o triunfo deteriora quem não conserve na boca ou na memória a amargura da derrota anterior. Isso é sistematicamente assim. Um dos elementos de deterioração do homem é quando ele julga que aquilo de bom – e, por vezes até esplendidamente bom – que possui não é senão o normal, e todos os inferiores em relação a ele são uns infelizes, pois não têm senão aquilo que a vida deve dar. Quando o indivíduo forma esta noção da existência, ele começa a se deteriorar.

O ponto de referência é outro. Ele deve achar que o comum neste vale de lágrimas é o estado de mendigo, e qualquer coisa que esteja acima da mendicância já apresenta uma certa vantagem. De tal maneira que, quando na mendicância lhe dão um pão, ele já deve dar graças a Deus. E se ele tem um pouquinho além da mendicância, pode desejar mais, mas nunca maldizendo aquele pouco, jamais deixando de reconhecer que esse pouco é alguma coisa que deve alegrá-lo.

Às vezes, aqueles cujos pais são muito importantes, ou muito nobres, ou muito sábios, ou muito qualquer coisa, por terem nascido nessa situação, julgam um absurdo que não tivessem determinadas regalias, e ainda mais do que aquilo. Então começam a amolecer, a se deteriorar e a apodrecer.

Nós também, para não apodrecermos no Reino de Maria, teremos de conservar a recordação das torrentes nas quais bebemos pelo caminho. Para quando levantarmos a cabeça compreendermos o favor que Deus está nos fazendo e, mesmo no auge de nossa glória, não acharmos isso normal. Do contrário, ao cabo de uns cinco anos, estaremos tão amolecidos que se fosse preciso voltar atrás já não teríamos coragem. É o efeito do pecado original. Essa é a vida.

Li nas memórias de uma governanta das filhas de Nicolau II que quando o Czar ia a Paris, em viagem oficial, levava a família toda. Enquanto ele e a Czarina estavam participando das recepções oficiais, as meninas levavam uma vida à parte. Então, iam para as lojas de brinquedo, que já estavam avisadas da visita das grã-duquesas e punham à mostra os brinquedos mais caros e os melhores vendedores à disposição para atender a criançada.

As crianças nem perguntavam o preço, pois não lhes interessava. Elas apenas diziam: “Eu quero isso, aquilo e também aquilo outro…” Nicolau II, por sua vez, recebia a conta e pagava, também sem questionar. Ora, isso deteriora uma criança a mais não poder.

Segundo os costumes antigos, o primogênito herdava todo o patrimônio da família e ficava com a obrigação de administrá-lo. Os outros filhos, ou se jogavam na aventura, ou caiam no zero. Estes, entretanto, não reputavam isso uma infelicidade. Ao contrário, consideravam uma desventura o destino do primogênito que continuava amarrado ao seu castelinho, sem poder correr a aventura fabulosa que eles tinham diante deles.

D’Artagnan foi isso. Segundo a legenda, ele morreu na hora de receber o bastão de Marechal de França. E morria com a ideia de ter realizado uma fábula. Mas ele teve que dar duro…

Nós tivemos no Brasil um sistema parecido. Os descendentes que não pertenciam ao ramo primogênito recebiam terras colossais para desbravar no franco mato, e passavam os melhores anos da vida, desde o dia do casamento até mais ou menos 45 anos de idade, dando duro, plantando, enfrentando bandidos, porque era “Far West”. Quando a fazenda estava formada, eles voltavam para a capital e iam periodicamente administrar a propriedade. Para isso construíam casas na fazenda onde passavam temporadas. Mas era uma batalha para conseguir alguma coisa. Isso é altamente formativo.

Na longa demora que suportamos, devemos viver com ascese

Exemplos como esses servem para compreendermos as humilhações e tantos outros sofrimentos pelos quais passamos agora e, assim, quando chegar o Reino de Maria não nos apodrecermos na glória, mas darmos o devido valor ao fato de termos subido com sacrifício, reconhecermos o quanto devemos a Nossa Senhora por causa disso, e conservarmos a seguinte ideia retrospectiva: Se eu for capaz de voltar à estaca zero e beber da torrente novamente, porque assim Nossa Senhora quis a meu respeito, não terei apodrecido. Se eu não for capaz, posso estar certo de que apodreci, abusei do dom de Deus.

Tenho a impressão de que essa longa demora que suportamos seja permitida pela Providência a fim de nos preparar para uma imensa glória, dentro da qual deveremos viver com ascese. Alguém poderá me objetar: “Mas isso eu não quero, porque se até nessa hora é preciso viver com ascese, então não é vida.” Eu digo: “Meu caro, você apodreceu antes de subir. Enquanto estava embaixo, você acalentou sonhos podres e imaginou uma vida sem a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.”

Há uma ideia, com a qual muitos de nós fomos educados, de que se deve evitar olhar até o fundo os aborrecimentos que a vida traz, considerando-os superficialmente para não os sentir. E, para isso, cercar a vida dos maiores deleites e divertimentos que se possa, de maneira a estes cobrirem, tanto quanto possível, os aspectos dolorosos que a pessoa não deve ver.

Ora, esta é uma impostação errada. Diante de uma coisa dolorosa apresentada pela vida, a pessoa deve vê-la por inteiro. Porque isso é assim na vida de todo mundo e não adianta fugir da verdade. Não há quem não tenha sofrimentos muito pesados na vida, mesmo quando surjam verdadeiramente rutilâncias muito atraentes e agradáveis. Ainda assim a existência apresenta grandes padecimentos que devemos enxergar de frente, até onde foram e até onde podem ir, preparando a alma para aguentá-los.

Essa postura dá à alma uma espécie de sacralidade, de nobreza, de força para considerar que, ainda que a vida seja assim, ela é digna de ser vivida. Não porque dá saldo positivo, mas é porque a alma cresce muito quando toma a sua dor assim, de frente, como Nosso Senhor Jesus Cristo tomou a d’Ele no Horto das Oliveiras.

Quando se nos apresenta a cruz, devemos abrir os olhos e os braços inteiros

Minha devoção a Nosso Senhor no Horto das Oliveiras é mais acentuada até do que a própria Crucifixão. Não porque eu não saiba que a Paixão d’Ele chegou ao auge com a Crucifixão, mas é que essa meditação puramente espiritual da dor, antes mesmo de ela chegar, a previsão e essa impostação para que a alma receba essa dor vista até o fim, parece-me fundamental na alma católica.

Aliás, por incrível que pareça, é isso que torna interessante a alma com a qual se trata. Quando uma alma procura não ver a dor, ela não fica interessante. Ao contrário, quando ela vê a dor até o fim se assemelha a um instrumento de música afinado, com as cordas em ordem. Isso dá a tudo quanto ela diz uma ressonância, uma vida, porque está afinada em ordem à dor.

É, de fato, a Cruz de Nosso Senhor. Porque a palavra “dor” sem a Cruz dá lugar a toda espécie de desequilíbrio possível. A vida humana é inexplicável e insuportável sem Nosso Senhor Jesus Cristo. Daí São Paulo dizer que só sabia pregar a Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado (cf. 1 Cor 2, 2).

Há místicos que viram Nosso Senhor recebendo a Cruz e osculando-a. Quer dizer, manifestando carinho para com ela. Eu acho isso uma coisa absolutamente de primeira ordem. Ora, o que significa para nós o carinho para com uma cruz imaterial? É aceitá-la lealmente, abrindo os olhos e os braços inteiros!

Por exemplo, a cruz de ser menosprezado. É melhor descer o vale desse menosprezo até o fim. Não exagerar, imaginando ser maior do que é, mas tomá-lo em todo o seu tamanho. “Está bem, eu aceito! Sentei-me no banco dos desprezados como se fosse um trono, e ali fiquei. Aconteceu assim, vamos para a frente!”

Se soubéssemos as aflições que nós evitamos para a nossa alma quando procedemos assim… Porque a realidade é esta: o sujeito não aceita e começa a tomar toda e qualquer dor que lhe venha como sendo um absurdo. Assim não há como evitar uma torcida enorme para não acontecer aquilo. E na torcida a pessoa sofre muito mais do que na aceitação franca, leal. Esta dá uma calma, uma estabilidade, uma força que realmente correspondem aos desígnios de Deus, a uma aceitação humilde do que Nosso Senhor quis para nós.

Sofrer em união com Nosso Senhor Jesus Cristo

Há, portanto, duas atitudes integrantes da virtude da temperança. Uma consiste em entender que a vida é um vale de lágrimas, e saber saborear como um presente de Deus qualquer pequena alegria como enviada por Ele para nos aliviar. O auge da alegria não está no tamanho, mas sim na qualidade dela. Portanto, saber degustar as pequenas alegrias da vida, e não as imaginar maiores do que são na realidade, compreendendo que são transitórias, e saber vê-las até o fim é um elemento indispensável para a pessoa não se deteriorar, não apodrecer. Porque, se não se faz assim, a pessoa imagina que o normal é levar uma vida na qual tudo vai de acordo com os seus desejos, e o que não for isso é uma desgraça. Esse fica muito mais infeliz do que o primeiro.

Outro elemento da temperança é compreender que o normal dessa vida é sofrer, e muito, e que a pessoa deve padecer em união com Nosso Senhor Jesus Cristo, considerando o sofrimento em seu aspecto sobrenatural, sem o qual tudo isso não tem sentido. Assim, vindo um revés por cima de nós, olhá-lo com força, de frente, medir em toda a extensão o que ele traz de sofrimento e dizer: “Eu aguento, aceito e vou tocar para a frente.”

É o exemplo que nos deu Nosso Senhor na sua Paixão. Na Agonia do Horto Ele previu tudo. Não bancou o imprevidente. Foi revelado à sua natureza humana tudo quanto Ele sofreria em seu Corpo. Além disso, todas as dores de Alma, as ingratidões, etc. Aliás, com os Apóstolos Ele tomou a experiência ali mesmo. Tudo isso Ele viu e não fechou os olhos. Sofreu até o fim a visão do que vinha. Sentiu a sua vontade perfeitíssima não aguentar e pediu que fosse afastado o sofrimento. Mas vejam o equilíbrio perfeito: “Se for possível, afaste. Se não for possível, faça-se a vossa vontade e não a minha” (cf. Mt 26, 39).

Aplicando isso a nós, devemos ter a coragem de ver a nossa situação como é, inteiramente e o quanto ela pode ser irremediável. Porque se o único “remédio” for apostatarmos, esse “remédio” nós não consideramos nem de longe, pois a partir do momento em que um de nós considere isto uma hipótese, começou a discutir o valor das trinta moedas… Então, esta não é uma hipótese válida. Logo, é preciso aguentar a situação assim, não tem conversa.

Ver a realidade de frente é absolutamente indispensável

Suportado o sofrimento com esta força, a pessoa chega até o fim com calma, com paz, com dignidade. E nisto viveu a sua vida. Então são estes os dois aspectos da temperança: saber saborear as coisas que Deus manda, e amar a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, como destinada a todos os homens.

Às vezes encontramos pessoas realmente felizes, mas que não querem olhar para a possibilidade de um infortúnio. A certa altura, levam cada susto! Porque, de repente, o infortúnio lhes explode debaixo dos pés.

Imaginemos um filho que ama enternecidamente seus pais. De repente, percebe que os pais por quem ele se sacrifica, e que o consideram muito bom, de fato não o amam como ele os ama. E isso se externa, por exemplo, pela atitude deles para com outro filho que não é bom, pelo qual eles têm uma predileção estulta, embora esse filho esbanje o dinheiro deles e “pinte o caneco”. E isso apenas por ser um filho mais ornamental ou parecido com eles, qualquer coisa deste gênero…

Então, o primeiro não deixa de ser bom filho, não cai no desânimo, não fica azedo, mas constata: “Meus pais são assim.” Não se trata, portanto, de pensar o seguinte: “Eu vou rever meu procedimento. Vale a pena continuar a dar a eles essa quota de dedicação ou não vale? Posso reduzi-la, porque serei um imbecil se tratá-los como pais perfeitos quando não o são.” Pelo contrário: “São meus pais e, enquanto tais, têm direito à minha dedicação.” Entretanto, esta situação pode criar graus diferentes de infortúnio. É preciso ver de frente!

Em certa ocasião, vi um exemplo doloroso disso. Era uma reportagem a respeito de uma família muito nobre da França. A fotografia mostrava o pai e a mãe ainda jovens, muito bem-apessoados e já rodeados de um bando de filhos, todos muito saudáveis, permanentemente alegres, dando ideia da própria felicidade do casal. Via-se aquela alegria despreocupada, otimista, da qual fazia parte uma borrifadazinha de Religião pelo meio – pois é certo que todos tiveram aulas de Catecismo, fizeram a Primeira Comunhão, por ocasião da qual estavam elegantes e até mesmo piedosos –, porém não lhes fora ensinado o que estou dizendo aqui.

Pensei: “Ou todo o meu modo de ver a Religião e a vida é errado, ou essa família tem que dar num estouro do outro mundo!” Resultado, deu num bando de facínoras. Quanto ao marido, chegou a publicar na mesma revista, na qual saiu a referida reportagem, que há muito tempo ele não tinha temas a conversar com sua esposa, mesmo no auge de seu casamento, pois ela era completamente vazia e não tinha o que dizer a ele. Podemos imaginar o que significa para uma mulher, que tinha a ilusão de ser amada por seu marido, ler isso e dar-se conta de que ele não só não gostava mais dela, mas não gostara jamais? Pois bem, ver isso de frente é absolutamente indispensável e faz parte dos tais elementos da temperança que a pessoa deve ter.

Conheço uma pessoa que no começo de sua adolescência me externou esta sua reflexão: “Eu sei que fui chamado a servir Nossa Senhora. Mas não me consolo de Deus ter me chamado para isso. Por que Ele escolheu a mim, quando podia ter escolhido outro para padecer esse mundo de sofrimentos inerentes a uma vocação, deixando-me sossegado na minha vida?”

De fato, ele sofreu muito pelo que devia fazer e fez, e pelo que não devia fazer, mas fez. Atualmente é um muito bom filho de Nossa Senhora. Mas eu queria analisar esse estado de espírito que em determinado momento foi o dele.

Esse rapaz deve ter recebido graças muito boas no período da infância e adolescência. Entretanto saboreando ao mesmo tempo, intensamente e sem nexo com essas graças, circunstâncias materiais próprias a fazê-lo levar uma vida feliz. Isso amesquinhou o horizonte dele, de maneira tal que, ao invés de considerar o enorme panorama de quem é chamado por Deus a um alto ideal, ele se alegrava mais com o horizonte pequeno, com o prédio de teto baixo da vidinha que tinha diante de si, a qual provavelmente aparecia-lhe como sendo uma existência ideal.

O gáudio dos grandes horizontes

Ora, é uma coisa curiosa, mas o gáudio dos grandes horizontes meio tristonho. Traz, entretanto, um bem-estar e uma satisfação que o horizonte estreito, o prédio de teto baixo nunca dá.

Chateaubriand1 faz uma descrição magnífica de uma noite no Castelo de Combourg. Ele tinha uma irmã chamada Lucille, de quem gostava muito. Sua mãe, a Mme. Chateaubriand, ele apresenta como pessoa muito boa, mas com a saúde precária, tendo que se cuidar. E o pai, uma espécie de leão na jaula, uma fera. Então, ele descreve um final de dia na residência da família, um castelo gótico com um pé-direito muito alto, salas grandes onde punham uma mesa para eles jantarem. Comiam em silêncio porque o pai estava pensando continuamente em outras coisas e metia medo. A mãe tinha medo do pai também e ficava quieta; apenas suspirava docemente, às vezes, e continuava a jantar.

Terminada a refeição, começava o “entretenimento” familiar. Levantavam-se e iam para um salão enorme, vizinho à sala de jantar, onde por falta de dinheiro havia só uma luz acesa perto da mãe. Esta sentava-se numa cadeira mais cômoda, enquanto o pai ficava andando, de maneira que, conforme se aproximasse ou se afastasse, sua sombra na parede ia crescendo ou diminuindo. Assim, ouviam-se os passos do velho visconde a caminhar, preocupado, sobre o chão de pedra. De vez em quando, ele parava diante das crianças, que num canto estavam cochichando, olhava fixamente para elas e lhes perguntava: “O que vocês estão falando?” Um pouco como quem quer entreter a conversa, mas ele não compreendia que, com isso, gelava as crianças… Nesse ambiente, o teto alto aumentava a melancolia e a desolação. Compreende-se que isso parecesse para Chateaubriand imensamente triste e até soturno.

Chegada a hora de se recolher, o menino Chateaubriand ia dormir sozinho numa torre. Metia-se numa cama com aqueles clássicos cortinados, e todos os ventos do mar sopravam em cima da torre, uivavam, assobiavam, com o Chevalier de Chateaubriand apavorado dentro das cobertas, até que o sono viesse. Tenho a impressão de que, pela manhã, ele se levantava despreocupado, ia até o mar para a brincadeira com os meninos da zona e já era outra coisa.

Quando uma alma tem um lado voltado para a vidinha e outro para os grandes ideais, estes fazem um pouco o papel do teto alto do Castelo de Combourg. O indivíduo gostaria de fugir para uma coisa mais aconchegada, mais direitinha, mais arranjada, para ter, afinal de contas, a alegria de ser pequeno.

Assim, pode haver dois modos de considerar o chamado de Deus: um é ao estilo da torre que uiva e essas coisas todas; outro é a grande alma de um cruzado, de um homem que aceitou a cruz e tem nisto uma consonância com o Divino Crucificado.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/8/1988)

Revista Dr Plinio 253, pp. 11-15.

 

1) François-René Auguste de Chateaubriand. Escritor, ensaísta, diplomata e político francês (*1768 – †1848).

 

Sorriso inefável

Que Vos levaria, Senhor, a sorrir do alto da Cruz? Que abismo de contradição entre as dores que da cabeça aos pés Vos atormentam o Corpo sagrado, e esse sorriso que aflora doce, suave, meigo, entreabrindo-Vos os lábios e iluminando-Vos o rosto! Sobretudo, Senhor, que contradição entre o abismo de dores morais que enche vosso Coração, e essa alegria tão delicada e tão autêntica que transluz em vossa Face! Contra Vós, todo o oceano da ignomínia e da miséria humana se atirou. Não houve ingratidão nem calúnia que Vos fosse poupada. Pregastes o Reino do Céu, e vossa pregação foi rejeitada pelo vil apetite das coisas da Terra. O demônio, o mundo, a carne, em infame revolta contra Vós, Vos levaram ao patíbulo, e aí estais à espera da morte. E, entretanto, sorris! Por quê?

Vossas pálpebras estão quase cerradas. Mas ainda podeis ver algo. E o que vedes é, Senhor, a maior maravilha da Criação, a obra-prima do Pai Celeste, uma alma – e quanta beleza pode haver em uma alma, embora o ignore o materialismo de nosso século – riquíssima e íntegra em sua natureza, cumulada por todos os dons da graça, e santificada por uma correspondência contínua e perfeitíssima a todos esses dons! Vedes Maria. Vedes vossa Mãe. E no meio de todos os horrores em que estais imerso, tal é a maravilha que vedes que sorris afetuosamente, para alentá-La, para Lhe comunicar algo de vossa alegria, para Lhe dizer vosso infinito e sublime amor.

Vós vedes Maria. E ao lado da Virgem Fiel, vedes os heróis da fidelidade: o Apóstolo virgem, as Santas mulheres, a fidelidade da inocência e a fidelidade da penitência. Vosso olhar, para o qual tudo é presente, vê mais, pois se alonga pelos séculos e Vos faz ver todas as almas fiéis que hão de Vos adorar ao pé da Cruz até o dia do Juízo. Vedes a Santa Igreja Católica, vossa Esposa. E por tudo isso sorris com o sorriso mais triste e jubiloso, o mais doce e compassivo sorriso de toda a História.

Entre as miríades de almas que seguindo a Maria estão ao pé da Cruz, e para as quais sorris, também está a minha, Senhor? Humilde, genuflexo, sabendo-me indigno, entretanto eu Vos peço que sim. Vós que não expulsastes do Templo o publicano, pelas preces de Maria não rejeitareis para longe de Vós um pecador contrito e acabrunhado. Dai-me, do alto da Cruz, um pouco de vosso sorriso inefável, ó bom Jesus.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Catolicismo n. 148, abril de 1963)

Revista Dr Plinio 253 (Abril de 2019)

Ação de graças por meio de Nossa Senhora após a Comunhão

Ó Maria Santíssima, minha Mãe, Vós encontráveis tantas maravilhas para dizer ao vosso Divino Filho quando Ele estava em vosso claustro virginal. Dizei-Lhe por mim aquilo que eu gostaria de dizer se conhecesse esses vossos sublimes colóquios.

Adorai-O como eu quereria adorá-Lo, porém – oh, dor! – não sou capaz. Dai-Lhe a ação de graças que eu deveria dar-Lhe, e não sei fazê-lo. Apresentai-Lhe atos de reparação pelos meus pecados e pelos do mundo inteiro, com um ardor que infelizmente não tenho.

Minha Mãe, pedi por mim tudo quanto minha alma necessita e tudo aquilo de que precisam todos os homens, para instaurar na Terra o vosso Reino. Porque, minha Mãe, o que Vos peço mais do que tudo é o triunfo da vossa glória e a implantação de vosso Reino, em mim e sobre todos os homens. Assim seja!

 

Plinio Corrêa de Oliveira – Revista Dr Plinio 248 (Novembro de 2018)

Paixão de Cristo

Embora fosse infinitamente superior aos homens, Nosso Senhor Jesus Cristo chegou ao extremo de receber todos os ultrajes que Lhe foram feitos em sua Paixão, com imensa doçura.

Assim sua superioridade tornou-se não apenas régia, mas, por essa doçura, digna de ser amada. É uma elevação enquanto corolário da misericórdia, consentindo em colocar-se num plano indizivelmente menor, por amor àqueles que Lhe são inferiores.

Plinio Corrêa de Oliveira, 18/10/1989

De pé, como uma tocha de esperança

Na hora do Gólgota, no momento mais trágico que houve e haverá na existência da humanidade, Nossa Senhora permaneceu fiel. Não se entregou, não fraquejou, não traiu, não recuou.

E continuou de pé como uma tocha de oração e de esperança. Maria permanecia ereta, em toda a força de seu corpo e de seu espírito, com os olhos inundados de lágrimas, mas com o coração inundado de luz. Possuía a Fé inabalável, a certeza inamovível de que, após a grande tragédia, depois do abandono geral, viria a aurora da Ressurreição, viria o alvorecer da Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, nimbada de glória a partir de Pentecostes. E de que, de cruzes em luzes, de luzes em cruzes, o mundo chegaria até o momento que em Fátima Ela prenunciou: “Por fim o meu Imaculado Coração triunfará!”

 

Plinio Corrêa de Oliveira

É de noite que é belo acreditar na luz!

Nossa Senhora acreditou na luz durante a terrível treva da Paixão. Nesse tremendo desamparo, vendo que cada chaga era uma razão humana para tornar indiscutível a morte de seu Divino Filho, Ela teve uma Fé plena.

Quando Maria Santíssima segurou aquele cadáver nos braços, no momento em que O acolheu para ser objeto dos cuidados e levado à sepultura, tendo aquela imensa derrota física nas mãos, Ela via toda a impossibilidade natural da Ressurreição e fazia um ato tranquilíssimo de Fé: “Ele ressuscitará. Eu creio porque Ele prometeu!”

Plinio Corrêa de Oliveira, 19/11/1971

A procura do absoluto e o perfeito convívio – I

A perfeição do relacionamento humano está profundamente condicionada à capacidade que as almas tenham de transcender à fruição meramente material e elevar-se a uma esfera metafísica e sobrenatural.

 

O maravilhoso na ordem temporal tem como desfecho a tendência para o Céu empíreo.

Deleitar-se com os bens temporais à procura do absoluto é um ato de natureza espiritual

Normalmente, para o comum dos homens — não para um com vocação especial —, o maravilhoso, o religioso, não podem ser vistos a não ser numa orientação análoga com o temporal. Portanto, o grande comprazimento com a coisa temporal não se confunde com o ato de volúpia, mas é um ato de natureza espiritual quando se procura nele o absoluto. Toda a teoria da procura do absoluto em função das coisas temporais é o que leva ao Céu empíreo. Porque no Céu empíreo a coisa sensível é dada ao homem para ajudar a sua integração na visão beatífica.

Em mim, a problemática metafísica foi modelada pela influência da Fräulein Mathilde, porque um mundo de coisas da mentalidade, da educação das crianças alemãs é embebido da ideia de que certas coisas têm valor metafísico. Mas não vão mais adiante e não relacionam este valor metafísico com Deus.

Então, por mil aspectos, minha alma aderia muito a isso. E eu percebia que a procura do absoluto me conduzia à Igreja, me completava como católico e, portanto, eu deveria estimulá-la. Porque dia viria em que as coisas se conectariam. Eu notava a dissonância entre a posição que eu tomava e a de outras pessoas, e percebia com todas as luzes que a atitude delas não podia ser a católica.

Do lado brasileiro, ajudou-me nisto também a vida tranquila e, até certo ponto, regalada existente na São Paulo de meu tempo, onde uma série de deleites era concebida ainda dentro da ordem tradicional, e eu percebia que esses prazeres tinham uma coerência com os princípios católicos e, portanto, a questão não consistia em largar esses deleites retos, mas em ensinar as pessoas a conservá-los.

Um exemplo característico tão frisante, quase infantil: a árvore de Natal. Uma criança muito virtuosa diante de uma árvore de Natal tinha dois caminhos: por penitência, comer coisas de que não gosta e torturar o seu Natal, ou, por outro lado, gozar o seu Natal. Ora, embora compreenda em tese que, a uma alma chamada de modo muito especial, Deus possa exigir o sacrifício do Natal, para mim, teria dado uma asfixia do outro mundo!

O gáudio reto, santo, inocente do Natal me enchia de amor a Deus. E também com uma série de outras coisas, por exemplo, a vida um tanto cerimoniosa que se levava no meu ambiente. Isso dava propriamente em uma vida com bons regalos. Essa teoria do regalo santificante não poderia deixar de desfechar numa teoria do Céu empíreo. Donde durante décadas eu insistir, de um ou de outro modo, sobre o regalo bom santificante. Em certo momento, caiu-me nas mãos esse material sobre o Céu empíreo, do Cornélio a Lápide(1).

Duas escolas espirituais diante dos deleites legítimos

Segundo certa escola espiritual, uma pessoa virtuosa, na hora de colher morangos nos bosques, diria: “Ó, fujamos disto! Não vos esqueçais de que hoje é sexta-feira e Nosso Senhor padeceu por nós.” É uma consideração muito santa, muito direita para certo filão de almas. Para outro filão: “Vá pegar morango no bosque, passe pela capela, pela paróquia que está aberta, faça uma Via-Sacra, porque é sexta-feira, Nosso Senhor morreu nesse dia”. Está muito bem.

Eu estou vendo que uma pessoa poderia me dizer desde logo: “Ofereça esse pequeno sacrifício e renuncie a esse regalo, porque isto é grato a Deus”. Eu digo: Desde logo ponho em dúvida o que você diz. Há certos casos em que é, há certos casos em que não é.

Certa vez, uma pessoa me disse: “Você quer passar um dia de virtude? Faça o seguinte: o tempo inteiro quando você quiser esticar as pernas, você cruze; quando quiser cruzá-las, faça o contrário, e assim por diante, o contrário do que você quer. Você à noite terá uma tonelada de méritos”.

Pensei comigo: “Eu não vou desencorajar essa boa alma, mas tenho um abismo de mal-estar e de perplexidade com isso”.

Alternativa em face da fruição e o risco de abandonar a “transesfera”

Quando a pessoa está na fase anterior às provas, o deleite é quase sempre santificante. Entretanto, há um determinado momento na evolução de uma pessoa em que o deleite da coisa pela coisa se diferencia saudavelmente do deleite por causa daquilo que ela significa. Então, por exemplo, o deleite físico de mexer com esta pedra, que adorna minha mesa, e o deleite espiritual de contemplar as ranhuras que há nela diferenciam-se um do outro, mais ou menos como de dentro da haste de uma flor se diferenciam as pétalas.

E, em consequência, começa a aparecer um apego a isto, que já não é concomitante com o deleite espiritual, mas é autônomo. E que nasce de uma profundeza da alma, como o deleite espiritual nasce também.

Vamos dizer, banho de mar. Ele pode dar toda espécie de deleites físicos e espirituais ao mesmo tempo. Mas há um momento em que o deleite puramente físico do banho de mar, da respiração cutânea, enfim, do movimento, da aventura nas ondas, do “pulchrum” do mar se apresentam já eles mesmos diferenciados daquilo que seria o trans-esférico(2), que a atenção ora vai para uma coisa, ora vai para outra. Quando isto se dá, o amor pelo trans-esférico começa a ser provado, porque a alma não pode prestar atenção em duas coisas ao mesmo tempo. Ela não pode pensar como seria o mar trans-esférico e fruir com toda a alma daquele mar concreto. E a provação começa.

Dá-se uma espécie de alternativa onde ainda não entra diretamente, muito de imediato, a tentação para o mal, mas ela está a um milímetro daí. A pessoa pode ser mais arrastada pela fruição do mar, enquanto mar sensível, do que pelo mar trans-esférico, pelo simples fato de que essa fruição do mar sensível tem qualquer coisa de absoluto, de imperativo, de arrebatador, que é uma coisa tremenda. E com isso ela é colocada diante de uma opção: “Qual das duas é melhor?”

Para a maior parte das pessoas, essa escolha se passa nos lindes da semiconsciência: a pessoa vê bem pela inteligência que um é mais nobre, que corresponde mais à sua estatura inteira, que o outro apresenta uma fruição da parte. De um modo mais ou menos implícito, é positivo que vê.

A alma pode começar a optar por um dos dois polos e, portanto, entrar pelo caminho de Esaú ou de Jacó. Quando a alma está nesse estado, a parte fruitiva baixa começa a se deformar, e constituem-se ansiedades, apegos, tormentos, reações próprias do pavor de perder aquele prazer. E o metafísico começa a empalidecer porque não concorre em nada, ou em muito pouco; aquela fruição lota o horizonte. Aí entra uma espécie de opção que vai pela vida afora.

Se uma pessoa, diante dessa fruição, disser: “Eu não te quero assim, vou te conter, limitar-te, reduzir-te à devida proporção e, se for o caso, eu te elimino, porque não quero ser infiel”. Então há um sacrifício que vale muito mais do que o amor inocente não sacrificado dos primeiros anos. Entra a Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Porém, se a pessoa tiver uma fruição desvinculada disso, ela erra completamente.

Do amor a uma ordem superior nasce o perfeito relacionamento entre os homens

Esses problemas da vida relacionam-se cronologicamente segundo uma maturação prevista pela Providência: na criança, com o amor primeiro não provado, ela não tem dificuldades de relacionamento com os seus, e aquilo é manso, “mar azul”. A mãe, o pai, os irmãos, a parentela toda, aquilo tudo é uma maravilha. Depois começam a aparecer as diferenças e as decepções, como também os atos de justiça em relação a esses e àqueles, e o mundo familiar vai se rasgando.

Há rasgões externos como internos, apresentam-se os deveres que a pessoa segue ou não, juntamente com várias provações simultâneas, e a puberdade, cedo ou tarde, irrompe dentro disto e a pessoa vai entrando na batalha.

Se imaginarmos almas numa posição inteiramente reta a respeito deste assunto, as relações entre elas serão fundamentalmente diferentes. Porque essas almas amam principalmente a ordem trans-esférica, mística, sobrenatural para a qual elas vivem, e por causa disso o relacionamento com outras almas análogas em função desta ordem é reputado por elas um bem mais precioso do que o trato baseado em outros valores.

Tomemos como exemplo dois bons irmãos que se estimam, se prezam e têm relações de alma completamente corretas neste ponto. Aparece entre eles uma questão de divisão de uma herança paterna. Ela se faz amistosamente, sem nenhuma dificuldade, porque, por esta sua retidão neste patamar superior, eles são parecidos e, portanto, têm facilidade de se entender e fazer a justa divisão. Mas também porque se um notar uma pequena fraqueza ou um pequeno apego que possa prejudicar o superior relacionamento entre ambos, o irmão bom facilmente desiste da vantagem material para conservar um convívio mais elevado.

O episódio bíblico ocorrido com Abrão e Ló é característico. Abrão diz: “Aqui estão as terras, pega a parte que tu queres, eu fico com a outra”(3). Esta é a atitude de uma pessoa que preza o relacionamento bom, muito mais do que a terra.

Mas se a pessoa cedeu ao desejo do bem material, inferior, da fruição não metafísica, não religiosa, facilmente entra em briga. Porque quando não apreciam aquele bom relacionamento e o viverem juntos para uma esfera mais alta, dividem-se miseravelmente a respeito de ninharias. Seriam capazes até de fazer o seguinte: “Tal ponto não fica nem teu nem meu. Construamos ali um altar, um templo, mas teu não fica!”

Os vínculos na Cristandade medieval eram baseados no amor ao transcendente

Assim, todas as relações humanas de ordem política, social, familiar, econômica são completamente diferentes num mundo onde haja esta boa ordenação. Do ponto de vista humano, formas de governo, estruturas, leis, simplesmente não pegam, na medida em que esse relacionamento superior não exista.

A lealdade, por exemplo, provém propriamente do fato de alguém ter verazmente em relação a outrem essa disposição de alma. Tê-la e saber torná-la notória, isto é a lealdade que permite funcionarem direito vínculos como os da sociedade feudal.

O ponto de partida está em que as almas não sejam apegadas às coisas de modo fruitivo e amem o transcendente.

Esse amor ao transcendente, a Cristandade medieval conheceu a fundo, embora não soubesse explicar. Todos os vínculos da ordem social eram vínculos de amor baseados nesse vínculo das almas pelo lado superior.

(Continua no próximo número)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/3/1982)

Revista Dr Plinio 217 (Abril de 2016)

 

 

1) Jesuíta e exegeta flamengo (* 1567 – † 1637).

2) Relativo a “transesfera”: termo criado por Dr. Plinio para significar que, acima das realidades visíveis, existem as invisíveis. As primeiras constituem a esfera, ou seja, o universo material; e as invisíveis, a transesfera.

3) Cf. Gn 13, 8-9.

Santidade e personalidade – I

A Doutrina Católica visa que cada homem aprimore sua personalidade, caminhando rumo à santidade. Assim são criadas as condições para a constituição de uma civilização perfeita.

Todos ouviram falar vagamente, com certeza, do panteísmo, e da diferença entre este e o ateísmo. E depois, sobre a crença em Deus.

Noção de pessoa

De acordo com o ensinamento da Igreja infalível, existe um só Deus em três Pessoas realmente distintas. Mas esse Deus é pessoal. O que é uma pessoa? Chama-se “pessoa” um ser que pensa a respeito de si mesmo e forma, portanto, um circuito fechado. Um bicho, uma planta, uma pedra não são pessoas, e sim indivíduos. Por quê? Porque eles não pensam, não têm consciência de que existem, de um mundo interno e de um mundo externo. Nós, pelo contrário, temos essa consciência, e por causa disso somos pessoas.

Deus é Pessoa porque Ele tem consciência de Si próprio, daquilo que Ele criou. E de tal maneira é Pessoa que, na sua unidade — porque é um só Deus —, há três Pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. O que constitui o mistério da Santíssima Trindade.

Tendo criado o universo, o qual, sendo necessariamente um reflexo d’Ele, Deus quereria refletir no universo o fato de que Ele é Pessoa. E, portanto, haveria de criar o universo constituído por pessoas; e por isso, criou os anjos e os homens, que são os elementos essenciais do universo. Os animais, as plantas e os minerais estão a serviço do homem, e são para o universo mais ou menos como a franja é para o tapete. Ninguém iria pôr em casa um tapete só feito de franja. Não seria tapete. Pelo contrário, há tapetes muito finos que não têm franja. A franja do tapete é uma coisa que faz parte dele, mas não é de nenhum modo a sua essência.

Assim também os animais, as plantas e os minerais são como as franjas do universo. Deus criou o universo para as pessoas, que são os anjos e os homens. E é em cada uma dessas pessoas que Deus encontra a sua imagem.

Com essa noção, compreende-se fazer parte da Doutrina Católica que cada pessoa se personifique cada vez mais. Quer dizer, Deus criou cada um de nós com determinadas características, as quais são agrupadas em torno daquilo que nós chamamos a “luz primordial”. Se a pessoa corresponde à graça, de fato se santifica, a sua personalidade toma um realce extraordinário, e tudo quanto ela tem de bom e característico fica ultra-característico. Tudo o que ela possui de mau é posto de lado.

Deus é eminentemente personificante

Em qualquer santo isso é ultra-característico. Todos são muito parecidos entre si, mas ao mesmo tempo enormemente diversos uns dos outros. O que São Paulo prefigurou de modo magnífico, dizendo: “Stella differt stella”(1).

Olhem para o céu onde há uma porção de estrelas. Uma criança diria que são iguais. Mas na realidade nestas miríades de estrelas não há nenhuma igual à outra. Assim são os homens.

Mais ainda, todos os homens que houve, há e haverá no plano de Deus formam uma coleção. E essa coleção deve de algum modo, no seu conjunto, espelhar o que o Criador é no seu conjunto. Quer dizer, assim como Deus é imenso, infinito, e tem todas as qualidades possíveis, isto se reproduz no conjunto dos homens. Cada um com sua tônica, tomando essas tônicas no conjunto se obtém uma espécie de mapa de Deus, de conjunto constituído por Deus. De maneira que nós não temos consciência, mas somos peças de uma coleção; peças super-individuais, peças pessoais de uma coleção, e cada um de nós, se corresponder à sua luz primordial, é de um jeito que faz parte da coleção de Deus. E para que esta tenha toda beleza, todo colorido, todo vigor, é necessário que cada uma dessas peças possua toda a sua personalidade. Deus é eminentemente personificante. Quer dizer, Ele dá à pessoa a sua personalidade. Por quê? Porque Ele é Pessoa.

Um extremo oposto disso é o panteísmo. O panteísmo sustenta que há um deus, mas esse deus não é pessoa, é um ente sem pensamento, sem conhecimento de si próprio; que vive, portanto, no eterno sono do bicho, da planta e da pedra. Quer dizer, não conhece nem entende nada, e que todos os seres que existem saíram desse deus, como moléculas saem de um determinado corpo.

A Doutrina Católica ensina o contrário: nós não saímos de Deus; fomos criados por Deus.

Mas, para o panteísmo, ser uma pessoa é uma desgraça; porque para ser uma pessoa é preciso sofrer, e sofrer é uma desgraça. Então, a finalidade da religião é que a pessoa vá se preparando para, morrendo, desaparecer, fundir-se de novo nesse ser sem raciocínio, sem consistência pessoal, que é deus.

Assim, dizem os panteístas, deus é a natureza. O que querem dizer com isto? Que deus é uma força a qual está presente em tudo, e que não tem consciência de si. Se quiserem, deus é a vida. A vida está nos presentes neste auditório, está em mim, nos bichos, nas plantas. A vida não tem consciência de si, nem é uma só vida. O panteísmo apresenta isso como um só fluido presente em todo mundo. Este fluido, esta vida, tem como objetivo despersonificar, liquidar as pessoas, para elas se prepararem a sumir quando elas morrerem. Desaparecerem dentro deste grande conjunto sem pensamento que é chamado “deus”.

Civilização cristã e cortesia

Daí decorre uma ideia da civilização católica, e outra ideia da civilização pagã, panteísta. Para a civilização católica trata-se de, nessa vida, a pessoa se personificar cada vez mais e depois adorar, no Céu, as três Pessoas da Santíssima Trindade. Para o panteísta trata-se de diluir a personalidade.

A civilização católica faz da vida, sobretudo, uma relação de pessoa para pessoa, e concebe a formação de maneira que cada pessoa é ela mesma e depois respeite a personalidade do outro, sinta as afinidades e as diferenças. Tenha cortesia.

O que é a cortesia? É a perfeita afinidade de pessoas distintas umas das outras. Há então um abismo que separa uma pessoa da outra. Eu sou eu, sou um circuito fechado em mim. Cada um dos que aqui se encontram é um circuito fechado em si. De outro lado, nós temos relações, porque somos todos homens.

A cortesia é a perfeita relação que passa por cima deste abismo existente de homem para homem. A força que liga este abismo chama-se amor fraterno católico. A cortesia é o laço cheio de respeito, de distinção, de afeto que prende as pessoas diferentes e as coloca numa relação, como notas de uma música. Dir-se-ia que as notas de uma música estão em estado de cortesia umas com as outras.

Imaginem uma pessoa irrefletida que, por exemplo, passa diante de um piano que está com a tampa aberta, escorrega e se apoia sobre o piano para não cair; sai um som horroroso parecido com uma descortesia. Por quê? É que não há harmonia.

A cortesia é a musicalidade das relações humanas. Mas nessa musicalidade cada homem constitui sua personalidade apoiado pelo outro, e todos crescem, todos brilham, cada um com a luz de sua personalidade própria.

Daí partem inúmeras consequências. Uma delas é que, na civilização medieval, a lei tomava em linha de conta direitos e deveres, o que a lei contemporânea não toma mais em consideração.

Por exemplo, o dever entre benfeitor e beneficiado é de gratidão. Na lei de hoje quase não há resquícios desse dever. Na lei da Idade Média o dever de gratidão era enorme. Daí nasceu o feudalismo, que é uma concatenação de gratidões. O rei dava terras a um suserano, que ficava vassalo do rei. O suserano concedia terras ao nobre menor, o qual se tornava vassalo desse suserano. Esse nobre menor dava terras a um plebeu, que ficava vassalo desse nobre menor. Cada um que deu ficava obrigado à proteção daquele que tinha recebido, para tudo. E cada um que recebeu ficava obrigado a obedecer e a apoiar aquele que tinha sido seu benfeitor. E esta era a concatenação das relações pessoais.

O nobre e o burguês, na Idade Média e no “Ancien Régime”

Na Idade Média, os direitos eram mais sobre as pessoas do que sobre as coisas. Havia direito sobre as coisas também, mas o direito sobre as pessoas se considerava muito mais do que o direito sobre as coisas.

Querem ver um exemplo curioso disso? Na Idade Média o que era mais: um riquíssimo burguês, ou um nobre, senhor de um castelinho com uma aldeia? Era o nobre. Mas o burguês não era muito mais rico, mais poderoso? A resposta que um medieval daria era é a seguinte: “Não vem ao caso. O nobre governa pessoas; o burguês governa matéria, governa ouro. É muito mais governar homens do que ouro. De maneira que é uma riqueza metafísica maior ser senhor de uma pequena aldeia do que dono de uma grande fortuna”.

Não sei se percebem o respeito ao homem que entra dentro disso. E por essa razão se, por exemplo, entrasse numa cidade um senhor feudal num cavalinho rapado, vestido ele mesmo meio apertadamente, porque suas terras produziam pouco, com um escudeiro que ia a pé, porque não tinha cavalo; o senhor portando uma espada com o forro meio gasto, e um chapéu com uma pluma que já tomou muita chuva…

Passando ele diante de um burguês, médio, vestido de veludo, usando um chapéu magnífico com pedras preciosas, e não uma pluma, mas uma cauda de pássaro no chapéu, o burguês se descobria, dando um passo à frente, e o nobre correspondia amavelmente, mas de cima.

Alguém diria: “Incompreensível, orgulho”. Não. É o contrário. O nobre afirmava aí o maior valor dos seus vassalos, porque eram homens, sobre o ouro do burguês. Isto não se encontra em nenhum manual de História, mas é o modo do medieval conceber as relações.

Terminada a Idade Média, o feudalismo foi acabando, mas muitos restos dele ficaram na sociedade do “Ancien Régime”(2). A sociedade se transformou, mas isso ainda existia.

Considerem, por exemplo, um nobre do “Ancien Régime” e um burguês riquíssimo. Por que aquele era nobre? Porque ele era de uma classe social que tinha obrigação de ir à guerra e derramar o sangue pelo rei. Enquanto o burguês não podia ser convocado para o serviço militar; fazia serviço militar se quisesse.

O nobre tinha essa excelência de alma de aceitar ser da classe que é obrigada a ir morrer pela pátria, ainda que não quisesse — quer dizer, era crime não ir. Como a dedicação vale mais do que o ouro, porque a dedicação é uma qualidade do homem, e o homem vale mais do que o metal, por causa disso o nobre valia mais do que o plebeu. Não sei se estão percebendo a ação contínua da pessoa humana.

“E se um plebeu ou um burguês quisesse ir para a guerra?” Ah! Se fosse para a guerra e se tornasse um herói era frequentemente elevado ao cargo, à condição de nobre. Mas aí ele se engajava num outro circuito. Acabou a vida cômoda, terminaram os verões despreocupados e com passeio, acabou a agradável contagem do dinheiro por detrás dos guichês da loja. Porque, habitualmente, chegando a primavera e o verão, começava a guerra e os nobres todos tinham que partir. Se o plebeu ficasse nobre, ele tinha que ir para a guerra também.

Compreende-se que o número de candidatos para nobre era bem menor, do que se podia imaginar à primeira vista.

Como se explica isto? É a prevalência do homem sobre a matéria, das qualidades humanas sobre as qualidades materiais.

O burguês tinha uma vida muito mais confortável do que o nobre. Tomem gravuras daquele tempo, representando o interior das casas burguesas: são residências agradáveis, aconchegadas, confortáveis, com tudo abundante, etc., feitas para as pessoas se regalarem.

Observem as gravuras representando os palácios: são lindos, de alto luxo, não são cômodos. Basta ver os móveis que restaram. Se um indivíduo sentar-se irrefletidamente numa daquelas cadeiras, ele cai com a cadeira. Aqueles móveis exigem que a pessoa esteja continuamente numa atitude de grande dignidade, de grande distinção. Aquele modo de falar todo trabalhado exige uma atenção contínua na língua que se usa, nas fórmulas de cortesia, nas etiquetas, para estar à altura da situação. Que cultura era preciso ter para sustentar aquelas grandes conversas…

Para considerar simplesmente isto: como entrava uma jovem nobre em sociedade? 

(Continua no próximo número)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/6/1974)

Revista Dr Plinio 217 (Abril de 2016)

 

1) Do latim: Há diferença de estrela para estrela (1Cor 15,41).

2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

A mais fulgurante das estrelas

Por que Nossa Senhora é simbolizada por uma estrela? Porque é durante a noite que cintilam as estrelas, e esta vida é para o católico uma noite, um vale de lágrimas, uma época de provação, de perigo e de apreensões.

Na eternidade teremos o dia, porém na vida terrena temos o escuro da madrugada. E nesta noite existe uma estrela que nos guia, que é a consolação de quem caminha nas trevas, olhando para o céu: Maria Santíssima, a mais fulgurante de todas as estrelas!

Plinio Corrêa de Oliveira, 24/8/1965

Uma devoção da cristandade…

Nosso Senhor Jesus Cristo morreu numa sexta-feira e ressuscitou num domingo. Ambos os dias foram-Lhe especialmente consagrados, de modo que, semanalmente, relembram a Paixão e a Ressurreição do Senhor. Porém, entre estes dias há outro: o sábado. Como faria a civilização cristã para solenizar este dia posto entre duas datas tão sublimes?

 

Na Idade Média, sob o impulso dos monges cluniacenses, o sábado passou a ser consagrado a Nossa Senhora. Mas, por que razão a piedade católica instituiu esse costume?

A Ressurreição

Embora os Apóstolos tivessem um misterioso instinto de que a história de Nosso Senhor não podia estar concluída e que a última palavra ainda não fora dita — caso contrário haveriam se dispersado —, eles ainda não tinham atinado com a ideia da Ressurreição.

Não concebiam eles que Quem ressuscitara Lázaro — fato que eles puderam comprovar —, ressuscitar-se-ia a Si próprio; não imaginavam que Nosso Senhor aceitaria o desafio lançado pelo mau ladrão crucificado a seu lado: “Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo!”(1). Cristo fez muito mais do que descer da Cruz e curar-se a Si próprio: Ele consentiu em morrer para depois ressuscitar-Se.

De fato, a Ressurreição é algo tão extraordinário e miraculoso, que o espírito humano é propenso a sequer imaginá-la. Pois, se um vivo ressuscitar um morto é incomum, quanto mais o é um morto voltar à vida por suas próprias forças, sair dos abismos da morte e dizer a seu corpo: “Levanta-te!”… Esta é uma espécie de vitória dentro da vitória, de esplendor dentro do esplendor, que o espírito humano não pode sequer imaginar.

A Fé da Santíssima Virgem sustentou o mundo

Porém, havia alguém que possuía plena certeza na Ressurreição de Jesus: Maria!

No sábado que precedeu a Ressurreição de Nosso Senhor, somente Nossa Senhora, em toda a face da Terra, teve uma Fé completa e sem sombra de dúvida na Ressurreição. Ela possuía uma certeza absoluta, uma expectativa imensamente dolorida por causa do pecado que havia sido cometido, mas imensamente calma, com a certeza da vitória que se aproximava.

A cada minuto que passava, de algum modo a espada da saudade e da dor penetrava ainda mais seu Coração Imaculado. Mas, de outro lado, havia a certeza de uma grande alegria da vitória que se aproximava. Esta concepção inundava-A de consolação e gáudio.

Maria Santíssima, nesta ocasião, representou a Fé da Santa Igreja e, por assim dizer, sustentou o mundo, dando continuidade às promessas evangélicas, pois, se não houvesse Fé sobre a face da Terra, a Providência teria encerrado a História.

Maria foi a Arca da Esperança dos séculos futuros. Ela teve em Si, como numa semente, toda a grandeza que a Igreja haveria de desenvolver ao longo dos séculos, todas as promessas do Antigo Testamento e todas as realizações do Novo; tudo isto viveu dentro da alma de Nossa Senhora.

Podemos até nos perguntar se este episódio não foi mais bonito do que quando a Santíssima Virgem trazia o Messias em seu seio. Numa ocasião Ela gestava o Messias e carregava dentro de Si a salvação do mundo inteiro; noutra, tinha Ela em Si a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, portanto, o Corpo Místico de Cristo.

É à noite que é belo acreditar na luz

Na obra Chanteclair, de Edmond Rostand, há uma linda frase: “É à noite que é belo acreditar na luz”.

Que mérito há em acreditar na luz ao meio-dia? Mas, acreditar na luz à meia-noite, ou mais ainda, às três horas da manhã, quando até a própria meia-noite já vai longe, tem-se a impressão de que o curso das coisas nos afundou nas trevas definitivamente; aí é que é belo acreditar na luz.

Ora, Nossa Senhora acreditou na luz durante a terrível meia-noite da morte de seu Filho. Apesar de presenciá-Lo “rompu, brisé, anéanti”(2), Ela não teve dúvida nenhuma.

Quando Jesus morreu e Nossa Senhora teve seu divino cadáver no colo, Ela fez um tranquilíssimo ato de Fé, dizendo: “Apesar destas chagas e desta morte estraçalhante, Ele ressuscitará! Eu creio porque Ele prometeu!”

Este foi, sem dúvida, um dos mais belos momentos da vida d’Ela.

A fidelidade de Maria fez-Lhe merecer, até o fim do mundo, ser lembrada especialmente aos sábados

Compreende-se assim, com que tato a Igreja escolheu para festejar Nossa Senhora este dia que lembra exatamente a hora trágica da dúvida e do abandono de todos.

No sábado, Jesus estava na sepultura, cheio de perfumes e de aromas, envolto no sudário. O sepulcro estava selado por uma enorme lápide e guardado por soldados. Para todos estava tudo acabado, exceto na alma d’Ela, onde uma tocha de Fé e de convicção ardia com a certeza de que Ele ressuscitaria.

Este é o Sábado Santo, dia especialmente consagrado a Nossa Senhora.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/11/1971)

 

1) Lc. 23, 39.
2) Roto, quebrado e aniquilado.