Síntese de maravilhas

Na história da cristandade ocidental, cada nação tem seu papel único e incomparável, concorrendo para a grandiosa soma de valores morais, de riquezas culturais e de belezas terrenas que caracterizam a civilização nascida sob a égide da Santa Igreja Católica.

Entretanto, não há quem negue que, neste imenso concerto de tradições e esplendores, um povo sobressai pelo requinte ao qual levou as qualidades de seu espírito e as maravilhas por ele engendradas. Estamos falando do povo francês.

Claro que o mundo seria terrivelmente monótono e enfadonho se nele existisse apenas a França. Mais ainda: a França mesma empalideceria por falta de inspiração. Ela  como que haure o melhor da seiva dos países vizinhos para constituir essa espécie de miscelânea super quintessenciada que é a nação gaulesa. Ela vive dos arredores, do que absorve deles, é a corola dessa flor cujas pétalas são a Alemanha, a Itália, a Espanha, a Inglaterra…

A França é assim a rainha dos amálgamas, que teve seu espírito elaborado desde os remotos tempos de Cluny, a célebre abadia beneditina de onde partiram as primeiras luzes da cristandade medieval. Esse espírito, essa conjunção harmônica das qualidades dos outros povos, resultante numa síntese de perfeições que os demais não possuem, é uma das maiores glórias francesas. Conjunto que não é cópia nem repetição, mas um auge de originalidade que reluz em diversas e magníficas facetas.

Tome-se, por exemplo, a culinária francesa. Cada prato, até o mais simples, é um poema, e cada porção precisa ser entendida e filosofada. Um conhecedor o degusta e presta  atenção nos sucessivos sabores que dele se desenrolam como um filme, nas várias etapas da consumação. Isso exige uma tal observação que não se pode nem comer muito, nem depressa. Só se deve fazer uma coisa, que aumenta ainda mais o sabor do prato: é prová-lo enquanto se conversa com um francês…

Pois, além de mestres na culinária, são-no igualmente na arte da conversação. Eles têm a prosa condimentada para as mais variadas refeições e para cada parte delas: ora leves e graciosas; ora salgadas, ardilosas, com ditos chispantes que saem entre a fruta e o queijo, já no fim do repasto.

Ora, ainda, altamente intelectualizada, sem perder a leveza e a graça, coroando a comida, que é sempre equilibrada, sempre um convite à temperança e à reflexão. Pratos que são verdadeiras obras-primas, para a vista e para o paladar.

Suavidade e elegância que se repetem em todo o “savoir-vivre” francês, no de hoje como no de outrora, notadamente naquele período tão brilhante da história desse povo que foi o “Ancien Régime”, nos séculos XVII e XVIII. A França era então a maior potência militar da Europa, e seu exército, o mais vitorioso e respeitado.

Pois bem, um fidalgo militar que havia 15 dias estava participando de cargas de cavalaria em algum campo de batalha, e dali a outros 15 dias enfrentaria novos combates, entre duas guerras retornava à corte e ia dançar em Versalhes uma pavana ou um minueto…

Era a hora da gentileza, da graça, da amabilidade, da reverência profunda, dos gestos distintos que aprendiam desde pequenos. E se acostumavam a dançar para adquirir boas maneiras, porque a dança era calculada de tal forma que, quando o homem a aprendesse, saberia fazer com categoria todos os atos da vida.

Desse “savoir-vivre” destilou-se também a brilhante diplomacia francesa, tão rica em charmes, gentilezas, formas de organizar recepções, e até mesmo em modos de obter informações perto dos quais a espionagem comum parece pífia. Mais do que métodos para descobrir segredos, têm eles um superior “olhômetro”, uma percepção especial que lhes permite captar as finuras e as segundas intenções de documentos ou de conversas sobre os interesses da sua nação. É outro efeito do gênio francês, que alcança com sobriedade de meios e esplendor de resultados, na graça e na elegância, o que os outros obtêm por sistemas diversos. Quer dizer, é leve, delicado, eficiente. E tudo termina  uma pirueta e numa vitória.

Enquanto para alguns de seus vizinhos o ápice da atitude está na discrição e na valorização do silêncio, para o estilo francês mais vale se mostrar. É um povo feito de  expansão,de manifestação de si próprio. Quando chega a algum lugar, o francês não se acanha, não se intimida, fala e ri, procura as pessoas, cumprimenta-as, e se compraz em mexer com todos.

Se assim não procedesse, julgaria estar sendo deselegante, faltando com o dever da sociabilidade. Esse mesmo desejo de se manifestar aparece nas suas paisagens e  monumentos. Para o francês, belos são os grandes panoramas. E por isso constroem tantos e tão esplêndidos cenários. São vastos parques, com imensos canteiros, fontes e cascatas, extensos jardins, castelos espetaculares, feéricos, que se desdobram formando arquiteturas proporcionadas e elegantes. É um Versalhes, com suas alamedas e jatos d’água, imponente e majestoso. Versalhes não foi feito para ser visto nas brumas em que, por exemplo, os edifícios ingleses dão toda a sua beleza. Ele tem de ser contemplado resplandecente, cintilando à plena luz do sol…

Assim é o espírito francês, soma harmônica das qualidades de todos os outros povos, síntese de maravilhas, precioso fruto da civilização cristã.

Plinio Corrêa de Oliveira

De requinte em requinte

Sendo um estilo artístico expressão da mentalidade de um povo ou de uma área de civilização em determinada época, pode ele sofrer variações, ser copiado ou substituído por outro? Dr. Plinio aborda estas e outras interessantes questões em torno do tema “arte”.

 

Se houvesse uma arte moderna, contemporânea, boa, teria propósito restaurar as coisas coloniais? Não é legítimo que, artisticamente falando, as coisas evoluam e que cada época tenha o estilo que lhe é próprio? Não é isso uma coisa adequada, conveniente? Nós não vemos cada país ter seu estilo próprio? Não notamos como, na civilização ocidental, o gótico foi substituído pela arte da Renascença e depois por outras formas artísticas sucessivas? Então, se cada época criou um estilo próprio, por que haveremos de rejeitar um estilo suposto bom de nossa própria época? Isso pareceria ser uma coisa antinatural, um conservantismo levado ao excesso.

Distinção entre os estilos e os seus matizes

Imaginemos uma construtora que fizesse casas de estilo antigo, bonitas, confortáveis, porém, que se prestassem à seguinte crítica de caráter artístico e não funcional: são cópias, em nossos dias, de um estilo que não é de hoje. Portanto, um estilo morto. Ora, copiar é intrinsecamente uma falta de originalidade. É até uma coisa artificial copiar algo que morreu. E nesse sentido, essa ação conservadora é um mal.

Parece-me que é preciso fazer uma distinção entre o estilo e os matizes dentro do mesmo estilo. Quer dizer, o estilo pode continuar igual a si mesmo, passando por matizes, por variantes. Mas ele é sempre o mesmo estilo. Então, a pergunta se desdobra: Primeiro, o estilo deve variar? Em segundo lugar, ele deve mudar em seus matizes internos? Em terceiro lugar, um povo, uma civilização devem variar de estilo?

Seria mais interessante tratar da questão da variação de estilo para depois abordar a mudança de matizes, que é um assunto menos importante e que se resolve dentro da questão da variação de estilo.

Todo estilo é o produto de um estado de espírito. E eu chamo estado de espírito um conjunto de verdades fundamentais ou de princípios — às vezes não verdadeiros —, a partir dos quais uma determinada civilização vê o homem e o universo, e o estado temperamental com que a civilização adota essa vivência.

Mentalidade e estilo

Tomemos, por exemplo, o estilo egípcio. É evidente que ele comporta uns tantos princípios que não são puramente artísticos, mas filosóficos; e filosóficos do mais alto porte porque metafísicos.

É evidente também que, a partir desses princípios metafísicos, os egípcios elaboraram uma visão do universo, de toda a realidade material, e modelaram essa visão de acordo com aqueles princípios metafísicos.

As múmias, os desenhos, as esculturas são compostos de figuras hieráticas, mas muitas delas não o são: representam o egípcio na vida quotidiana. E há qualquer coisa de uma placidez profunda, meditativa e ativa na coisa egípcia, incubada de mistério, que constitui propriamente a mentalidade do egípcio. Ora, o estilo egípcio foi uma expressão dessa mentalidade.

E o estilo medieval, o gótico, foi igualmente uma expressão da mentalidade católica.

Então, se o estilo é a consequência necessária de uma mentalidade, a questão sobre se o estilo deve ser mudado importa em perguntar se precisa ser mudada a mentalidade.

Mudança de matizes

Se fôssemos apelar para o exemplo da História, seríamos levados a dizer que todos os grandes povos que surgem e definem a sua mentalidade, de certo modo, constituem um estilo e não saem mais dele, e esse estilo não decai, não degenera. Ele continua a produzir obras boas e dignas indefinidamente, até que um fator extrínseco derruba uma determinada ordem de coisas.

Por exemplo, o estilo chinês nasceu desde quando? Com variantes, é evidente, formou-se ao longo de quantos séculos? Nós não podemos dizer que o estilo chinês esteja moribundo. Se os ocidentais não tivessem entrado na China e derrubado certas barreiras culturais, não tivessem feito imposições, o estilo chinês teria continuado indefinidamente.

E as obras chinesas elaboradas, mesmo no século XIX, de modo ainda artesanal não eram dominadas pela preocupação de produzir para trazer dinheiro, e eram de muito boa cultura e de muito bom quilate. Não se pode falar de uma arte chinesa de decadência. Isso se pode dizer do Egito, de Roma, da Grécia, da Pérsia, dos assírios, enfim de todos os povos antigos. Então, a conclusão seria a seguinte: é preciso não mudar de mentalidade e, portanto, não variar de estilo. Um povo elabora esse estilo, fica com este estilo até o fim.

Contudo, toda mentalidade, mesmo quando continua igual a si mesma, muda de matizes. Um homem, conforme o estado de espírito, o dia, as circunstâncias, varia de matizes. Então, poder-se-ia dizer que um estilo pode ser matizado, mas não propriamente mudar. Matizar-se sim, mudar fundamentalmente não.

Essa conclusão de que, sendo um estilo o produto de uma mentalidade que não deve variar nunca, consequentemente ele jamais deve mudar dentro de um mesmo povo, por mais antipática que seja a certos feitios temperamentais, e por mais evidente que possa parecer a certos espíritos lógicos, de fato não me parece inteiramente acertada, e tenho reservas sérias quanto a ela.

O progresso só surgiu com a Civilização Católica

As reservas procedem do seguinte: essa imobilidade dos estilos pagãos, dos estilos antigos, resulta, é verdade, de uma mentalidade muito definida, amadurecida. Mas há outro aspecto a ser considerado. Todos os povos antigos estavam sujeitos a uma lei, que poderíamos chamar “lei da limitação do progresso”. Quer dizer, todos eles chegavam a certo auge, até relativamente depressa, mas depois paravam e não progrediam mais. E não se pode dizer que um povo antigo tenha progredido mais do que outro, por exemplo, os romanos em relação aos egípcios. Aqueles eram muito superiores aos egípcios em muitas coisas. Mas em outras os egípcios eram muito superiores aos romanos.

Não havia o que nós chamamos de progresso, quer dizer, um povo que aparece, incorpora a si todas as coisas boas de uma civilização antecedente e vai indo para a frente.

O progresso propriamente dito apareceu com a Civilização Católica. Foi uma mobilidade, uma elasticidade, uma vitalidade que a sociedade humana tomou batizando-se, e que lhe deu exatamente a possibilidade de modificação que nós notamos na melhor parte da História católica.

Os estilos devem suceder-se à maneira de requinte

A elaboração, a partir do estilo romano, do românico foi uma mudança. Representou uma mudança de caráter contrarrevolucionário — se podemos usar assim esta palavra — porque o estilo românico é muito mais sacral, mais hierárquico e mais simpático à alma verdadeiramente católica, do que o estilo romano. Mais ainda: do românico se destilou, pelo bafejo da Igreja, o gótico, estilo já então profundamente diferente do românico. De maneira que a vitalidade da Igreja produziu uma mudança de estilo.

Por conseguinte, deveríamos dizer que não se devem copiar os estilos, e sim modificá-los.

É bem verdade, portanto, que os estilos devem suceder-se uns aos outros. Mas esse suceder-se não pode ser à maneira do estilo moderno em relação ao colonial, ou outro estilo, com uma ruptura e uma aceitação brutal do contrário, e nem pode ser uma mera diversificação. Porque também a diferença de estilo não é só para variar, mas deve ser um particular progresso no requintar o que um estilo, a mentalidade de um povo têm de bom; fazem-se coisas que são diferentes, mas à maneira de requinte, como o gótico é o requinte do românico.

Portanto, a sucessão deve ser feita de requinte em requinte, que é a linha de progresso e de variedade do estilo, posta em algo fundamentalmente conservador no essencial, enquanto é no acessório muito livre.

A resposta à pergunta inicial é a seguinte: ficar no mero colonial, em princípio e em condições normais, seria um mal. Deixá-lo para fazer um estilo simplesmente diferente, seria igualmente um mal, porque teria sido necessário requintá-lo. Isso me parece inteiramente lógico.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/5/1967)

Fonte de nossa coragem

Ela possuía uma confiança heroica na Providência. Desse no que desse, um certo lúmen da vida dela a acompanharia até o fim. No fundo, não é só dizer que não acontecerá nada de ruim; mas por pior que seja, tudo se arranjará! Essa era a posição dela.

Plinio Corrêa de Oliveira (Conferência de 2/5/1981)

Altivez, segurança, sobranceria

A primeira impressão que se tem diante do Castelo de Chinon, na França, nos vem da consideração do panorama em que ele se situa. Natureza agradável, e as plácidas águas de um rio nas quais o castelo se espelha. Águas que não assustam e correm, amistosas e doces, atravessando a pequena cidade, rumo ao oceano.

A localidade, que tem o mesmo nome do castelo, vive confortavelmente, entre as ruínas daquelas muralhas e a beleza do rio Levienne. Talvez, até há pouco, olhando com devoção para seu próprio passado, na moderada, mediana mas real distinção de seu modo de ser e de viver, despreocupada com o resto do mundo.

A massa impressionante do castelo, ou do que dele resistiu ao tempo e às guerras europeias, sobressai, dando-nos ideia do que terá sido nos seus dias de glória, quando, numa de suas salas, a pequena pastora de Domrémy, Santa Joana d’Arc, reconheceu o Delfim de França e o convenceu de se deixar sagrar e coroar como Rei dos franceses. Vendo-o hoje, alguém poderia duvidar de sua beleza: muros caídos, janelas sem madeirames nem molduras góticas, pedras desgastadas e quebradas, torres incompletas.
Entretanto, qualquer coisa nesses pedaços de edifício nos faz vê-lo como muito bonito. De onde lhe vem esse esplendor?

De uma altivez, de uma segurança de si mesmo, de uma sobranceria no olhar de cima para baixo o mundo à sua volta que, na verdade, nos encanta. Dissemos, de propósito, altivez e não orgulho. Pois não se pode afirmar que o castelo exprima a mentalidade de alguém que “serra de cima”, mas sim a de algo que tende para o mais alto.

Tem-se a impressão de que esse castelo foi construído com um certo dinamismo pelo qual ele se ergueu como uma pessoa viva que, com toda a sua estatura, tende para o mais alto possível. No fundo, tende para o Céu. As almas daqueles que o levantaram, certamente estavam imbuídas desse anelo das coisas celestiais, do anseio de reproduzir na Terra algo do paraíso. Elas procuraram traduzir nas pedras, a sua elevação, dignidade e nobreza de pessoas católicas, amorosas da hierarquia do que lhes estavam acima como da dos seus inferiores.

Em suma, é a altivez e a sobranceria de cavaleiro, de herói católico, de cruzado. Nessas pedras estão expressos o sacrifício, o risco, a fé, o ideal e a consciência do valor de todas essas nobres atitudes de alma.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 9/8/1989)

Imponente e majestoso, mas sorridente e afável

No Castelo de Versailles há um contraste muito inteligente entre o imponente, majestoso, sério, forte, coerente, e o risonho, afável, amável, aprazível, convidando a pessoa que o contempla a ficar à vontade junto de tanta grandeza.

 

Na paisagem dentro da qual se insere a fachada do Castelo de Versailles que dá para os jardins, veem-se quatro elementos distintos. Em primeiro lugar, o próprio castelo, depois o lago ou tanque, os jardins e, por fim, o céu com as nuvens. Cada uma dessas coisas, dentro da perspectiva francesa, merece ser mencionada.

A arte que não tem mistérios manifesta a mediocridade

É interessante notar como tudo isso, para olhar de um relance só, é simples e completo. Porque ao se contemplar esse panorama gosta-se dele diretamente. É bonito, agradável e não oferece mistérios.

Aliás, uma característica da arte desse tempo, que por um lado manifesta a mediocridade e, por outro, a grandeza – mas onde o aspecto de mediocridade é enormemente maior do que o de grandeza –, é precisamente não ter mistérios; tudo está explicado.

Nota-se nos jardins uma riqueza de coloridos, de formas e de contornos extraordinária. Sucedem-se linhas sinuosas ora compostas de folhagem, ora de grama, ora ainda de flores em abundância, onde prepondera o formato arredondado.

O lago, com um bordo de mármore, tem no centro um chafariz. Nos ângulos há também pequenos esguichos, de maneira que, quando soltam as águas, forma-se uma espécie de imensa catedral  aquática com arcos e volutas; a água jorra de um lado e de outro produzindo uma fantasia de movimentos, todos muito harmoniosos e sóbrios, dentro da sua pluralidade, e constituindo uma  espécie de castelo de água em frente ao castelo de pedra.

O castelo propriamente dito é de uma cor meio indefinível, um pouco parecida com âmbar, um material um tanto dado a creme, tão discreta que quem olha acha bonita, mas não pensa diretamente na cor do castelo; a ideia da cor passa meio desapercebida.

O edifício apresenta em relação ao jardim um contraste flagrante porque, enquanto o jardim é todo feito de sinuosidade  e policromias, o palácio é composto de ângulos, linhas retas, onde há quase o excesso do duro contrastando com o quase excessivo do sinuoso. Exatamente ao se tocarem, esses quase excessos descansam a vista e dão uma espécie de harmonia.

As nuvens compensam o que falta ao castelo

Há, portanto, um contraste muito inteligente, bem pensado, entre o imponente, majestoso, sério, forte, coerente – de uma coerência cartesiana e quase hirta – e o risonho, afável, amável, aprazível, convidando a ficar à vontade junto de tanta grandeza.

A água confere ao panorama uma variedade agradável. Nem tudo é flor, mas também nem tudo é água. Imaginem que isso fosse um aguaceiro; esse castelo, todo hirto e reto, tendo sua hirteza dentro da água: que melancolia! Por outro lado, se não tivesse a água, mas apenas flores, ficava um pouco monótono. A água dá uma nota nova diante de tanta variedade e confere ao todo uma  poesia tão natural, que se tem a impressão de que isso não foi pensado. Para o gosto da época, o suprassumo era fazer algo artificial tão bem elaborado que desse a impressão de ser natural.

O mesmo se dava com as boas maneiras. A elegância deveria ser tão natural que desse a impressão de proceder da natureza humana, sem a necessidade de estudo nenhum. Daí um empenho em  apresentar as coisas de tal jeito, que a elaboração mais requintada não parecia senão uma decorrência suave e natural de todas as coisas.

Por cima de tudo isso, vemos o céu. O fotógrafo apanhou as nuvens num momento muito feliz. Evidentemente, essas nuvens não foram postas aí por Luís XIV, mas creio ter havido uma grande coincidência ou um fotógrafo muito inteligente que soube quais nuvens apanhar, porque elas estão com a configuração exata para adornar a fotografia.

Nota-se aí o gênio francês. Um suíço, por exemplo, preferiria um céu inteiramente azul, quanto mais azul, mais bonito. Isso ficaria bem em outro panorama, aqui não. Essas nuvens compensam o  que falta de mistério.

Inicialmente muito brancas e até luminosas, mas com uma massa um pouco grande, a partir de certo ponto vão se diluindo e escurecendo. Tem-se a impressão de ser algo que sobe e vai se avolumando por cima do castelo, construindo o começo de um drama sobre o castelo risonho e o céu azul. Dir-se-ia serem os primeiros sinais da Revolução Francesa misturados com as últimas  glórias da monarquia.

Tudo quanto é grande, ou tem algo de heroico ou de um pouco trágico, ou perde a sua grandeza. Ao Castelo de Versailles, em alguns dias falta essa nota trágica, heroica, misteriosa. As nuvens compõem isso perfeitamente.

Temos, assim, uma paisagem aparentemente tão simples que se diria que uma criança riscou essa fachada, outra plantou esse jardim e tudo ficou muito bonito por coincidência.

Confronto entre a mentalidade francesa e a norte-americana

Para compreendermos bem a diferença de uma civilização para outra e sabermos fazer o confronto entre essa mentalidade e a norte-americana, por exemplo, tomemos o papel da costura na moda francesa e na moda norte-americana.

Na moda francesa, quanto menos a costura aparecer, mais bonito é. Porque as coisas devem dar a impressão de não modeladas, espontâneas. E quando numa roupa não há remédio senão  aparecer costura, na moda francesa de outros tempos punham-se sobre a costura alamares de ouro e de prata para dar a entender que aquele tecido não tinha sido costurado, mas constituía um pedaço homogêneo da fazenda, no qual com toda a naturalidade o marquês, por exemplo, tinha entrado.

O sapato era de verniz e, quando o homem era nobre, com salto alto e vermelho, fivelas de ouro ou de prata. O ideal era também dar a ideia de que o calçado não tinha costura, de maneira tal que o único lugar onde ela aparecia era atrás, porque era inevitável, e assim mesmo, a menor possível, por onde só uma pessoa com olho agudo percebesse.

O norte-americano transformou a costura numa pretensão a adorno. Então, sapatos em que a costura é feita no peito do pé e ainda se faz um babado e cose por cima para ficar uma sutura  evidente. Nas roupas, bolso postiço por fora numa tentativa de transformar a costura, outrora escondida, num enfeite.

São dois mundos, duas épocas, duas mentalidades. A época simbolizada por Versailles é a da naturalidade diáfana, leve risonha, ultra pensada, e que, depois de chegar à obra-prima de si mesma, apresenta-se com naturalidade e diz: “Eu sou assim”. É a última expressão de elegância, dentro da concepção francesa.

Poder-se-á dizer a respeito dessa concepção tudo quanto se queira; entretanto, ninguém poderá afirmar que ela é medíocre. A meu ver, ela é propriamente extraordinária.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/6/1969)

Confiança especial para cumprir a vocação

Nossa Senhora concede a certas pessoas a vocação especial de lutar pela Santa Igreja e pela Civilização Cristã. Ela as chama para uma via que supõe renúncias, privações, exigindo delas esforços para os quais se sentem fracas; por vezes, na hora da tentação elas cambaleiam e correm o risco de não terem coragem de seguir esse caminho. Mas devem ter a confiança inabalável de que a Santíssima Virgem lhes dará graças especiais para o cumprimento da vocação.

 

A virtude da confiança, como descrevê-la? No que ela consiste, definidamente? Para termos disso uma ideia, valeria a pena entrarmos nos pormenores do problema da vida de um homem.

Providência geral e especial

A Providência Divina é Deus enquanto amoroso para com cada homem, e provendo todo o necessário a fim de que ele realize aquilo para o que foi destinado.

Há homens que estão debaixo da regra comum da Providência, os quais recebem uma intenção de Deus a respeito deles muito genérica. Por exemplo, é intenção de que os homens se casem, com o  próprio trabalho ali mentem suas famílias, tenham uma progênie numerosa que se multiplique e deixe uma descendência vasta sobre a Terra.

Esses são os desígnios divinos sobre o comum dos homens, e que fazem parte da providência geral. Deus guia e auxilia de um modo genérico essas pessoas que Ele ama.

Assim, as chuvas se sucedem ao bom tempo e irrigam, preparam a terra, as plantações se formam, são colhidas, alimentam os homens, estes caminham para os seus trabalhos, os governos administram o trabalho humano, as pessoas dão uma educação cada vez melhor aos seus filhos, há uma cultura cada vez mais aprimorada, os povos progridem e, de um modo geral, a humanidade vai indo para a frente.

Existem certas pessoas sobre as quais Deus tem uma providência especial, ou seja, quer delas uma vida que não é a do comum dos outros homens e deseja que elas realizem uma missão especial. Para essas pessoas,  A Deus dá auxílios também incomuns. A Providência chama-as de um modo especial para o serviço da Santa Igreja em dois ramos distintos: inscrevendo-se nas fileiras sagradas do clero, das ordens religiosas; ou, continuando no estado laical, servindo a Esposa de Cristo por meio de um trabalho prestado à Civilização Cristã, esforçando-se para que a sociedade civil se organize de acordo com a Lei do Evangelho e, por esta forma, colabore com a Igreja para a salvação das almas. Dou um exemplo.

Também o Estado precisa cumprir o primeiro Mandamento

Deus ordenou dois Mandamentos a respeito da família: o sexto e o nono. Diz o sexto Mandamento: “Não pecarás contra a castidade”. E o nono: “Não cobiçarás a mulher do próximo”. Esses dois Mandamentos devem ser cumpridos por todo o mundo, são imperativos; enquanto o homem não se case, ele deve ser casto.

Quando se casa, ele vai praticar não mais a castidade perfeita, mas a castidade segundo o seu estado, que vem a ser a fidelidade matrimonial. Se a sociedade é toda católica, as pessoas não vão procurando praticar o ato impuro antes do casamento, também não se tentam umas às outras.

O marido e a mulher têm horror à infidelidade e são mais resistentes às tentações. As famílias se mantendo, a sociedade toda sendo assim, há poucas tentações para os homens, e as almas, então, se salvam em quantidade. A Civilização Cristã serve de meio para facilitar aos homens o  cumprimento dos Mandamentos. Com isso, ela dá  glória a Deus e ajuda aos homens a irem para o Céu.

Está escrito no primeiro Mandamento da Lei de Deus: “Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o coração”. Este é um preceito que todo homem deve praticar no domínio de sua vida particular, enquanto membro da Igreja. Mas também o Estado está sujeito ao mesmo Mandamento e toda nação é obrigada a servir e amar a Deus de todo o coração.

As cerimônias e solenidades da Igreja são grandes dias do Estado também. Por exemplo, dia 25 de janeiro é festa de São Paulo Apóstolo, patrono da cidade e do Estado de São Paulo. Em um país no qual a Igreja seja oficialmente unida ao Estado, todas as autoridades deveriam ir incorporadas assistir à Missa na catedral. Terminada a celebração, precisaria haver desfile solene de tropas diante das autoridades eclesiásticas e civis, reunidas no mesmo palanque. Seria natural que no dia de “Corpus Christi” o Santíssimo Sacramento desfilasse pelas ruas com as tropas formadas em alas de um lado e de outro, ajoelhadas ou apresentando armas. Por esta forma fica muito mais fácil aos homens darem toda a importância à Religião e, consequentemente, amarem a Deus sobre todas as coisas.

Compreende-se, assim, como a Civilização Cristã é preciosa para a realização dos desígnios de Deus. E Ele pode escolher determinados homens para a missão especial de figurar no mundo, como leigos, servindo a Civilização Cristã sob a inspiração da Igreja Católica. A esses, Deus escolhe e chama especialmente, dizendo: “Meu filho, olha como a sociedade civil está desgarrada! Não queres dedicar-te inteiramente para que ela sirva à salvação e não à perdição das almas?” A Civilização Cristã é fruto desse tipo de apostolado, e nós fomos chamados a fazer essa maravilha de dentro desse horror, de um mundo que caiu onde caiu, e está ao revés de tudo quanto Deus quer.

Como se constitui uma vocação

Se analisarmos como se constituiu essa vocação, notaremos, em quase todos os casos, verificar-se uma pequena história individual. Ora é um menino nascido em um ambiente ruim, cuja alma  anseia por algo melhor, o que o leva a sentir uma fricção, um desagrado em contato com os lados maus desse ambiente. Por vezes ele não sabe explicitar, mas é como se elevassem na sua alma harmonias que a inocência canta no seu interior. Ele experimenta em si algo de mais luminoso, e começa por se sentir incompreendido, com necessidade de migrar para um meio onde as coisas sejam de outra maneira.

Se, ao contrário, ele vive em um ambiente bom, digno, agradável, sereno, que convida à prática da virtude, mesmo assim em sua alma há anseios do maravilhoso e não apenas do suficiente. Ele pensa em combates, riscos e aventuras que não sabe como são, mas tem sede de outra coisa que não seja aquele casulo onde ele nasceu, e ao qual, entretanto, ele quer tão bem.

Como há larvas que em determinado momento se transformam em borboletas, assim também o menino sente que nasceu larva, mas há nele asas se formando e ele quer voar. Eis o início do chamado de Nossa Senhora, uma vocação, porque era a graça de Deus que punha na alma desse menino aqueles anseios que o levavam a procurar a Igreja, a Civilização Cristã.

Esses fatos são, mais ou menos explicitamente, passos da alma para conhecer mais de perto a Nosso Senhor Jesus Cristo e sua Mãe Santíssima, amá-Los e servi-Los.

Ora, ensina a Igreja Católica que ninguém é capaz de dar um passo em direção a Deus sem o auxílio sobrenatural da graça. Sem essa ajuda o homem não pode sequer dizer de um modo amoroso os nomes de Jesus e Maria.

Então, conclui-se que a graça, pondo na alma aquele desejo, chamou. “Vocare”, em latim, é chamar. Vocação é chamado. Não se trata, portanto, de uma fantasia, mas é uma questão de Fé.

Necessidade da graça para realizar qualquer boa obra

Como se insere nisso o tema da confiança? Aqueles sobre os quais Deus tem um desígnio geral precisam ter a confiança também geral de que realizarão esse desígnio. Mas aqueles a quem a Providência destina para uma missão específica, devem ter uma confiança especial de que Deus concederá auxílios excepcionais para o cumprimento daquela tarefa.

Suponhamos um clérigo que, sendo um grande orador, é sagrado bispo para dirigir uma diocese. Talvez ele julgue que, assim como outrora arrebatava as multidões com os seus discursos, agora, como bispo, irá ao púlpito e arrebatará as multidões para as verdades da Fé.

Por certo, a eloquência é um dom natural concedido por Deus e que, uma vez recebido, pode desenvolver-se naturalmente. Contudo, se esse bispo não acreditar que necessita de uma ajuda especial da graça, ele não converterá nenhuma alma, pois suas palavras não produzirão nenhum aumento do amor de Deus em quem as ouvir, e ele não trará ninguém para a Igreja Católica.

Dou outro exemplo. Imaginem uma pessoa que monta um grande orfanato católico. Um modo de combater a limitação da natalidade, o aborto, é erigir casas onde os pais desalmados, que não querem educar os seus filhos, os deixam nos braços amorosos da Igreja. Como para a primeira infância nada é comparável ao carinho materno, são Ordens religiosas femininas que se dedicam a acolher essas crianças.

Ora, essas Ordens têm problemas, falta de dinheiro, necessidade de remédios, de médicos, de mil coisas. São necessárias pessoas com boa capacidade administrativa para levar a bom termo a fundação e a organização de um orfanato.

Como se trata de uma obra destinada a servir a Deus, se o organizador do orfanato não entender que deve pôr sua principal confiança, não nas suas capacidades nem nos seus meios de ação – como parentesco, relações, etc. –, mas no auxílio divino, o orfanato vai água abaixo.

Prece do homem desconfiado e do confiante

Se Nossa Senhora nos chama para uma via que supõe renúncias, privações, exigindo de nós esforços para os quais nos sentimos fracos, e na hora da tentação cambaleamos, por vezes corremos o risco de não ter coragem de seguir esse caminho, então é preciso ter confiança de que a Santíssima Virgem nos dará graças especiais. Nunca é válido o seguinte raciocínio: “Esse caminho é muito  bom, mas não vou seguir, pois não tenho forças”. Porque o contrário é verdade: Dê um passo e mais outro… Basta que para este minuto você tenha força, o minuto que vem Nossa Senhora proverá. Ande para a frente e peça o auxílio d’Ela; a Virgem fará milagres! Maria Santíssima é a Mãe de Misericórdia  que nos pede muitas coisas, mas nos dá muitas outras também.

Às vezes, para realizar a nossa vocação, nós precisamos de certo dom natural. Por exemplo, uma boa saúde, um pouco de repouso para nos refazermos, e desejamos isso para tornar o nosso caminho um pouco mais leve. Devemos acreditar que, na maior parte das vezes, Nossa Senhora nos concederá tais favores. Então, precisamos rezar com confiança: “Salve Rainha, Mãe de  misericórdia, vida doçura, esperança nossa, salve!” Ou então: “Lembrai-Vos, ó piíssima Virgem Maria, que nunca se ouviu dizer que algum daqueles que tenha recorrido à vossa proteção, fosse por Vós desamparado. Animado eu, pois, com igual confiança, a Vós, ó Virgem singular, como a Mãe recorro e de Vós me valho…”

Nesse caso, a confiança é a virtude por onde confiamos na sabedoria e na bondade de Deus pelos rogos de Maria; no amor materno especialmente misericordioso e próprio a perdoar de Nossa Senhora, que fez d’Ela como que uma longa manus da misericórdia divina, pois até onde Deus, por assim dizer, não poderia chegar em sua misericórdia, Ele criou Nossa Senhora para que Ela chegasse.

A confiança é, pois, a virtude pela qual, tomando isso em consideração, pensamos: “Fui chamado, preciso de tais circunstâncias especiais para realizar meu apostolado. Confio em que Nossa Senhora as dará.” Quer dizer, Ela é lógica, segura, bondosa, Ela não fará essa coisa monstruosa de me chamar para que eu não realize aquilo para o qual Ela me chamou.

Essa certeza de que Ela dará, Nossa Senhora quer como condição para atender o nosso pedido. Ela atende, mas quer que confiemos. A prece do desconfiado sobe a Deus com mais dificuldade do que a prece do homem confiante. A prece do desconfiado em relação a Ela é como quem subisse ao Céu passo a passo. Pelo contrário, a prece do homem confiante faz com que ele voe.

Às vezes, a graça nos submete a provações tremendas

Há um matiz delicado nisso. Às vezes, não há uma razão especial para termos a certeza de que Nossa Senhora vai nos dar aquilo que que remos, e podemos pensar o seguinte: Nossa Senhora sabe o que me convém, eu não o sei. Como vou ter confiança nessa oração? Se Ela é minha Mãe e me dá o melhor, eu peço uma coisa que talvez não seja a melhor, não obtenho. É uma reflexão razoável, inteiramente conforme à Fé. Como é que vou confiar?

Às vezes, Nossa Senhora põe em nossa alma uma certa doçura, uma certa esperança especial de conseguir que é uma forma de promessa de que Ela dará se pedirmos. Quando vem essa moção interna da graça, a alma cometeria uma ingratidão se não compreendesse que, por causa daquilo que ela sentiu, deve esperar com confiança. É muito delicado, porque a pessoa pode se enganar e tomar como voz da graça algo que não é. Mas, normalmente, quando se sente uma forma de alegria especial e sobrenatural, um certo pressentimento bondoso de que aquilo se vai realizar, muitas vezes é algo dito pela graça que fala em nossa alma e nós devemos confiar.

Por vezes, a graça nos submete a provações tremendas. Considerem o episódio de São Pedro no Lago de Genesaré (cf. Mt 14, 22-31). Nosso Senhor estava caminhando vi sobre as águas, e chamou São Pedro para ir até Ele. O Apóstolo não teve dúvida, saltou da barca e principiou a andar. Em certo momento, olhou para a água e sentiu como aquilo era mole debaixo dos pés, teve medo e começou a afundar. Isso pode dar-se conosco. Começamos a fazer uma coisa desejada por Nossa Senhora, e aquilo parece afundar… Nesses momentos devemos nos ajoelhar e dizer a Ela:

“Minha Mãe, nesses transes permiti-me que Vos diga com todo o respeito que uma criatura Vos possa ter: Eu não tomo a sério o que está se passando. Sei que é uma provação permitida por Vós e que me põe numa situação dificílima, mas Vós fazeis isso para ver se eu confio. Se eu confiar, obterei. Minha Mãe, continuo a confiar em Vós e a ir para a frente!”

Às vezes, é preciso rezar e esperar anos, com uma série de fracassos pelo meio. Um dia, inesperadamente, aquilo tudo se realiza. Esta é a virtude da confiança!

Uma das maiores alegrias que o homem possa ter na vida é quando ele passa por um período onde parece que tudo vai contra a sua confiança, mas, apesar disso, em certo momento, ele vê que aquilo se realizou.

“Ainda que eu caminhe em meio às sombras da morte, não temerei os males”

Lembro-me de que eu era professor de História Medieval, Moderna e Contemporânea numa das faculdades da Universidade Católica de São Paulo, onde havia uma capela com o Santíssimo  Sacramento. Sempre que eu ia a essa faculdade, após as aulas, rezava diante do Santíssimo Sacramento, fazia uma visita à imagem de Nossa Senhora que estava lá e saía. Como em todas as épocas de minha vida, essa era também de muitas provações e da necessidade de muita confiança.

Certo dia, eu estava na capela – onde havia uma galeria de vitrais de um lado e de outro, com cenas da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo; e ao levantar-me, olho para um dos vitrais que estava mais abaixo, o qual representava, se não me engano, a Ressurreição do Redentor, onde estava escrito o seguinte: “Nam et si ambulavero in medio umbræ mortis non timebo mala…” (Sl 22, 4) – Ainda que eu caminhe em meio às sombras da morte, não temerei os males. E em outro vitral ao lado havia a frase: “…in lumine tuo autem vi debimus lumen” (Sl 35, 10) – Na tua Luz veremos a luz.

Aquilo me encheu a alma e compreendi: é preciso ter mais confiança. Plinio, anima-te! Nossa Senhora te ajudará! Então eu disse a Ela: “Nam et si ambulavero in medio umbræ mortis non timebo mala. Minha Mãe, ainda que eu ande nas sombras da morte, não temerei os males porque Vós me ajudareis. Minha Mãe, na luz de vosso olhar eu verei a Luz!” Pensei nessas coisas a propósito de Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano. Maria Santíssima olha com o olhar tão interior, tão embevecido, não se sabe bem se para o Filho que Ela tem nos braços, ou para um filho ajoelhado diante d’Ela e que é qualquer fiel que vai ali rezar.

E temos a impressão de que podemos dizer-Lhe: “In lumine tuo videbimus lumen”. Na luz de vosso olhar veremos a verdadeira Luz, que é Jesus Cristo Nosso Senhor, que Vós trazeis nos vossos braços.

Vocação da Bem-aventurada Petruccia

Vejam a história da Bem-aventurada Petruccia. Ela recebe uma vocação: trabalhar para reconstruir e reformar uma igreja de Nossa Senhora nesse lugarzinho chamado Genazzano. De fato, a vocação era muito maior, ela não sabia. Não era só para Genazzano, mas para abrigar um dos maiores milagres da História, uma devoção que tem expansão pelo mundo inteiro. Ela gasta tudo o que tem e fracassa!

Aos 80 anos de idade, Petruccia, que esperava morrer depois de ver a igreja construída, recebe de todo o mundo sarcasmos e censuras: – Louca, gastou o seu patrimoniozinho, está aí vivendo de esmola, pesando sobre os outros e levantando aqui esses muros que nem chegaram até uma altura normal. Louca! Ela, com doçura, responde: – Não vos incomodeis… eu sei.

Ela poderia acrescentar: “Deus me falou na alma! Sei que antes de eu  morrer, essa igreja estará construída. Um dia, como tantos outros, a Bem-aventurada Petruccia devorava em silêncio a demora da promessa, quando, de repente, as nuvens se fazem sonoras, luminosas, e desce o afresco de Nossa Senhora, e permanece ali. Todos reconhecem o milagre: a pintura fica de pé, sem em nada se apoiar, e até agora ali está, sem ser segura por nada.

Entram as doações para a construção do templo que começa a se erguer logo, porque o afresco paira em cima da igreja apenas iniciada, no lugar onde, sem dúvida, Nossa Senhora desejava que fosse construído o altar.

Portanto, Ela queria aquela igreja. Assim, antes de Petruccia morrer, a igreja estava garantida. Pode-se imaginar a morte de Petruccia, em paz, dizendo um pouco como Simeão conforme narra o Evangelho: “Agora, Senhor, levai em paz a vossa serva porque meus olhos viram a igreja que me prometestes!” É a virtude da confiança.

“Você não morrerá sem ter realizado a finalidade de seu apostolado!”

No caminho que nós seguimos, devemos esperar de Nossa Senhora muito mais do que os outros homens esperam. Precisamos aplicar todos os nossos talentos e recursos para servir a Santíssima Virgem, mas compreendendo  que tudo isso, embora indispensável, não é suficiente. As coisas só funcionam se a Mãe de Misericórdia nos ajudar pela sua graça e pela sua providência.

É necessário termos confiança de que Ela nos ajudará, antes de tudo, para perseverarmos e sermos santos; e, em segundo lugar, para vencermos a grande batalha da Contra-Revolução. Em 1967, eu tinha passado por dissabores enormes devido a dificuldades de nosso apostolado. Foram tais os desgostos e os estorvos que adoeci gravemente. Fui levado ao hospital para exames médicos e, em face dos resultados, os médicos resolveram fazer-me uma operação.

Portanto, por cima de uma série de terríveis insucessos de apostolado, vinha uma doença grave que trazia, entre outros inconvenientes, o de constituir para minha mãe uma grande preocupação. No período que antecedeu a essa doença, caiu-me nas mãos fortuitamente – vejo que foi por desígnios da Providência, mas não lembro mais por que vias o fato aconteceu – um livro a respeito de uma devoção da qual eu já ouvira falar: Nossa Senhora do Bom Conselho, em Genazzano.

Apesar da amargura em que eu me encontrava, a leitura do livro causava na minha alma um bem-estar interno tão grande, que eu me dizia: “Não compreendo por que, mas isto me faz um bem espiritual extraordinário!”

Precisamente, alguém teve a caridade de me mandar vir da Europa uma estampa da Mãe do Bom Conselho, e levaram-me quando eu ainda me encontrava no leito do hospital. Quando fiquei colocado diante da estampa, deu-se comigo um fato que o livro, aliás, contava que acontecia frequentemente. Sem ocorrer nenhum milagre, sem haver movimentação na face de Nossa Senhora, a imagem mudava de expressão para estes ou aqueles que rezavam diante d’Ela.

E eu tive a noção de que a face da Santíssima Virgem mudava de expressão diante de mim e me olhava com muita ternura, muita bondade, muito materna, dando-me a certeza relativa ao ponto que mais me atormentava, e que era o seguinte: Quem sabe se esses insucessos de apostolado se devem a alguma imperfeição espiritual minha? Quem sabe se vou morrer prematuramente como castigo dessa imperfeição?

E por mais que eu faça exame de minha consciência, não encontro resposta para essas indagações. Há uma falta em mim e em que ponto? Tive a impressão de que a imagem respondia ao mais candente da pergunta: “Meu filho, esteja seguro de que você não morrerá sem ter realizado a finalidade de seu apostolado!”

Essa certeza me alentou depois em todas as outras provações. Posso garantir que os dissabores sofridos por mim posteriormente foram tão numerosos e terríveis que, se eu não tivesse essa promessa, teria morrido. Não tenho dúvida nenhuma. Se com os meus 76 anos tenho a alegria de estar rememorando esses acontecimentos, é porque essa imagem me deu esta confiança: a finalidade de meu apostolado, no fim, se realizará!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/2/1985)

“Momento há anos anelado!”

A visita de Dr. Plinio ao Santuário de Saint-Laurent-sur-Sèvre, onde descansam os restos mortais de São Luís Maria Grignion de Montfort,  marcou profundamente sua alma, pois desde a leitura  do “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem” desejara peregrinar por aquele abençoado local.

 

 

Em setembro/outubro de 1988, Dr. Plinio viajou à Europa movido por importantes intuitos de vida interior, e objetivos de apostolado em diversos países desse continente. Um dos pontos altos dessa viagem- peregrinação foi, sem dúvida, a visita que fez ao túmulo de São Luís Maria Grignion de Montfort, missionário francês e autor do Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, que tanto impressionara Dr. Plinio na sua primeira juventude.

Junto ao túmulo de São Luís Grignion

O automóvel que conduzia Dr. Plinio até Saint-Laurent-sur-Sèvre — pequena cidade na região francesa da Vendée, onde São Luís Grignion morreu e está sepultado — deslizava suavemente pela belíssima campina francesa. Desde o início do percurso Dr. Plinio ia recitando o Rosário, terços de jaculatórias e outras de suas orações diárias. Em certo momento, impactado pelo esplendor da paisagem, comentou: “Dir-se-ia que, em qualquer desses recantos, as árvores foram dispostas por um grande artista…” Quando já se aproximava de seu destino, o carro passou junto ao Rio Sèvre que atravessa a cidade, e Dr. Plinio pôde avistar as torres da Basílica onde se veneram as relíquias de São Luís Maria Grignon de Montfort. Ao distingui-las, exclamou: “Sim, senhor! Afinal, o encontro há anos por mim anelado. Desde o dia em que li o Tratado, formei o propósito de vir aqui”.

Uma vez na Basílica, Dr. Plinio dirigiu-se primeiramente ao túmulo de São Luís, situado numa ala lateral, e ali rogou por todos os seus discípulos e filhos espirituais, para que Nossa Senhora lhes concedesse a plenitude da devoção a Ela, o amor perfeito à Cruz, bem como o pronto advento do reinado de Maria, tudo conforme o ensina- mento de São Luís Grignion nas suas obras, especialmente no Tratado e na Carta Circular aos Amigos da Cruz. Ainda junto ao túmulo, rezou várias séries de jaculatórias, entre as quais a de “Regina Cordium” — Rainha dos Corações —, invocação muito fomentada pelo Santo, além de outra dezena de jaculatórias ao próprio São Luís.

A pedido de Dr. Plinio, os que o acompanhavam entoaram os cânticos do “Ave Maris Stella” e do “Veni Creator” (também recomendados pelo Santo), após os quais rezaram, em francês, a Consagração de si mesmo à Sabedoria Encarnada pelas mãos de Maria, composta por São Luís. Em seguida, como outra forma de súplica a São Luís Grignion, Dr. Plinio depositou seu próprio terço sobre o mármore da sepultura, gesto repetido pelos seus companheiros.

Um consolador sorriso do Santo

Logo depois, embora o tivesse feito durante a viagem, Dr. Plinio quis recitar novamente o Rosário, bem como a Ladainha Lauretana. Entre as intenções postas para essas preces, incluiu a da canonização das duas pessoas enterradas junto ao Santo: a religiosa co-fundadora do Instituto das Filhas da Sabedoria, Marie-Louise Trichet, (Marie-Louise de Jesus, em religião) e o Marquês de Magnanne, grande amigo e benfeitor de São Luis(1).

Quando terminava de rezar os Mistérios Gloriosos, um raio de sol penetrou através de um vitral da Basílica, coando uma bonita luz azulada que veio incidir apenas sobre ele. Após alguns instantes em que permaneceu iluminando Dr. Plinio, e conferindo essa coloração como que celestial àquele ambiente, a luz se dissipou, deixando a todos com a grata impressão de que, a partir da bem-aventurança eterna, São Luís lhes dirigia um consolador sorriso.

Cumpridas essas devoções junto ao sepulcro do Santo, e depois de venerar o crucifixo utilizado por ele em suas últimas missões apostólicas, Dr. Plinio se recolheu para receber a Sagrada Comunhão, ministrada por um dos padres do Santuário, no altar em que se encontra uma imagem de Nossa Senhora, diante da qual São Luís Grignion costumava rezar. Durante a ação de graças, outro raio de sol osculou os vitrais e veio tocar a face de Dr. Plinio, desta feita com uma linda coloração avermelhada.

Supérfluo dizer que ele e seus acompanhantes saíram do Santuário com a alma repleta, decididos a retornar ali ainda uma vez, naquele mesmo dia.

Venerando as relíquias de São Luís

Quando se afastavam, o automóvel o levou novamente através das belas paisagens francesas. Ao contemplá-las, recordou-se Dr. Plinio de um dos seus brinquedos de menino: uma caixa — feita na França! — na qual podiam ser formados diversos cenários e panoramas. Comentou ele: “Eu, então, ia dispondo aqui e ali o produto de minha imaginação, com uma macieira, uma montanha, uma aldeiola, etc., concebendo uma França maravilhosa. Já mais velho, comecei a pensar: ‘A França será mesmo o que sem- pre imaginei, ou aquela ideia que fazia dela era uma fantasia de criança?’. Ora, viajando pelo interior desse país pude ver que, como afirmou Santa Joana d’Arc, Deus é o Rei da França, e fez coisas muito mais bonitas do que aquelas paisagens de brinquedo. Há lugares onde se vêem uma árvore, uma pedra ou a curva de um rio, e se tem a impresdíssimo. Na realidade, foi o próprio Criador quem realizou essas maravilhas”.

A fim de se refazer um pouco da viagem, Dr. Plinio se hospedou num pequeno hotel, a poucos quilômetros da Basílica de Saint-Laurent-sur-Sèvre. Conforme havia planejado, à tarde retornou ao templo. Infelizmente, porém, o encontrou fechado, não lhe sendo possível rever o túmulo de São Luís. Contudo, uma religiosa teve a delicadeza de abrir para ele a sala das relíquias do Santo, onde pôde ad- mirar seus aramentos, oscular várias imagens esculpidas por São Luís, e repousar suas mãos sobre a escrivaninha utilizada pelo autor do Tratado da Verdadeira Devoção.

Saindo dali, Dr. Plinio visitou uma imagem miraculosa, também entalhada pelo Santo, numa capela das Filhas da Sabedoria, chamada por essa razão La Sagesse. Durante as perturbações da Revolução Francesa, essa imagem havia sido escondida dentro de uma parede. Tempos depois, freiras que passaram pelo local em diversas ocasiões ouviram uma voz que suplicava: “Tirem-me daqui!”. Mandaram então abrir a parede, e lá estava a preciosa imagem da Santíssima Virgem…

Mais do que mil Chambords!

Ao deixarem a Sagesse, um dos acompanhantes de Dr. Plinio comentou-lhe:

Este foi um grande dia, não? Ao que Dr. Plinio respondeu:

Este dia de peregrinação a Saint-Laurent-sur-Sèvre foi para mim inesquecível. Tudo ali nos falava mais densa- mente do Céu, da ordem espiritual, além de tonificar em nós a ideia de que nossa vocação está ligada à de ser mestre, profeta e homem de fogo que foi São Luís Grignion.

E quando perguntado se Saint-Laurent-sur- Sèvre o havia impressionado mais do que o Castelo de Chambord e a sala gótica da “Conciergerie”, em Paris, aos quais ele muito elogiara, Dr. Plinio ponderou:

“Não podemos nos esquecer de que as ordens espiritual e temporal estão uma para a outra numa relação parecida com a chama e a lamparina junto ao Santíssimo Sacramento. A lamparina é a ordem temporal: convém que a parte de metal seja muito bonita, o recipiente de cristal vermelho para o azeite seja ótimo, e o próprio azeite, mui- to puro. Porém, a chama é a ordem espiritual.

“Assim também, em Saint-Laurent, sentindo-se a presença de São Luís Grignion, conhecemos e desfrutamos algo que vale não sabemos quantos mil Chambords, “Conciergeries” e outros esplendorosos monumentos engendrados pelo genial talento francês…”

 

Plinio Corrêa de Oliveira 73 (Abril de 2004)

1 ) O Papa João Paulo II beatificou Marie-Louise em 1993, e, sendo devoto de São Luís Grignion, fez uma peregrinação ao túmulo dele em 1996.

 

 

Inocência e as noções primárias do ser

O desenvolvimento do senso do ser, a construção da mentalidade e das reflexões no homem fiel à sua inocência batismal era tema sobremaneira caro a Dr. Plinio, a respeito do qual discorreu em diversas oportunidades ao longo de sua vida. Sempre permeando tais exposições com expressivos e didáticos exemplos, como poderemos constatar nas considerações transcritas a seguir.

 

Pediram-me que tratasse sobre a inocência, tema tão vasto quanto complexo. Por isso, abordarei apenas um aspecto dele, fazendo o apanhado do ponto de vista filosófico-prático, sobre a coerência e a contradição na alma do inocente.

Aceitação, rejeição ou indiferença

Imaginemos uma criança nos passos iniciais de sua vida. Ainda não fala, exprime-se por gestos ou pelo balbucio de algumas sílabas, e em sua mente desenham-se esboços de pensamentos. Ao lhe ser mostrado algo, ela tem um conhecimento elementar e superficial, do qual decorrem três atitudes: deseja aquilo e estende a mão para apanhá-lo; rejeita-o, afastando-o ou virando o rosto para outro lado; ou pode não manifestar reação alguma em relação ao objeto. Portanto, a criança toma uma dessas posições: aceitação, rejeição ou indiferença.

Então, antes mesmo de formar um juízo elaborado a respeito do que tem diante de si, ela sente e assume uma dessas três atitudes.

Suponhamos que o menino esteja deitado num berço, coberto na parte da cabeceira por pequeno dossel. Alguém toma uma bonita bola, brilhante, usada para enfeitar árvore de natal, e a pendura no dossel. A criança pode ficar encantada e querer segurar a bola, ou permanecer indiferente, ou, se for de maus bofes, olhar meio vesga e fazer careta.

Por que razão ela toma tais atitudes? Se alguém analisasse várias reações assim de uma criança, poderia discernir alguns movimentos que irão determinar a orientação dela durante a vida?

Tais indagações me vinham freqüentemente ao espírito no tempo em que havia muitas crianças passeando na Praça Buenos Aires(1), conduzidas por uma “nurse”, “Fräulein”, “mademoiselle”, babá, ou pela própria mãe. Eu notava suas reações diante dos fatos. Passava, às vezes, um caminhão fazendo seu barulho característico e medonho, o menino permanecia indiferente. Dali a pouco um cachorro latia, a criança se assustava. Mais adiante via uma flor e queria apanhá-la. Sucedia em certas ocasiões que, levada pela mãe, esta encontrava uma pessoa conhecida e parava para conversarem. A amiga fazia um agrado no pequeno, e este virava o rosto, causando desapontamento na sua progenitora, desejosa de provar que seu rebento herdara o bom gênio da família…

Notícia e seletivo

Qual a razão desse movimento? O que se passa na alma da criança? Ela já conhece algo, tanto é que reage. Se não conhecesse, não reagiria.

Na realidade, ela não tem propriamente ciência, mas o que, em filosofia, chama-se notícia. A visão e os demais sentidos lhe transmitem notícia sobre os fatos. Mas, nota-se que a criança possui um seletivo. Selecionar é uma operação que supõe aceitação de umas coisas e recusa de outras. E esta última, por sua vez, apresenta duas modalidades: rejeição na sua totalidade (a qual é manifestada, por exemplo, empurrando o objeto que lhe é mostrado); e a segunda, por indiferença. Como já dissemos, se a criança aceita, ela procurar segurar o que lhe interessa.

Esse seletivo possui certos critérios de escolha antes mesmo de a inteligência ter elaborado raciocínios. Essa faculdade trabalha ainda de um modo rudimentar, incompleto, enquanto o seletivo já inicia seu operar.

Tal tabela de valores, de preferências, recusas e indiferenças é desenvolvida pela criança ao longo de sua vida, sofrendo algumas modificações, de vez em quando perdendo algum atributo, adquirindo outros, etc., mas em suas linhas gerais ela o conserva até o fim da existência.

Manifestação do senso do ser

Retomamos, então, a pergunta: quais são esses elementos iniciais, esse ponto de partida no qual se acha escrito o fim da vida?

 Pensemos naquela criança deitada no berço, olhando a esmo para o ambiente que a cerca. De súbito, uma mão materna, afável, pendura diante dela uma bola lustrosa, azul “bleu-de-roi”, dourada ou vermelha, presa por uma fita de seda cor-de-rosa ou azul claro. Ela tem noção de que ali não estava a bola, que em determinado momento surgiu à sua frente.

O bebê não se pergunta por que a bola apareceu, quem a pôs, etc. Sua reação simples, primária, é: a bola. Talvez nem saiba dizer “bola”, mas o primeiro pressuposto consiste na noção de que ele é e a bola é, e daí se estabelece uma relação entre os dois, aceitação ou recusa, etc.

Verifica-se aqui o processo mental humano de se desprender da noite do não-criado para o criado, do não-ser para o ser. A criança é, mas há pouco tempo atrás ela não era. Vê-se que na primeira atitude tomada por ela há um primeiro olhar da inteligência, no qual seu espírito capta, pelos dados que lhe fornecem os sentidos, o fato de que algo é: “a bola é, eu sou”.

O que significa o verbo “ser”? O menino nem chega a definir isso, a primeira noção é que ele é, e a bola é. Segunda: ela e a bola não são a mesma coisa. Terceira: uma vez que as duas coisas são, tem de haver uma relação entre ambas. Normalmente a criança não pode ser indiferente à bola e talvez a bola não seja, sob certo aspecto, indiferente a ela. O menino vê a bola e acha que esta constitui um bem para ele, o completa em algum ponto, estende a mãozinha e pega a bola. Logo depois, instintivamente, a põe nos lábios. É a ideia incipiente de que aquele bem contido na bola fica participando dele, se a lamber e morder.

O grande problema da vida: somos incompletos

Portanto, esse movimento vem acompanhado da noção obscura, profunda, de que a ela, criança, faltam coisas existentes em outros seres. Ela tem vontade de se apropriar daquilo que contém um grau de beleza que não sente em si mesma. E não só de possuir, mas também de comer. Suponhamos que ela visse uma bonita cereja ou nêspera. Estando ao seu alcance, ela iria diretamente comê-las, pois sente a necessidade de complementação.

A criança tem, então, a impressão de que algumas coisas a completam, e outras não. Ela quer as primeiras e afasta as últimas, pois as julga malfazejas. Assim, juntamente com o conhecimento de que ela é, aparece a ideia confusa, instintiva, tendente a ser quase um circuito de sensações, pela qual percebe no que é completa, e, por outro lado, os pontos em que não o é. E procura realizar em si uma totalidade de algo que ela sente não ter. Começa aí, para cada um de nós, o grande e verdadeiro problema da vida: eu sou incompleto. Sinto falhas, lacunas em mim, talvez instintivas, não sou capaz de exprimi-las em palavras. E sinto-as de tal modo que algumas coisas causam-me a impressão de me completarem, outras, pelo contrário, constituem uma demasia e me deformam. Outras, ainda, me deixam indiferentes.

Esse problema da complementação de si mesmo vai se estender ao longo de toda a vida do homem. E embora sem dizer, se formos analisar tudo quanto ele procura na sua existência, perceberemos tratar-se de algo que acha necessário ter; e todas as coisas que evita, o faz por julgá-las supérfluas ou nocivas. Ele tem, portanto, um seletivo originado de um conhecimento instintivo e elementar de si próprio, de suas atrações, fobias, bem como do que lhe é conveniente ou inconveniente.

Errôneo seria pensar que a criança não é passível de engano nessa seleção. Afirmo mesmo o contrário: com freqüência ela se equivoca. Por exemplo, deseja comer a bola a qual não é comestível e lhe causaria graves danos se fosse ingerida. Além disso, a criança toma toda a aparência como contendo a realidade, pensa que a bola é maciça, feita de uma substância daquela cor. De fato, a bola é vazia e quebradiça, como tantas outras coisas da vida.

A pergunta interessante que se põe é como seria esse seletivo no homem antes do pecado original. Suponhamos que Abel — o perfeito, o predileto, pré-figura de Nosso Senhor Jesus Cristo — tivesse sido concebido por Adão e Eva antes da queda, e nascido no Paraíso terrestre. Como seria a inocência de Abel? Como ele tomaria contato com as maravilhas do Paraíso? Qual seria a conduta dos animais, das plantas, etc., para com Abel pequenino?

  Respondendo a essas indagações teríamos ideia do “plano A de Deus”(2) quanto aos homens, e como se desenvolveria a inocência da criança de modo perfeito, sem as claudicações e desordens oriundas da culpa original.

Disso trataremos em próxima exposição.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Revista Dr Plinio 85 “Abril de 2005”)

 

1) Situada em frente ao apartamento em que Dr. Plinio residia com seus pais, desde o início da década de 1950.

2 ) Conforme ensinava Dr. Plinio, para cada pessoa, família, nação e até para a humanidade, Deus tem um plano, cumprido o qual elas atingem a perfeição e, assim, dão glória ao Criador: é o plano A. Sendo infiéis a este desígnio primeiro, o Altíssimo lhes oferece um plano B. Mas, além de ser justo, Deus é misericordioso. E, na sua infinita bondade, a alguns que não seguiram seu plano A, Ele lhes proporciona um plano A+A.

Oração: Ó Mãe boníssima

Cada festa celebrada pela Igreja é acompanhada de enorme efusão de graças correspondentes às dádivas recebidas em vida pelo santo então celebrado. Isto se dá também quanto aos mistérios da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou de Nossa Senhora, que eventualmente consideremos em determinada celebração.

Ora, aproxima-se o dia em que a Santa Igreja reserva para contemplarmos liturgicamente o “mistério dos mistérios”, ou seja, a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo e a redenção do gênero humano.

No momento em que Ele, expirando, disse “consummatum est” e sua Alma se separou do Corpo, a redenção se operou. O gênero humano, de perdido que era, passou a ser salvo. Nesse momento, nós fomos resgatados e a fonte de todas as graças se abriu para nós.

De fato, por causa de seu sacrifício, Nosso Senhor Jesus Cristo é uma fonte de graças aberta para todos nós; este sacrifício abriu para nós uma infinita torrente de misericórdia, que nos traz toda espécie de bem e de perdão, desde que verdadeiramente queiramos dela nos beneficiar.

(Extraído de conferência de 7/4/1966)

Despretensão: ensinamento e exemplo divinos

Formando os Apóstolos, Nosso Senhor deu-lhes o divino exemplo de despretensão: “Eu estou no meio de vós como aquele que serve.” Vindo ao mundo para remir o gênero humano, Jesus indicou que entre os católicos aquele que manda deve ser como quem serve; precisa ser o menor e mais apagado, deve sacrificar-se e imolar-se, a fim de que seu apostolado seja fecundo.

 

Comentarei um trecho do Evangelho de São Lucas, muito propício para as comemorações da Paixão de Nosso Senhor.

Ora, houve uma discussão entre eles sobre qual deles devia ser considerado o maior. Jesus, porém, lhes disse: “Os reis das nações dominam sobre elas, e os que exercem o poder se fazem chamar benfeitores. Entre vós, não deve ser assim. Pelo contrário, o maior entre vós seja como o mais novo, e o que manda, como quem está servindo. Afinal, quem é o maior: o que está à mesa ou o que está servindo? Não é aquele que está à mesa? Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve. Vós sois aqueles que permaneceram comigo em minhas provações. Por isso, assim como o meu Pai me confiou o Reino, eu também vos confio o Reino. Havereis de comer e beber à minha mesa no meu Reino, e vos sentareis em tronos para julgar as doze tribos de Israel(1).

Desigualdade das classes sociais

Trata-se de uma discussão entre os Apóstolos durante a Ceia. É curioso que, depois de Jesus lhes ter lavado os pés, instituído a Eucaristia, eles discutam entre si a respeito de quem seria o maior.

Isso poderia ser chamado de pretensão, e tenho a impressão de que estaria perfeitamente bem designado. Na hora mais augusta, mais sagrada, quando eles deveriam se preparar para os maiores sacrifícios, sua preocupação era de quem seria o maior. É uma coisa completamente extrapolada, colocada fora da linha em que deveria estar.

E Nosso Senhor lhes dá uma lição, dizendo-lhes incidentalmente uma série de coisas, que valeria a pena comentar. Afirma o Redentor: Afinal, quem é o maior: o que está à mesa ou o que está servindo? Não é aquele que está à mesa? Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve.

Vemos aqui uma afirmação muito interessante da legitimidade da desigualdade das classes sociais, feita por Nosso Senhor. Ele pergunta: o que é mais, ser servido ou servir? E responde: ser servido é mais do que servir; o servidor é menos do que aquele a quem ele serve.

A autoridade existe para o bem dos subordinados

Quer dizer, há uma desigualdade que vem da natureza das coisas. E essa desigualdade, que é um fato legítimo, o Divino Mestre toma como ponto de partida para exprimir a posição d’Ele: Jesus está no meio dos discípulos como aquele que veio servir.

E aqui está a enorme lição de despretensão, como quem diz: “Se Eu Me coloco como servidor, como cada um de vós quer ser considerado o primeiro em relação aos outros?” Aqui está a coisa acachapante. É contrária ao espírito de Nosso Senhor, a toda a lição de sua vida, à doutrina que Ele veio ensinar, a preocupação de se fazer valer, de se colocar acima dos outros. Em sentido oposto, diz o Redentor, os que mandam devem ser como os que servem.

Qual o significado disso? No caso d’Ele, o sentido é evidente: Jesus veio para remir, salvar os homens. Ele estava ali como pastor que salva suas ovelhas, portanto, para o bem deles. É a autoridade constituída para o benefício daqueles sobre os quais deve mandar. Daí vem a ideia de que a autoridade tem um fim dentro de uma ordem posta por Deus; ela precisa ser servidora desse fim, e por isso deve cercar-se de esplendor, de grandeza, de pompa. Nosso Senhor louvou a mulher que derramou unguento precioso sobre a cabeça d’Ele.

Quem manda existe para o bem de seus subordinados. E aqueles que obedecem devem compreender e amar a autoridade e o princípio de autoridade, o qual é altamente benéfico.

Megalice de certos soberanos da antiguidade

Continua o Divino Salvador:
Os reis das nações dominam sobre elas, e os que exercem o poder se fazem chamar benfeitores. Entre vós, não deve ser assim. Pelo contrário, o maior entre vós seja como o mais novo, e o que manda, como quem está servindo.

A megalice(2) dos reis nas épocas anteriores a Nosso Senhor era uma coisa incrível. Os monarcas assírios, por exemplo, mandavam esculpir nas pedras dos rochedos os relatos dos seus feitos. E, para que não se apagassem, era colocada uma espécie de porcelana coberta com vidro, de maneira que eles tinham a esperança de que durante séculos ainda se lessem aquelas inscrições. E em muitos lugares ainda hoje podem ser lidas. Eles contavam coisas que eram evidentemente falsas. Uma dessas inscrições, que eu li, narrava que, numa caçada, o rei tinha domado um leão, pegando-o pelas orelhas. Ou se tratava de um leão velho, que havia sido embebedado previamente pelos cortesãos, ou era simplesmente uma megalice sem nome!

Aqueles imperadores romanos… quanta megalice! A veneração que faziam lhes prestar, o modo pelo qual dominavam e oprimiam os outros, dirigiam tudo pela força, e tantas outras coisas. Já tive ocasião de comentar neste auditório o respeito que se tributava aos faraós. Li aqui certa vez uma carta ao faraó, escrita por seu agente consular na Assíria, na qual dizia: “Eu, que sou indigno de beijar os vossos pés, indigno de beijar as patas de vossos cavalos; beijo o pó onde as patas de vossos cavalos se puseram”. Esse era o clima de megalice que os soberanos daquele tempo criavam.

Nosso Senhor mostra que quem é católico deve servir. Embora sua autoridade seja muito grande e transpareça bastante, ele, como indivíduo, deve eclipsar-se por detrás de sua própria autoridade.

O princípio, o cargo, a missão, o poder valem muito, o indivíduo vale pouco.

Jorge V e Rainha Mary

Certa vez li numa revista de História um fato a respeito de Jorge V, esposo da Rainha Mary. Todas as noites em que não recebiam visitas no palácio, eles ficavam ouvindo vitrola, enquanto um secretário ia trocando os discos. Quando chegavam às dez horas em ponto, os monarcas se levantavam e o secretário colocava o disco com a música “God save the King” — Deus salve o Rei —; Jorge V tomava atitude de continência, e a Rainha ficava em posição de oração. Terminada a audição, iam dormir.

E Rudyard Kipling(3) comentou que isso era a verdadeira humildade. Jorge V, detentor da autoridade, compreendia que o cargo, a dignidade, era grande, mas a pessoa dele, nada. E por isso tomava uma atitude de respeito diante de seu próprio cargo. Nesse ato, o Rei prestava continência à realeza; e a Rainha rezava, como uma fiel qualquer, por aquela que era a Rainha da Inglaterra. Vemos aqui o eclipsar-se da pessoa e o engrandecimento do cargo.

Reis de França e Imperador Francisco José

Nos tempos de monarquia cristã havia fatos nesse sentido. Quando os Reis de França saíam da Catedral de Reims, após serem coroados, o povo acreditava — e parece que algum fundamento havia nisso — que eles tinham o poder de curar a escrófula(4). Então, filas de escrofulosos repugnantes ficavam à espera do novo Rei na saída da catedral, o qual tocava cada doente com a mão e dizia: “Le Roi te touche, Dieu te guérisse — O Rei te toca, Deus te cure”. Diziam os cronistas do tempo que muita gente ficava curada. Quer dizer, depois daquele esplendor máximo da realeza — a coroação de um Rei de França era uma cerimônia fabulosa, em que aparecia o cargo e não o homem —, o monarca condescendia em tocar com suas mãos régias os enfermos mais repelentes do seu reino, para curá-los, usando de um carisma que reconhecia não proceder dele. A frase “O Rei te toca, Deus te cure” queria dizer: “O Rei sabe que não cura nada, quem cura é Deus. O Rei é um mero instrumento para que a ação de Deus se exerça”.

O exemplo de Nosso Senhor foi imitado nos tempos em que a Igreja era unida ao Estado, em todas as monarquias europeias. Pouco antes da guerra de 1914-18, em que quase toda a Europa era monárquica, na Quinta-feira Santa os reis iam lavar os pés dos pobres. Francisco José, por exemplo, Imperador da Áustria-Hungria, lavava os pés dos pobres na Catedral de Viena. E um dos significados desse ato era este: uma é a dignidade do Imperador, e outra, a situação dele enquanto indivíduo, que devia estar sujeito a todas as humilhações, por mais que o cargo por ele ocupado fosse excelente.

O Papa, “servidor dos servidores de Deus

Os próprios Papas realizavam o lava-pés. De um lado o Papa imita Nosso Senhor Jesus Cristo — a dignidade pontifical, como a dignidade régia, deve tocar os pobres —; mas, de outro lado, esse ato significa a humilhação do homem, indicando o desaparecimento da pessoa, mesmo no esplendor do cargo e da função.

Vemos assim, na tradição cristã, a aplicação do ensinamento do Divino Mestre. O Papa, chamando-se a si próprio “servidor dos servidores de Deus”, evoca uma reminiscência do que Nosso Senhor disse.

Então, para praticarmos adequadamente a despretensão, devemos compreender que toda grandeza terrena deve existir — porque Deus quis que houvesse grandes na ordem espiritual, como na ordem temporal —, e precisa cercar-se do esplendor que lhe é próprio; mas o homem que está colocado nesse lugar de grandeza deve saber apagar-se. E aqueles que estão longe da grandeza, não possuem o cargo, não o devem invejar. Para o vaidoso, o que adianta ter um cargo se não pode se gabar dele? Nenhum cargo, nenhuma situação pessoal, na qual o indivíduo não possa consentir no envaidecimento, não lhe adianta de nada.

São Vicente Ferrer: “A vaidade esvoaça em torno de mim, mas não entra”

Lembro-me que li, numa biografia de São Vicente Ferrer, um fato muito curioso. Ao chegar a Barcelona — ele era grande missionário —, foi-lhe preparada uma recepção apoteótica. Todo o povo estava reunido, das janelas pendiam tapetes preciosos, ele caminhava debaixo do pálio, carregado pelos nobres da cidade. Durante o cortejo, alguém desconfiado perguntou-lhe: “Irmão Vicente, não estás vaidoso?” Ele respondeu: “A vaidade esvoaça em torno de mim, mas não entra”.

O que adianta para um homem receber todas essas homenagens, se ele é obrigado a resistir à tentação de se envaidecer? Não adianta nada. Porque, se é para ficar vaidoso, há um prazer terreno. Mas, se não pode se envaidecer, andar devagar no meio daquele povo aplaudindo, e ele resistindo contra a tentação, é muito cansativo. Quando termina, ele desabafa: “Uf! Acabou a tentação; ao menos estou trancado na minha cela, sozinho”. Esse é o verdadeiro dinamismo das coisas.

Quem deseja aparecer não imita Nosso Senhor Jesus Cristo

Precisamos ser muito cautelosos. Sempre que estamos apetecendo uma situação de mando, de destaque, de influência, devemos tomar cuidado, pois facilmente nos apegamos a isso para nos mostrarmos. E, se consentirmos ao desejo de aparecer, não estaremos imitando o exemplo de Nosso Senhor, o qual indicou que entre os católicos aquele que manda deve ser como quem serve; precisa ser o menor, apagado, sacrificado, e imolar-se.

Alguém poderia fazer uma pergunta-objeção: “Mas, Dr. Plinio, o senhor nos diz isso com uma ênfase, como se estivéssemos na iminência de sermos eleitos presidentes da república! Ora, acontece que nós, sendo membros do Movimento, não estamos em via de ser eleitos para nada e nem temos, ao menos de momento, um eleitorado muito grande. Então, por que o senhor nos fala essas coisas?”

Digo isto porque não se trata apenas de cargos, mas de situações nas quais se exerce alguma influência numa roda de pessoas: querer ser o primeiro numa conversa, numa mesa de refeições; aquele que conta a piada mais engraçada; conhece a última novidade ou comentário sobre nossa vida interna e o transmite para o pobre basbaque que ainda não sabe; está a par das coisas mais importantes; diz a coisa mais audaciosa em matéria de doutrina. Tudo isso são coisas que significam preeminência e dão apego. E disso tudo devemos mostrar-nos desapegados, lembrando o ensinamento e o exemplo de Nosso Senhor.

A pretensão torna estéril o apostolado

Quanto maior é a pretensão de uma pessoa, mais estéril é seu apostolado, porque só faz apostolado fecundo quem está unido ao Divino Mestre. Quem não está unido ao Redentor é como a vinha que está destacada do sarmento.

Como podemos estar unidos a Ele, se temos pretensão? Não estou afirmando que sejamos todos uns poços de pretensão. Mas quero dizer que todo homem, na melhor das hipóteses, é como São Vicente Ferrer: está sempre com a pretensão esvoaçando em torno dele. Isso é evidente. Então, cuidado! Ainda que recebamos manifestações tão mais modestas do que as prestadas a São Vicente Ferrer, devemos lutar contra a pretensão, de todos os modos e com todo o empenho.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1/4/1969)

1) Lc 22, 24-30.
2) Megalice: termo criado por Dr. Plinio a fim de designar o vício de quem atribui a si mesmo qualidades que não possui ou então as exagera.
3) Joseph Rudyard Kipling (1865-1936), escritor inglês.
4) Infecção tuberculosa em gânglios linfáticos do pescoço.