Glória de fogo na História da Igreja

No tempo do Império Romano, Santo Atanásio combatia os arianos com muito vigor. Mas, a certa altura, o mundo inteiro tornou-se ariano, como que da noite para o dia, e esse Santo Patriarca de Alexandria quase ficou sozinho nessa luta, chegando a ser tão perseguido que, para evitar a morte, não teve outro remédio senão entrar na sepultura dos pais e ali morar escondido.

Entretanto, ele lutou contra tudo e contra todos até que o Concílio de Niceia definiu a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo e, consequentemente, a Maternidade Divina de Nossa Senhora.

Santo Atanásio pode ser chamado a coluna da Igreja. Uma coluna qualquer um terremoto derruba. Porém, nada derrubou Santo Atanásio! Ele tinha a graça divina que o ajudou. A muitos Deus oferece a graça, mas nem todos correspondem. A este grande Doutor da Igreja, pelo contrário, Deus a ofereceu e ele correspondeu generosamente. O nome dele ficou com uma espécie de glória de fogo na História da Igreja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/10/1985)

Revista Dr Plinio 266

Inteira e filial confiança em Nossa Senhora

Ó  Maria Santíssima, que nunca negais acolher um pecador, dai-nos a graça de compreender que junto a Vós encontraremos o mais seguro e suave refúgio.

Suplicamos-Vos, ó Mãe, que do alto do Céu desçam sobre vossos filhos – transpondo suave e vitoriosamente camadas espessas de pecado – vossas bênçãos maternais.

Como os discípulos de Emaús ao Divino Redentor, nós Vos pedimos que essas bênçãos fiquem conosco, porque se faz noite sobre o mundo. A cada instante, a cada angústia e necessidade, ajudem-nos elas a manter a mais inteira e filial confiança em Vós.

Mãe e Senhora nossa, nesta emergência, realizai por nós tudo o que de solicitude, desvelo, penetração psicológica e misericórdia fazeis aos filhos que Vos pedem com verdadeira confiança.

Ó Mãe, nós Vos amamos, em Vós cremos e esperamos. Imploramos o vosso perdão pelos que não creem, não esperam e não Vos amam. Amém

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em abril de 1980)
Revista Dr Plinio 266 (Maio de 2020)

Que Maria antecipe o novo Pentecostes

Durante o mês de maio sentimos uma proteção especial de Nossa Senhora estender-se sobre todos os fiéis, e a alegria que ilumina nossos corações exprime a universal certeza dos católicos de que o indispensável patrocínio de nossa Mãe celestial se torna ainda mais solícito e amoroso, convidando-nos a uma intimidade tão mais acentuada com Ela, que em todas as vicissitudes da vida saibamos pedir com mais respeitosa insistência, esperar com mais invencível confiança e agradecer com mais humilde carinho todo o bem que Ela nos faça.

Maria Santíssima é a Rainha do Céu e da Terra, e, ao mesmo tempo, nossa Mãe, a Quem amamos por sua própria glória, por tudo quanto Ela representa nos planos da Providência.

Os filhos nunca são mais seguros da vigilância amorosa de suas mães do que quando sofrem. A humanidade inteira sofre hoje em dia, de todos os modos pelos quais se possa sofrer. As inteligências são varridas pelo vendaval da impiedade e do ceticismo; ideias nebulosas, confusas, audaciosas esgueiram-se em todos os ambientes e arrastam consigo não só os maus e os tíbios, mas até aqueles de quem se esperaria maior constância na Fé.

Sofrem as vontades obstinadamente apegadas ao cumprimento do dever, com todas as contrariedades que lhes vêm de sua fidelidade à Lei de Cristo. Sofrem os que transgridem essa Lei, pois longe de Cristo todo prazer não é senão amargura, e toda alegria uma mentira. Sofrem os corações dilacerados pelos horrores das guerras que se alastram, das famílias que se dissolvem, das lutas que armam por toda parte irmãos contra irmãos. Sofrem os corpos dizimados pela metralhadora, depauperados pelo trabalho, minados pela moléstia, acabrunhados pelas necessidades de toda ordem.

Pode-se dizer que o mundo contemporâneo enche os ares de um grande e clamoroso gemido. Porém, quanto mais sombrias se tornarem as circunstâncias e mais lancinantes as dores, tanto mais devemos pedir a Nossa Senhora que ponha termo a tanto sofrimento, não só para fazer cessar nossa dor, mas para maior proveito de nossas almas.

Diz a Teologia que a oração de Maria antecipou o momento em que o mundo deveria ser redimido pelo Messias. Nesta quadra histórica, cheios de angústias, volvamos confiantes nossos olhos à Mãe de Misericórdia, pedindo-Lhe que apresse a chegada do grande momento em que um novo Pentecostes abra clarões de luz e de esperanças nestas trevas, e restaure por toda parte o Reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Para a glória de Deus, desejemos grandes e muitas coisas. Peçamos a Nossa Senhora muito e sempre. O que Lhe devemos implorar, sobretudo, é aquilo que a Sagrada Liturgia suplica a Deus: “Emitte Spiritum tuum et creabuntur, et renovabis faciem terræ”. Devemos pedir, pelo intermédio de Maria Santíssima, que Deus nos envie em abundância o Espírito Santo, para que as coisas sejam novamente criadas, e purificada, por uma renovação, a face da Terra.

Confiemos à Santíssima Virgem este anelo, no qual vai todo o nosso coração. As mãos de Maria serão para nossa prece um par de asas puríssimas por meio das quais chegará certamente ao trono de Deus.

Neste mês de Maria, façamos nossas estas súplicas, referentes às necessidades da Santa Mãe Igreja: Para que vos digneis humilhar os inimigos da Santa Igreja, nós vos rogamos, ouvi-nos, Senhor! Para que vos digneis exaltar a Santa Igreja, nós vos rogamos, ouvi-nos, Senhor!*

 

Plinio Corrêa de Oliveira, artigo

* Cfr. CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Mês de Maria. Em O Legionário, n. 563, 23/5/1943.

A arte de governar

Para bem governar é necessário discernir a ação da graça conjugada com os fatores naturais do povo e do lugar, favorecendo a prática da virtude e combatendo o mal de todos os modos.

 

Ao analisarmos o Brasil vemos que, ainda em nossos dias, ele tem na maior parte do seu território uma expansão demográfica desproporcionada com a área de habitação, ou seja, uma área imensa que a população tem certa dificuldade de preencher. De maneira que se estabelecem núcleos de população aqui, lá e acolá, espalhados de tal maneira que o intercâmbio em muitas partes do Brasil ainda é difícil.

Famílias de almas levadas à harmonia e afinidade

Essa dificuldade faz com que haja isolamentos e tendência a formar zonas com mentalidades e características distintas, constituindo um país com as variedades mais numerosas, entretanto com certa harmonia que a índole brasileira põe nas coisas, pela qual os Estados do Nordeste, por exemplo, constituem uma espécie de sociedade com talento e modo de encarar a vida peculiares, uma filosofia própria, em íntima conexão com o panorama, com as possibilidades do local, os recursos materiais que apresentam, mantendo uma coesão íntima.

Para mim, o Nordeste acaba no limite entre a Bahia e Minas Gerais. Dois Estados tão diferentes quanto possível, entretanto suas fronteiras não dão lugar a entrechoque. Pode ter havido arranhõezinhos, coceiras, mais nada. Por miscigenação, mas também pelo desejo de uma vida harmoniosa acima de tudo, arranja-se um jeito de aparecer um tipo humano abaianado na fronteira entre ambos os Estados, que é mineiro, mas no qual está presente a Bahia. E que tem, portanto, certos charmes, certo jeito, certos predicados da Bahia que são únicos.

Há uma espécie de permeação das fronteiras, do baiano amineirado e do mineiro abaianado que não se fundem inteiramente, mas tudo isso convive dentro de uma sobra de terras, e com uma grande vontade de não brigar. Não é apenas dizer que esses elementos intermediários evitam a briga. Mais ainda: essa briga nem se esboça nem é um desejo.

O baiano de Salvador já nem pensa em Minas, assim como o belo-horizontino nem cogita na Bahia. Porém, há de fato uma espécie de permeação que faz com que o espírito, a inteligência, o talento, a graça formem quase uma nação, mas sem vontade de ser uma nação, não quer separar-se, nem se preocupa em preservar-se; nasce como uma planta no campo, sem instinto de conservação, que se esparrama quanto pode e quando a ceifam ela não chora.

O Maranhão ainda pertence ao Nordeste, mas a meu ver o Pará é uma zona de encontro da Amazônia com o Nordeste.

Depois, abaixo de Minas, apesar de todas as diferenças, eu reputo que São Paulo e Rio formam culturalmente um só bloco, indiscutivelmente muito diferenciado, mas que de algum modo se prolonga até o Paraná, separado dos gaúchos por Santa Catarina, que constitui uma cortina com características próprias que tem e não tem muito prolongamento na zona alemã do Rio Grande do Sul.

Em todos esses Estados foram se formando famílias de almas, levadas a uma espécie de harmonia e de afinidade que tem sua relação com o que aconteceu no lado hispano da América do Sul.

Formação de regionalismos possantes na Europa

Enquanto a Espanha metropolitana é cheia de heterogeneidade, vemos que a “Espanha” sul-americana tem muito menos oposições entre país e país, do que, por exemplo, na zona norte da Espanha entre duas ou três faixas de populações existentes ali. Contudo, não há essa homogeneidade brasileira. Aqui somos irmãos, ali são primos muito achegados, mas primos.

Entretanto, de um lado e de outro dessa linha divisória entre hispano e luso houve o mesmo fenômeno, pois também Portugal é muito mais diferenciado dentro de si do que o Brasil. Já a Espanha é muitíssimo mais diferenciada em seu interior do que a América espanhola. Nesta, porém, veem-se também as mesmas sobras de espaço e a formação das mesmas “ilhas” ou “arquipélagos” de regionalismos que começaram a florescer e que teriam dado, cada qual, algo bem original, interessante, se não fossem certas circunstâncias que descreverei daqui a pouco.

Para compreendermos bem a energia desse fenômeno, que a meu ver fica no fundo de uma descrição do Brasil, antes de voltar a esta eu queria considerar um fenômeno análogo curioso.

As invasões dos bárbaros na Europa representaram qualquer coisa assim. O Império Romano era muito pouco numeroso para povoar as vastidões que conquistara. Entraram por cima os bárbaros e quebraram o Império Romano. Depois disso, cansaço geral, zonas vastas entre uns e outros povos e a formação de regionalismos possantes.

O absolutismo real quis acabar com os regionalismos

Mas não havia nenhuma força empenhada em abafar esses regionalismos, nada colaborava para estancá-los. Daí veio a Europa com suas demarcações, suas diferenças, suas riquezas. Mesmo assim, a partir da Revolução começou a trama para homogeneizar artificialmente a Europa.

Ninguém sabe o que teria sido o Velho Continente se não fosse o absolutismo real que, de um jeito ou de outro, tomou conta de todos os países europeus. Alguém objetará: “Na Alemanha, não.” Devagar… A Prússia foi um foco de absolutismo medonho nas próprias fronteiras, e a Casa d’Áustria, em seus próprios limites, constituiu Estados absolutistas sem regionalismos. De maneira que o mundo alemão era isso também: Baviera, Saxe, Württemberg assim fizeram nos seus âmbitos internos.

Os outros Estados não realizaram porque não podiam, e era o que havia de mais sadio na Alemanha, uma espécie de magma de quinhentos ou seiscentos pequenos príncipes soberanos, senhores de uma aldeia e metade da ponte que dava para a aldeia vizinha…, mas soberanos! Mandando delegações falar com o rei da França, discutir com o imperador, brigar com o rei da Prússia, etc., com peso.

Aquilo que houve de mais regional e sadio no continente europeu foi a Europa antes do Renascimento. Um pouco os Países Baixos, o antigo reino de Lotário, feito de cidades livres, feudos e pequenos reinos, e assim ficou até o fim, com um regionalismo muito marcado.

No período do Brasil–colônia trabalhou-se para a centralização

No Brasil, a formação de blocos isolados teria dado, “mutatis mutandis”, regionalismos contra os quais também houve o intuito de liquidar. Portugal fundou aqui as Capitanias, as quais deram em fracasso porque a nobreza a quem foram concedidas desejava viver em Lisboa. Já não era a nobreza feudal, mas a dos tempos modernos, do século XVI, que queria fazer navegações fabulosas, porém não se estabelecia nos lugares por onde navegava. Em geral, os nobres voltavam a Portugal, não pediam para serem vice-reis vitalícios e hereditários em algum lugar que eles descobrissem, nem o rei permitia. A tendência do monarca era de fazer daqueles Estados todos uma monarquia absoluta, unitária, com cada conquista portuguesa funcionando à maneira de província.

Tomemos, por exemplo, Goa, Damão, Diu, enclaves portugueses na Índia. Para a ótica portuguesa absolutista são províncias. O rei enviava um governador para Goa como mandava para Beira. Também em Moçambique e Angola foi assim. Dessa maneira o regionalismo não se desenvolve, porque enquanto não houver elites regionais não há regionalismo. E este sistema não era inteiramente impeditivo, mas criava largos obstáculos à formação de elites regionais.

O Brasil teve um governo geral, depois foi dividido em dois governos gerais, e mais tarde voltou a ter um único governo geral que, por fim, transformou-se em vice-reinado. Tudo isso mandado fazer sucessivamente por Portugal, a partir do Paço de Belém. As Capitanias foram lentamente absorvidas, enquanto o mesmo povo, em Lisboa, ia “comendo” os regionalismos dentro do próprio Portugal.

Então, no período do Brasil-colônia tivemos um primeiro trabalho para centralizar, ao invés de estimular os regionalismos que, apesar de tudo isso, de algum modo foram se formando a ponto de nos ter sido possível descrever as diferenças entre os diversos Estados brasileiros. Mas essas diferenças existiam à maneira de laivos que não tomaram a força necessária.

Analisemos, agora, como estavam esses laivos quando o Brasil foi declarado independente.

A nobreza da terra

Proclamado o Império, o próprio fato de o Brasil ser monarquia fez com que as partes mais conservadoras, as elites mais marcadas, nascidas do solo muito mais do que vindas de Portugal, iam formando a tal “nobreza da terra”, que se distinguia, mas não se separava da nobreza do reino. Esta era constituída pelos nobres vindos de Portugal, às vezes membros pobres das famílias da nobreza, que vinham para o Brasil e tinham foro nobiliárquico, com todos os privilégios dessa condição. A nobreza da terra não descendia dos nobres do reino, mas enobrecia pelo fato de, durante algum tempo, ter a direção de um desses blocos sociais. Esta, entretanto, olhava muito mais para o Rio de Janeiro, onde estava o trono imperial. E neste sentido a monarquia entrou como um fator de centralização.

Cito dois casos característicos: Pernambuco e Bahia. Cada qual constitui um polo e, se não fosse a monarquia, teriam levado uma vida muito mais centralizada em si mesmos e, portanto, mais regional, cultural e psicologicamente autônoma.

A existência de uma corte no Rio de Janeiro fazia com que todas essas elites mandassem seus melhores homens, suas melhores inteligências para luzir ali, e as damas mais elegantes para frequentarem a corte, considerando-se província e caipirada em comparação com o modelo que viam nascer na capital. Este foi um fator nocivo para a Contra-Revolução.

Sentido descentralizador das monarquias medievais

As monarquias medievais tinham um sentido descentralizador muito forte. Segundo a concepção daquela época, quando um rei possuía vários filhos era preciso dar um grande feudo para cada um, desmembrado das próprias terras do monarca. Assim, à medida que a dinastia ia mudando, o país se multiplicava em novos feudos, porque ficava feio um príncipe ser como é hoje, por exemplo, o Duque de York, que tem tanto a ver com York quanto qualquer inglês que esteja palmilhando uma rua de Londres. Quer dizer, um título meramente verbal, não existe na prática um Duque de York.

Na monarquia medieval, não. O nobre ia para um determinado lugar a fim de abrir ali um foco de vida, mais ou menos como na Igreja, até trinta ou quarenta anos atrás, quando se dividia uma diocese e se nomeava um bispo para a parte da que se tornara uma nova diocese, a qual passava a constituir novo foco de vida religiosa.

A partir da Revolução, todas as monarquias foram centralizadoras. A menos centralizadora foi a austríaca, mas assim mesmo muito centralizadora em comparação com as medievais.

É a regra da Revolução, visando por toda parte resultados como estes: na Europa as grandes cidades e as regiões homogeneizadas. Na América do Sul, cortar a formação das elites regionais e dos regionalismos, para esses irem morrendo aos poucos, com vistas a uma república universal.

O processo pelo qual todas as nações europeias sofreram uma espécie de evanescência das suas fronteiras internas e constituíram blocos coesos e anônimos, como quadradinhos de açúcar, levou ao Mercado Comum Europeu. É o desfecho.

Poder-se-ia levantar uma objeção: há no que estou dizendo uma concepção tão apaixonada e lírica do regionalismo, que se pergunta se isso não conduz, de algum modo, para a autogestão. Afinal de contas, qual seria a evolução bem feita da Idade Média?

Evidentemente, não é a transformação em corpúsculos inviáveis. Seria uma caricatura, onde o presidente da cooperativa faz o papel de marquês. Se assim fosse, estaria tudo estropiado.

A meu ver, se considerarmos os reis santos e direitos e estudarmos as tendências dos reinos deles, compreenderemos o que era o espírito católico que germinava ali, e como essa germinação foi truncada.

Sadio regionalismo

Afinal de contas, o que é o sadio regionalismo e a partir de que momento uma unidade se plurifica? Até que ponto essa plurificação é exagerada e deve voltar ao “unum”? Em última análise, qual é o futuro da regionalização? Ela conduz a quê?

Assim como a graça produz entre a personalidade de cada um de nós uma afinidade em função de uma vocação comum, e por mais que essas personalidades sejam afins, são e devem ser distintas, ela também age nas nações e regiões, determinando movimentos diversos que implicam na forma da sociedade estruturar-se, organizar-se e caminhar para a sua própria perfeição, o que, por sua vez, é o reflexo da vida espiritual da sociedade.

O feitio da santidade da nação determina a forma e o grau de plurificação, de maneira a estabelecer o equilíbrio entre as tendências centrípetas e centrífugas que, vistas não como antagônicas, mas complementares, constituem a harmonia.

Desse modo, sempre haveria a partir do regionalismo e do feudalismo uma linha de progresso que não seria centrífugo, nem uma traição à unidade, mas uma multiplicidade que fosse a plena frutificação da unidade, tornada mais forte, e um estilo de imbricamento que dependeria da forma de virtude, do matiz de vida espiritual e de santidade para que cada povo fosse chamado.

Com efeito, ponham a fidelidade plena à graça e o problema se resolve. Entretanto, não se soluciona apenas pela fidelidade à graça. É preciso haver uma arte de governar por onde quem governa perceba qual é o ponto de chegada, como se conjugam a graça e a natureza em determinado lugar, e como a graça está atuando ali, para discernir profeticamente, com clareza, os próximos passos. Por certo, um futuro que nem sempre se vê como será, mas para o qual a boa dinastia ou a boa sucessão de governos de elite tendem constantemente. Mais do que qualquer outra coisa, governar é ter essa ordem e esse equilíbrio em cena.

Então nós compreendemos que a arte de governar se faz estimulando o movimento uno da graça e da natureza no lugar governado, de maneira a estimular a prática das virtudes pela correspondência à graça que irriga a natureza, e fazendo com que aquilo caminhe por um dinamismo próprio. Isto é ser conservador e, ao mesmo tempo, promover o progresso, no melhor sentido da palavra.

Contudo, o governo comporta outra coisa: a arte de corrigir. Porque não se trata de uma federação de Anjos, mas de gente continuamente tendente a pecar, a errar. Portanto, a arte de governar deve entrar em luta contra o mal, percebê-lo, ver para onde ele caminha, esmagá-lo; e quando ele se tornou tão forte, por falta de virtude dos cidadãos, que não é possível expulsá-lo, conduzir contra ele uma luta na qual, se não se puder combatê-lo de frente, convive-se com ele debilitando-o, criando-lhe condições opostas, “politicando” contra ele, mas procurando liquidá-lo de todos os modos.

Desses dois elementos se faz o caminho histórico de um povo, e ele toma a fisionomia desejada pela Providência.

O Brasil ideal

Assim, quem esteja governando deve tender continuamente, na medida do possível, para um ponto ideal, e para isso precisa conhecer muito bem esse ponto, embora ele só se realize esporadicamente na História. Mas é bom que esse ponto ideal seja uma meta difusa na alma dos povos, com vistas a fazê-los tender de algum modo para isso. Em outros termos, essa ordem ideal, que existe habitualmente apenas de um modo incompleto e irregular, precisa ser conhecida para que os bons tendam para lá.

Há um plano de Deus que resulta de uma certa situação natural e de um certo “equipamento” sobrenatural. Esses dois fatores se encontrando têm um dinamismo próprio que caminha numa certa direção. O segredo é conhecer o mecanismo interno desse dinamismo e ajudá-lo estimulando, protegendo e corrigindo eventuais desvios, não o dinamismo em si, porque este é bom.

Por isso, ao tratar do Brasil deve-se pensar num Brasil ideal. Esse Brasil ideal não se faz lendo nas bibliotecas europeias, mas imaginando, nesses vários esboços de alma que o Brasil teve, como seria o sopro da graça e a perfeição do local, para depois tentar imaginar, com alguma probabilidade, o que poderia ser, nesse Brasil, a harmonia entre a unidade e a variedade, o que favorecer e o que combater, qual é o contra-Brasil atrelado ao Brasil, o “Brasil velho” acoplado ao “Brasil novo” – no sentido espiritual que dá São Paulo a respeito do homem velho e do homem novo (cf. Ef 4, 22-24) –, e como fazer o incremento do Brasil na ordem temporal como fruto da conjugação desta com a ordem espiritual.

Então, considerando assim esses vários Brasis, vai-se elaborando uma escola de pensar, de viver, de fazer o bem, de combater o mal, uma escola de rezar.    v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/6/1987)
Revista Dr Plinio 265 (Abril de 2020)

 

 

Errata: Na nota da página 31 do n. 264, no lugar de “Edmond Rostand (*1868 – †1918)” leia-se “Alexandre Dumas (*1802 – †1870)”.

 

A Igreja refulgirá com esplendor

A Igreja foi profanada de maneira a estampar em sua face uma fraqueza e uma indignidade que ela não tem, tornando-se sujeita a uma forma de humilhação inenarrável. Logo, deve vir uma glorificação, não propriamente maior do que a Ressurreição ou Ascensão, porque a Igreja não morre, mas a Esposa Mística de Cristo refulgirá com um esplendor, uma maravilha que esteja na proporção da humilhação sofrida.

 

Páscoa é uma palavra que significa passagem. Quando se fala da Santa Páscoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, refere-se à sua Santa Passagem.

Festa de triunfo

Passagem de quê? Aquele fato extraordinário miraculoso, único na História, pelo qual Nosso Senhor Jesus Cristo morto pelos seus assassinos, depois de ter passado três dias na sepultura, ressuscitou-Se a Si próprio, um Anjo abriu sua sepultura e Ele apareceu resplandecente em vários lugares na glória de sua Ressurreição.

Jesus veio à Terra para uma luta, uma oblação e uma vitória. A sua luta e a sua oblação tinham que terminar numa vitória. A Páscoa é esta passagem d’Ele do estado de morto para vivo; de morto que se auto-ressuscita. É isto que não tem precedente na História. Já houvera pessoas que ressuscitaram um morto. Ele mesmo ressuscitou o filho da viúva de Naim, a filha de Jairo e Lázaro, mas um morto que ressuscita a si mesmo só pode ser Deus. Ao se auto-ressuscitar, Ele derrota magnificamente todos os seus adversários. Mais: é Deus que vence o demônio, a verdade que vence o erro, a virtude que vence o crime, a ordem que vence a desordem, a luz que vence as trevas. A Páscoa é, pois, fundamentalmente uma festa de triunfo.

Por causa disso as luzes da Páscoa são esplêndidas, a alegria é de vitória, um desses gáudios irradiantes e comunicativos em que as almas têm vontade de proclamar. É uma coisa como o Sol em pleno meio-dia. É assim que se pode interpretar a alegria da Páscoa.

Seriedade com que se celebrava a Liturgia da Semana Santa na pequena São Paulo

Eu me lembro bem do contraste que havia em todo o ambiente da cidade entre a Páscoa e os dias anteriores da Semana Santa.

Na pequena São Paulo de então, em todas as igrejas se celebrava a liturgia da Semana Santa com uma seriedade que hoje em dia, infelizmente, não se tem mais. A partir de Quarta-feira Santa começava-se a rezar o chamado Ofício de Trevas. Colocavam dois grupos de clérigos, um em frente ao outro, no próprio presbitério do altar-mor, onde começavam a recitar salmos alusivos à Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. O fundo do presbitério estava todo coberto por um grande pano roxo, que é a cor da dor, da tristeza. Assim, a igreja, habitualmente cheia de cores alegres, apresentava um fundo de tristeza. Uma peça triangular cheia de velas cobria o altar de cima a baixo, terminando com uma vela central. À medida que o ofício ia se desenvolvendo, em períodos marcados levantava-se um acólito, apagava uma vela e voltava ao seu lugar. Quando o ofício estava no fim, era o sinal de que a luz do mundo tinha se apagado.

Todo o recinto sagrado ficava envolto em uma atmosfera de recolhimento e tristeza, com todas as luzes apagadas. Alguém levava aquela última vela para trás do altar, onde ela permanecia acesa, enquanto o restante da igreja ficava na escuridão. Era o sinal de que Nosso Senhor Jesus Cristo tinha cessado de brilhar no mundo e que sua Morte, já prefigurada naquele dia, aconteceria em breve.

Na Quinta-feira Santa havia uma cerimônia muito bonita, que era o desnudamento dos altares.

Após a Missa, que ainda tinha algo de festivo no meio de tanta dor, pois era a alegria da última Ceia antes da tristeza pela Paixão que se iniciaria. Guardavam o Santíssimo Sacramento numa urna revestida de seda branca e bordada com um cordeiro dourado, colocada no alto de um altar, retiravam dos outros altares todos os ornatos, velas, vasos, toalhas, etc., e a igreja apresentava um ar de desolação e tristeza.

Na Sexta-feira Santa já não havia Missa. Era celebrada o que se chamava “Missa dos pré-santificados”, na qual não existia a Consagração. O padre tirava o Santíssimo Sacramento daquela urna, e apenas se consumiam as sagradas Espécies que na véspera tinham sido consagradas. Depois não havia mais Hóstias na igreja. Guardavam em algum lugar as que eram destinadas aos moribundos, mas sem objeto de culto. O tabernáculo permanecia aberto para indicar que o Dono da casa não estava mais presente.

Os sinos não tocavam mais, os fiéis vestidos de preto formavam longas filas, passando diante de um crucifixo e osculando-o. A cidade toda ficava imersa numa espécie de silêncio respeitoso, refletindo a tristeza enorme da humanidade porque Aquele que era o Sal da terra e a Luz do mundo, o Salvador, não se encontrava mais presente.

Na Páscoa, a cidade passava da tristeza para uma alegria inocente

A partir do meio-dia do sábado, prenunciavam-se as alegrias da Ressurreição. Já pela manhã as crianças penduravam nos postes figuras representando Judas, para serem espancadas. Nas casas começavam a preparar os piqueniques e os almoços festivos do dia seguinte.

Chegada a Páscoa da Ressurreição, as pessoas punham trajes alegres, cumprimentavam-se efusivamente, os sinos da cidade repicavam, pois Jesus Cristo ressuscitou, o demônio foi esmagado e Nossa Senhora está inundada de felicidade!

Pelo gosto de sondar esses ambientes, lembro-me de que certa vez fiz algo de que me alegro: subi ao ponto mais alto de São Paulo naquele tempo, que era a torre da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, para dali contemplar a cidade no momento em que se comemorava a Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu queria ver se no ar da cidade se sentia a alegria da Páscoa, e de fato senti. Quando, aos meus pés, os carrilhões começaram a tocar e depois na cidade de São Paulo, sem arranha-céus ainda, de todas as distâncias chegavam os ecos dos sinos que bimbalhavam naquela quantidade enorme de torres de igrejas por todos os lados, percebia-se a transformação da cidade, que passava da tristeza para uma alegria inocente e triunfal. Eu saí de lá triunfante, com a ideia de que tinha participado com vitória Nosso Senhor calcando aos pés o demônio.

Era um júbilo, um triunfo pascal com grandeza bíblica, pois o verdadeiro espírito da Páscoa tem grandeza bíblica, desde que se preste atenção e o contemple como os personagens bíblicos olhariam para esse acontecimento.

Grandeza do fato de Nosso Senhor ressuscitado aparecer a sua Mãe Santíssima

Certa ocasião, durante uma Missa, eu estava pensando como seria, dada a grandeza intrínseca da Ressurreição, o “modus faciendi” adotado por Deus para que ela tivesse toda a sua majestade.

Um “modus faciendi” seria a vida voltando ao cadáver divino – no qual a união hipostática não cessou apesar da morte – de maneira que as cicatrizes se recompusessem, a respiração recomeçasse, e toda a perfeição e grandeza d’Ele fossem como que florescendo. A mais estupenda primavera da História! Quando chegasse um determinado momento, a sepultura estaria cheia de Anjos que cantariam o mais estupendo “Gloria in excelsis”, e Nosso Senhor Se levantaria como um Rei. Os Anjos removeriam a pedra e Jesus, no mesmo instante, apareceria para Nossa Senhora porque para Ele não havia distância. Eu tenho como certo que, no momento em que Jesus recobrou a vida, Ele já saiu da sepultura e apareceu a Maria Santíssima.

Outro modo seria: de repente a vida voltar ao cadáver com a plenitude inteira d’Ele, como se fosse um raio feito para viver e não para matar, mas que, encontrando obstáculos, mataria. Sua Alma entraria no Corpo e apareceria a Nossa Senhora. Portanto, uma coisa imediata.

A meu ver, a beleza do ato conteve as duas hipóteses. Pode-se imaginar algo de maior grandeza bíblica do que Deus ressuscitando-Se a Si próprio e que aparece à sua Mãe Santíssima? Em comparação com isto, o que é a entrega das tábuas da Lei, a dança de Davi diante da arca, e tudo quanto se passou no Antigo Testamento?

Grandeza semelhante pode ser contemplada na atual fase em que se encontra a Santa Igreja.

Quando alguém é submetido a uma prova de humilhação, quanto mais profunda esta tenha sido tanto mais alta será a glória que virá em reparação. Por exemplo, o julgamento e a Crucifixão constituíram uma humilhação sem nome para Nosso Senhor. Fazem “pendant”, contrapõem-se a isso a Ressurreição e a Ascensão, que são glórias também indizíveis.

O sagrado semblante da Igreja incutirá terror aos maus

Ora, nós vivemos numa época em que a Igreja está sendo humilhada além do extremo limite que se imaginava possível. Em que consiste essa humilhação? É tão horrível que se torna até desagradável a analogia que vou empregar, mas exprime bem a realidade do crime que está sendo cometido.

Os carrascos terem tomado Nosso Senhor durante os três dias da Paixão e O terem desfigurado o quanto puderam, inclusive a Face divina, não é uma coisa tão horrível quanto se eles O tivessem feito ingerir uma substância qualquer por onde Ele fizesse com sua Sagrada Face contorções ridículas e medonhas. Isto seria fazer com que partisse d’Ele um movimento que O desordenasse e causasse o seu desfiguramento. Isso seria mais terrível do que qualquer coisa, sobretudo se permanecesse à maneira de um cacoete definitivo.

Pois bem, precisamente o que se perpetrou foi obrigar a Igreja a fazer um cacoete com a própria face, sujeitando o Corpo Místico de Cristo a esta forma de humilhação inenarravelmente pior do que qualquer outra. Logo, deve vir uma glorificação, não propriamente maior do que a Ressurreição ou Ascensão porque a Igreja não morre. Mas, nesta ordem do desfigurado, a Esposa Mística de Cristo tem que refulgir com um esplendor, uma maravilha que esteja na proporção da humilhação sofrida.

Há mais: seria lógico que quando ela vencer, assim como a face da Igreja foi profanada de maneira a estampar uma fraqueza e uma indignidade que ela não tem, seu sagrado semblante meta terror nos maus e arranque gritos de admiração da humanidade!

Eu creio que Nosso Senhor, por ocasião da Ascensão, reconstituiu um “super-Tabor”. E, portanto, tudo quanto se relata de sua Transfiguração, Ele brilhou com aquilo tudo e mais ainda durante a Ascensão. Tenho a impressão de que, quanto mais Ele ia subindo, mais esplendoroso Se tornava. Seria lógico, pareceria razoável que isto fosse assim, porque há a hora da humilhação e a hora da glorificação. E é preciso que o cálice da humilhação tenha sido bebido por inteiro para depois a glória vir por inteiro também.

Assim acontece com a causa da Contra-Revolução. Esse é um fenômeno tão profundo que há dias nos quais não percebemos a glória de sermos contrarrevolucionários. Mas, de repente, vem um lampejo e sentimos por inteiro essa glória. São pequenos antegozos do esplendor que virá após a longa humilhação que devemos percorrer, para sermos dignos da grande glória quando o dia da glorificação chegar.        v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 25/12/1976, 6 e 15/4/1980)
Revista Dr Plinio 265 (Abril de 2020)

Cindindo a História de alto a baixo

Numa piedosa imagem de Nosso Senhor flagelado, chama muito a atenção a sublimidade do olhar, no qual transparece o sofrimento intenso do Divino Salvador, que medita com profundidade a respeito do significado transcendente, metafísico, sobrenatural de todas as dores pelas quais passa. O Redentor divide a História entre os que são d’Ele e os que são contra Ele.

 

Tenho a intenção de comentar uma imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo flagelado. Dizer dessa imagem que é bonita é muito pouco, porque mais do que isso é profundamente impressionante, e de molde a despertar muita piedade. E é enquanto tal que desejo fazer dela objeto de nossas considerações.

Significado transcendente, metafísico, sobrenatural das dores

À primeira vista, quando me foram apresentadas fotos dessa imagem, fiquei chocado porque as feridas do Corpo sagrado de Nosso Senhor Jesus Cristo estão apresentadas com um tal realismo e de modo tão brutal, que o instinto de conservação do homem clama com aquilo, tem a tendência a fugir e achar que não é arte representar um horror daqueles de um modo tão horripilante.

Esse é um primeiro impulso que deve ser dominado porque é uma ingratidão. Tal será que, tendo Nosso Senhor Jesus Cristo sofrido tudo o que padeceu por nós, não queiramos sequer olhar para o Corpo chagado d’Ele porque isso pode nos desagradar. Como um primeiro impulso se compreende, pois é uma reação quase física. Porém, haveria ingratidão em consentir nesse impulso. Além de ingratidão é uma falta de respeito sem nome!

Compreende-se, então, que o escultor tenha chegado a esculpir de modo tão terrivelmente realista essa imagem, a qual pareceu-me ser uma escultura espanhola, com aquele realismo próprio das imagens sobre a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, e que deveria datar de fins do século XVIII, mais provavelmente do século XIX. Soube depois que ela se encontra no Canadá.

Consideremos, nas seguintes fotos, alguns aspectos dessa imagem.

Algumas coisas me agradam extraordinariamente nessa figura. A primeira delas que me chama mais a atenção é o olhar profundamente pensativo, meditativo. Tenho visto incontáveis crucifixos em que Nosso Senhor parece abismado – aliás, santamente – na consideração da sua própria dor, e onde o artista procura atrair a atenção para os sofrimentos do Divino Crucificado a fim de provocar compaixão. Nesses crucifixos o próprio olhar do Redentor, muito legitimamente, parece perguntar: “Pelo menos nesta dor, tu não tens pena de Mim?”

Porém, aqui eu interpreto o olhar de outra maneira. É bem verdade que a dor está presente. É o olhar de uma Pessoa que sofre intensamente, mas, por cima da dor, nota-se que há uma reflexão profunda, consternada de Quem pensa profundamente a respeito do que Lhe está acontecendo, do significado transcendente, metafísico, sobrenatural de todas as dores pelas quais Ele está passando, e que constitui propriamente uma meditação.

Nosso Senhor enquanto pedra de escândalo

É uma meditação sobre a sua própria Paixão, como Ele gostaria que nós fizéssemos e que, segundo interpreto olhando a Face sagrada, parte do mais alto ponto de consideração em que uma mente humana possa se colocar. Mas é, ao mesmo tempo, uma reflexão que vai até o mais concreto, palpável, miúdo, o mais distante da transcendência, e une tudo numa vista em comum, numa consideração global não só do que fazem contra Ele, mas também do que realizam por Ele.

De maneira que estão contemplados não apenas os homens vivos nessa ocasião, mas todos os que ao longo dos tempos meditariam esse passo da Paixão e seriam frios, indiferentes, cruéis, ou O adorariam transportados de amor e admiração na consideração da situação em que Ele está.

Tudo isso é considerado, o que me faz lembrar a palavra do Profeta Simeão sobre Ele: Pedra de escândalo que dividiria os homens para a perda e a salvação de muitos, a fim de que se revelassem as cogitações de muitos corações (cf. Lc 2, 34-35). Quer dizer, dividindo, cindindo a História de alto a baixo em dois: os que eram d’Ele e os que eram contra Ele, salvando-se uns e perdendo-se os outros. Parece-me que essas considerações altíssimas, e outras ainda, estão expressas nesse olhar, que pousa ao longe, num ponto indefinido.

Entretanto, há uma altaneria na posição d’Ele pela qual, por mais que esteja alquebrado, não está arqueado. Pelo contrário, o tronco sagrado está ereto numa posição que se poderia chamar de nobre. A própria cabeça não está caída de modo desairoso, nem erguida de maneira arrogante, mas posta com uma naturalidade digna sobre o pescoço, e elevada como um Homem que está entregue às suas mais altas cogitações.

Notem a posição lindíssima dos dois braços. Dir-se-ia tratar-se de um personagem num ato de muito protocolo, de muita etiqueta. Nas cortes, muitas vezes o modo correto de postar os braços diante de um rei ou de uma rainha é esse. Assim está Ele.

No Corpo ferido pela flagelação vemos partes da carne sagrada intumescidas, algumas foram batidas e outras arrancadas. Embora esteja cercado por gente que ria d’Ele, Jesus não olha para essas pessoas, mas as transcende. Ele está infinitamente acima de tudo isso, entregue aos seus pensamentos, à sua oração. De tal maneira que se poderia colocar, entre os muitos títulos que essa imagem mereceria, a frase: “Iesus autem orabat”, como também “Iesus autem tacebat”(1).

Três aspectos do divino olhar

Observem como o manto da irrisão, apesar de tudo, cai composto, com a parte direita meio voltada para trás, indicando por esses discretos indícios a beleza e a força moral que não O abandonaram nem mesmo nas situações mais terríveis.

Creio ser este semblante a última expressão do comovedor. É Cristo enquanto pensando, refletindo, orando durante a sua Paixão. Julgo discernir nesse olhar três aspectos. Primeiro, muita dor física que se exprime aí, seguida de muita angústia diante do sofrimento que vem. É Alguém que está em pleno tormento e sente o tormento que ainda vem. Portanto, encontra-Se no auge do horror, em que Ele ainda não sofreu tudo, e a morte que o libertará está longe. Ele já sofreu tanto que perdeu toda a força para resistir; entretanto, ainda tem que aguentar enormemente. Há, por isso, uma ansiedade, uma angústia. Mas que angústia doce, suave, sem agitação, confiante! “Isto tem uma saída. Meu Pai atenderá minha prece, e Eu chegarei até o fim. Isto tem um sentido.”

Por outro lado, vê-se a tristeza profunda, mas uma tristeza moral, como que divinamente decepcionado com aqueles que O abandonaram. Não parece que o Divino Mestre Se lembra, nessa hora, não dos miseráveis que O estão chicoteando, mas dos Apóstolos que O deixaram? Ele parece estar revendo cada Apóstolo, um por um: pensando em São Pedro, sobre quem Ele construiu a Igreja; em São João, o Apóstolo Virgem, que horas antes ainda deitara a cabeça sobre o peito d’Ele para fazer uma pergunta na intimidade; em São Bartolomeu, de quem Ele mesmo disse que era um verdadeiro israelita no qual não havia fraude e que, entretanto, O abandonou também… Ele está pensando em todos os outros. E lembrando-Se com horror do filho da perdição que O vendeu, Ele está cogitando em todos aqueles que O trairiam ao longo dos séculos.

Entretanto, Jesus está pensando também em algo que O angustia enormemente, mas é magnífico: Nossa Senhora e a dor que Ela está sofrendo.

Porém, por cima disso, parece-me ver os olhos do pensador que está meditando, fazendo a Filosofia e a Teologia daquele acontecimento central da História, que é a sua Paixão e Morte. E contemplando tudo isso Ele está orando. A meu ver é manifesto haver dentro disso uma magnífica oração.

Nosso Senhor sofreu tudo isso pelos rogos de Maria

Quando uma pessoa pensa, costuma frequentemente formar um vinco precisamente nesse lugar da fronte onde, na imagem, sobressai uma vergastada profunda. A meditação do verdadeiro homem de Deus é muitas vezes acompanhada de dor, de tristeza e de amargura, faz sangrar a alma, se não o corpo, que envelhece, encanece, se consome, mas se eleva e se santifica.

Considerem no Corpo divino a tumefação do braço esquerdo: nem tem o contorno comum de um braço, mas está todo ele bailando em torno dos ossos. E esses braços ainda vão carregar a Cruz, essas mãos ainda serão cravadas no madeiro, até que Ele morra. Esta é a imensidade de tormentos que O aguarda depois de ter sofrido tudo isso.

Ali vemos amarradas as mãos sagradas do Onipotente. É bonito que o escultor as tenha apresentado inteiramente descontraídas; não há contração nervosa, mas estão como as mãos de um rei prontas para serem osculadas. É o Rei da dor.

Por nós, que somos escravos da Santíssima Virgem, essa imagem deve ser considerada de dentro dos olhos de São Luís Grignion de Montfort. Devemos entender que se Nosso Senhor sofreu tudo isso foi pelos rogos de Maria; se esse Sangue é aplicável a nós, é pelos rogos de Nossa Senhora; se nossa presença não causa horror a Ele, mas, pelo contrário, é aceita com misericórdia, é pelos rogos de Maria.

É com Ela, por Ela e n’Ela que nós podemos nos apresentar a Nosso Senhor Jesus Cristo. Maria Santíssima é o caminho necessário, por vontade de Deus, para nos aproximarmos de seu Divino Filho e sermos, não digo dignos, mas pelo menos de algum modo proporcionados para olhar essa figura, e pedirmos por nós e pela Igreja.

Considerações sobre o escultor da imagem

Agora, uma palavra sobre o escultor. A meu ver, esse homem fez uma coisa extraordinária no seguinte sentido: muitas vezes vemos em uma obra de arte a expressão da alma do artista que a produziu. Essa é uma qualidade, pois indica o modo pelo qual a pessoa exprimiu o que aquele tema lhe produzia no espírito. Contudo, muito mais bonito é quando o artista de tal maneira se deixa identificar com o tema, que a expressão de alma dele não aparece, e sim somente o tema. Nessa escultura não se sente o artista, mas apenas Nosso Senhor Jesus Cristo.

O artista de tal maneira viveu, por assim dizer, a dor de Nosso Senhor que ele O representa e se apaga. Não se percebe qual era o estado de alma dele, a não ser na extrema inteligência, propriedade, finura e, sobretudo, na extrema piedade com que ele apresenta a matéria; de resto, ele está ausente. Isso, a meu ver, é o auge do mérito dentro da obra de arte.                v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/2/1976)
Revista Dr Plinio 265 (Abril de 2020)

 

1) Do latim: Jesus, porém, orava. Jesus, porém, calava.

 

Fortaleza formidável – Santo Anselmo

Santo Anselmo marcou o século XI por sua ciência, piedade e pelas lutas que travou. Olhando para a sua vida, tem-se a impressão de uma fortaleza formidável, um homem que encheu o seu tempo e cuja glória perdura por todos os séculos graças às vitórias obtidas por ele em favor da Fé.

A solidez, a força, a grandeza da Idade Média se mostram na estatura dos grandes homens que a marcaram. Com efeito, se não tivesse havido campeões como ele, a Igreja teria afundado. Portanto, a solidez não consistia em não haver luta, mas na existência de homens dispostos a combater em todos os sentidos.

É preciso estar lutando sempre, com uma energia inquebrantável, uma atividade contínua, um inteiro desprendimento de si, com os olhos postos completamente na Santíssima Virgem, para que a batalha seja levada a bom termo. Encontrando combatentes verdadeiramente dependentes de Nossa Senhora, a causa é solidíssima, vence mesmo.

Hoje, como durante o Reino de Maria, a nossa vida de luta deve ser constante. Precisamos nos compenetrar de que no dia em que não tivermos lutado, não teremos carregado a cruz. Ora, para um católico, um dia passado longe da Cruz de Cristo e de Nossa Senhora é um dia frustrado. Peçamos a Ela que nunca permita um dia assim em nossas vidas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/4/1966)

Mediação de Maria suavemente expressa

No afresco da Mãe do Bom Conselho de Genazzano o Menino Jesus está numa grande intimidade com Nossa Senhora, mas os olhos d’Ele estão voltados para cima, enquanto os d’Ela para baixo. Ela olha para Ele, e Ele para Deus.

Entretanto, o olhar d’Ela é curiosamente bivalente. Embora Maria Santíssima contemple seu Divino Filho, também é verdade que está olhando para quem venera o quadro. Este é bem o papel da Mãe de Deus: a Medianeira que recebe nossa oração, transmite para Jesus e Ele a leva às outras Pessoas da Santíssima Trindade.

Desta maneira temos a doutrina católica sobre a Mediação de Maria suavemente expressa, sem a precisão dogmática característica da Teologia, mas com a suavidade e o subentendido próprios à arte.

É muito bonito que tanta doutrina tenha sido posta tão delicadamente nesse afresco. Sem dúvida, é mais interessante descobrir isso analisando a pintura do que se estivesse escrito embaixo: “Mediação Universal”. Porque essa sublime verdade insinuada, dada a entender de leve, sem estar afirmada de modo categórico, mas de maneira a permitir ao fiel ir descobrindo como por detrás de um aroma delicado, tem um inegável encanto. Para uma obra de arte, às vezes um certo mistério aumenta o atrativo, e nesse afresco encontramos esse mistério.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/6/1974)

Revista dr Plinio 265 (Abril de 2020)

“Tenho sede”

Imaginemos que um de nós estivesse acompanhando Nosso Senhor Jesus Cristo na sua Paixão, e Ele, a certa altura, pedisse um pouco de água. Levamos-Lhe um copo, o Divino Redentor bebe a água e, cheio de amor e dor, diz: “Mas, meu filho, tão pouco nesse copo?” E continua carregando a sede que por negligência não matamos. Não é verdade que isso nos marcaria até o fim da vida? Eu morreria inconsolável! Ora, isso é o que fazemos quando não Lhe damos o que Ele queria de nós.

Tomando em consideração que cada um de nós foi chamado a matar a sede do Redentor ao longo dessa Paixão atroz pela qual passa a Santa Igreja, e que essa sede nós mataríamos se oferecêssemos todo o esforço, todo o sacrifício que poderíamos fazer, quiçá se Ele nos aparecesse, diria: “Meu filho, tão pouca água nesse copo?”

Esta é uma reflexão muito apropriada para a Semana Santa. Ele tem poucos a quem pedir isto; pede a nós, e damos os copos negligentemente cheios, de qualquer água do caminho, ao invés de procurarmos uma fonte com água magnífica e levarmos uma jarra, para enchermos novamente o copo caso Ele queira beber mais.

Por exemplo: do que valem as nossas Comunhões, nosso Rosário? Se nos fossem pedidas contas, o que teríamos a dizer? E se não for suficiente? Se tal coisa que eu deveria ter dito com entusiasmo não o fiz?

Não pretendo acabrunhar ninguém com meditações muito pesadas, mas quando se aproxima a Semana Santa a ocasião é particularmente indicada para essas considerações. Aliás, a Igreja realiza cerimônias pungentes nesse período precisamente para tocar as nossas almas nesse sentido.

Por isso aconselharia o seguinte: na Sexta-Feira Santa, às três horas da tarde, considerar que Nosso Senhor está morrendo, e nesse momento, do alto da Cruz, Ele viu a vida inteira de cada um de nós e teve sede.

Quando Ele gemeu “sitio” – tenho sede –, sem dúvida padecia uma grande sede física, devido à enorme quantidade de sangue que vertera. Mas a principal era a sede de almas. Jesus teve, portanto, sede de incontáveis almas, dentre as quais estava a minha. Na medida em que correspondo ou não às graças que Ele conquistou para mim com sua Paixão, posso aumentar ou mitigar sua sede.

De maneira que cada um de nós tem o poder de atenuar o sofrimento d’Ele no alto da Cruz. Donde a importância de pensarmos: ao menos nesta hora eu vim me recolher, pôr-me diante do Santíssimo Sacramento, aos pés de uma imagem de Nossa Senhora e pedir que Ele toque minha alma, e dê vida a esses pensamentos.

Há uma canção muito piedosa a Nossa Senhora, que se costuma entoar durante a Via-Sacra, que diz em uma de suas estrofes: “Sancta Mater istud agas: Crucifixi fige plagas corde meo valide”– Santa Mãe, faze isto: fixa em meu coração, de modo efetivo, as chagas do Crucificado.

Pois bem, na Sexta-Feira Santa, às três horas da tarde, por exemplo, é o momento de dizer: “Santa Mãe, fixai as chagas do Crucificado no meu coração valide, ou seja, validamente, de fato”. E assim, não passarmos a Semana Santa com as futilidades da vida comum, mas mantermos firme no nosso espírito essa clave.

Melhor ainda seria se recitássemos os mistérios dolorosos do Rosário todos os dias nesse espírito e com esta ideia: “Em cada mistério atenuo as dores que Nosso Senhor Jesus Cristo sofreu naquele tempo.” Assim, estaremos dando-Lhe um copo d’água que Ele está nos pedindo.(*)

 

Plinio Corrêa de Oliveira

* Cf. Conferência de 7/4/1990.

 

Oração pedindo a serenidade de ânimo

Considerando que uma alma nos ajuda no Céu, sobretudo para a prática das virtudes de que deu especial exemplo na Terra, e para a vitória contra as dificuldades que nesta vida teve que enfrentar, peço-Vos, ó minha Mãe, que me concedais a graça da admirável e exemplar serenidade de ânimo da qual destes prova, mesmo nos lances mais trágicos de vossa vida.

Portanto, diante das apreensões mais negras, dos abandonos mais cruéis, dos tratos mais injustos, ajudai-me a manter-me recolhido, distante dos acontecimentos que possam perturbar-me e tirar a minha alma da serenidade na qual recebe as graças celestes.

Amém.

 

Plinio Corrêa de Oliveira