Frescor de alma na espera

Durante uma longa espera de algo que se deseja muito, por vezes ocorre o seguinte: primeiro, um susto por não ter recebido; depois a vontade aumenta e não só se vence o espanto, mas o desejo se multiplica pelo desejo, a ponto de se tornar abrasado. Quando não se recebe ainda, a situação passa além de todo meridiano e fica-se com uma vontade por assim dizer trans sonora que canta diante de Nossa Senhora continuamente a súplica daqueles que emudeceram de tanto querer.

Neste caso estão aqueles que há muitas décadas anseiam pela realização das promessas de Fátima. Só se pode encontrar um paralelo para isso: é dos homens que vão esperar a vinda de Nosso Senhor no fim do mundo, dos quais está dito que se esses dias não fossem abreviados, nem eles perseverariam.Esses sofrerão tanto com a espera que, segundo alguns intérpretes das Sagradas Escrituras,serão poupados da morte, tal o tormento deles e tal o desejo de Deus de glorificá-los por terem passado por um sofrimento equivalente à morte.

Nós passamos propriamente pela prova da espera porque se tivéssemos, de um momento para outro,a declaração de que o desejo será realizado em tal data, nós exultaríamos e reverdejaríamos. Porém, Nossa Senhora não nos comunica isso.

Para a espera ser assim premiada é preciso que seja perfeita. E a espera perfeita não é apenas a que chega até o dia da realização da promessa, mas sim aquela na qual a alma arde mais ou menos como a sarça ardente vista por Moisés, a qual o fogo queimava sem destruir.

É preciso que a alma seja queimada pelo desejo da vinda dos acontecimentos e pelo tormento da espera, sem perder com isso nada de seu verdor, de sua indestrutível juventude. Espere com o frescor de alma do primeiro momento, de maneira que as sucessivas desilusões não crestem a alma.

Como fazer para que a espera não nos creste a alma? Ser incondicional com Deus no modo de esperar.

Há dois modos de se colocar diante da eventual proximidade do cumprimento das promessas. Um é o de quem diz: “Virá, e eu não tolero a ideia de que não venha logo”. Neste caso, se não vier, a alma cresta um pouco.

Outro é: “Virá, e é provável que seja em breve, certeza não tenho. Porém, de Deus tolero tudo, porque Ele é meu Senhor. Ele e minha Mãe celeste dispõem de mim como quiserem. Se dispuserem outra delonga, eu a bendirei e andarei com paz nas sombras da demora, certo de estar fazendo a divina vontade”.

Assim o frescor da alma até se revigora, por ser o fruto da obediência incondicional.

Contudo, se alguém receia já não ter conservado esse frescor de alma, poderá dirigir a Deus esta oração:

“Meu Deus, não aceitei de Vós o caminho que passava pela inteira obediência. Deixai-me ao menos aceitar a via que passa pela punição justa. Adoro vossa infinita perfeição enquanto tendo me castigado, pois eu merecia. Mas Vós me destes por Advogada a Mãe de Misericórdia. A Ela eu suplico que tenha pena de mim, ‘desencrespe’ minha alma e a restaure.”

Com isso poderemos nos revigorar, pois para os que tiverem qualquer grão de esperança haverá sempre uma enorme possibilidade de salvação.

Peçamos a Nossa Senhora que nos dê esse grau de esperança flexível e íntegra que nunca se cansa nem se cresta; essa contrição perfeita que adora o castigo, a intransigência e a repulsa de Deus, mas recorre confiante à Mãe de Misericórdia

São Francisco Di Girolamo

Pregador incansável pela conversão dos pecadores, São Francisco Di Girolamo soube conservar-se inteiramente humilde e abnegado, apesar do estrondoso sucesso que obtivera em seu apostolado. Homem a quem a própria Virgem Santíssima recomendara aos pecadores, São Francisco arrastava as almas ao caminho do bem, por sua despretensão e humildade.

Em legado ao bem que realizou, a Providência concedeu-lhe uma das mais belas mortes. Rendeu ele seu espírito ­cantando o “Magnificat”, cântico com que a própria Mãe de Deus louvou o Padre Eterno pelos dons que recebera.

Uma vida cheia de glória que proclamava humilde e alegremente sua plenitude, no momento derradeiro de seu ocaso.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/5/1968)

Oração junto à imagem milagrosa

Mãe nossa, ajudai-nos misericordiosamente a ter sempre presente que ao longo das faces de vossas imagens correram lágrimas milagrosas. Compenetrai nossas almas da causa fundamental da tristeza de que destes mostra, ou seja, a Mensagem de Fátima não foi tomada em consideração. A humanidade, desvairada pela Revolução, tomou com menosprezo os pedidos, as promessas, as ameaças que então lhe comunicastes.

Por isso chorais. É o sinal de que a hora dos castigos está soando.

Entretanto, a indiferença continua completa na imensa maioria dos homens. Ela existe em parte – oh! dor! – naqueles que chamastes mais especialmente para tomarem consciência da gravidade imensa dessa situação, e se prepararem para os grandes dias que se aproximam.

Não permitais, Mãe de misericórdia, que esse estado perdure em nossas almas. Enviai vossos Anjos para expulsarem toda e qualquer influência diabólica que nos mantenha participantes na indiferença terrível com que o mundo de hoje considera vossas mensagens dadas em Fátima. Assim seja.

 

(Extraído de oração composta em 1973)

São Francisco de Jerônimo: despretensão e amor ao sacrifício

Quem se deixa dominar pelo orgulho perde todas as virtudes que eventualmente possua. Mas ao despretensioso todo o resto lhe será dado por acréscimo.

 

Em 11 de maio comemora-se a festa de São Francisco de Jerônimo, cuja biografia contém os seguintes dados(1):

São Francisco de Jerônimo nasceu em 17 de dezembro de 1642.

Grande pregador em Nápoles

Tornando-se jesuíta, seu maior desejo era ser missionário nas Índias e Japão, mas Deus o destinou a evangelizar o reino de Nápoles, trabalho ao qual se dedicou de corpo e alma.

Preparou, para auxiliá-lo, uma confraria de artesãos que se chamou Oratório da Missão; além de outros numerosos trabalhos, seus membros todos os domingos acompanhavam São Francisco em suas pregações pelas ruas e praças de Nápoles. Saíam cantando da Igreja de “Gesù Nuovo” e, em procissão, dirigiam-se aos locais mais frequentados.

Ao avistarem a procissão, os elementos de má vida abandonavam, sem cólera, o que estavam fazendo.

Francisco subia, então, a um lugar mais elevado e falava ao povo. Começava descrevendo, com energia, os horríveis efeitos do pecado e os castigos que esperavam o pecador.

Quando o temor estava em todos os corações, ele falava sobre a misericórdia de Deus. Depois dizia aos presentes que faria penitência por si e por eles. Ajoelhava-se ante uma cruz e, com o rosto em lágrimas, flagelava-se com uma disciplina de ferro. Não era preciso mais para o povo segui-lo, cheio de arrependimento.

Grande devoto da Virgem, que frequentemente enviava-lhe os pecadores que desejava se convertessem. Tornou-se famoso o caso de um homem, há muito afastado da Igreja, que Nossa Senhora o protegeu por causa do respeito com que saudava as suas imagens. Apareceu-lhe três vezes, ordenando que procurasse Francisco para se confessar.

São Francisco de Jerônimo morreu em 1716, cantando o “Magnificat” em agradecimento pelas graças que recebera em sua vida.

Meio publicitário de primeira ordem

Essa vida é uma verdadeira beleza! Vê-se como a graça prepara as pessoas de acordo com o ambiente em que elas devem atuar. É uma coisa evidente que este homem, que desejava fazer a pregação na distante China, no distante Japão, tinha todo o necessário para pregar na própria Itália. Ele era italianíssimo e o modo de ele fazer sermões o era também. É o Sul da Itália, todo entusiasmado por música, por cerimônias externas, por procissões, por aparato, gente com a imaginação quente, fértil, ao contrário dos nórdicos.

Vejam como é bem calculado ele sair, pelo Sul da Itália ensolarada, de dentro de uma igreja napolitana, com um grupo de gente cantando e fazendo uma procissão. É muito diferente, por exemplo, de um grupo de ingleses saindo da Catedral de Westminster, cantando e fazendo procissão nas brumas de Londres. Na Itália tudo isso toma outro aspecto, outra poesia.

Este Santo está inventando, portanto, um processo publicitário de primeira ordem para chamar a atenção num lugar onde todo mundo canta: a poética Itália daquele tempo, em que se trabalhava pouco e se vivia muito e melhor.

Imaginem as ruas estreitinhas da Itália daquela época, pelas quais as pessoas, saindo da Igreja do Gesù, caminham cantando hinos sacros. Todo mundo vai ver passar a procissão, até mesmo as pessoas de má vida. Sobe o santo num local mais elevado e começa a falar.

Agudo senso psicológico no agir

E notem o alto senso psicológico no agir: São Francisco entende bem que, para aquele gênero de gente, é preciso começar a falar pelo temor, pois se trata de pessoas embrutecidas, endurecidas no pecado e, no seu atual estado de espírito, incapazes de amor. Então, para descolar o apego desta gente aos bens da Terra, é necessário começar a dizer-lhes que são bens efêmeros, passageiros e, depois, falar das chamas do Inferno, no duro.

Depois de tê-los amedrontado bem e, pelo temor, produzir neles um início de desapego em relação aos bens terrenos, ele passa a falar da misericórdia para dar a esperança dos bens futuros, nutrir o amor de Deus e fazer com que Ele comece a lhes aparecer com a sua face amorosa.

Vemos, assim, o quanto esse caminho, pelo temor para o amor, faz bem. Toda espécie de aventureiro, de mafioso, de sem-vergonha de fundo de bodega, sai e começa a comentar:

— Mas como é esse Inferno? Pega fogo mesmo?! Como é esse fogo?

E ouvem a voz do Santo:

— Morre-se de repente… Cuidado com a morte súbita! Olhai o que aconteceu, no vosso bairro, com a Margherita — porque tem que ser assim, personalizado; para a oratória popular a coisa não pode ficar em teoria —, que morreu enquanto estava pendurando a roupa no varal. Quem haveria de dizer? Agora, eu pergunto: o mesmo não pode suceder com qualquer um dentre vós?

Dirige-se a um ouvinte e pergunta:

— Você não teve já uma tontura?

— Eu já tive.

Outro pensa: “Eu também tive, mas não conto!”

De repente, por essas “coincidências” de que os oradores assim inspirados são capazes, São Francisco diz:

— Você conta que teve! Mas não haverá alguém aqui que não tem coragem de contar que já sofreu alguma tontura?

E aquele que fizera o propósito de não contar, pensa: “Esse homem adivinhou o que está se passando em mim!”

Varão humilde que derrama o próprio sangue

Estando os espíritos assim vacilantes, ele começa então a falar da misericórdia. Mas aí há uma prática em que a justiça e a misericórdia se osculam: depois de falar da misericórdia, São Francisco dá uma prova da necessidade da justiça e uma amostra da imensidade da mesma misericórdia. E ele mesmo vai junto a uma cruz, ajoelha-se e diz: “Este sangue que vou derramar é por vós!” E começa a se flagelar. E vê-se correr o sangue do inocente, enquanto o pecador está embaixo, olhando e refletindo:

“Mas será possível? Eu fugiria na disparada para evitar essa sova, e ele a leva por mim! Que coisa fabulosa!”

E a graça começa a atuar. Não há coisa mais eficaz do que uma dupla graça: a da humildade e a do sangue derramado. Ou seja, ouvir um pregador destes que tem a coragem de falar sem procurar chamar a atenção sobre si, sem ser vaidoso, sem fazer espetáculo; ele está empolgando toda aquela gente, mas pensando abnegadamente na salvação das almas e na causa da Igreja, e não está preocupado nem um pouco consigo. Pelo fato de sentirem que não há nele egoísmo, ele arrasta os outros para abandonarem o seu egoísmo. Ademais, ele leva isso à generosidade de derramar o seu próprio sangue.

Esse fato me traz à memória um dito de Napoleão. Certa vez, quando ele estava no fastígio de sua glória e já pensando em proclamar-se imperador, perguntaram-lhe:

— Por que não te fazes aclamar Deus?

Ele respondeu:

— Porque, depois de Jesus Cristo, só há um meio de ser tomado a sério como Deus. É subir numa cruz e fazer-se crucificar. E ser crucificado eu não quero.

“Christianus alter Christus”(2). São Francisco de Jerônimo não se crucificava, mas para ser tomado a sério ele se flagelava. E no ato de açoitar-se, feito com humildade e desprendimento — porque uma flagelação orgulhosa não conseguiria coisa alguma —, ele levava as almas atrás de si.

Vemos, então, qual é o resultado dessas missões, o lindo fecho dessa biografia: um pecador a quem Nossa Senhora aparecia, recomendando que o fosse procurar. Um homem que, apesar desse sucesso estrondoso, se conserva inteiramente humilde e abnegado até o fim de sua vida, e que morre num ato de humildade, atribuindo tudo à Santíssima Virgem, como devia atribuir — porque, como diz São Paulo, cada um de nós é um servo inútil —, e cantando o “Magnificat” para agradecer os dons de que ele fora objeto.

A morte deste Santo é uma das mais belas que pode haver: morrer entoando o cântico com que Nossa Senhora agradeceu os dons que Ela mesma recebeu de Deus! Uma vida cheia e que proclamava, humilde e alegremente, sua própria plenitude no momento do seu ocaso. Sem dúvida, é uma vida que mereceria que uma pessoa fizesse um poema a respeito dela.

A tentação de vaidade

Alguém poderia dizer-me:

“Doutor Plinio, o senhor não está engrandecendo um pouco demais o personagem? O senhor se refere a ele como se fosse um homem que tivesse calcado aos pés todos os louros do mundo, quando ele, afinal de contas, era um modesto pregador popular. O que era isto em comparação com um grande orador acadêmico?”

E eu respondo: uma das coisas mais difíceis é o indivíduo resistir ao apelo da demagogia, à sedução desse contato vivo com a multidão e a essa sensação de estar conduzindo as almas porque está guiando o povo. Essa é a tentação de vanglória mais difícil de ser vencida, debaixo de muitos pontos de vista, do que a de vaidade de quem está falando para um grande auditório frio, que ouve tudo com senso crítico e, depois, aplaude batendo com as pontas dos dedos na palma da mão.

Imaginem alguém convidado para falar na Academia Francesa de Letras — um dos mais altos cenáculos literários do mundo —, e vendo as fisionomias daqueles franceses críticos, ouvindo sua palestra. Terminada a exposição, dizem simplesmente: “Oh, bien…” O que é isto em comparação com um homem que vai carregado pelo povo que o aclama com “vivas” etc.? Aquele turbilhão do entusiasmo popular e “populacheiro” que inebria mais, assim como um determinado gênero de vinho popular embriaga mais do que a “champagne”. É uma magnífica amostra do que pode um homem, como vitória contra as formas fáceis de popularidade, perseverando na humildade e, por isso mesmo, levando as almas a Nossa Senhora.

Lembro-me de ter lido o seguinte episódio na biografia de São Vicente Ferrer, que talvez tenha sido o maior missionário de todos os tempos, depois de São Paulo. Quando fazia missões de cidade em cidade, o povo de uma localidade ia acompanhando-o a pé pelo caminho, e a população da outra vinha ao encontro dele e o conduzia, debaixo de um pálio, para a cidade seguinte onde ele deveria pregar. Quando o santo pregador entrava, era como um soberano que estivesse chegando: todos os sinos tocavam. E, naquele tempo, o sino era o máximo da consagração; era como a televisão de hoje.

No meio de toda aquela popularidade, enquanto ele entrava em Barcelona, onde lhe haviam preparado uma consagração apoteótica, alguém se aproximou dele e perguntou: “Irmão Vicente, não vos sentis vaidoso?”

Ele deu a resposta do homem humilde: “A vaidade esvoaça do lado de fora de mim, mas não entra”.

Quer dizer, “eu sinto a tentação da vaidade, mas não consinto”. Vejam que beleza são essas coisas, que fazem de um pequeno detalhe da vida de um Santo uma verdadeira maravilha.

A despretensão

Que isso nos toque e nos sirva de exemplo. O que eu mais desejo para mim e para cada um de nós é a despretensão. Não nos preocuparmos com o que estão pensando de nós, em fazer bonito papel diante dos outros, mas sermos indiferentes aos aplausos ou às vaias. E sabermos calmamente tocar o nosso caminho, executando aquilo que Nossa Senhora quer de nós, compreendendo que, para Deus, todo homem é pecador, tem defeitos, e as virtudes que ele possa ter lhe vêm de Deus Nosso Senhor, porque não saem de sua natureza contaminada pelo pecado original; portanto, pelos rogos de Maria, tudo deve ser agradecido ao Criador.

Aliás, é preciso dizer, ser vaiado por levar o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo a um ambiente hostil é uma bem-aventurança, pois significa sofrer perseguição por amor à justiça. Indica um belo grau de humildade o conservar-se despretensioso num ambiente onde há simpatia para conosco, porém é mais difícil, ao ser vaiado, manter-se humilde, mas sobranceiro.

Eu os convido, portanto, a praticarmos juntos, nesses seus dois aspectos, a virtude da humildade, enfrentando com sobranceria a vaia e preparando as nossas almas para dominar o contínuo apetite de sermos bem-vistos e louvados pelos outros, e de, veladamente ou não, nos julgarmos superiores em relação aos demais.

Que Nossa Senhora nos conceda essa despretensão e eu lhes garanto que todo o resto lhes será dado por acréscimo. 

 

(Extraído de conferência de 10/5/1968)

 

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da ficha utilizada nesta conferência.

2) Do latim: O cristão é outro Cristo.

São Mayeul e a confiança cega

Se, como diz a máxima, a justiça é cega, mais ainda o deve ser a nossa confiança em Deus. Quando nos exercitamos nessa virtude, praticando-a de modo humilde e irrestrito, acumulamos um inimaginável tesouro de misericórdia e recompensas celestiais. É a lição que Dr. Plinio extrai da admirável vida de São Mayeul, abade de Cluny, o mosteiro-pilastra da Cristandade medieval.

 

Célebre na Idade Média e nos séculos sucessivos, pela impregnação do espírito católico que ela promoveu na cultura e civilização europeias, a Abadia de Cluny foi igualmente um celeiro de Santos.  Entre eles, São Mayeul, abade cuja biografia podemos ler no Pe. Rohrbacher.

Humildade, obediência e dom dos milagres

São Mayeul de Cluny, nasceu na Provença, pelo ano de 906. Foucher, seu pai, era da primeira nobreza, e tão rico que doou àquele mosteiro vinte terras com as igrejas a que pertenciam. São Mayeul era ainda jovem quando perdeu pai e mãe, e suas propriedades haviam sido devastadas por invasores bárbaros, obrigando-o a abandonar a região e se retirar para Mâcon. Ali foi recebido por um parente seu, e colocado entre os cônegos da diocese. Pouco depois se dirigiu a Lyon, onde estudou as artes liberais e a filosofia. De regresso, foi promovido a arcediácono, dignidade na qual se destacou por sua caridade para com os pobres e na instrução de outros clérigos.

Sua reputação tornou-se tal que, tendo vagado o arcebispado de Besançon, foi eleito, com consentimento do clero e do povo. Porém, recusou-se a assumir o cargo, e concebeu mesmo a ideia de deixar o mundo.  Como o mosteiro de Cluny estivesse nas vizinhanças de Mâcon, Mayeul abraçou a vida monástica nessa comunidade, em 943.

Não se distinguiu senão pelas virtudes, sobretudo a obediência e a humildade. Seis anos após a entrada de Mayeul no mosteiro, o santo Abade Aymard, sentindo-se velho e cego, e temendo que as enfermidades fossem causa de relaxamento na observância da regra, declarou-o abade, com o consentimento de toda a comunidade. Após a morte do venerável Aymard, em 965, Mayeul governou sozinho a abadia durante perto de 30 anos. Aliava à doutrina grande facilidade de falar, e escutavam-no com prazer quando proferia um discurso de moral. Muitos ricos e poderosos, tocados pelas suas exortações, abraçaram a vida monástica e aumentaram consideravelmente a comunidade de Cluny. Mayeul procurava sempre o recolhimento, mesmo nas viagens, e orava com tal compunção que, não raro, encontravam a terra regada de lágrimas.

Também tinha o dom dos milagres.  Indo, por devoção, visitar a Igreja de Nossa Senhora de Puy-en-Velay, entre os muitos pobres que lhe pediam esmolas, um cego disse ter tido a revelação de São Pedro que recuperaria a vista, se lavasse os olhos com a água onde São Mayeul houvesse lavado as mãos.  O abade despediu-o com forte reprimenda, e, sabendo que ele pedira tal água aos domésticos, proibiu-lhes terminantemente de fazê-lo. O cego não se desencorajou. Após ser despedido várias vezes, esperou o abade à beira do caminho, tomou o cavalo pela brida, e jurou não largá-lo antes de obter o que pedia.

Para que não fosse possível uma escusa, trazia água num vaso pendente do pescoço. O santo compadeceu-se, desceu do cavalo, benzeu a água segundo o costume da Igreja, fez o sinal da Cruz sobre os olhos do cego, depois, com os assistentes, se pôs de joelhos e orou à Santíssima Virgem. Antes de se levantar, o cego recuperara a vista…

Admirado pelos bárbaros

Em 973, São Mayeul regressava de Roma, acompanhado de grande número de homens de vários países, que se criam seguros na companhia de um santo. Mas, na passagem dos Alpes, foram atacados pelos sarracenos de Freysinet, que colocaram todos a ferros. O santo abade, cheio de aflição, pediu a Deus que ninguém morresse e foi atendido. Como alguns mouros zombassem da religião cristã, São Mayeul começou a mostrar-lhes com fortes razões a segurança da nossa religião e a falsidade da deles. Isto os irritou a tal ponto, que lhe algemaram os pés e o encerraram numa horrível gruta. Neste local, tendo o santo encontrado ao seu lado a obra atribuída a São Jerônimo, o “Tratado da Assunção da Virgem Santa”, pediu à Mãe de Deus que lhe fosse ainda concedido celebrar esta festa com os cristãos. Estavam a 23 de julho. Milagrosamente viu-se livre das algemas e os infiéis, estupefatos, passaram a tratá-lo com respeito. Permitiram que escrevesse a Cluny para obter seu resgate e de seus companheiros, e restituíram os víveres que haviam guardado como despojos de guerra.

Enquanto a quantia exigida não chegava, aumentou a devoção dos bárbaros pelo abade. Como este não estivesse habituado aos seus alimentos, preparavam um pão especialmente para ele. Certa vez, querendo polir um bastão, um sarraceno colocou o pé sobre a Bíblia que Mayeul trazia sempre consigo. O santo deixou escapar um gemido e o soldado foi pronta e severamente repreendido pelos companheiros. No mesmo dia este sarraceno, entrando numa briga, teve cortado o pé com que pisara a Sagrada Escritura.

Vindo enfim o resgate, São Mayeul foi libertado e celebrou a festa da Assunção entre os seus, como pedira. Os sarracenos de Freysinet não tardaram a ser completamente batidos por tropas cristãs, o que foi considerado como uma punição divina pelo aprisionamento do santo abade.

Em 994, quarenta e um anos depois de sua fecunda existência como superior de Cluny, consagrada à virtude e ao zelo pela disciplina monástica, São Mayeul passou ao repouso do Senhor, cheio de anos e méritos. Sua sepultura, em Souvigni, ficou célebre por tão grande números de milagres, que Pedro, o venerável, não receou dizer que, depois de Nossa Senhora, não há outro santo na Europa que mais milagres operou.  

A Providência orienta as diversas formas de santidade

Por esses interessantes traços biográficos, percebemos como Deus via cada alma de acordo com uma orientação própria, correspondente aos desígnios d’Ele de dispô-las no universo de maneira ordenada e sábia, segundo formas diversas de santidade.

Então, para determinado tipo de alma está destinado um tipo de graça, e há uma conduta especial da Providência ajustada a ela, orientando os acontecimentos terrenos, produzindo-os, permitindo outros, de maneira que tais almas sejam fiéis a essas graças e realizem a forma de santidade à qual foram chamadas.

Isso se aplica de modo esplêndido no que diz respeito a São Mayeul.

Antes de tudo, é interessante observar como as pessoas daquele tempo procuravam viajar junto com os homens tidos por santos, certos de se verem mais protegidas do que se andassem sozinhas. É uma atitude que revela o espírito de fé do qual estavam animadas.

Porém, viajaram com este santo e na aparência Deus os iludiu, pois todos caíram presos nas mãos dos sarracenos. Portanto, a confiança depositada no santo parecia objeto de uma severa e amarga desilusão.

Ora, o que aconteceu?

São Mayeul, cheio de aflição, pediu a Deus que ninguém morresse, e foi atendido. Um outro santo qualquer poderia desejar o contrário, e rogar a Deus que, naquele momento, concedesse a todos a palma do martírio, ou pelo menos não pedir a vida para todos. Ficaria quieto, entregando nas mãos de Deus o destino deles, como aprouvesse à sua infinita sabedoria. Seriam modos diversos pelos quais as almas santas, sob influxos diversos da graça, respondem de maneiras distintas em semelhantes situações.

Confiança absoluta no auxílio divino

No caso de São Mayeul deu-se como o narrado, e ele foi atendido. Ninguém morreu, e a confiança que tinham depositado em Deus na pessoa dele foi, portanto, justificada. E o foi por uma espécie de superabundância, porque não só não morreram, como presenciaram uma série de maravilhas as quais terão feito imenso bem para as almas deles.

Em primeiro lugar, tiveram a graça de privar com um santo. Deus, na aparência de lhes tirar algo, de fato lhes concedeu mais do que imaginavam, ao contrário do que faz o demônio: quando este nos promete algo, é exatamente o de que nos irá privar. Nosso Senhor age de modo inverso, e não nos nega aquilo que nos prometera. De sorte que cabe a nós nutrirmos uma inteira confiança na misericórdia divina, pois acabará nos proporcionando o que parecia nos ter subtraído.

Assim, também aparentemente, Ele punha aqueles homens em risco de vida. De fato, Ele lhes deu a vida e muito mais do que esta, oferecendo-lhes preciosíssimos dons espirituais.

Analisemos um pouco estes dons.

Eles viram o santo entrar em discussão com os hereges e presenciaram a glória da religião manifestar-se pelo fato de os sarracenos não serem capazes de discutir e se irritarem. Constataram, por esta forma, a força dos argumentos da religião verdadeira.

Mais ainda. Viram o santo sofrer uma prisão injusta, ser algemado e duramente tratado por causa da defesa que fez da doutrina católica. Mas, testemunharam também esse outro lado da glória divina, que é o fato de o santo, depois de ler o “Tratado da Assunção da Virgem Santa”, ter feito um pedido e ser atendido milagrosamente. Quer dizer, foi libertado, as algemas se quebraram e os muçulmanos ficaram estarrecidos diante do ocorrido. Portanto, trata-se de uma insigne graça concedida por Deus a esses homens…

Ademais, puderam perceber como seus captores se tomaram de respeito para com o santo no qual não acreditavam, tributando-lhe toda espécie de atenções. E mediram a envergadura da intervenção de Deus, ao ser cortado o pé de um homem que tinha desprezado a Bíblia. E auferiram a maldade humana quando, apesar disto, os sarracenos não se converteram. Enfim, contemplaram o que consideraram um castigo divino pela prisão do santo, ou seja, a derrota das tropas de seus perseguidores.

De maneira que, tendo posto a sua confiança em São Mayeul, foram atendidos com uma verdadeira superabundância, e esse fato ficou registrado na História. Quase mil anos depois de ocorrido, pessoas de um país e de uma cidade que eles não sabiam poder existir, recordam com devoção e enlevo esse episódio.

Percebemos, portanto, quanto de bom e edificante resultou dessas peripécias de São Mayeul, na aparência ruins, fadadas ao insucesso e próprias a induzir as almas a não confiarem na Providência Divina.

Porém, a verdadeira lição a se tirar é o oposto: cumpre confiar sempre no socorro do Céu. E com um requinte.Diz-se que a justiça é cega; pois muito mais o deve ser a confiança. A Providência espera que confiemos contra todas as evidências, contra todas as aparências, conservando-nos fiéis apesar de todas as circunstâncias em contrário. Quando a pessoa passa longo tempo se exercitando nessa confiança irrestrita, acumula para si um inimaginável tesouro de misericórdia e recompensa.

O êxito através de aparentes abandonos

Peçamos, pois, a Nosso Senhor Jesus Cristo, pelos rogos de sua Mãe Santíssima e de São Mayeul, essa confiança cega que resiste a todas as evidências no sentido contrário, para a solução dos nossos problemas interiores, para obtermos misericórdia quanto aos nossos pecados e defeitos, e para alcançarmos a graça de progredirmos na santidade, em meio aos torvelinhos mais estranhos e às vezes mais lamentáveis da vida espiritual.

Confiar, confiar, confiar sempre, lembrando o que dizia São Francisco Xavier: o pior do pecado não é a falta cometida, e sim que a alma perca a confiança depois do pecado e continue a cair. Se o pecador não perder a confiança depois do pecado e confiar, mais dia menos dia ser-lhe-á dada a misericórdia.

Igual confiança devemos manter nas vicissitudes da nossa vida quotidiana, nas nossas dificuldades de apostolado, etc. E a esse propósito, convém considerarmos o seguinte. Segundo uma falsa filosofia do sucesso, tudo aquilo que fazemos tem de dar resultados visíveis e palpáveis, e todo insucesso nos deixa perplexos, não deveria existir e indica que Deus nos abandonou. Então, se tentamos, por exemplo, fundar uma escola e esta se fecha, significa que não a devíamos ter aberto. Deus nos abandonou. Se pretendemos convidar alguém para fazer parte do nosso movimento e este alguém não corresponde, é sinal de que Deus não nos foi favorável. E assim por diante.

Ora, compreendamos que Deus nunca opera deste modo. Ele nos reserva o êxito através de muitos aparentes abandonos, ou através de muitas catástrofes reais, que resultarão depois na vitória. E é essa aceitação das catástrofes intermediárias que nos proporciona o resultado pleno que devemos desejar. Às vezes empreendemos algo e logo sobrevêm os reveses, não aquilo que esperávamos. Depois percebemos que Nossa Senhora nos obteve coisa incomparavelmente melhor do que a almejada por nós. Dessa maneira, nunca acontece de uma confiança não ser atendida nem coroada de êxito, embora por vezes de um modo que supera as próprias exigências e pedidos da mais afetuosa e humilde confiança. Portanto, esperar contra toda esperança, eis a fidelidade perfeita nessa virtude, a qual notamos naqueles homens que acompanharam São Mayeul.

Peçamos então ao santo abade de Cluny, alcance-nos a graça de aplicarmos essa lição nos episódios de nossa vida, discernindo a mão de Deus a nos guiar através dos túneis e precipícios mais desconcertantes, e a providência de Nossa Senhora pairando sobre nós, para nos dar sempre incomparavelmente mais do que desejamos. Amém.

 

Os pastorinhos de Fátima e o Segredo de Maria

Que maravilhas da graça se operaram nos corações de Jacinta e Francisco por ocasião de seus encontros com a Santíssima Virgem? Que virtudes a ação da celeste Senhora fez desabrochar naquelas humildes crianças? No presente artigo Dr. Plinio nos dá a resposta desvendando algo do Segredo de Maria ao constatar a vitória do Imaculado Coração de Maria nas almas dos dois videntes de Fátima.

 

Há uma ficha para nós comentarmos aqui: “Última aparição de Nossa Senhora em Fátima”, do Pe. João M. de Marchi, IMC, no livro: “Era uma Senhora mais brilhante que o sol”(1).

A verdadeira diretora espiritual das crianças foi, todavia, essencialmente Nossa Senhora. Falo das crianças: Jacinta, Francisco e Lúcia.

A bondosa Senhora da Cova da Iria tomou à sua conta a realização desta obra-prima. E como não podia deixar de ser, levou a cabo com pleno êxito. Das suas mãos prodigiosas saíram três anjos revestidos de carne, mas que ao mesmo tempo eram três autênticos heróis. A matéria-prima era de uma plasticidade admirável. E da Artista, que mais dizer?

Na sua escola, os três serranitos deram, em breve tempo, passadas de gigante no caminho da perfeição. Neles se verificou, à letra, as palavras de um grande devoto de Maria, o Beato Grignion de Montfort: “Na escola da Virgem a alma progride mais numa semana do que em um ano fora dela”. A pedagogia da Mãe de Deus não sofre confrontos. Em dois anos, a Virgem Santíssima conseguiu erguer os dois irmãozitos, Francisco e Jacinta, até os cumes mais elevados da santidade cristã.

O retrato que a mão segura de Lúcia nos traça sobre Jacinta é revelador: “A Jacinta tinha um porte sempre sério, modesto e amável que parecia traduzir a presença de Deus em todos os seus atos. Próprio das pessoas já avançadas em idade e de grande virtude. Não lhe vi nunca aquela demasiada leviandade e o entusiasmo próprio das crianças pelos enfeites e brincadeiras isto depois das aparições). Não posso dizer, que as outras crianças corressem para junto dela, como faziam para junto de mim. E isto talvez porque ela não sabia tanta cantiga e historieta para lhes ensinar e as entreter, ou então porque a seriedade de seu porte era demasiado superior à sua idade. Se na sua presença alguma criança, ou mesmo pessoas grandes, diziam alguma coisa ou faziam qualquer ação menos conveniente, repreendia-as dizendo: “Não façam isso, que ofendem a Deus Nosso Senhor. E Ele já está tão ofendido!” (…)

Francisco sentia-se atraído por uma vida de asceta e de contemplativo. Frequentemente desaparecia da vista das duas meninas, mantendo-se em lugares ermos e ficava a pensar.

— Que estavas aqui a fazer há tanto tempo? Perguntou-lhe Lúcia.

— Estava a pensar em Deus que está tão triste por causa dos muitos pecados!  Se eu pudesse O consolar! Jesus está tão triste e eu quero confortá-lo com oração e penitência.

Em outra ocasião dizia: “Gosto muito de Deus. Mas Ele está tão triste por causa de tantos pecados. Nós não devemos fazer nem o mais pequeno pecado!”

Um dia em que a Lúcia cedeu às instâncias das amiguinhas para tomar parte em divertimentos próprios da idade, Francisco chamou-a de lado e disse-lhe muito sério:

— Então tu voltas a essas brincadeiras depois de Nossa Senhora nos ter aparecido?

— Então, pediram-me tanto!…  — escusava-se a Lúcia.

Mas o Francisco lógico e severo lhe retorquia:

— Toda a gente sabe que Nossa Senhora te apareceu, então não devem estranhar que tu já não queiras bailar!…

Trata-se aqui daquele bailado português em que as pessoas se tocam com as mãos. São aquelas figuras de bailado camponês.

As crianças aproveitavam as entradas e as saídas das escolas para irem visitar Nosso Senhor, passando longas horas ao pé do Tabernáculo.

A Jacinta e o Francisco, sobretudo, que tinham a promessa da Virgem de os vir buscar, em breve, para o Céu e que, portanto, se julgavam dispensados das lições, recolhiam-se mais vezes na igreja a falar a sós com “o Jesus escondido”.

Jesus escondido é o nome com o que chamavam a Eucaristia.

Jacinta dizia a Lúcia:

— Já fizestes hoje muitos sacrifícios? Eu fiz muitos. Rezei também muitas jaculatórias. Gosto tanto de Nosso Senhor e de Nossa Senhora que nunca me canso de Lhes dizer que Os amo. Quando eu Lhes o digo muitas vezes, parece que tenho lume no peito, mas não me queima.

Outras vezes:

— Olha Lúcia, Nossa Senhora veio nos ver esses dias. E veio dizer que vem buscar o Francisco muito breve para o Céu. E a mim, perguntou-me se ainda queria converter mais pecadores. Disse-lhe que sim. Ela disse-me então que quer que eu vá para dois hospitais, mas não é para me curar. É para sofrer mais por amor de Deus, pela conversão dos pecadores, em desagravo das ofensas cometidas contra o Coração Imaculado de Maria. Disse-me que tu não irias, que iria lá minha mãe levar-me e que depois ficaria sozinha.

Tempos depois, Francisco para Lúcia:

— Estou muito mal, falta-me pouco para ir para o Céu.

Lúcia:

— Então vê lá, não te esqueças de lá pedir muito pelos pecadores, pelo Santo Padre, por mim, e pela Jacinta.

Francisco:

— Sim, eu peço. Mas que essas coisas peças antes à Jacinta, que eu tenho medo de me esquecer, quando vir a Nosso Senhor. E depois, antes O quero consolar.

Na obra de Nossa Senhora com os videntes de Fátima, um começo do triunfo do Imaculado Coração de Maria nas almas.

Esta ficha tem uma graça marcante, porque ela nos indica uma porção de aspectos grandes e pequenos da obra de Nossa Senhora com estas três crianças.

Mas nós devemos, antes de tudo, considerar o valor simbólico da obra de Nossa Senhora nas crianças. Enganam-se aqueles que imaginam ser apenas uma obra sobre três crianças. É uma obra que transformou suavemente essas crianças de um momento para outro, pelo simples fato das reiteradas aparições de Nossa Senhora.

Com uma dessas crianças até, Nossa Senhora disse estar aborrecida. E esta criança era o Francisco, que não ouviu Nossa Senhora por causa disso. E, portanto, pode ser considerado um convertido. As três mudaram extraordinariamente em consequência das revelações. 

Nós temos aqui algo de parecido com o Segredo de Maria. Quer dizer, uma dessas ações profundas da graça na alma, ações que se desenvolvem sem a pessoa dar-se conta. Ela vai sentindo-se cada vez mais livre, cada vez mais desembaraçada para praticar o bem, e os defeitos que a tolhem e a prendem no mal vão se dissolvendo. E a pessoa cresce em amor de Deus, cresce em vontade de se dedicar, cresce em oposição ao pecado, mas tudo isso se dá maravilhosamente dentro da alma.

De maneira que a alma não trava as grandes e metódicas batalhas da ascensão admirável ao Céu, à virtude, à santidade, daqueles que lutam de acordo com o sistema clássico da vida espiritual; mas Nossa Senhora as transforma de um momento para o outro. E se a obra de Nossa Senhora em Fátima — especialmente com essas duas crianças chamadas para o Céu — foi assim, nós podemos bem nos perguntar se isto não tem um valor simbólico, e se não indica qual vai ser a ação de Nossa Senhora sobre toda a Humanidade quando Ela cumprir as promessas feitas em Fátima, e se não é lícito prever o cumprimento das promessas de Fátima executado à maneira do ocorrido com Jacinta e Francisco, mais notadamente, como cogita esta nossa ficha.

E, portanto, se nós não devemos ver aí um começo, podemos ver um dos múltiplos começos — porque as coisas enormes têm muitos começos — do Reino de Maria, enquanto sendo o triunfo do Imaculado Coração sobre duas almas pregoeiras da grande revelação de Nossa Senhora; as quais, pelos seus sacrifícios e orações na Terra e, depois, as orações no Céu, ajudaram e ainda ajudam enormemente as almas a aceitarem a mensagem de Fátima.

Quer dizer, nós devemos ver nessa transformação, creio eu, ao menos de um modo muito provável, um símbolo dessas transformações profundas que marcarão o Reino de Maria.

Jacinta e Francisco: intercessores apropriados para obter de Nossa Senhora o início de seu Reino em nossos corações

Esta primeira observação me parece conduzir diretamente ao seguinte: se isto é assim, então Francisco e Jacinta são os intercessores naturais para se pedir e obter de Nossa Senhora que comece o Reino de Maria em nós desde logo, por essa transformação misteriosa que é o Segredo de Maria.

E, então, nós devemos suplicar instantemente, tanto à menina quanto a ele, que comecem a nos transformar, comecem a nos dar os dons que eles receberam. E que eles velem especialmente sobre aqueles cuja missão é a de pregar a mensagem de Fátima, viver da mensagem de Fátima, como acontece conosco.

Isto é uma razão a mais para nós termos uma marcante devoção a eles.

Efeitos da ação de Maria sobre os videntes

É interessante notar, também, o efeito do Segredo de Maria sobre essas crianças. Elas mudaram, está bem. Mas quais os sintomas externos dessa mudança? Quais foram as manifestações externas dessa transformação? São apontadas aqui três coisas: grande seriedade, espírito de oração e espírito de sacrifício. Por cima de tudo isso, uma convicção muito grande da missão deles e o desejo de viver para essa missão, de onde vinham essas três consequências.

Espírito de seriedade

Espírito de seriedade. Os senhores viram o Francisco censurar a Lúcia por esta não ser bastante séria e aceitar de bailar, ou seja, fazer aquela dançazinha portuguesa com crianças. E a razão dada por Francisco para repreender a Lúcia foi essa:

— Você, que viu Nossa Senhora aparecer, não deveria participar desses brinquedos.

A Lúcia respondeu:

— Mas, afinal de contas, pediram tanto!

Disse o Francisco:

— Mas como eles sabem que a você Nossa Senhora apareceu, a você eles não deviam pedir.

Como quem diz: “Eles compreenderão a sua recusa ou, ao menos, têm todos os dados para compreender. Se eles não compreendessem, seria por culpa deles, mas você deveria ter recusado”.

É a ideia de que para agradar Nossa Senhora precisa ser muito sério. Não se agrada Nossa Senhora sem ser muito sério.

E de Francisco, a ficha diz que ele era lógico, raciocinava muito, com muita firmeza no tocante a seus deveres. O autor emprega até uma palavra muitas vezes utilizada hoje em sentido pejorativo: que ele era “severo”. Ele possuía uma lógica completa e deduzia de sua missão que era preciso ser daquele jeito: sério, não dizer nada inconveniente, agir corretamente. Por isso ele não perdia ocasião de dar o exemplo e de proceder segundo a lógica.

Mais ainda, esta seriedade, nas condições insignificantes de crianças, levava-as à combatividade. A Jacinta não via uma pessoa dizer ou fazer algo errado, sem que ela a repreendesse: “Isto aqui não está bom!” E dava a razão religiosa: “Deus não deve ser ofendido! Já está tão ofendido em nossa época, você ainda quer ofendê-lo mais? Quer acrescentar algo a esta montanha de pecados que se cometem?”

Então, os senhores percebem como a seriedade e a lógica são o fruto do Segredo de Maria. E se nós quisermos corresponder às graças de Nossa Senhora, devemos agir de maneira a sermos sérios e lógicos. E, pelo menos, quando virmos pessoas sérias e lógicas, tratarmos de admirá-las, de nos acercarmos delas, conversar com elas, e nos deixarmos penetrar pelo espírito delas.

Espírito de sacrifício

De outro lado, o espírito de sacrifício. As duas crianças recebem de Nossa Senhora a notícia de que morrerão dentro de um breve prazo. E a Francisco a notícia podia apavorar porque estava dito que ele morreria logo. Ora, a morte é um castigo imposto ao homem, e sua proximidade, em geral, apavora. Quando a pessoa não tem uma graça especial, diante da proximidade da morte fica aterrorizada. Francisco viu, alegre, a morte aproximar-se. Ele ia fazer o sacrifício pedido por Nossa Senhora. Não tinha saudades de nenhum dos bens deste mundo. Queria ir para o Céu e deixar esta Terra com a imolação de sua vida para a vitória da causa católica.

De Jacinta Nossa Senhora pediu algo que, por um aspecto, apavorava menos. Pediu que ela vivesse por mais algum tempo. É o espectro colocado um pouco mais longe. Entretanto, disse-lhe que viveria mais para sofrer. Quem não tem medo de uma vida de sofrimentos? E revelou-lhe um dos sofrimentos que mais apavoram as crianças: ficar doente e longe dos pais. Nossa Senhora disse: “Tu serás levada a Lisboa e tua mãe vai deixar-te”. Portanto, “tu adoecerás e morrerás sem a assistência dos teus”. E ela morreu, de fato, sem o socorro materno. Ela aceitou também. Eu creio ser o mais pesado sacrifício que se pode pedir a uma criança. O Segredo de Maria levou-a a esse sacrifício.

Espírito de oração

Depois, espírito de oração. Rezavam continuamente. E para que rezavam? Pela causa católica. Porque rezavam para Deus não ser ofendido, Deus ser glorificado, o que é a própria essência da causa católica. Tudo, em última análise, consiste nisso: que Deus seja glorificado e não seja ofendido. E isto eles tinham em mente sempre e rezavam muito.

Mas qual era a fonte que ininterruptamente estava dando-lhes este alimento espiritual? Era a crença na própria missão. A crença em que se cumpriria sobre eles a palavra de Nossa Senhora.

Virtudes a serem pedidas a Nossa Senhora por intercessão dos videntes de Fátima

Nós podemos fazer dessas considerações uma aplicação para nós? Eu creio que facilmente. Porque essas são as virtudes às quais nossa vocação nos convida. A nossa vocação contém uma espécie de raiz do Segredo de Maria. Sem dúvida, quem entra para nosso Movimento com as disposições normais experimenta desde logo várias melhoras em sua alma. E depois tem de passar pelo embate das provas que todos nós, infelizmente, conhecemos. Mas, de si, há algo de parecido — parecido não quer dizer idêntico — com o Segredo de Maria. E todo novato tem um grande impulso para a frente que consiste numa certa transformação. Essa transformação opera com o caráter rápido, célere, fácil, atraente com que age a graça do Segredo de Maria. Além disso, nossa vocação é ordenada aos fatos anunciados por Nossa Senhora em Fátima. Isto estabelece mais uma relação entre nossa vocação e a deles.

E eu creio que quem peça a Nossa Senhora de Fátima, por intercessão deles, auxílio para sermos fiéis a essa nossa vocação, fará a Ela uma oração especialmente grata. E poderá receber favores enormes para ser fiel à vocação, mesmo em circunstâncias dificílimas, graças precisamente ao Segredo de Maria.

E nossa vocação necessita das quatro virtudes que eles praticaram: a virtude básica, crermos em nossa vocação como eles creram na deles; e, em consequência: seriedade, espírito de sacrifício e espírito de oração.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/10/1971)

 

1) Cf. DE MARCHI, I. M. C., Pe. João. Era uma Senhora mais brilhante do que o Sol… Fátima: Edições Consolata. Na 7a edição (1978) o trecho resumido para Dr. Plinio encontra-se nas páginas 251-267.

Gravidade e pensamento

Imaginemos um estado de espírito caracterizado pelo comprazimento que experimenta diante dos bons e grandiosos aspectos da vida, prendam-se estes a pessoas ou a coisas diversas. Ao lado da grandeza e da bondade, agrada-lhe igualmente o que eles apresentam de distinção, de lógica interna, de seriedade, de respeito por si próprios. 

Dir‑se‑ia, então, que a alma dotada dessa mentalidade seria comparável a uma ogiva, séria, sólida, pensativa, levando tudo para cima; calma, mas pesando e analisando tudo. Ao mesmo tempo, inflexível, disposta a se recolher, dizendo: “Quanto de bom existe nisso tudo! O que é a bondade? O que é o bem?” A partir dessa inquirição, eleva-se nas ascensões da contemplação de Deus, com naturalidade, sem agitação, trepidação nem excitação.

A mesma impressão que nos daria uma alma assim, nos é proporcionada por certas catedrais medievais. Por exemplo, tempos atrás tive em mãos um bico-de-pena de autoria do famoso arquiteto Viollet Le Duc, retratando a Catedral de Notre-Dame de Paris, vista de cima para baixo. O desenho exprimia uma profunda reflexão, do teor que acima dissemos. Contentou-me perceber naquele edifício a seriedade de uma igreja toda feita de gravidade, estabilidade, pensamento, grandes considerações das linhas gerais, mil pormenores e detalhes harmônicos, panorama, e as torres que se levantam para o céu.

Tão magnificamente para o céu, que nenhum artista se atreveu a completar aquelas torres. Porque só quem as planejou teria envergadura de alma suficiente para terminá-las. E as torres estão ali, ao mesmo tempo tragicamente incompletas, mas fazendo com que cada observador imagine no subconsciente uma torre ideal, segundo o seu próprio feitio. Dir‑se‑ia que elas acabam numa espécie de traçado pontilhado, a ser definido de acordo com o espírito de quem as contempla. De maneira que, se nos dissessem: “Olha, sabe de uma novidade!? Completaram as torres de Notre-Dame!”, ficaríamos surpresos: “Será que o fizeram corretamente?”

Correto, segundo o quê? Conforme esse pontilhado que aqueles dois magníficos fragmentos de torre nos sugerem, incentivando-nos a voar a partir deles. São torres que convidam para o sonho.

Esse estado de espírito que descrevi, tão fundamentalmente católico, de uma grande estabilidade contemplativa, satisfeita, disposta a qualquer luta, eu o vejo expresso assim, de maneira superlativa, em Notre-Dame de Paris, a igreja de uma beleza perfeita, alegria do mundo inteiro.

Digo mais. Tenho razões para afirmar que esse estado de espírito foi o ponto de partida da Idade Média, e a Cristandade medieval só foi ela mesma na medida em que cavalgou, rezou, batalhou ou construiu segundo essa mentalidade e disposição de alma. Então, podemos tomar a cavalaria, a armadura do cavaleiro, a coroa de um rei, o “pulchrum” de uma aldeia, a estabilidade de uma corporação, a majestade de um castelo, e tantas outras maravilhas engendradas nessa época, e veremos que são filhas, são derivações daquele superior estado de espírito. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência de 30/5/1981)

 

Sumamente religioso…

As coisas temporais devem, à sua maneira, falar de Deus e, deste modo, louvar o Criador. Acerca da sociedade temporal bem constituída, tendo Nosso Senhor Jesus Cristo como centro, Dr. Plinio tece belos comentários ao analisar o Castelo de Saumur.

 

Procura-se Deus, essencial e fundamentalmente, através da vida de piedade, da Fé, dos Mandamentos. Mas, quando O buscamos somente por esses meios, não O encontramos senão de um modo muito menos intenso e próximo do que se quereria. Desta maneira, como que, se acantona Deus dentro da capela, enquanto todo o resto fala pouco d’Ele.

Dou um exemplo: consideremos o Castelo de Saumur, e outros dois castelos não medievais: Escorial e Versailles.

Escorial, Versailles e Saumur

No Escorial, Felipe II colocou bem em seu centro a capela. E que capela! Uma catedral! Analisando o resto do palácio, pode-se até dizer que é um mosteiro, porém, no fundo, o sopro da Revolução está ali; fala de uma ordem geométrica bem observada, correta, mas não diretamente de Deus. Ele está na capela, a qual se encontra no centro do palácio, mas Ele não está no Escorial inteiro. Todos conhecem a homenagem que eu presto ao grande “Felipão”, a qual, embora não irrestrita, é veemente.

Consideremos agora Versailles, mandado construir por Luís XIV, que descendia de Felipe II, por via materna. Mandou edificar Versailles naquela má rivalidade da França com a Espanha, querendo afirmar — ele, a Majestade Cristianíssima, e o outro, o Rei Católico — que não estava atrás em face da Igreja. Mas não quis imitar Felipe II, colocando a capela no centro; então mandou que ela fosse feita nobremente alhures no palácio — não um alhures qualquer; é francês. É a capela exata no lugar exato, a única construção em Versailles que tem teto propriamente; o resto de Versailles é en terrasse1. A capela imita vagamente o estilo gótico, mas procurando disfarçá-lo, e é o corpo de edifício mais alto do castelo.

E no resto do palácio, Deus está a léguas. Há deuses mitológicos e outras figuras, mas Deus está distante.

Já no Castelo de Saumur — embora não me lembre de ter notado nele nenhum símbolo religioso—, a meu ver, Deus está no castelo inteiro.

Organizar de tal modo a sociedade que Deus possa ser visto em todas as coisas

Então, a nossa tese é esta: todas as coisas temporais devem ser feitas de maneira tal que elas também nos falem de Deus. Não afirmo que, de modo absoluto, tenham elas principalmente essa finalidade, mas para nossa vocação é a principal. Então, é preciso, na linha da complementaridade, organizar as coisas temporais e eclesiásticas em ordem a ver Deus presente em absolutamente tudo.

Não presente como está na Eucaristia, bem entendido, ou como Ele esteve, por exemplo, no Santo Sepulcro, e também não como está no edifício de um templo. Mas trata-se da imagem ou, conforme o caso, da semelhança do Criador por toda parte. Devemos, portanto, saber ver em cada coisa o por onde ela é semelhança ou imagem de Deus; ou, pelo contrário, se ali está representado o demônio. Ou seja, a Revolução e a Contra-Revolução na mais humilde forma de janela, por exemplo. Essa é a nossa vocação.

Embebida por completo dessa ideia, a pessoa está de corpo inteiro pronta para a contemplação religiosa das verdades reveladas. Mas, se for neutra diante disso, ela de fato acaba pactuando com o que não deve.

Procurar desenvolver o sensus Ecclesiae

De maneira que é preciso ver isso nas coisas e depois nas relações entre elas; mais do que nas coisas, nos seres humanos e em suas relações. E, no ser humano, considerar o filho da Cristandade e o filho da Igreja, a relação entre a Cristandade e a Igreja, para colocar-se ajoelhado diante da Igreja, osculando a soleira da porta e dizendo: “Não sou digno de entrar no edifício sagrado, mas entro, porque as portas dele se abriram para mim e de seu interior Deus me chama.” Como Moisés entrou no lugar sagrado, onde Deus lhe falou através da sarça ardente: “Tira as sandálias dos teus pés, porque o lugar em que te encontras é uma terra santa.”2 Era um sinal de sumo respeito.

Assim, também nós entramos com veneração para com a Igreja, com a Rainha da Igreja, com Nosso Senhor que está no Santíssimo Sacramento, e com a Santíssima Trindade.

Então, o centro imediato é a Igreja e a Cristandade. Devemos recompor a ideia da Cristandade para completar em nós o sensus Ecclesiae, a fim de, com o olhar mais firme, mais adorador, mais reverente, e através de Nossa Senhora, vermos Nosso Senhor Jesus Cristo.

Mas, tudo isto supõe o ver, desde logo, em cada ser, a imagem ou semelhança de Deus; embora muitas vezes não haja uma referência expressa louvável, desejável, ótima, aos temas especificamente da Religião.

Se, por exemplo, um homem artístico colocasse em Saumur um crucifixo em glória ou, ao menos, uma cruz em glória no alto de Saumur, eu me rejubilaria e não sei dizer como lhe agradeceria. Entretanto, isto não impede que eu reconheça Saumur, sem ter no alto o crucifixo, como edifício mais religioso do que a explícita — porém incompleta — profissão de Fé que está em Versailles ou no Escorial.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/5/1981)

Revista Dr Plinio 158 (Maio de 2011)

 

1) Apenas a capela de Versailles possui telhado; o restante do palácio é coberto por terraços.

2) Cfr. Ex 3,5.

O mistério da vida… – II

Na sequência de sua exposição sobre o mistério que a vida representa, Dr. Plinio demonstra como ela se torna mais rica à medida que se individualiza. Porém, é quando a contemplamos no homem que ela atinge seu auge. Dotado de razão, o homem conhece, pensa, ordena, quer, ou não quer, sendo assim capaz de conhecer o que nunca verá nesta vida: a alma humana.

 

Subamos agora para outro patamar — há ainda outros dois a transpor —, que é o reino animal, no qual há algumas características que merecem a nossa atenção.

Superioridade do reino animal em relação ao vegetal

O animal, dotado de sensibilidade, deixa-se atrair pelas coisas que lhe são favoráveis e foge das que lhe são contrárias; ele tem mobilidade.

Nisso, ele tem uma possibilidade de ser. No sentir, que é uma forma de conhecer, possui outra possibilidade de ser. No mover-se essa possibilidade de ser se completa. Um animal capaz de sentir, mas incapaz de mover-se seria um ente mal construído, uma monstruosidade. Porque, sentindo, ele quer fugir ou avançar. Se não pudesse mover-se, do que lhe adiantaria a sensibilidade?

Por outro lado, imaginemos um animal que fosse capaz de mover-se, mas não tivesse sensibilidade. Ele giraria a esmo e seria um pobre miserável. Quer dizer, há no animal um grau de vida superior àquele existente na planta.

E com seu grau de vida, dir-se-ia que o vegetal já é tão “feliz”. Às vezes, olhamos para certas árvores e notamos que elas ficam balouçando devido à brisa; temos a impressão de que estão brincando, matando o tempo.

Ou então alguns raios de sol incidem sobre uma planta, sobretudo quando não é meio-dia — não é o sol que queima, mas tonifica —, parecendo-nos que ela adquire uma plenitude. E, depois de certas chuvas, temos a impressão de que a natureza respira.

O animal faz muito mais do que isto: ele tem notícia. Para evitar confusão com o espírito humano, São Tomás prefere não dizer “conhece”, mas “tem notícia”. A expressão é admiravelmente precisa.

Se avançar alguma coisa rumo a um animal, ele tem notícia e se move. Mais ainda, é capaz de intimidar, por exemplo, rugindo; de deslumbrar, cantando; de atrair. Ele tem mil meios de ação sobre aquilo que não é ele, mas proveniente de seu movimento, de um princípio de vida, que pode, domina, combate mais e tem mais relação com o exterior.

A combatividade refletida no leão

A pedra é puramente passiva, não combate. Da pedra lançada por David contra Golias, não posso dizer: “Ó pedra guerreira!” Guerreiro foi David. Aquilo foi um pedaço de matéria que feriu a fronte de Golias e o jogou no chão.

De um vegetal, de algum modo pode-se afirmar que ele é batalhador. Certas plantas resistem aos ventos, com ar de superioridade, de indiferença. Os cedros do Líbano, que duram séculos, em montanhas onde neva, atravessam invernos e verões, indiferentes a tudo e vencem. Eles realizam como que um combate.

Mas o combate da planta não é praticamente nada, em comparação com o combate do leão. O leão dirige, avança, conquista, protege a leoa e os leõezinhos, mas não vai à cata de nada. A leoa é que procura comida e leva para ele.

Quando aparece o combate, a horda leonina vai para trás e ele toma a dianteira.

Vemos assim que, dentro da ordem leonina, há uma diferença não mais de grau de vida, mas de estilo de vitalidade. Poder-se-ia dizer algo de parecido com relação às plantas, entretanto é muito mais evidente e fácil de exemplificar nos animais. Uma é a vitalidade, quer dizer, o estado e o tipo de vida, do animal jovem, depois na idade madura e por fim quando velho.

Certos animais, ao sentirem que o seu ciclo terminou, se retiram ao isolamento e se deixam morrer. A bobina foi desfiada inteira e não há outra coisa para fazer; deitam-se e morrem. Existe a diferença de tipo de vitalidade entre o macho e a fêmea. Esta é feita para as tarefas menores e delicadas; aquele para os trabalhos pesados.

O leão é majestoso e deixa insinuado ser mais nobre combater do que qualquer outra coisa. É o rei e governa, assegurando a tranquilidade e a sobrevivência para todos. Ele é servido. São coisas que apontam para a ordenação do pensamento, para uma sistematização rica em conceitos.

A vida é mais rica na medida em que se individualiza

Comparando uma pedra com outra pedra, uma grama com outra grama e um leão com outro leão, notaremos que cada um é mais ele mesmo em relação ao outro, em escala ascendente.

Se dermos forte pancada num cristal, ele se decompõe num mundo de cristaizinhos. No que cada um destes é diferente do outro? Há certa alteridade, mas que alteridade pequena!

Com as gramas, ocorre algo diferente. Cada uma tem sua dose de vida — se assim se pudesse dizer —, sua possibilidade de duração, de resistência, de crescimento, que não é a da grama vizinha, cujas raízes muitas vezes se interpenetram. Ela é mais ela mesma em relação à outra; está mais separada.

O animal é ainda mais outro em relação ao outro. Entre um leão e outro, ou entre um leão e uma abelha, ou um colibri, que diferenças fenomenais! Há espaços interestelares entre um ser e outro, de tal maneira esse ser é grande. A vida, portanto, é mais rica na medida em que ela individualiza, vai dando ao ser uma capacidade de conhecer, de agir; ela diferencia um ser do outro, torna um ser mais ele mesmo em relação ao outro. Isso é uma grandeza porque o define mais, traça mais os limites e com isso torna um ser mais esplêndido.

Grandeza incalculável da natureza humana

Passamos agora para um grau mais alto de vida, o que está em nós e enche este auditório.

Temos a glória de sermos homens, criados por Deus com a mesma natureza humana de Nossa Senhora e  de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Isso, de uma grandeza incalculável, é para nós um título de nobreza muito maior do que pertencer a qualquer família imperial ou real. Somos irmãos, na carne puríssima da Virgem Maria, de Nosso Senhor Jesus Cristo. A carne de Cristo é a carne de Maria; não entrou outro fator para a geração da carne de Cristo senão a carne de Maria e o Divino Espírito Santo. A Santíssima Virgem foi concebida sem pecado original, mas é descendente de Adão e Eva. Somos descendentes de Adão e Eva. Isto para nós é uma glória enorme.

Almas “asfálticas”: um produto das grandes cidades modernas

Se todo mundo que habita as grandes cidades modernas tivesse a noção do que é a dignidade de ser homem, essas cidades seriam menos animalescas e mais dignas do que são. O que mais arrasa na cidade moderna não é o trânsito, o movimento, a poluição, mas as almas “asfálticas”: cada alma se sente tão pouco outra, diferente, e tão pouco digna quanto um milímetro de asfalto em relação a outro milímetro de asfalto. Tenho a impressão de que elas estão contidas numa mesma massa homogênea, sem esplendor nem beleza e nem vida. Entretanto, foram criadas para serem diferentíssimas e se amarem na sua diferença; e fazer dessa diferença uma ordem, uma harmonia e uma alegria. E o mundo moderno as vai degradando, tornando-as cada vez mais animalescas e parecidas. O pior odor das cidades modernas, a meu ver, é exatamente esse odor animalesco que se exala do homem, quando ele não é tão alma quanto pode e deve ser. Isso para mim é o que a cidade moderna tem de mais repugnante, e mais me desagrada.

O que somos nós? Somos antes de tudo minerais, vegetais e animais. Quer dizer, as três naturezas coincidem em nós; somos uma síntese. Mas por cima disso e dentro disso, não como um fator extrínseco, mas como elemento mais nobre e mais interno, temos uma alma espiritual, a qual nos dá uma possibilidade de fazer uma coisa que o animal não possui: nós pensamos.

O animal tem notícia; nós somos capazes de analisar, classificar e definir o que conhecemos. Temos capacidade de conceber em abstrato e, portanto, também de imaginar coisas que não são.

Tudo isso nos dá um poder e uma grandeza em face das coisas, que eu os comparo da seguinte maneira.

Muitas pessoas conduzem suas vidas como animais

Imaginemos uma cadeira, na qual é criado o mais fino, sedoso e bonito dos gatos angorás. O gato conhece a cadeira porque sobre ela há uma almofada, e toda noite ele dá um pulo e dorme na almofada.

De tal maneira a conhece que, se na hora de ele dormir não houver a cadeira, mas só a almofada, é possível que ele se ponha a miar. É a estranheza que ele manifesta porque a cadeira costumeira não está naquele local. Mas o gato angorá nem sabe o que é uma cadeira. Ele não sabe nada, tem apenas hábitos.

E para termos uma ideia, aliás, imperfeita, do que é um bicho, imaginemos um homem anestesiado, numa sala de operação. Ele tem os movimentos reflexos de uma pessoa que sente, mas não tem conhecimento de nada. Cessado o efeito da anestesia, ele sabe o que lhe aconteceu por causa da dor atual. Se a dor desaparecesse durante a operação, estando anestesiado, ele nem suspeitaria que tivesse dor. Poderíamos comparar um animal a um homem anestesiado no primeiro instante de seu ser e cuja anestesia durasse até ele morrer.

Há muita gente que faz da vida animal o fim desta existência. Querem a vida do anestesiado e não compreendem a vida do “lumen” da razão.

Diferenciar e conceber em tese os objetos: obra-prima da inteligência humana

O homem conhece a cadeira. Se um homem, estando em pé, vê um outro sentado numa cadeira, ele já sente o repouso que o outro ali experimenta. Depois ele conhece uma série de outras cadeiras e, sem trabalho nenhum, mas por um seletivo interno soberbo que faz dele um filósofo, efetua várias diferenças: cadeira com tripé, com quatro pés, de braços, com ou sem espaldar.

Posteriormente ele elabora a obra-prima de tudo isso: cadeira em tese. E a define: móvel destinado a acolher o homem sentado. Está assim concebida uma ideia que vale para todas as cadeiras possíveis e imagináveis. Para ser cadeira, tem que servir para o homem sentar, do contrário não é cadeira. E a inteligência do homem voa até lá.

Alguém poderia dizer: “Muita gente não sabe definir assim.” É verdade, mas todo homem sabe o que é uma cadeira. De maneira tal que, se lhe apresentarmos um banco e afirmarmos: “Senta nessa cadeira”, ele dirá: “Não, eu vou sentar-me nesse banco.” As pessoas não conseguem definir porque não têm instrução, não possuem o instrumento verbal, mas elas sabem o que é. Elas diferenciam. Quer dizer, elas conhecem e, portanto, fazem a obra-prima. As mais dotadas, mais inteligentes, imaginam os grandes móveis em que o homem pode estar sentado: um trono, uma cátedra ou um faldistório episcopal.

As pessoas podem imaginar miríades de assentos diferentes, conforme as utilidades e as situações daquele que está sentado. Por exemplo, banquinho dos réus: frustro, pequeno, balouçante, incerto, que serve para o réu tremer em cima.

A cátedra do juiz é uma poltrona alta, repousada, segura, dignificante, onde ele dispõe segundo a lei do destino do réu que está diante dele. Como o seu trabalho é nobre e sobre o juiz não pesa nenhuma suspeição, ele é cercado de uma atmosfera de honra; por isso sua cadeira é esculpida, sólida, grande. E na hora em que o empregado fizer a limpeza, ele vai espanar com mais cuidado a cátedra do juiz. E, se houver tempo, limpará também o banquinho dos réus.

Helen Keller, tendo apenas o sentido do tato, chegou a fazer conferências públicas

São operações do espírito humano. Conhecemos as coisas através dos sentidos, e nada há em nossa inteligência que não tenha passado pelos sentidos. Um homem que não tivesse nenhum dos sentidos seria incapaz de conhecer qualquer coisa.

Helen Keller, se não me engano, nasceu apenas com o sentido do tato(1). E alguém, com muito cuidado, conseguiu através do sentido do tato manter comunicação com ela. Por exemplo — estou fazendo suposições —, traziam comida e a instrutora dava três pancadas. E sempre que recebia três pancadas, ela sabia que vinha uma refeição. Assim, com outros sinais táteis, e com uma paciência enorme, a professora conseguiu dar a Helen Keller toda uma linguagem, uma descrição do Universo, apenas através do sentido do tato.

Ela trabalhou tanto com isto que aprendeu a falar. Sem ouvir a própria voz, e tomando contato com o mundo somente pelo tato, fez conferências públicas.

Esteve em São Paulo e pronunciou uma conferência no Teatro Municipal. Um conhecido meu assistiu a essa conferência, e contou-me ter ficado muito impressionado ao ver aquela mulher falando ao público, apenas sentindo o chão sob seus pés; em torno dela o vazio.

Mas estava construída em sua mente a ideia do que é um teatro, e ela fez o histórico de como, passo a passo, foi sentindo o mundo exterior e, em face deste, o mundo interior.

Contava ela como nasceu, por exemplo, o primeiro afeto no espírito dela. Quando percebeu que um mesmo agente a atendia em várias coisas que precisava, ela, de repente, o quis bem e sentiu em si uma disposição que não conhecia, na noite de seu próprio isolamento. Realmente é uma coisa trágica!

Assim ela fazia a construção do mundo e acordava a sua própria alma com as sensações do corpo. Através das descrições táteis, ela ia apreendendo os nomes das coisas e, pelo que se passava nela, também conhecendo a si própria. É uma verdadeira obra-prima da inteligência humana construir uma figura do mundo apenas através das sensações táteis.

No exemplo de Helen Keller, notamos especialmente: a inteligência dela, que chegou a conhecer o Universo; e a inteligência de quem soube, por meio de diversos métodos, fazer com que ela adquirisse tais conhecimentos. Essas duas inteligências fizeram esta obra-prima de se comunicarem.

Vemos assim a grandeza do espírito humano. E compreendemos esse elemento imaterial que está no homem, o qual conhece, pensa, ordena, quer, ou não quer; e, através do que ele vê nos outros, é capaz de conhecer o que nunca verá nesta vida: as almas dos outros. E não só as almas dos que existem, mas as dos que existiram e deixaram sua figura nesta Terra. Isso dá ao homem uma possibilidade, que nenhum outro ser animal tem, de deduzir a existência de Deus.

Pela mera razão, chegamos à conclusão de que Deus existe

Sem revelação, mas pela pura razão, o homem chega à conclusão de que Deus existe. Todas as coisas que existem não têm força para se terem causado a si mesmas; porque aquilo que se causou a si próprio, existia antes de se causar. Se eu afirmar “eu me causei”, estou dizendo que eu existia antes de me causar. E se eu existia antes de me causar, há alguma outra causa que me causou. Então, terei que chegar a uma causa primeira.

Todas as coisas são imóveis por natureza. A prova é que este meu corpo, quando dele se retirar a vida, ficará imóvel. Logo, há um fator que o movimenta, o qual não é idêntico a ele, mas pode entrar e sair dele. Ele, de si, não é móvel. O que é esse fator? Quem o fez e deu a esse fator a capacidade de mover? Motor imóvel, Deus por todos os séculos.

A criação da ordem. Quando eu vejo um animal fazer, por instinto, algumas coisas ordenadas, fico abismado; são coisas sapientíssimas produzidas por um bicho perfeitamente ignorante. Um canário tem noções de harmonia que muitas pessoas não possuem. Quem não percebe que há um músico atrás desse instrumento, um artista atrás dessa obra de arte? É uma coisa evidente. E daí para frente.

Através de raciocínios, o homem conclui e faz a construção da ideia de Deus. Quer dizer, nós, em relação a Deus, somos como que espécies de Helen Keller: pegamos sintomas. E perceberemos quão pequenos são esses quando virmos a Deus face a face. Fomos criados e nossas almas pedem ver a Deus diretamente, e não apenas através de sintomas. No Céu, vamos olhar para a nossa vida de agora, e nos sentiremos como uma Helen Keller que tivesse escapado da sua enfermidade e voado.

A vida sobrenatural

Trataremos agora da vida sobrenatural. Parece uma coisa inacreditável, mas, além de o Verbo ter-Se encarnado, e Nosso Senhor, na sua natureza humana, ter sofrido tudo quanto sofreu por amor a nós, Deus criou a graça, quer dizer, um dom pelo qual de algum modo participamos da natureza d’Ele.

Quando nascemos não temos essa participação na vida divina; mas, ao sermos batizados, algo da vida divina se infunde em nós, elevando-nos acima de nossa condição de homens, tornando-nos capazes de fazer coisas que, sem a graça, não poderíamos realizar.

Imaginemos que numa planta fosse enxertado algo da natureza divina. E que, devido a essa misteriosa participação, ela se tornasse capaz de entender e de querer alguma coisa. Se Helen Keller estremeceu tanto de alegria, a planta ainda mais, porque não tem nem sequer o tato. Suponhamos que com esse vegetal se passasse algo de parecido com o que sucedeu a Helen Keller: por alguns sinais, ela entendesse e percebesse que há uma outra ordem de existir. Que júbilo ela teria!

 Ora, isto nos é dado pelo Batismo, pela munificência e magnificência de Deus. Por esse sacramento nos é concedida uma coisa extraordinária, da qual as pessoas não se dão conta: crer naquilo que o Criador revelou.

O homem mais inteligente não pode crer sem a graça. Se dermos a uma pessoa inteligentíssima um catecismo e uma apologética, que prove a veracidade da Religião Católica, ela entenderá tudo e dirá: “Realmente ficou provado que esta religião é a verdadeira, mas falta-me algo, eu não creio.”

Por sua natureza, sem a graça, o homem não é capaz de crer na palavra da Revelação ou fazer qualquer ato de amor a Deus com base na Revelação, ou até mesmo pronunciar com piedade o nome de Jesus ou de Maria.

Às vezes encontramos pessoas as quais romperam de tal maneira com a graça que, quando dizem Jesus ou Maria, temos a impressão de que elas possuem uma natureza de metal, pronunciando tais palavras sem nenhum amor, nenhuma dedicação.

Certos indivíduos utilizam palavras, tais como: “Em Mateus tanto, está que Jesus disse…” Pelo timbre de voz, percebe-se que eles não têm Fé. Qualquer um de nós, rezando a Ave-Maria, diz: “…bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus”. Que diferença!

Devemos amar a Deus, enquanto Criador do Universo hierárquico

A vida sobrenatural é um outro grau de vida que se adquire com o Batismo e só se perde com o pecado mortal. A Igreja define a Fé da seguinte maneira: a fé uma virtude sobrenatural pela qual cremos — com o auxílio da graça — no que por Ele foi revelado, pela autoridade do próprio Deus que revela, o qual não pode enganar-se nem ser enganado; já é um começo da visão beatífica. Sem me dar conta, há em mim uma como que semente da visão beatífica pelo fato de eu crer. De maneira que quando faço um ato de Fé, realizo algo que é parecido com o Céu. Compreendemos então a beleza magnífica do Credo.

Vimos os vários degraus da vida. Quanta hierarquia! E que hierarquia sábia, a qual devemos amar!

Segundo esse mundo liberal que nos cerca, todo indivíduo colocado numa posição de hierarquia menor do que o outro é por isso um infeliz. Essa é a lógica de Satanás! Para Satanás, um Anjo menor é infeliz em relação a um Anjo maior; todos os Anjos são infelizes em relação a Nossa Senhora, que é a Rainha deles. O homem é um infeliz em relação a um Anjo, o animal em relação ao homem, o vegetal em relação ao animal, o mineral em relação ao vegetal.

É o contrário. Deus fez magnificamente tudo isto. Ele colocou no ápice um varão: Nosso Senhor Jesus Cristo, o Varão por excelência. E, imediata, porém infinitamente abaixo de Nosso Senhor Jesus Cristo, uma dama, a Rainha do Céu e da Terra. E a nós, Deus não deu uma natureza de ápice, mas a natureza dos que estão no ápice.

Assim compreendemos o que é a nossa vida, e como devemos saber empregá-la, amando, antes de tudo, todas as hierarquias e a obra de sabedoria de Deus, enquanto criando o Universo hierárquico.  v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/2/1980)

Revista Dr Plinio 158 (Maio de 2011)

 

1) Helen Keller, nascida em 27 de junho de 1880, em Tuscumbia, Alabama, perdeu subitamente a visão e a audição devido a uma doença diagnosticada como febre cerebral, ou escarlatina.

 

A Contra-Revolução tendencial

“Revolução e Contra-Revolução” foi um dos temas centrais das explicitações de Dr. Plinio ao longo de sua vida.
Por isso, entre suas conferências encontram-se, com frequência, aprofundamentos à sua obra-mestra. Com o presente artigo, damos início a uma série destas explicitações.

 

Quando se analisa os mil artifícios empregados pela Revolução no campo das tendências para penetrar na mente do homem — de certo modo sem que este o perceba —, tem-se a impressão de que ela é quase irresistível.

As pessoas que conhecem esses métodos têm tantos modos de agir e de influenciar, que quase não se compreende como um povo entregue às cogitações quotidianas, às preocupações comuns, pode se dar conta de que está sendo objeto de um tratamento revolucionário.

Até uma combinação de cores pode ser de acordo com a Revolução

Suponhamos uma dona de casa que deseja adquirir uma sacola onde possa colocar os objetos comprados por ela numa feira.

Ela compra a cesta mais resistente e durável, que lhe parece mais fácil de carregar, mas quase não presta atenção porque aquele objeto não tem uma intenção ornamental especial. Porém, não se dá conta de que a combinação das cores daquela cesta é revolucionária e que ela, portanto, indo e voltando para o mercado ou para a feira, está levando e trazendo Revolução.

Mais ainda, se ela, em sua casa, pendura aquela sacola num lugar qualquer da copa ou da cozinha, aquela combinação de cores pode estar influenciando tendencialmente, de um modo revolucionário, toda a sua família.

Que defesa pode ter uma pobre dona de casa contra uma coisa dessas?

Tem-se a impressão de que a Revolução tendencial não pode ser evitada pelo homem; é uma arma irresistível. E se tem a ilusão de que o mesmo acontece com a Contra-Revolução tendencial. Quer dizer, se uma pessoa normalmente leva uma cesta com bonita combinação de cores, e depois a prende numa parede de sua casa, está fazendo Contra-Revolução.

Não é simplesmente uma cesta, mas são mil coisas: o cabo da escova de dente, a forma do sapato, tudo está fazendo Revolução a toda hora e, de vez em quando, Contra-Revolução. Quem pode resistir a isso?

Mentalidades revolucionárias e contra-revolucionárias

Então, devemos analisar como deve ser o homem para não se tornar um joguete da Revolução e nem sequer da Contra-Revolução. Ele fica um verdadeiro contra-revolucionário pela Fé, pelo exercício de suas faculdades intelectivas e de sua vontade. O resto ajuda, condiciona, tem sua importância, mas não pode ser decisivo. Como a matéria é muito complexa, muitas vezes não se fala desse ponto fundamental, que não podemos perder de vista.

O autêntico contra-revolucionário, quando percebe que uma coisa é revolucionária, a recusa; quando nota que algo é contra-revolucionário, aceita-o.

Ele vê, julga, quer ou não quer.  Aqui está a parte nobre da operação da alma humana. Para isso, como deve ser a sua mentalidade?

Depois da impressão, é necessária a reflexão

Dou-lhes um exemplo tirado de uma leitura que fiz.

Caiu-me nas mãos uma frase lindíssima de Santo Agostinho, extraída do livro “A divindade da Igreja Católica”, de Monsenhor Miguel Martins(1).

Eis a frase de Santo Agostinho:

“Deus é infinitamente poderoso, mas não nos pode dar mais; é infinitamente sábio, mas não sabe nos dar mais; é infinitamente rico, mas nada mais tem para nos dar; porque na sagrada comunhão Ele se tem dado todo a nós.”

Há nesse texto aquele voo de Santo Agostinho, que é só dele. Tem-se a impressão de que é uma ave levantando voo e indo direto para alturas inexcogitáveis!

Mas é um voo do espírito, em comparação do qual o do avião não é nada.

A ideia dele é a seguinte:

Deus, infinitamente poderoso, pode nos dar algo mais do que a Sagrada Eucaristia? É Jesus Cristo realmente presente em Corpo, Sangue, Alma e Divindade! Dando-Se a Si próprio, não tem mais o que dar.

Então, quando, pela graça obtida através de Nossa Senhora, formos comungar, devemos tomar em consideração a beleza desse pensamento: vamos receber um dom tal que o próprio Deus não poderia dar outro melhor.

Ele é infinitamente sábio, mas não sabe nos dar mais!

Imaginemos a sabedoria de Deus criando o Céu e a Terra e todos os outros seres. Pois bem, Ele não sabe dar mais do que a Eucaristia!

É infinitamente rico, mas não tem nada mais valioso para nos dar, porque na Sagrada Comunhão Ele se tem dado todo a nós!

Tudo isso causa uma primeira impressão que vem acompanhada de uma graça.

Mas é bom que se faça depois uma reflexão. O que está sendo dito é um pensamento profundamente sério, o qual deve ser guardado na alma.

Esta operação que se faz a respeito desse pensamento — não é indispensável fazer isso com cada pensamento que se tem — é perfeita, quando a pessoa se impressiona, se convence e ama tanto aquilo que ouviu ou leu, que nunca mais deixa de ter isso em conta quando vai comungar. Sua memória conserva aquilo para a vida inteira.

Quando me leram essa frase pela primeira vez, tive alegria. Agora, ao relembrá-la diante dos que estão neste auditório, minha alegria se renovou, ao ver a primeira alegria dos presentes diante desse pensamento. E foi uma alegria intensa, altissonante, que levanta voo!

Choque das mentalidades

Hoje é sexta-feira e muitas pessoas estão se preparando para toda espécie de diversões, enquanto que nesse auditório muitos jovens bradam de alegria, portanto de felicidade de alma, porque ouvem um pensamento desse gênero.

Imaginemos um indivíduo que pretenda ir amanhã cedo para Guarujá e colocou sobre seu automóvel uma lancha, com comida e outras coisas para o passeio.   O carro já está voltado para a rua, a fim de apressar a saída. 

Digamos que ele passe nesse momento aqui em frente e, ouvindo as exclamações, pergunte a alguém:

— Por que razão esta alegria?

E esse alguém lê para ele o texto de Santo Agostinho.

O indivíduo pensa: “Como eles se entusiasmam com esse pensamento que eu não estou entendendo bem? Tenho aqui essa lancha e vou amanhã para Guarujá, isso que é uma coisa gostosa. Eles vão ter um dia de oração, de trabalho, de reunião… Coitados! E essa reunião que estão tendo agora irá até a uma hora da manhã!”

Esse homem poderia dizer: “Ou estou completamente errado ou errados estão eles, porque não me alegro com isso. Noto que eles passam diante da minha lancha e nem param para olhar! Nem sabem qual é sua marca, que está escrita do lado de fora numa plaquinha! Eles saem conversando entre si a respeito de coisas de Religião, de Sociologia, de História.

“Alguns estão falando de Maria Antonieta. Penso que é uma moça que eles conhecem, mas não! Trata-se daquela rainha da França, que teve a cabeça cortada pelos revolucionários! Realmente não entendo.”

Julgo que com esse exemplo torno claro o contraste e o choque de mentalidades.

O feitio do homem se molda conforme sua meta

Esse homem tem a alma voltada para uma determinada meta e nós, pelo favor e pelas preces de Nossa Senhora, estamos orientados para outra meta. E conforme a meta se forma o feitio da pessoa. Em função disso — talvez meus ouvintes tenham pensado que eu perdi o rumo, e não esteja mais tratando da Revolução e da Contra-Revolução — vem a questão da resistência do homem à ação tendencial revolucionária ou contra-revolucionária.

Há dois tipos de homem. Um deles é este sobre o qual falei — tipo que já era corrente nos longínquos tempos da minha infância.  O modo de viver os fins de semana mudou muito, mas a mentalidade era a mesma.

Naquela época, o fim de semana era só o domingo. A vida em São Paulo era muito menos tensa, não sendo preciso descansar sábado e domingo. O cansaço acumulado durante a semana era muito menor.

A Sãopaulinho de outrora era ao mesmo tempo muito mais aristocrática e sossegada do que esta São Paulo industrial que vemos febricitar e transudar poluição em todos os lugares.

Já na Sãopaulinho a meta normal do homem era o prazer

Já naquele tempo, a meta normal do homem era o prazer. Ele seria inteiramente feliz se tivesse prazeres contínuos e na proporção de seus desejos.

Há pessoas que gostam de grandes prazeres. Outras, de mentalidades ora mais apoucadas, ora mais finas, se contentam com prazerezinhos e apreciam sorver a vida com colherinhas de chá e não com enormes goles. Há, portanto, diferentes modos de viver em busca do prazer.

Tinham muito pálida e remotamente a ideia de que o domingo é o dia do Senhor. Iam à Missa porque é uma exigência de Deus, e não havia como evitar. A mentalidade era essa.

Trabalhavam nos dias de semana para ter os recursos a fim de gozar a vida no domingo. Mais ainda, procuravam levar durante a própria semana a vida mais gostosa possível.

O que era a vida gostosa?

Antes de tudo consistia em não ter preocupações nem aborrecimentos.

Em segundo lugar, fazer o que quer: ir a Guarujá, à fazenda, ao Rio de Janeiro, ficar dormindo até meio-dia, levantar-se às cinco horas da manhã para escalar o Jaraguá(2), etc.  Em suma, fazer o que é gostoso é a lei.

E as coisas gostosas eram aquelas que direta e imediatamente dão gosto ao corpo. Para os espíritos um pouco mais elevados — não numerosos — o gosto do corpo se conjugava com certo prazer da alma. Então, alguns gostavam de música — mas que músicas! —, outros, de uma exposição artística, porque dão certo prazer de alma através dos sentidos. Quem se metia nessa vida, cujo diapasão é o gostoso, evidentemente não tinha alma para apreciar pensamentos elevados, como esse de Santo Agostinho; era cego, surdo e mudo para coisas dessa natureza.

Os temas das conversas indicavam o feitio de espírito

No meu tempo de moço — hoje não deve ser muito diferente, mas talvez muito pior — certos tipos de conversa indicavam superlativamente este feitio de espírito. Por exemplo, contar de modo exagerado e com fanfarronada as coisas que fez no domingo anterior: tomou uma lancha e quase houve um acidente, mas o indivíduo conseguiu evitá-lo de tal maneira; foi um herói. E narra o caso até o último pormenor, ou seja, até a última mentira que ele encontrou para chamar a atenção.

Enquanto isso, um outro pensava: “Deixa este acabar de falar, para eu contar meu grande feito”. E se não tinha nada para jactanciar-se, ficava com vontade de mudar de assunto.

Outro tema muito querido era as viagens de automóvel — as estradas de rodagem naquele tempo eram relativamente novas. As surpresas que houve em certo lugar; o freio que quase falhou; o indivíduo teve que ir a pé para comprar uma peça, mas foi muito feliz porque no caminho encontrou um conhecido que o levou de automóvel e o trouxe, e ainda lhe agradeceu, porque lhe disse que conversava muito bem. O que equivale a dizer: “Vocês não sabem apreciar a minha conversa, mas sou um colosso; saibam me apreciar melhor”.

De vez em quando, conversas a respeito de negócios ou política.

Voo da alma às coisas elevadas

Em consequência, essas almas não tinham nenhuma capacidade de entender e amar os pensamentos elevados.

Uma pessoa, ouvindo a leitura desse texto de Santo Agostinho, se entusiasma quando está voltada para outra ordem de valores. Ela compreende que as coisas materiais podem ser aprazíveis e devem, em certas circunstâncias, ornar ou tornar deleitável a vida do homem. Mas o principal não é o corpo; há uma forma de deleite, uma beleza, uma santidade, uma verdade nas coisas, que, quando a alma percebe, ela se rejubila, sobretudo quando são bem expressas. A alma, então, voa em direção a coisas mais elevadas.

Para se ter ideia completa do que é um deleite desses, deve-se ler, nas “Confissões” de Santo Agostinho, a conversa dele com Santa Mônica, no porto de Óstia. Sua mãe havia rezado por ele durante muitos anos e, afinal, Santo Agostinho se convertera. Ia para Cartago, cidade então florescente do Norte da África, e estavam no porto de Óstia. Enquanto esperavam o navio, conversavam sobre o Céu junto à janela de uma hospedaria — colóquio de um santo com uma santa — e tiveram uma espécie de êxtase. Santo Agostinho conta essa conversa de um modo incomparável.

Santa Mônica disse-lhe:

— Meu filho, já obtive a tua conversão para que sigas no caminho da Fé. Teu pai morreu, e eu não tenho mais deveres nesta Terra; desejo apenas o Céu.

Vê-se que, apesar de querer muito bem a Santa Mônica, ele não fez insistência para ela continuar na Terra. Santo Agostinho poderia dizer-lhe: “Mamãe, não pense nisso, a senhora ainda está moça e tem muita saúde…” Ou então: “Ser-me-ia muito duro resignar-me a viver sem a senhora; procure ficar na Terra.”

Mas não o fez porque entendera haver chegado o momento dela, e que as coisas devem se realizar nas horas de Deus e não dos homens.  Daí a poucos dias, ela adoeceu e morreu, tendo sido sepultada na própria cidade de Óstia.

Ele conta tudo isso de modo muito bonito e percebe-se o equilíbrio da alma católica. Narra seu próprio pranto e que levou seu corpo ao cemitério. E voltou tão triste que, para se consolar, tomou um banho! E com uma bondade de um coração episcopal, escreve ele: “Aconselho a todos que tiverem uma provação muito grande, que tomem um banho, porque ajuda a suportá-la”.

Não é, portanto, uma alma estranha às realidades da Terra, que desdenha ou ignora qualquer forma de apoio ou de conforto para o irmão corpo. Mas depois voa muito acima disso. v

 

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 9/11/1984)

Revista Dr Plinio 146 (Maio de 2010)

 

1) São Paulo: Editora da Escola Profissional Liceu Coração de Jesus, 1917.

2) Jaraguá: pico situado nas cercanias de São Paulo.