Evocando o sublime exemplo da Santíssima Virgem durante a Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, Dr. Plinio nos ensina que a verdadeira paz não está na ausência da dor, das angústias nem da luta, mas na tranqüilidade que brota da ordem.
Na Ladainha Lauretana, Nossa Senhora é invocada como a Regina Pacis, Rainha da Paz. Procuremos analisar o significado mais profundo desse título que a devoção católica atribuiu à Santíssima Virgem.
A paz referida nessa invocação pode ser considerada sob dois aspectos. Em primeiro lugar, a do íntimo das almas; segundo, a exterior, isto é, da sociedade.
Conceito errôneo de paz interior
Para compreendermos a primeira acepção, devemos antes tomar em conta que diversos conceitos e palavras atinentes a assuntos de piedade sofreram, ao longo dos últimos tempos, ponderosas distorções no modo de defini-los.
Assim, costuma-se julgar que a paz interior de uma pessoa consta de dois elementos. Ela não é assaltada por nenhuma tentação, nem se vê, portanto, às voltas com lutas internas. Sua vida espiritual é tranqüila, distendida, agradável, sem problemas. Essa pessoa se assemelharia a alguém que está sentado dentro de um helicóptero em ascensão, no qual, sem qualquer esforço, chega ao céu com toda a paz.
Em conseqüência, ela não tem nenhuma cruz ou sofrimento. Não tem angústia a propósito de doenças, de carências materiais ou por dificuldades familiares. Para ela, tudo transcorre numa serena e perfeita ordem, sem atritos nem adversidades com os quais tenha de lutar.
Tal é o conceito corrente de paz interior.
A paz externa, fruto da prosperidade econômica?
Vejamos agora a idéia comum que se tem de paz externa.
O Papa Pio XII tinha como lema do seu brasão pontifício esta frase tirada de Isaías (32, 17): Opus Iustitiæ Pax — A obra da justiça é a paz. Ora, segundo a noção hoje propalada, a paz não é a obra da justiça, da virtude, mas de uma certa prosperidade materialista. Importa, antes de tudo, a estabilidade econômica, as contas bancárias de todos conservadas e nutridas, as aposentadorias asseguradas, as pessoas alimentadas, com o conforto e bem-estar diários garantidos. Não há brigas por questões pecuniárias, todos vivem alegres e tranqüilos. Então a paz reina na nação.
Quando todos os povos se encontrassem nessa feliz situação, alguns imaginam que não haveria confrontos internacionais, nenhum país desejaria agredir outro e a população mundial levaria uma existência calma e pacífica.
A Rainha da Paz não teria padecido angústias
De acordo com esse equivocado conceito, a devoção a Nossa Senhora Rainha da Paz consistiria em cultuar a Mãe de Deus enquanto protetora desse róseo estado de coisas, pois é o modelo da pessoa que nunca teve provações, angústias, dores. Ela foi concebida sem pecado original e, portanto, sua vida inteira foi muito calma, sem dificuldades. Teve um Filho e um marido muito bons, residiu numa pequena cidade chamada Nazaré, onde não havia atrito de nenhuma espécie, e Ela passava seus dias inteiramente desanuviada.
Verdade é que seu Filho, a certa altura, sofreu e Maria, durante a Paixão, experimentou algum desgosto, do qual logo se recuperou, resignada. Pouco depois Ela O viu subir aos céus, e se alegrou ao perceber o Filho bem colocado. Acabaram-se os problemas, Ela passou o resto de sua vida na tranqüilidade doméstica, sob os filiais cuidados do apóstolo João.
Esse é o ideal de certas mentalidades, quando falam de Nossa Senhora da Paz.
Um predicado que não exclui lutas e sofrimentos
Ora, a procura de uma correta interpretação desse título mariano nos levaria a considerar que a primeira notícia de Nossa Senhora nas Sagradas Escrituras no-La mostra como adversário do demônio, e como Aquela que esmagaria a cabeça da serpente: “Porei inimizade entre ti e a mulher”, disse Deus à víbora, entre tua descendência e a dela” (Gn, 3, 15). Ou seja, há uma atitude fundamental de repulsa e de combate ao mal naquela que é invocada como Rainha da Paz.
Além disso, como se infere das palavras divinas, todas as lutas travadas pela Igreja e pelos católicos contra os adversários da Fé têm na mulher, isto é, em Nossa Senhora, o primeiro exemplo de coragem e de força para vencê-los.
Então, se a paz fosse simplesmente ausência de luta, como a Virgem Maria seria a Rainha da Paz?
Mais ainda. Se a paz consiste em não ter sofrimento nem angústias, como explicar as palavras de Simeão dirigidas a Nossa Senhora, segundo as quais um gládio de dor transpassaria o coração d’Ela?
Na verdade, Maria sofreu um dilúvio de dores na Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ela viu surgirem e crescerem as antipatias, as animosidades e o ódio em relação a seu Divino Filho; d’Ele ouviu a predição de que sofreria e morreria crucificado, e não O abandonou um só instante, acompanhando-O e partilhando de seu martírio até o Consummatum est no alto do Calvário, até a deposição do Corpo sagrado na sepultura. E tudo Ela sofreu numa atitude de luta e de paz, para a redenção do gênero humano, para esmagar o demônio e vencer a morte.
Assim, a autêntica noção de paz não exclui a luta nem o sofrimento. E onde está a Rainha da Paz, está a inimizade contra a serpente e contra o mal.
Possui a paz quem deseja a ordem
O que é a paz?
Segundo a definição de Santo Agostinho, a paz é a tranqüilidade da ordem. Quando uma alma possui firme propósito de se manter em ordem, custe o que custar, embora enfrentando as maiores dificuldades, angústias e perturbações, ela tem a paz. Por isso diz São Francisco de Sales que Nosso Senhor Jesus Cristo, no Horto das Oliveiras, não perdeu a paz nem a alegria na fina ponta de sua alma, porque estava disposto continuamente a cumprir seu dever.
Do mesmo modo podemos afirmar que Nossa Senhora não deixou de ter paz nem mesmo no Calvário, pois seu espírito estava em ordem, realizando sua missão de Co-redentora da humanidade.
Portanto, quando a ordem vence e incute, quer interna, quer externamente, sua tranqüilidade própria, ainda que em meio a uma série de lutas e sofrimentos, a paz impera. Tanto mais vigorosa e resoluta, quanto maiores as dificuldades em face das quais deve se afirmar. Esse conceito se aplica às instituições, aos povos e à vida espiritual de cada pessoa.
Paz de fundo de alma, mesmo na “amargura muito amarga”
Aplica-se, sobretudo, como acima evocamos, ao Divino Redentor e à sua Mãe Santíssima, em cujos lábios a piedade católica colocou aquelas palavras do profeta: “Eis na paz minha amargura muito amarga” (Is 38, 17).
Ao tecer essas considerações, longe estou de pretender que não se deve apreciar as épocas de tranqüilidade, ou as horas de distensão e bonança que a Providência nos permite desfrutar em nossa vida. Antes, devemos pedir a Deus, por meio de Nossa Senhora, que nos conceda essas épocas de “respiração”, onde não haja dores ou dificuldades. Contudo, não podemos fazer disso o ideal da paz, pois sabemos que são momentos de consolações no meio de lutas e trabalhos. Como os tiveram, aliás, Nosso Senhor Jesus Cristo e sua Mãe em Nazaré, em casa de Lázaro, Maria e Marta, etc.
Assim, ao invocarmos a Rainha da Paz, peçamos a Ela que imprima bem vivo em nossa alma o amor à paz verdadeira que é a tranqüilidade da ordem, e não a ausência da dor e da luta. E quando nos acharmos opressos por dificuldades, roguemos-Lhe que nos conceda, complementarmente à paz interior alicerçada na ordem, alguma distensão, dispondo circunstâncias propícias que nos façam respirar um pouco na vida.
É um pedido legítimo que, estou certo, Ela atenderá com a abundância de sua maternal misericórdia.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 10/7/1964)
Revista Dr Plinio 124 (Julho de 2008)