Quando se fala de tradição, o que logo ocorre a grande número de pessoas é a Inglaterra atual, com a Rainha, a Câmara dos Lordes, as Rolls-Royce, os chapéus-côco, a distinção e a fleugma britânicas. Como fundo de quadro, a palavra evoca reminiscências brasileiras de tempos mais remotos. Assim os patriarcais casarões de fazendas com seus terreiros, suas palmeiras e as senzalas próximas. Ou a quinta da Boa Vista, as barbas brancas de D. Pedro II e o sorriso afável de Da. Teresa Cristina. E ainda o Rio plácido e galhofeiro da I República bem como a São Paulo aristocrática e circunspecta, familiar e divertida, da alta do café. Tudo isto sem esquecer a Bahia vivaz e indolente, gulosa e musical, que ostentava, mais ou menos na mesma quadra, as galas antigas dos tempos dos governadores Gerais e as fulgurações, então ainda recentes, da nomeada de Rui Barbosa. E a Minas incomparável do Aleijadinho, cuja expressão máxima são, a meu ver, os profetas majestosos e coléricos da escadaria de Congonhas do Campo.
Todas estas impressões, vistas em seu conjunto, causam nos espíritos reações desencontradas.
Para inúmeras pessoas, a tradição – assim entendida – é algo que vai mudando de colorido ao longo dos dias, em função das impressões sucessivas que o estilo de existência de nosso tempo lhes vai causando. Há horas em que a trepidação das megalópoles modernas fascina essas pessoas, e as entusiasmam as organizações colossais, os planejamentos ciclópicos e as técnicas de hoje, que vão transformando em realidade a “science fiction”. Nestas horas, a tradição parece a tantos de nossos contemporâneos um triste atraso.
Diante da ventania que vai derrubando todas as hierarquias e soprando para longe todos os trajes, sentem a tradição como se fosse jugo e abafamento. Nas ocasiões, pelo contrário, em que a vulgaridade ovante de um mundo sempre mais igualitário, os ritmos estrepitosos, frenéticos e atravancados da existência atual, a instabilidade ameaçadora de todas as instituições, de todos os direitos e de todas as situações causam neuroses, angústias e extenuações a milhões de nossos coevos, a tradição se lhes apresenta como um remanso de elevação da alma, bom senso, boa educação, boa ordem e, em suma, de sábia arte de viver.
Assim sendo, como julgar então a Tradição? O que pensar desses momentos de apetência e dos longos dias de fastio um e outro excessivos, como o são os acessos de fome e de inapetência de certos doentes?
Muitos são os que não sabem como resolver o conflito de alma fugidio e subtil, que, a este propósito, por vezes os dilacera. E porque não sabem, fogem do tema.
Esta fuga cria, sem dúvida, uma zona de silêncio em torno do assunto. Mas tal silêncio não significa, em geral, indiferença. Pelo contrário, resulta, a um tempo, de perplexidade e de hipersensibilidade. O assunto dói demais. Não é melhor, então, esquivá-lo e beber um whisky?
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