As dores de Nossa Senhora

Depois de descrever a fisionomia moral da Mãe de Deus, Dr. Plinio considera os sofrimentos pelos quais passou a “Mulier dolorum” ao longo de toda a sua existência, em união com seu Unigênito. Tais considerações nos convidam a um exame de consciência feito com paz e inteira confiança na misericórdia divina.

 

Hoje é um dia muito significativo para nós, pois é a Festa das Sete Dores de Nossa Senhora.

Parece-me que não podemos deixar passar a ocasião sem dizer uma palavra a respeito.

”Mulier dolorum”

O que nós podemos considerar a respeito de Nossa Senhora e de suas dores, fundamentalmente, é o seguinte:
Enganam-se aqueles que julgam que a Virgem Maria teve em sua vida uma única ocasião de dor correspondente à Paixão e Morte de seu divino Filho. Esse momento foi realmente de uma dor suprema, a maior que jamais se tenha sentido no universo, abaixo da dor insondável de Nosso Senhor Jesus Cristo em sua humanidade santíssima.

Foi uma dor tão grande que recapitulou todas as dores do universo. Tudo quanto os homens sofreram desde a queda de Adão e sofrerão até o último instante em que houver homens vivos na Terra, vai ser incomparavelmente menor do que a dor que Nossa Senhora sofreu.

Contudo, erraria quem pensasse que Ela padeceu essas dores durante a Paixão, mas fora daquele período não teria sofrido mais. E, portanto, sua vida viria transcorrendo calma, satisfeita, inundada pelo contentamento de ser Mãe do Salvador quando, de repente, chegou aquela dor lancinante que durou até a Ressurreição de Nosso Senhor, mas depois passou o sofrimento e Ela teve novamente uma vida alegre.

Na realidade isso não se deu e é um modo completamente equivocado de considerar as dores de Nossa Senhora.

Nosso Senhor Jesus Cristo foi chamado por um dos profetas — se não me engano, o profeta Isaías(1) — de “Vir dolorum”: o Varão das dores; o homem ao qual era próprio sofrer, que está cheio de dores e que trazia essas dores na sua alma santíssima durante toda a sua existência.

De maneira que a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo não foi um fato isolado na sua vida, mas o ápice de uma sequência enorme de dores que começaram desde o primeiro instante de seu ser e foram até o momento em que Ele exalou, num dilúvio de dores, o terrível “Consummatum est”(2). Durante todo esse tempo Ele continuamente sofreu.

Ora, como Nossa Senhora é o espelho da sabedoria, é espelho da justiça e Ela reflete em Si tudo o que é de Nosso Senhor Jesus Cristo, deve-se dizer de Nossa Senhora que Ela foi a “Mulier dolorum”, a Mulher, a Dama das dores e que também Ela teve a sua vida inteira pervadida pela dor, pelo sofrimento.

É certo que essa dor teve proporção com as forças incalculáveis que a graça Lhe dava. Sem dúvida, foi uma dor imposta pela Providência e, portanto, por mais lancinante que tenha sido, não era dessas dores que produzem turbulência e provações que devastam e sujam a alma.

Eram dores imensas, mas muito arquitetônicas, muito sábias, recebidas com uma serenidade de alma admirável! De maneira que, assim como se atribui a Nosso Senhor essas palavras de Isaías: “Ecce in pace amaritudo mea amarissima”(3) — “Eis na paz a minha amargura muito amarga” —, também de Nossa Senhora se pode dizer: “Eis na paz a minha amargura amaríssima”. No meio de um oceano de dor, aquilo tudo equilibrado, raciocinado, refletido e suportado com amor e com estabilidade de alma incomparável, sem emoções exageradas.

Entrelaçamento das mais tremendas dores com as mais excelsas alegrias

Portanto, com uma quase infinidade de sofrimentos padecidos sem torcida, sem pânicos, mas com muito medo, com muita angústia e, em certas circunstâncias, até com um peso de dor que chegava quase a estraçalhar, a Santíssima Virgem foi durante a vida inteira uma grande sofredora. Entretanto, uma sofredora que teve momentos de alegria e, mais do que isso, Ela teve uma grande felicidade ao longo de toda a sua existência.

Ela também teve gáudios como nunca pessoa alguma teve. E todas as alegrias do mundo, desde o primeiro instante em que o homem foi criado no Paraíso, até o último momento em que haja homens na Terra, todas somadas não darão as grandes alegrias de Nossa Senhora.

Mas essas dores e alegrias se entrelaçavam continuamente e Ela vivia suportando o fardo dos mais tremendos padecimentos e, ao mesmo tempo, aliviada pelo bálsamo das mais excelsas alegrias. Assim vista a fisionomia moral insondavelmente santa de Maria, convém nos atermos especialmente às suas dores. Quais foram as dores de Nossa Senhora?

O tormento ao considerar os pecados dos homens

Antes mesmo de saber que seria a Mãe de Deus, Ela começou a sofrer uma dor que para uma alma zelosa é imensa e que atormentou incontáveis santos — creio ter afligido todos os santos ao longo da história — e que Nossa Senhora, naturalmente, teve em grau superlativo.

Concebida sem o pecado original, desde o primeiro instante do uso da razão, a Santíssima Virgem já iniciou sua vida mística. E teve conhecimento do pecado e de toda a infelicidade dos homens. Nutrindo pela glória de Deus tal zelo que daria mil vidas para evitar um pecado mortal, Ela passava por essa dor tremenda de ver a humanidade inteira imersa em pecados. Sofria ao considerar aquelas pessoas que morriam e cujas almas, em número enorme, caíam no inferno, ou então, quando não se condenavam, iam para a triste morada do “Sheol”, onde muitas já se encontravam há dezenas de séculos à espera de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Além disso, Nossa Senhora viu os pecados cometidos por ocasião da vinda do Messias, e os que viriam depois do Salvador até o fim do mundo. E isso causava a Ela um tormento do qual não podemos ter ideia.

Houve um santo — eu não sei se foi Santo Inácio de Loyola — que disse o seguinte: se ele tivesse de viver a vida inteira simplesmente para evitar um pecado mortal de uma pessoa que depois fosse para o inferno, ele daria por bem empregados todos os sofrimentos de sua existência. Portanto, não para salvar aquela alma, mas para impedir de ser feita a Deus uma ofensa grave, de tal maneira o pecado mortal é um mal insondável.

Mas se era esse o pensamento de um santo, o que pensava Nossa Senhora, perto da Qual o maior santo é menos do que uma gota d’água comparada a todos os mares do mundo, menor que um grão de poeira em comparação a todos os universos? A santidade da Virgem Maria não tem proporção com nada. Nós não podemos fazer o cômputo da desproporção entre a santidade d’Ela e a de todos os anjos e santos reunidos. Assim, que tormento os pecados dos homens constituíam para Ela!

Dor diante da perspectiva e da realização da Paixão

A Santíssima Virgem recebeu, depois, a magnífica notícia de que seria a Mãe do Verbo encarnado. Podemos imaginar sua alegria ao adorar Jesus no primeiro momento em que Ela O concebeu por obra do Espírito Santo! Mas também sua dor ao pensar ser esse Messias o homem sofredor de que falara o profeta Isaías…

Segundo a opinião de alguns, antes dos trágicos acontecimentos da Paixão a Santíssima Virgem não tinha conhecimento da morte de Nosso Senhor na Cruz, e soube apenas no momento em que esta se deu. Eu não discuto a questão. É fora de dúvida que Ela, pelo profeta Isaías, sabia que seu Filho deveria sofrer dores inenarráveis.

Maria de Ágreda(4) conta que havia na casa de Nazaré um oratório onde, várias vezes, Nossa Senhora encontrou Jesus ajoelhado e suando sangue, na previsão de sua Paixão e da ingratidão com que os homens a receberiam.

Diante disso, que é tão verossímil, podemos imaginar a dor de Nossa Senhora vendo uma criança de cinco anos, depois de dez, mais tarde de quinze, depois um moço de vinte e, por fim, um homem já feito de vinte e cinco, e de trinta anos, ajoelhado frequentemente, a sofrer e a transpirar sangue face à perspectiva dos tormentos que viriam? Tanto mais Ela que amava Jesus, não apenas como uma mãe ama seu filho, mas como uma mãe ama seu Filho que é Deus!

Com certeza, Ela se prostrava perto de Nosso Senhor e sofria das dores d’Ele. E não é de admirar que Ela tenha suado sangue como Ele.

Ao iniciar-se a vida pública de Jesus, Nossa Senhora passa pela dor da separação. Começam os milagres, vêm as vitórias, é o momento da alegria. Mas, pouco depois, surge a ingratidão e prepara-se a tempestade de injustiças que desfechou na Paixão. Com tudo isso Ela sofria de um modo inenarrável! Se houve santos que desmaiaram ao receberem a revelação dos padecimentos do Salvador, podemos imaginar o que representava para Nossa Senhora o mínimo episódio da Paixão.

Por amor a nós, quis sacrificar o seu Filho Unigênito

Afinal, chega o momento da crucifixão, e as dores de Nosso Senhor atingem o seu paroxismo. E Maria Santíssima fica nessa alternativa: de um lado, desejar que Ele morra logo para diminuir as dores; de outro, que sua vida ainda se prolongue, em primeiro lugar porque toda mãe anseia por prolongar a vida de seu filho e, em segundo lugar, pela ideia de que assim Ele sofreria mais e os pobres pecadores seriam mais favorecidos.

Ela, então, concorda com o prolongamento desse sofrimento e firma o propósito de aceitar que Nosso Senhor seja imolado apenas naquela hora extrema, com todas as dores que Ele tivesse de sofrer.

Ela, Rainha do Céu e da Terra, com uma palavra poderia encerrar todos os sofrimentos expulsando os demônios e toda aquela gente que estava lá. Mas, para a salvação das nossas almas, Ela quis deixar aqueles algozes ali.

Apenas uma ou outra situação extrema Ela evitou. Conta Maria de Ágreda que o demônio havia arquitetado o seguinte projeto: quando Nosso Senhor fosse erguido no alto da Cruz e começasse a sua agonia, em determinado momento, derrubar a Cruz no chão, de maneira que a Sagrada Face batesse na terra e se despedaçasse. Mas Nossa Senhora, diante do excesso de ignominia de uma intenção como essa, proibiu o demônio de realizá-la.

Agora, por que Ela deixou o demônio fazer todo o resto? Porque amava tanto a salvação de nossas almas — mas da alma de cada um de nós — a ponto de querer que o Filho d’Ela passasse por tudo aquilo para, por exemplo, eu não ir para o inferno. E Ela ama de tal maneira a minha alma e a de cada um dos senhores que, ainda que houvesse um só dos senhores para ser salvo naquele dilúvio de dores, Ela quereria que seu divino Filho sofresse aqueles tormentos para salvar essa alma.

Imaginem, por exemplo, Nossa Senhora vendo a coroa de espinhos penetrar na fronte sagrada de Nosso Senhor e produzir lesões nervosas que faziam o seu Corpo estremecer em meio a todas aquelas dores que Ele já padecia. Contemplar o Sangue escorrendo de todos os lados, a sede tremenda, a febre altíssima, os estertores de todo o Corpo.

A Santíssima Virgem conhecia e media tudo isso. Entretanto, queria que fosse assim. Ela era como um sacerdote que imolava a Vítima divina no alto do Calvário. E se era esse o preço de uma alma, Ela desejava que o Filho d’Ela sofresse o que estava sofrendo para conquistar uma alma.

A grandeza de Nossa Senhora não está tanto na enormidade das dores padecidas, quanto no fato de ter Ela querido sofrer o que sofreu. Ela quis que o Filho d’Ela realizasse esse sacrifício tremendo e admirável, e fez isso por amor a nós. Porque Deus nos amou a ponto de querer sacrificar o seu Unigênito, Ela nos amou tanto que aderiu a essa função sacrifical, e quis sacrificar por cada um de nós o seu Filho Unigênito.

Um exame de consciência

A Semana Santa está se aproximando e é o momento de cada um de nós fazer, individualmente, uma meditação a esse respeito. Por mais que o homem pense, ele não pode deixar de se nutrir dessa reflexão que nunca deve bastar para a alma católica.

Colocar-se, portanto, sozinho frente a um Crucifixo ou diante de uma imagem de Nossa Senhora das Dores, e esquecer o restante do mundo. Porque diante de Deus, o mundo inteiro para mim não existe. E então fazer-me esta pergunta: Eu, Plinio, tenho consciência do preço da minha salvação? Todas as graças que eu tenho recebido, eu faço ideia dos gemidos e das dores que elas custaram e do que causaram no Coração Imaculado de Maria?

Eu tenho ideia de que tudo quanto se passou no Gólgota de tal maneira visava a minha salvação que se teria realizado ainda que eu fosse o único beneficiado?

Eu estou compenetrado de que no alto da Cruz Nosso Senhor Jesus Cristo pensou nominalmente em cada homem, desde o começo do mundo até aqui? E que, portanto, passou pela mente divina d’Ele, com pensamento de misericórdia, de bondade e de salvação, o nome de Plinio Corrêa de Oliveira? E que Ele teve em vista não apenas meu nome, mas viu minha alma, minha pessoa, o meu ser, e amou o meu ser por Ele criado e, num ato de amor a meu ser, fez aquele sacrifício para eu ir para o Céu?

Dou-me conta de que a minha salvação custou tudo isso?!

E como tenho eu correspondido a tantos benefícios? Qual tem sido minha ingratidão? Quantas faltas cometidas, muitas vezes por imprudência! Simplesmente por não querer evitar uma ocasião, por não fazer uma pequena mortificação, eu peguei o Sangue de Cristo e o joguei na sarjeta! Apesar desse Sangue derramado em meu favor, eu me pus em condição de perdição.

Entretanto, Deus me tolerou nessa vida, me suportou e me esperou com outras graças ainda maiores do que aquelas já recebidas.

A Semana Santa é uma ocasião de graças para cada um de nós. O flanco de Nosso Senhor Jesus Cristo está aberto, jorrando misericórdia para todos nós e nos chamando à contrição, à penitência, à reconciliação magnífica com Ele. Há uma efusão de bondades e de carinho para conosco como jamais poderíamos imaginar!

Portanto, minha primeira preocupação na Semana Santa deve ser a de pensar em minha alma. Pensar sem temor, sem pânico, porque Deus é Pai de misericórdia e Nossa Senhora é a Mãe e o canal de todas as misericórdias. Mas pensar com seriedade, a fundo, colocar-me diante desse Sangue de Cristo que corre e perguntar-me: O que fiz eu desse Sangue?

Junto à Cruz como São João Evangelista

Nosso Senhor pensou em tantas almas que haviam de desprezar o Sangue d’Ele levianamente, estupidamente, a propósito de uma ninharia, de uma bagatela: pela risada de uma criada, como São Pedro, por trinta dinheiros como Judas, por preguiça e vontade de dormir como os outros Apóstolos, por medo, por oportunismo, por sensualidade, enfim, por quantas coisas as almas haveriam de rejeitá-Lo!

Mas isso ainda é pouco. Nosso Senhor teve em vista, e Nossa Senhora também, todas as traições, todos os abandonos, tudo quanto almas sacerdotais O fariam sofrer.

Davi tem essa queixa em relação a um amigo que fez mal a ele: “Se outrem me fizesse isso eu não me queixaria. Mas tu, um outro eu mesmo, que comigo comias doces alimentos?!”(5)

Tudo isso foi visto. Mas também foram considerados com amor aqueles que, por uma graça especial conquistada por esse Sangue infinitamente precioso, seriam fiéis e estariam junto à Cruz como São João Evangelista.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/3/1967)

1) Is 53, 3.
2) Jo 19, 30.
3) Is 38, 17 (Vulgata).
4) Maria de Jesus de Ágreda (1602-1665). Religiosa e mística espanhola da Ordem da Imaculada Conceição. Em uma de suas principais obras, “Mística ciudad de Dios”, narra as revelações recebidas da Virgem Santíssima.
5) Cf. Sl 54, 13-15 (Vulgata).

Inimaginável amor materno

Ao consentir na dolorosa morte de seu Filho adorável, Nossa Senhora o fez por amor a nós, unindo esse seu tremendo sacrifício aos méritos do holocausto de Cristo, a fim de nos resgatar. Por isso, Ela é chamada Co-redentora do gênero humano. Mais ainda. Por essa cooperação na Paixão de Jesus, Maria Santíssima nos alcançou, junto a Ele, a vida sobrenatural da graça, e se tornou assim verdadeira Mãe de todos os homens.

Ora, se ao coração materno é próprio a bondade, a meiguice, a generosidade, a indulgência, porque se inclina, de modo particular, a essas disposições, o Coração Imaculado de Maria representa esse afeto e essa doçura maternais para conosco, num grau inimaginável.

Como bem o frisou São Luís Grignion de Montfort, o amor d’Ela para conosco é incomparavelmente maior que a soma do amor de todas as mães do mundo por um único filho. E cumpre dizer: Nossa Senhora ama com solicitude especial os justos, mas possui igualmente um carinho terníssimo para com os pecadores, conforme atesta a tocante oração do “Lembrai-Vos…”.

Nossa Senhora é, pois, a Mãe que aceitou sacrificar o próprio Filho por nós. Por todos e cada um de nós!

Um reto caminho para a santidade…

A retidão está no âmago de todas as outras virtudes; sem ela,  pequenos defeitos tornam-se monstros gigantescos.

 

Para entendermos o que é a retidão, comecemos tratando a respeito do contrário dela: a falsidade. A falsidade do homem para consigo mesmo, para com os outros e para com Deus, de si, é repelente.

Por falta de retidão, um pequeno problema pode tornar-se gigante

Quando uma alma recebe graças de Nossa Senhora, ela é muitas vezes tocada tão a fundo que o demônio fica impossibilitado de agir sobre ela. Quando este percebe tal impossibilidade, ele propõe, então, a falta de retidão. Quer dizer, um compromisso, um arranjo, um meio-termo, em função do qual a alma, sem abandonar aquilo que amou, passa a amar aquilo que abandonou. Não há aí um jogo de palavras; vou dar um exemplo, para que o tema seja bem entendido.

Uma pessoa tem um problema que não quer ver nem explicitar para si mesma; e isto lhe dá um misto de prazer e sofrimento, no qual ela se deixa refocilar, pelo gosto de ter uma encrenca, pela satisfação da coisa mal explicada dentro da alma. E, por falta de retidão, o micróbio que ela possui na própria alma se transforma numa cobra, a qual pode vir a ser uma sucuri. Ao cabo de um, dois, cinco anos ela está numa crise, e numa crise enorme. Qual foi a origem dessa crise?

Quem desvia os passos do caminho reto é levado para onde não quer ir…

O ponto inicial foi um problema para o qual a pessoa não quis abrir os olhos; a respeito do qual ela não quis abrir-se para alguém, nem ouvir um conselho ou receber uma refutação. Ela desviou seus passos do caminho reto, o qual seria o seguinte:

Primeiro, reconhecer: “Tal ponto constitui em mim uma dificuldade”. Segundo: “Não posso continuar assim. Tenho que me abrir com alguém, e rezar a Nossa Senhora para ver claro”. Terceiro: “Ainda que eu não veja claro, minha fidelidade em nada se abala, porque quanto mais demorar, tanto mais claramente eu verei um dia. Debaixo deste cupim colocado no chão, onde eu não consigo ver nada, um sol está nascendo para me iluminar no futuro”.

Mas se a pessoa sai da verdadeira via, ela começa a andar no oblíquo, e do oblíquo ela derrapa para longe. Se o demônio a tivesse tentado num ponto onde ela adere muito, a pessoa teria rejeitado; entretanto, ele a tenta num ponto pequeno e inicia-se assim o caminho oblíquo. Não é o caminho para baixo, direto para o inferno, mas oblíquo intencionalmente: cada passo a afasta mais um pouco; ao cabo de algum tempo, a pessoa foi levada longe, aonde não queria. Por que ela foi levada longe? Porque lhe faltou a retidão.

Assim somos nós com quase todos os nossos defeitos. Para dizer pouco, não gostamos de olhá-los de frente e, quando os analisamos, só reconhecemos os que saltam aos olhos e não podem ser negados. Entretanto, não abrimos inteiramente o mapa de nossa mentalidade; não temos a coragem de nos censurar de frente e totalmente, procurando as agravantes, ponto por ponto, implacavelmente.

A retidão de uma alma que reconheceu suas faltas

Um famoso escritor francês do século XIX, Louis Veuillot, escreveu um livro com o título “Le parfum de Rome — O perfume de Roma”. Referia-se à Roma pré-garibaldina, anterior aos Saboias; a Roma magnífica do tempo em que os Papas eram reis da Cidade Eterna e de uma província vizinha que formavam os Estados Pontifícios.

Conta Veuillot que, em Roma, ele visitou uma velha basílica a qual o encantou; percorreu-a por dentro e por fora. Passando detrás do templo, numa pedra que fazia parte do fundamento de seu muro externo, ele notou que alguma coisa estava escrita.

Então ele se agachou para olhar e verificou que estava escrito o seguinte: “No dia tal de tal ano pequei! Meu Deus, tenha pena de mim! No dia tal pequei de novo! Meu Deus, tenha pena de mim! Dia tal não pequei, graças a Deus!” Assim, caindo em pecado ou se mantendo em estado de graça, essa alma tinha escrito o seu diário espiritual.

E, um belo dia, ela anotou o seguinte: “Meu Deus, há tanto tempo — digamos seis meses, um ano — eu não peco! “Gloria in excelsis Deo” — Glória a Deus no mais alto dos Céus!” Louis Veuillot fez, a este propósito, um comentário magnífico, dizendo que se ele tivesse encontrado sangue de mártires naquela pedra, não a teria venerado mais do que o fez ao ver esse itinerário que exprimia o sacrifício de uma alma para se libertar de um pecado e readquirir o estado de graça.

Humildade e admiração: frutos da retidão

Isso nos mostra exatamente o que é a retidão. Trata-se de uma alma que o tempo inteiro analisou-se como era e se increpou como merecia. E teve humildade: “Como eu sou torto e errado! Minha Mãe, que estais no mais alto dos Céus, bem junto a Deus, como Vós sois diferente de mim!” Nesse abismo de diferença, ergue-se uma coluna de incenso, de encanto e de admiração.

Quando sabemos increpar os nossos próprios defeitos, nos tornamos capazes de admirar. Porque, quando vemos o mal que há em nós, podemos admirar o bem que não há em nós; assim nós temos admiração sem inveja. Então, do fundo da nossa miséria, sobe aquela coluna de incenso: “Minha Mãe, eu me dobro diante de Vós, não só por execração aos meus defeitos, mas por um corolário necessário dessa execração: a admiração de vossas qualidades”.

Mas quando uma pessoa não tem a coragem de olhar de frente para seu próprio defeito, ela não é capaz de admirar. E o defeito pelo qual não se olha bem a própria alma chama-se falta de retidão. A virtude pela qual nós nos vemos como somos, e admiramos quem não é como nós, chama-se retidão.

A retidão do Imaculado Coração de Maria

A retidão é a integridade por onde a alma realiza tudo quanto deve, e como deve, sem delongas, sem tapeação, sem protelação; e o faz total e inteiramente, ainda que, devido à fraqueza humana, caindo, mas pedindo perdão e se levantando, dizendo a verdade para si mesma. Desta virtude da retidão nascem as famílias de alma retas, das quais surgem as grandes correntes de retidão dentro da História; tudo isso é um reflexo do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria, eu diria, do retíssimo Coração de Maria.

Alguém perguntará: “Mas haverá um símbolo que fale da retidão do Imaculado Coração de Maria?” Sim. É o Coração da Virgem transpassado por sete espadas, representando suas sete dores, que poderiam ser chamadas as sete retidões.

Sete é um número simbólico na Escritura, que indica totalidade. “As Sete Dores de Nossa Senhora” simbolizam as principais, não as únicas.

Assim também podemos dizer que cada espada retilínea foi uma posição firme e reta que Ela tomou diante de tudo. De todas as suas “retilineidades” veio toda a sua dor. E toda a sua dor Lhe veio porque tinha retidão. Maria Santíssima olhou tudo de frente, sofreu e foi até o fim!

Para sermos retos, não devemos olhar para nossas qualidades

O que se passa com os nossos defeitos que não queremos ver de frente, ocorre também com os nossos sofrimentos.

Poucas pessoas têm a coragem de pôr diante de si a ideia seguinte: a vida é um vale de lágrimas, para usar uma expressão mais rigorosa, um campo de batalha. Portanto, só vive uma vida digna de ser vivida quem luta contra o mal, a favor do bem, e se expõe a todos os sofrimentos inerentes à luta! E, então, observa as coisas como o guerreiro dirige seu olhar para o adversário: olha de frente e desfere o golpe.

Outra condição para possuir a virtude da retidão é não olhar para as próprias qualidades. Olhando-as, a pessoa as perde. O melhor meio de perder uma qualidade é olhar para ela. O melhor meio de perder um defeito é olhar para ele.

Por falta de retidão, as pessoas formam uma ideia falsa a seu próprio respeito

A maior parte das pessoas tem preguiça de pensar, e, por causa disso, não prestam real atenção em si mesmas. Fazem, então, uma análise incompleta de si. E a análise incompleta de si própria tem dois aspectos: a pessoa não olha inteiramente seus defeitos e, por causa disso, cai num outro erro, também por falta de retidão: ela começa a imaginar que tem qualidades que não possui. Porque quem não quer ver os defeitos que tem, imagina possuir qualidades que não tem. É forçoso.

A partir desse momento, ela forma uma ideia falsa a seu próprio respeito. Formando uma ideia falsa de sua pessoa, segue um itinerário errado na vida. Quem, por exemplo, está andando de bicicleta e imagina-se num automóvel, não pode chegar ao termo da viagem. Quem tem automóvel e pensa que este é um tanque de guerra, dirige-o de tal maneira que ele se espandonga inteiramente. Nós somos o veículo de nós mesmos ao longo da vida, e se cada um não sabe que tipo de veículo é, como pode bem dirigir-se a si próprio, de maneira a chegar até ao fim da vida?

As frustrações de quem vive um sonho

Por causa disso o indivíduo cai num erro pior do que os outros: começa a viver uma vida que não era para ele. Então dá tudo errado. O indivíduo sonha ter uma vida que não é para ele; e vive a vida que ele não sonhou, porque nessa situação ninguém realiza o próprio sonho. Nota que está tudo torto dentro de si, porque percebe que ele é outro. E tem frustrações horrorosas.

Lembro-me de um velho senhor que conheci, o qual era muito distinto de maneiras e agradável de trato. Eu o vi, num dia de calor, sentado junto a uma mesa, com o aspecto mais emburrado e desagradado que possa haver. De vez em quando, ele retirava seu relógio do bolso, o olhava e o guardava novamente. Eu francamente fiquei com medo de que ele quisesse se suicidar. Então, com o desejo de ser-lhe útil e para aliviar um pouco sua vida, me aproximei dele e perguntei:

— O senhor precisaria de alguma coisa?
Ele levantou a cabeça e me disse:
— Você não sabe o que é a vida.
Eu era muito mais moço que ele; tinha uns vinte e dois anos.
— Você pensa que sabe o que é a vida, mas você não sabe. Cada vez que eu tiro o relógio, não consigo ver o quadrante dele, porque aos meus olhos se apresenta a figura de algo de irreal que sonhei.

E quando eu vou verificar a hora, consulto as velhas reminiscências dos meus sonhos que não se realizaram, e por causa disso me desespero dessa maneira.

Achei aquilo uma coisa terrível. Era o horror da falta de retidão.

Duas reações diante de tal problema

Diante do que estou dizendo, alguém poderia ter a seguinte reação: “Isto mexe tanto com os fundos de minha moleza e do meu amor-próprio, que eu não tenho nenhuma coragem de fazer o que Dr. Plinio está recomendando. Portanto, eu ouço o que ele diz, não contesto, mas, sobretudo, não adiro; e saio daqui como entrei”.

Essa pessoa, máxime depois do que estou explicando, compreende que se pede pouco para ela. É que ela acuse a si mesma, eventualmente em Confissão — mas não se trata aqui de questão de Confissão —, acuse a si mesma o defeito que vê, com todas as agravantes. Não estou pedindo que ela olhe desde logo até o fundo de sua alma, mas observe o que está ao alcance de seu olhar, e o descreva para si mesma com clareza. De camada em camada, de defeito em defeito ela chegará até a profundidade e acabará vendo-se totalmente.

A Providência se serve de modos variados para fazer cessar os nossos defeitos. Às vezes, eles cessam como não imaginávamos. Desde que peçamos, conseguimos, por assim dizer, o absurdo. E se não corrigimos os nossos defeitos é porque, no fundo, não temos retidão.

Para reparar seus pecados, Santo Agostinho escreve as “Confissões”

Em suas “Confissões”, Santo Agostinho narra que, em certa ocasião, estava sozinho e angustiado. Ele era gnóstico, corrupto, tinha um filho ilegítimo. Era, portanto, herege e impuro. De repente, ele ouve uma voz interior que lhe diz: “Tolle lege! tolle lege! — Toma e lê! Toma e lê!” Era a voz de Deus mandando que ele lesse, se não me engano, um livro da Escritura. Ele faz a leitura e encontra um trecho que resolvia o seu problema. A partir daquele momento ele se converteu, e depois se tornou o grande Doutor da Igreja.

Esse Doutor da Igreja, para castigar-se dos pecados que cometeu, escreveu essa biografia à qual deu o título de “Confissões”, para se confessar a si próprio diante do mundo inteiro pelos seus defeitos. E a morte dele foi a mais bela morte de penitente, que se possa imaginar. Elevado a Bispo da cidade de Hipona, ele foi um luminar na Igreja Católica.

Hipona, situada no Norte da África, era uma cidade de cultura e língua romanas, que estava cercada pelos vândalos, os quais vieram da Germânia, atravessaram a França, a Espanha e desceram pela África, e sitiaram várias cidades que encontravam pelo caminho. Hipona ia ser tomada por eles, e Santo Agostinho, moribundo, provavelmente já com a vista enfraquecida, mandou que os Salmos Penitenciais fossem escritos numa parede diante do seu leito, em letras bem grandes, para ele poder ler. E ele, então, no fim de sua vida, lia os Salmos pedindo perdão, para ser recebido por Nossa Senhora.

Foi uma alma que com muita retidão e lealdade se examinou a si mesma, e confiou na misericórdia de Maria Santíssima. A essa alma as portas do Céu se abriram e ele entrou pelo eixo reto que conduz a Deus. Por quê? Porque ele tinha sido reto durante a vida.

A alma reta que comparece diante de Deus

Linda frase a respeito da retidão é a de São Paulo: “Bonum certamen certavi cursum consummavi fidem servavi — Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a Fé” (2 Tm 4, 7). Não pode haver coisa mais bonita do que um homem olhar para o decorrer de sua vida e dizer isto. Em latim, ao pé da letra, “bonum certamen certavi” não quer dizer “eu travei um bom combate”, mas “combati todo o bom combate que eu tinha que combater”. “Cursum consummavi” significa “percorri todo caminho longo e difícil que eu tinha que percorrer”; ou seja, “fui reto”. Combatendo, combateu tudo. Tendo que percorrer o caminho, percorreu-o inteiro. E com a calma, a paz de espírito dos retos, o Apóstolo se voltava para Deus e dizia: “Resta-me agora receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia” (2 Tm 4, 8). E o recebeu! Esse é o modo de expirar da alma reta. Ou é na penitência confiante de Santo Agostinho, ou nessa quase respeitosa cobrança de cheque de São Paulo: “Eu paguei, meu Deus! Chegou a hora dos vossos juros! Eu entro na eternidade”. É uma beleza!

Não se sabe qual é a mais bonita das duas formas de morte reta.

Nossa Senhora, exemplo de retidão

Consideremos também a retidão de Nossa Senhora, pura criatura concebida sem pecado original! Qual foi o primeiro momento em que Maria Santíssima soube que Jesus seria crucificado? Ela certamente o conheceu pelas Escrituras, porque possuía uma visão, um conhecimento lucidíssimo da Bíblia. E, como Esposa do Espírito Santo, Ela não se tornou Mestra infalível, mas era pessoalmente infalível, não caia mais em erro.

Ela acompanhava cada passo da vida de Jesus, ciente de todos os horrores que iriam acontecer até o momento da morte d’Ele na Cruz, em que o Padre Eterno pediu-Lhe, como Mãe e Senhora do Filho, que Ela consentisse na morte d’Ele. E Ela, no meio das agonias de Jesus, disse mais uma vez: “Faça-se n’Ele segundo a vossa palavra!” Quer dizer, Ela levou retilineamente o sacrifício até o fim.

Depois Nossa Senhora recebeu em suas mãos o cadáver d’Aquele que é a própria Retidão, o fruto do consentimento que Ela havia dado. Através da morte Ele nos deu a vida; era a vitória esplendorosa dentro do esmagamento completo.

Podemos, então, perceber e amar o “pulchrum” da retidão; e compreender como se consegue obtê-la. Dirijamos nossas orações desta noite a Nossa Senhora, pedindo que Ela nos obtenha a virtude da retidão.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/11/1978)

Pela dor do santo Encontro…

Quem, Senhora, vendo-Vos assim em pranto, ousaria perguntar por que chorais? Nem a terra, nem o mar, nem todo o firmamento poderiam servir de termo de comparação à Vossa dor. Dai-me, minha Mãe, um pouco, pelo menos, dessa dor. Dai-me a graça de chorar a Jesus, com as lágrimas de uma compunção sincera e profunda:

“Ó minha Mãe, pela dor do santo Encontro, obtende-me a graça de ter sempre diante dos olhos Jesus Sofredor e Chagado, precisamente como O vistes neste passo da Paixão.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Da Via-Sacra composta por Dr. Plinio em 1951).

 

Nossa Senhora da Soledade

O que é a soledade de Nossa Senhora? É o período da vida de Maria Santíssima que vai desde o “Consummatum est” até o instante em que Ela tomou conhecimento da Ressurreição. Ali esteve Ela inteiramente só!

Peçam a Nossa Senhora da Soledade que os faça compreender a sublimidade e a elevação de espírito da soledade d’Ela e tomar a resolução de aceitarem a soledade sem amargura, sem rancor, sem pena de si mesmos, com naturalidade, como um herói aceita a luta e a morte.

Não sejam desses isolados amargos, ácidos, orgulhosos, que se julgam os incompreendidos do gênero humano. Não! Sejam naturais, bons, alegres.

É esse o holocausto, o sacrifício que temos de fazer. Alguém dirá: “Eu não tenho coragem”. Meu filho, se você não tem, diga assim: “Por enquanto não tenho coragem”. E reze para tê-la.

Todas as portas se abrem para quem rezar! Peça, portanto, a Nossa Senhora da Soledade para lhe dar a coragem de suportar o isolamento.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/2/1989)

Divina fecundidade

Quando, através de seu humilde “fiat”, a Virgem Santíssima consentiu na Encarnação do Verbo, a Ela foi comunicada a fecundidade do Padre Eterno. Quer isto dizer que a capacidade concedida a Maria de gerar o Filho divino é quase uma participação no próprio poder criador de Deus. Ora, tornar-se digna de privilégio tão augusto supõe uma riqueza de vida espiritual inimaginável, uma elevação de virtudes e uma intimidade de alma com Deus que excede à nossa limitada inteligência. Na medida em que uma simples criatura podia receber aquela fecundidade, Nossa Senhora a recebeu, plenamente.

Compreende-se, pois, como na ordem da criação nada haja, nem de longe, comparável a Maria, Mãe de Jesus.

O gládio que transpassou o Coração da Santíssima Virgem

Durante trinta e três anos, Nossa Senhora, em meio a alegrias inenarráveis, previu a Paixão e Morte de seu Divino Filho. E junto à Cruz, enquanto tantos homens  desertaram, Ela estava de pé. Nunca  ninguém sofreu tanto, com força e sobranceria, quanto a Mãe de Deus. Unindo-Se às intenções da Trindade Santíssima, Ela queria o esmagamento do demônio e da Revolução por todo o sempre.

Na apresentação do Menino Jesus no Templo, em profeta Simeão que a respeito do Divino Infante fez esta esplêndida profecia: “Agora, Senhor, podeis deixar vosso servo  partir em paz, segundo vossa palavra, porque meus olhos viram a salvação que preparastes ante a face de todos os povos, luz para iluminar as nações e glória de Israel, vosso  povo” (Lc 2, 29-32).

Destinados à maior glória, percorrendo os mais extremos sofrimentos

Nossa Senhora, à vista dessa profecia, ficou ainda mais inteirada de toda a glória do Menino Divino que carregava nos braços. Depois de abençoar o Menino e sua Mãe, disse Simeão: “Este Menino está posto para ruína e a ressurreição de muitos em Israel, e para ser alvo de contradição” (Lc 2, 34).

Assim, depois de um futuro esplêndido, o venerável ancião predizia uma vida e uma luta tremenda para aquele Menino e prenunciava para Maria Santíssima um sacrifício:  “Uma espada transpassará tua alma” (Lc 2, 35). Quer dizer, Ela terá um dos sofrimentos mais atrozes que uma pessoa pode suportar. E ele anuncia isso com trinta e três    anos de antecedência.

Temos aqui dois fatos a considerar, muito elucidativos para a mentalidade do homem moderno: em primeiro lugar, uma vez que Deus decretara que esse Menino fosse o Rei vitorioso de que falava a profecia de Simeão, como explicar que, lógica e sabiamente, houvesse de querer, ao mesmo tempo, que Ele passasse por todas essas lutas, as quais importassem num determinado momento em revés? Porque não se podia compreender de outro modo essa espada de dor que atravessaria o Coração de Nossa Senhora.

Não seria natural, arquitetônico, de acordo com a ordem estabelecida pela sabedoria divina, que, uma vez sendo da vontade de Deus que o Menino Jesus fosse o Rei de todos os povos, em todos os tempos, que nada viesse atrapalhar essa carreira gloriosa? Que esta se fizesse de trabalhos bonitos, sapientes, triunfais, de lutas vencidas facilmente com um golpe “mágico” que faria tudo retroceder diante de Jesus, e assim Ele chegasse à sua glória?

Por que o mistério desse momento terrível, em relação ao qual estava anunciado que um gládio atravessaria o Coração de Nossa Senhora? Como se pode compreender que  Deus permita, no meio dessa trajetória, um sofrimento tão grande e uma aparente derrota? Isso não é uma coisa estranha?

A mentalidade “happy end” nos impede de compreender o modo pelo qual as obras de Deus se realizam

O estado de espírito do homem  moderno correspondente a isso reflete-se, com frequência, no modo pelo qual somos levados a considerar os reveses de nossa vida espiritual e de nosso apostolado. Muitas  vezes percebo em algumas pessoas dificuldades para explicarem a si mesmas a razão pela qual, embora estejam andando bem espiritualmente, podem ser tentadas.

A ideia é esta: se Nossa Senhora, se Deus querem que me santifique, por que, então, devo ser tentado? Por que até permitem que eu peque e Lhes desagrade? Isso não é uma contradição? Se o fim é um, não é normal que tudo caminhe direitinho e coerentemente para ele? Como explicar a ocorrência de coisas que parecem contrariar esse fim?

Vê-se nessas interrogações o reflexo daquela mentalidade “happy end” do cinema norte-americano. As coisas têm que correr certinhas; quando não correm, são atrapalhações  que podem ser até grossas, mas já se sabe que terminará tudo direitinho, porque o homem é chamado para ser feliz nesta Terra, entender tudo quanto se passa com ele e  triunfar.

E quando as coisas não acontecem assim, ele tem a sensação de que a vida humana não está em ordem. Tal como os heróis de um romance de filme, que sofrem durante o  enredo, mas o expectador já sabe – e tem a sensação de que os atores também – que tudo vai terminar à beira de um lago, olhando-se amorosamente, navegando num  barquinho, os passarinhos cantando, a fita acabando, e o burguês que a assistiu voltando prosaicamente para casa, satisfeito.

Essa mentalidade “happy end” intoxica nosso espírito e não podemos compreender o modo pelo qual as obras de Deus se realizam. Uma vez posto o pecado, com a queda dos  anjos, e posteriormente a do homem, a vida humana tem um caráter não só de prova, mas de expiação e de luta.

Aceitar o sofrimento não choramingando, mas como o  soldado que vai para a luta

A Providência Divina age de acordo com sua sabedoria, permitindo para os bons os reveses, as doenças, as tentações, a luta contra o adversário, e exigindo deles a aceitação  de que essas coisas lhes podem vir em ocasiões onde isso lhes pareça incompreensível, pois o normal nessa vida é sofrer e que muitas coisas, de fato, não deem bom resultado, ou tenham consequências diferentes do que se quereria. Desse resultado errado Deus tira, para sua glória, algo de melhor e mais brilhante do que o sucesso por  nós imaginado.

As provações e os sofrimentos inesperados não só constituem algo pelo qual o homem decaído deve passar, mas podem corresponder também a uma punição pelos pecados cometidos, ou esconderem uma prova de amor querida por Deus de sua criatura; uma prova de confiança cega, de desprendimento e de abnegação que a criatura deve dar e  que constitui um elemento altamente pedagógico para ela, porque a criatura só vale na medida em que realmente aceita esses sofrimentos com espírito sobrenatural, não  choramingando, mas como o soldado que vai para a luta.

Compreende-se, então, o mistério que há no seguinte fato: segundo a mentalidade moderna, não seria o caso de avisar Nossa Senhora, trinta e três anos antes, que Ela iria  sofrer essa dor. Mas fazer o contrário: ir tapeando ou ficar quieto. Mesmo na hora de Nosso Senhor ser morto, enfim, de Maria Santíssima tomar conhecimento da Paixão,  adiar, contar-Lhe aos poucos para Ela não se assustar muito. Afinal, quando não houvesse mais remédio, Ela saberia, e ainda assim haveria os calmantes.

A ação da Providência não é essa. Com trinta e três anos de antecedência, Ela avisa Nossa Senhora. Exatamente porque a previsão dessa dor já é uma tremenda dor. Maria  Santíssima carregou a previsão desse sofrimento durante todo esse tempo e o viu chegando de longe. Com isso, sua alma imaculada, criada sem pecado original, foi-se  aperfeiçoando e santificando na longa previsão e aceitação da dor que deveria vir.

Trinta e três anos de Horto das Oliveiras

Compreende-se que até para a alma imaculada da Santíssima Virgem a previsão forte, corajosa, razoável – eu diria, mesmo varonil – da dor vindoura era um elemento para uma crescente união com Deus, a qual Ela já possuía num grau insondável desde o primeiro instante de seu ser. Entretanto, essa profecia de Simeão foi intencionada para que Ela carregasse essa dor durante trinta e três anos, na compreensão desse fato de que o homem nasceu para sofrer, é normal que sofra, que é preciso aceitar a dor por  inteiro antes dela vir, e, quando chegar, que ela nos encontre calmos, fiéis, sobranceiros e heroicos, porque assim se deve ser diante do sofrimento.

Então, encontramos essa analogia entre a vida de Nosso Senhor e a de sua Mãe Santíssima: a vida de Nossa Senhora foi trinta e três anos de Horto das Oliveiras, ao longo  dos quais Ela previu a Paixão e a Cruz no meio de alegrias inenarráveis.

Ela foi vendo seu Divino Filho crescer, preparar- Se para a vida pública – durante a qual esse gládio de dor A esperava –, sair de casa, ouvindo falar dos rumores criados em  torno d’Ele e do ódio que subia e O rodeava de todos os lados. Era o mal que haveria de armar contra seu Filho o golpe mais atroz possível. E Ela que O adorava como seu  Deus e seu Filho, sentindo o pecado horrível que estava sendo preparado, considerava de frente os tormentos que deveriam vir.

O resultado foi a hora magnífica de sua fidelidade: enquanto tantos homens desertaram, Nossa Senhora se encontrava de pé junto à Cruz. Não era de duvidar que estivesse, pois estava confirmada em graça; mas Ela ali se encontrava como fruto dessa longa preparação. Quer dizer, não desmaiada, nem desfalecendo, nem alquebrada pelos  acontecimentos. A iconografia católica apresenta, em todos os séculos, Maria Santíssima muito firme, de nenhum modo desorientada, sem domínio de  Si, ou desejando  fugir. Essas são paixões vis que não caberiam em sua alma,  às quais se contrapunham, na ordem teórica, virtudes mais excelsas que Ela tinha elevado ao mais alto  dos  supremos graus. Nunca ninguém  sofreu tanto, com tanto domínio dos acontecimentos, compreendendo tanto a lógica do que se passava, com tanta força e sobranceria, com  anto ódio ao mal, quanto Nossa Senhora.

Para esmagar o demônio, Nossa Senhora desejou os mais atrozes sofrimentos

Ela sabia que todo o mal no mundo seria esmagado no momento em que o seu Divino Filho expirasse. Durante todo o tempo, a Santíssima Virgem esteve na seguinte  disposição: “Adoro meu Filho, mas se for preciso sacrificá-Lo para esmagar o demônio, derrotar o poder das trevas, concordo que meu próprio Filho morra. Eu O entrego,  por assim dizer, O imolo. Esse gládio Eu mesma enfio em meu próprio Coração. Mas é preciso que o demônio seja esmagado. É necessário  que o mal – que hoje chamamos   Revolução – seja estraçalhado por todo o sempre. Uno-me às intenções santíssimas do Pai, do Filho e do Espírito Santo e faço esse sacrifício horroroso.

Mas isso que está acontecendo no alto da Cruz Eu quero, e não deixo de querer um instante, com toda a intensidade de meu ser”.

Se isto não é espírito de combate,  disposição para arrasar o adversário, então não sei mais o que significam essas palavras.

Trinta e três anos de preparação! O que tem isso de comum com a vida de Nosso Senhor? Para não falar de preparação remota, no Horto das Oliveiras Nosso Senhor quis  meditar e prever tudo o que Lhe aconteceria. Então, Ele começou a sentir horror e pavor do que viria, e fez aquela oração: “Meu Pai, se for possível, afaste-se de Mim esse cálice” (Mt 26, 39). Quer dizer, se não for condição para o gênero humano ser redimido, enfim, se dentro de vossos desígnios for possível derrotar o demônio sem isso.

Porém, faça-se a vossa vontade e não a minha. Eu aceito e quero todo esse sofrimento para chegar a esse resultado. Ordem mental, lógica, calma e ante a dor, e o amor ao  sofrimento que se deve ter.

Gládio representando a dor e a luta

Muitas vezes, em nossa vida, há aspectos triunfais, no meio de toda a guerra em que nos movemos. Mas precisamos nos compenetrar bem de que o  normal, na luta tremenda que  estamos tendo, é virem vários momentos nos quais um gládio de dor transpasse a alma de cada um de nós. Por vezes  pareceremos derrotados, desorientados, abandonados pela Providência, como diz o Salmo que Nosso Senhor recitou no alto da Cruz: “Deus meu, Deus meu, por que Me abandonaste?” (Mt 27, 46).

Devemos nos colocar diante desta perspectiva: essas são as coisas que podem acontecer, nossa luta não será sempre uma parada de vitórias. Não seríamos dignos de Nosso Senhor Jesus Cristo, nem de sua Mãe Santíssima, se isso fosse assim. É mister termos diante dos olhos sempre a ideia de que um gládio de dor nos atravessará em determinado momento.

Devemos pedir a Nossa Senhora que nos alcance a graça – que, sob determinado ponto de vista, não temo chamar de suprema – de desejarmos, amarmos e, desde logo,  prepararmos nossa vida para essa hora.

Porque assim como a hora do gládio, junto com a da Encarnação, foi a grande hora da vida da Santíssima Virgem, a hora da fidelidade, assim também podemos dizer não ter  sido a grande hora de nossa vida somente a vocação, mas vai ser a hora da perseverança, que corresponderá à hora do gládio.

Tivéssemos nós um gládio que, com maior furor guerreiro e de um modo mais terrível, representasse ao mesmo tempo a dor que deve transpassar nossas almas e a luta  contra nossos adversários, e eu o poria como símbolo em nossa capela, porque, mais do que uma resignação, uma sadia e equilibrada apetência desse gládio deve nos caracterizar.

Conta-se que Nosso Senhor, quando recebeu a Cruz, antes de colocá-la nas costas chorou de emoção, abraçou-a e a beijou com muito carinho, porque desde sempre a  desejara. Oxalá, na hora de nosso gládio, possamos também chorar varonilmente de emoção, osculá-lo com muito carinho e dizer que desde sempre o desejávamos. É o  pedido do amor a esse gládio que devemos apresentar a Nossa Senhora das Dores.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/4/1965)

Cântico da fidelidade

Segundo as revelações de Sóror Maria de Ágreda, na noite do sábado da Paixão, Nossa Senhora “fazia heroicos atos de Fé, esperança, amor, veneração e culto à divindade e humanidade de seu Filho e Deus verdadeiro; com genuflexões e prostrações O adorava, e com admiráveis cânticos O bendizia”.

Um quadro extraordinário se nos apresenta à imaginação: Maria Santíssima, sozinha no silêncio daquela noite trágica, talvez no próprio recinto onde se realizou a Última Ceia, interrompendo suas preces para cantar as suas reparações ao Criador.

Ela que entoara o “Magnificat” num momento de gáudio indizível, agora compensava, pelo seu cântico de fidelidade, todas as injúrias e ofensas sofridas por Jesus.

Cena em extremo tocante, contemplada apenas pelos Anjos: na noite da desolação, o canto da alma mais virtuosa em toda a Terra elevando-se até o Céu…

Plinio Corrêa de Oliveira

Como um mendigo

Importa à nossa devoção filial formarmos uma ideia inteira da bondade e do perdão ilimitados de Maria Santíssima para conosco; reconhecermos a necessidade do nosso contínuo apelo a esse perdão e a essa bondade maternais.

Cumpre recorrermos a Ela em todos os momentos, de joelhos em terra, como humildes e confiantes mendigos, batendo no peito e estendendo-lhe o chapéu de nossa indigência. Então Nossa Senhora se faz toda doçura, suavidade e paciência em relação a nós; perdoa-nos e nos cura, até mesmo de nossas ingratidões mais descabidas…

Por vossa bondade, salvai-me!

Ó clemente, piedosa, doce e sempre Virgem Maria, rogai por nós, porque somos tudo o que somos, mas Vós sois tudo o que sois. Concebida sem pecado, nunca tivestes a menor falta, nunca  deixastes de progredir em graça e virtude, na medida inteira que se esperava de Vós. Sois a Virgem de uma virgindade insondavelmente preciosa. Sois a Mãe de Deus, a Filha do Pai Eterno, a  Esposa do Divino Espírito Santo.

Tendes tudo para ser atendida, e sois cheia de misericórdia para com os pecadores. Um destes sou eu, que me ajoelho a vossos pés, a Vos suplicar: perdoai-me! Não olheis para os meus pecados mas para a vossa bondade. Olhai para o sangue que vosso Divino Filho derramou a fim de que eu fosse salvo. Pensai nas lágrimas que Vós mesma vertestes pela minha redenção.

Assim, ó Mãe misericordiosa, não por meu mérito, mas por vossa bondade, salvai-me!

Plinio Corrêa de Oliveira