Parece um conto de fadas!

A Torre de Belém dá a impressão de ser um castelo completo e não apenas uma torre. Ela tem a pompa, a imponência, o entretenimento de uma fortificação. Suas pedras brancas ao Sol possuem  particular encanto, parecendo um conto de fadas. Já a Catedral de Sevilha é uma fortaleza meio eclesiástica e uma igreja meio fortaleza.

 

A simples vista da Torre de Belém sempre me produziu uma impressão parecida, na ordem natural, com o que seria um êxtase na ordem sobrenatural. Êxtase é uma atitude da alma quando há  uma comunicação de Deus para com ela, que a faz ficar fora de si. Há coisas que na ordem natural podem produzir êxtases. Essa torre me produziu sempre um êxtase.

Pompa, imponência e entretenimento de um castelo

Quando fui a Lisboa, visitei-a detida, prolongada e embevecidamente, mas não realizei o programa que tinha a respeito dela. Quem sabe se Nossa Senhora me dará a oportunidade de fazer isso  algum dia: ir até lá à noite, inteiramente só, dar várias voltas à torre. Mais ainda, ter uma lancha à minha disposição, de maneira a poder contemplá-la a várias distâncias no Tejo.

Isso para me  fazer a ideia de qual era a atitude de alma de um missionário ou de um navegante português quando saía em direção ao Atlântico e via a Torre de Belém ficando menor… que saudades e  embevecimento ela lhe causaria. E quando voltava e a observava ficar cada vez maior, que impressão ele experimentava.

Esse edifício dá de tal maneira a impressão de ser um castelo inteiro, e não uma simples torre, que nos perguntamos como uma torre pode ser tão bela. Ela tem a pompa, a imponência, o  entretenimento de um castelo, com isso de lindo: parece um conto de fadas! Sensação causada pela pedra branca com que é construída, e cujo brilho ao Sol tem um particular encanto, mas  também por um predicado que se encontra em várias obras de arte portuguesas, e me agrada muito: o contraste entre o liso e o sobrecarregado.

Notamos que as paredes da torre são inteiramente lisas, e sua monotonia é remediada, com vantagem, apenas pelo seguinte: de alto a baixo, uma linha constituída de uma primeira janela, depois  dois pequenos arcos geminados e divididos por uma coluna graciosa, formando uma só janela.

Em seguida, um terraço com dossel e dois pequenos arcos que repetem os de cima. Esse terraço é intensamente ornamentado e muito bonito. Temos então, reunidos numa superfície pequena,  uma sobrecarga de ornatos que seria quase uma caixa de joias, um escrínio e não um terraço.

Beleza artística e utilidade militar

Logo abaixo temos a unidade assegurada pela última janela, muito simples, que repete a primeira. Assim, o  epílogo lembra o início. São Tomás dizia que o círculo é uma figura perfeita porque  volta à sua origem, pois tudo quanto retorna ao seu ponto de partida é perfeito. É bonito que o ponto de chegada desta linha perpendicular seja tão semelhante ao ponto de partida, pois essas duas janelas – a primeira e a última – são iguais.

Notem também, para quebrar a monotonia, essas guaritas colocadas simetricamente bem nos ângulos da torre, todas com as mesmas características: o teto muito sobrecarregado, constituído de  vários gomos e encimado por um cone, no alto do qual encontra-se uma esfera.

O resto, simplicíssimo. Uma simples janela, como costumam ter as guaritas, cuja pobreza, nudez e singeleza lembram a primeira e última janelas acima comentadas. Considerem as ameias da  torre. É um alto terraço circular destinado, evidentemente, a verificar o que dia e noite se passa ao redor. A torre é concebida para se defender ela mesma contra um ataque do adversário.

Mostrarei, em breve, os aspectos militares da torre. No que seria o parapeito, a torre tem uma série de brasões das casas fidalgas ilustres de Portugal. Cada uma dessas pontas é um brasão,  lembrando as glórias das casas aristocráticas portuguesas. Uma porta dá  acesso para um salão interno, onde os guardas descansavam e tomavam refeição.

É muito bonita a altaneria e dignidade dessas várias divisas lembrando as glórias de Portugal. Assim, ao invés dos muros “dentados”, como costumam ser as edificações deste tipo da Idade Média,  os “dentes” são representados por esses emblemas. Reparem como eles têm uma dignidade, um peso, um tamanho e uma força extraordinários. No intervalo entre um brasão e outro, o  soldado   atirava setas e, mais raramente, projéteis de armas de fogo primitivas que, na época em que a torre foi construída, apenas começavam a ser usadas. Feito o disparo, os combatentes se escondiam  atrás dos brasões de pedra, de maneira a não serem facilmente apanhados.

Vemos, assim, como a beleza artística coincide com a utilidade militar. O fato mesmo de haver tão poucas janelas é para defesa, limitando a entrada na torre. Por isso também a janela de baixo é  muito simples e não tem terraço, para ninguém se pendurar e ficar atacando para dentro. Ademais, é janela com grade. Tudo com a preocupação de fazer da torre um uso militar.

O “unum” se perde no céu

No centro da torre ergue-se um torreão menor do que ela a fim de dar espaço para a ronda. Há, portanto, duas rondas: uma no alto, e outra embaixo. Há nisso uma razão militar muito boa, pois  amplia muito o campo de visão e a possibilidade do acerto nos disparos. Mas além da razão militar existe uma vantagem estética.

A torre assim como está impressiona muito, mas deixa na vista uma ilusão que resolve o seguinte problema: vemos a parte mais larga da torre e, acima dela, a mais estreita. Entretanto, em cima  não existe um “unum”. Ora, tudo nesse monumento pede que haja um “unum”; essas guaritas pedem um “unum”. Onde ele está?

A ideia é que o “unum” se perde no céu. É um “unum” meio imaginário, como seria e do cone do Fuji-Yama. Essa ideia é insinuada pela diferença da largura entre as duas partes da torre. A parte  menor cria na imaginação, subconscientemente, a ilusão de outras menores que se sucedem, perdendo-se no céu, o que tem, portanto, uma grande beleza.

Se considerarmos esse terraço na base da torre, que é a primeira linha da defesa dessa fortificação, percebemos mais uma vez os escudos e as guaritas repetindo o elemento ornamental de cima.  Embaixo vemos janelas gradeadas, que dão para o calabouço, pois no porão da torre existiam prisões.

É muito bonita a largura desse terraço, porque tem uma certa relação estética com a altura da torre, fazendo com que o todo pareça muito amplo, quando na realidade é simplesmente uma torre.  Essa torre está para o terraço mais ou menos como a rainha estaria para a cauda de seu vestido. O terraço é uma espécie de projeção, de cauda magnífica da torre. A rainha de pedra tem uma cauda também de pedra e olha altiva para a cidade, e dominadora para o mar. A posição é muito bonita.

Cabral e Dom João VI

Nesse terraço, quando partiam as esquadras portuguesas, às vezes o próprio rei vinha apreciar a partida da armada, acompanhado da rainha e outros membros da família real, com a corte,  prelados, guerreiros, magistrados, que enchiam as muralhas e janelas da torre com pessoas esplendidamente vestidas.

Desses terraços pendiam tapeçarias, e o colorido era magnífico. Podemos imaginar a beleza daqueles galeões avançando com o estandarte da Ordem de Cristo. Uma esquadra com cinco, oito navios, cânticos do lado de cá, cânticos do lado de lá. Quando as naus passavam diante do rei, reverência, com salvas de tiros no tempo das armas de fogo; e as naus desapareciam aos poucos no Atlântico.

Pela Torre de Belém passou a esquadra de Cabral que vinha introduzir no mundo essa realidade chamada Brasil. Por ali passou também – em condições quão diferentes, mas não despidas de  dignidade, nem de glória – a esquadra na qual Dom João VI vinha fugindo de Junot.

À última hora, quando estava tudo pronto para partir, deu-se um episódio pitoresco. Ouviu-se do cais: “Para! Para!” Era um homem que vinha trazendo mais uma escrivaninha preciosa, esquecida no palácio real.

Aliás, a partida de Dom João VI foi muito bem preparada. O monarca trouxe todo o ouro do tesouro de Portugal, o mobiliário dos palácios dele, obras de arte, joias, e até sardinhas, das quais ele  gostava muito e sabia não haver no Brasil. De maneira que quando comermos sardinhas frescas, lembremo-nos de que elas descendem das sardinhas trazidas por Dom João VI.

“Quem não viu Sevilha, não viu maravilha”

Consideremos um outro monumento, agora na Espanha: a Catedral de Sevilha. Ela nos lembra um antigo provérbio português: “Quem não viu Sevilha, não viu maravilha”. Encontramos nesse  edifício algo, mas muito pouco, do que elogiei na Torre de Belém. Essas duas torres laterais são muito ornadas. Entre elas, um espaço simples, com fundo claro e um gradeado muito bonito de ogivas e rosáceas, que fazem o contraste do simples com o muito embelezado.

Vê-se uma faixa grande e muito ornada com imagens de Santos encimados por dosséis. Por cima do fundo simples ao qual aludi, encontra-se o portal com um triângulo Gabriel magnífico, que é uma expressão da ogiva e, embaixo, uma porta ogival profunda. Em cima há algo parecido com aquela diminuição da Torre de Belém e, depois, também um terraço como no alto daquela torre.

Essas guaritas no canto lembram igualmente a Torre de Belém. Não creio que isso tenha sido inspirado nela, mas são afinidades de estilo, muito compreensíveis entre Espanha e Portugal. A meu  ver, o bonito dessa porta é que ela tem qualquer coisa de monumental. As torres têm uma altivez, levantam-se do chão com muita decisão e galhardia. Temos a impressão de que elas seguram o   chão como se fossem garras, e sobem ao céu com uma segurança, uma inteira despreocupação do perigo de cair, e que sustentam o peso em cima com uma completa facilidade. Mais ainda, tenho a impressão de que elas olham do alto de si mesmas para a terra e para os pobres transeuntes, de cima para baixo, numa atitude de desafio, quase como quem diz: “Se ousas, experimenta. Só pela  minha fisionomia, te afugento. É assim que eu sinto a terra”.

Modos inocentes de aproveitar a vida

Notem como esses arcos, que são arrimos das torres, foram transformados em verdadeiros ornatos pelos arquitetos muito artísticos do tempo. Há qualquer coisa de porta de fortaleza nesse magnífico portal. É uma característica muito sensível para mim, agrada-me muito essa fusão. Uma fortaleza meio eclesiástica e uma igreja meio fortaleza realizam a síntese de que eu gosto, isto é, os mais altos valores do espírito defendidos pela força e postos dentro da luta, com a entrega do homem e o risco da vida.

É, por exemplo, a guerra religiosa, a guerra das almas e dos corpos, com uma integridade que constitui sua beleza. Um minúsculo pormenor característico da Península Ibérica é a palmeirinha, tão presente no Sul da Itália, da Espanha, de Portugal, mais rara no restante da Europa, frequente no litoral da África do Norte, tão comum no Brasil.

Outra coisa também minúscula, mas que compõe o ambiente e o panorama: esse chafariz que provavelmente servia para os cavalos beberem água. Termino com um pequeno comentário a respeito as árvores. Em Granada se vê muito isso: no interior do Alhambra, aquelas partes muito bonitas, com os chafarizes cantando. Mais ainda: da fonte vêm sulcos para dentro dos quartos, com regozinhos que fazem com que a água brinque e corra em pequenos sulcos dentro do próprio quarto. Para um lugar quente, que maravilha! Esses  são modos inocentes de aproveitar a vida, que tiram a mania e a obsessão de impureza. Por causa disso a Revolução combate o quanto pode para fazer com que a vida virtuosa seja sem graça. Contra isso, devemos nos levantar.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/1/1977)