Dique levantado contra a Revolução

No século XIV havia grande putrefação do clero, cuja consequência era a corrupção dos fiéis. Assim, toda a Idade Média entrava em deterioração moral, com uma explosão de orgulho e de sensualidade, a qual geraria depois os desvios intelectuais. Contra esses vícios lutou São Vicente Ferrer.

 

Devemos comentar uma ficha referente a São Vicente Ferrer. Sobre ele diz o Padre Rohrbacher(1):

Repreendia os vícios não só do povo, mas dos príncipes e prelados

Vicente Ferrer nasceu na Espanha, em 1357. Sua vocação foi anunciada a seus pais de forma miraculosa, antes de seu nascimento. Ao seu Batismo acorreu toda a cidade de Valência, sendo seus padrinhos os membros do Conselho Municipal. Entrou para a Ordem Dominicana aos dezoito anos, revelando logo rara inteligência e dotes para a pregação.

Em 1405, o Papa Bento XIII chamou São Vicente Ferrer a Gênova, onde este santo pregador recebeu do doge grandes demonstrações de respeito e consideração. Mas como lhe pedissem que usasse do crédito que tinha ante esse magistrado para que salvasse a vida de um homem de Valência, condenado à morte por seus crimes, demonstrou São Vicente tanto zelo pela justiça que, embora o criminoso fosse de seu país, julgou que não devia interceder por um homem que não merecia. Tudo que fez foi pedir que mudassem o gênero de seu suplício.

Vemos aqui a ideia oposta à que a “heresia branca”(2) quer inculcar sobre como deve ser necessariamente um Santo. Sem dúvida, é próprio a um Santo pedir que seja indultada uma pessoa ameaçada pela pena de morte. Mas isto desde que haja propósito, uma razão de ser. Não havendo, o Santo não o faz porque ele procede em tudo com conta, peso e medida e, sobretudo, sabe haver circunstâncias nas quais a pena de morte não só é indicada, mas não deve ser revogada.

É o contrário da noção que muitas pessoas têm de um Santo. Para essas, a pena de morte é intrinsecamente má e um Santo deve sempre pedir que não seja aplicada. Segundo essa mentalidade, quem for solidário com a execução da pena de morte passa por ser um indivíduo necessariamente de mau coração. Não é um “homem de boa vontade”, para usar a expressão tão cara e deturpada em nossos dias. Aqui temos uma colisão entre o procedimento de um Santo e as ideias da “heresia branca” a respeito de santidade que circulam por aí.

Repreendia São Vicente, com uma autoridade cheia de audácia, os vícios não só do povo, mas ainda dos príncipes e prelados. E não perdoava ninguém cuja conduta escandalosa era digna de reprovação. Entretanto, tinha certa moderação e cuidado para com os eclesiásticos, para salvar a honra de seu caráter, fazendo a reprimenda em particular. Fazia o mesmo com as religiosas que tinham dado margem para que falassem pouco lisonjeiramente de suas condutas.

Evidentemente, sendo possível repreender em particular é muito melhor. Porém, uma pessoa imbuída da mentalidade “heresia branca” objetaria: “Um Santo não repreende prelados, porque acha que todos eles são santos…”

Deve-se estudar para dar glória a Deus e santificar a própria alma

Conselhos de São Vicente aos que estudam: quereis estudar de maneira a vos ser útil? Que a devoção vos acompanhe em todos os vossos estudos e vosso fito seja alcançar a santificação, e não a simples habilidade.

Essa é uma recomendação muito importante. Quer estudar bem? Não deve fazê-lo simplesmente por estudar, porque este é um espírito superficial que não encontra nem aprende nada verdadeiramente. Deve-se estudar para conhecer, em última análise, Deus Nosso Senhor, com vista a Lhe dar glória e a santificar a própria alma.

Consultai mais a Deus do que aos livros e pedi-Lhe com humildade a graça de compreenderdes o que ledes.

Consultar mais a Deus do que aos livros significa rezar e considerar as coisas em função do Criador. Devemos, pois, pedir o auxílio divino e analisar tudo em relação a Ele. Este pensar, remoer e remexer as cogitações internamente, relacionando todas as coisas com o Onipotente, é mais importante do que ler e constitui uma das formas de oração, porque é elevar a mente a Deus.

O estudo fatiga o espírito e seca o coração: ide de quando em quando reanimá-lo um tanto aos pés de Jesus Cristo. Alguns momentos de repouso em suas chagas sacrossantas vos dão renovado vigor e novas luzes. Interrompei vosso trabalho com jaculatórias.

O que ele diz a respeito de jaculatórias de vez em quando, suspender o estudo para meditar nas chagas de Nosso Senhor é tão verdade que pode ser considerado com mais amplitude. Ao estudar, se é um estudo puramente técnico, devemos de vez em quando interrompê-lo para pensar em algo elevado, que nos conduza a Nossa Senhora, ainda que seja uma coisa terrena: algum belo lance da História da Igreja ou da Civilização Cristã; algum belo aspecto da arte católica, etc., para distender o espírito.

Isto, por sua vez, é o contrário do que se chama “mentalidade politécnica”. Entretanto, há também um modo “politécnico” de fazer jaculatórias. É o seguinte: “Vou fazer de dez em dez minutos uma jaculatória.” É incomparavelmente melhor do que não fazer, mas não é o modo ideal, porque a jaculatória deve corresponder a um anseio da alma. Quando a alma não sente esta necessidade, então se faz de dez em dez minutos, empregando o princípio de que “quem não tem cão, caça com gato”. Ainda assim é muito bom, porém o verdadeiro é sentir essa necessidade de alma, de vez em quando, e fazer jaculatórias.

Que a oração, enfim, preceda e termine vosso trabalho. A Ciência é um dom do Pai das luzes. Não a olheis, pois, como obra de vosso espírito e de vosso talento.

De fato, a maior parte das pessoas considera que o seu enriquecimento cultural é fruto do próprio espírito e talento. Ora, precisamente essas enganam-se de um modo cabal.

Em suas pregações falava contra o pecado, sobre o juízo de Deus, o Inferno

Vicente acompanhou o Cardeal Pedro de Luna a Avignon, sendo que algum tempo depois este foi eleito Papa sob o nome de Bento XIII, na época do grande cisma que dividia a Igreja. O novo Papa quis que Vicente fosse seu auxiliar, mas o Santo sabia não ser esta a sua missão. Assim, deu início à grande obra de evangelização como pregador. Percorreu a França, Espanha, Itália e Inglaterra; esta última por especial pedido do Rei Henrique IV. Os pecadores mais endurecidos não resistiam às suas palavras, assim como numerosos judeus, muçulmanos e cismáticos se convertiam.

A ignorância e a corrupção dos costumes, consequências comuns da guerra e do cisma, tornaram necessárias as missões de Vicente. Era preciso um apóstolo cuja voz terrível pudesse abalar as consciências a fim de arrancar os pecadores de suas desordens.

O Santo tratava comumente dos temas mais assustadores do Cristianismo, tais como o pecado, o juízo de Deus, o Inferno e a eternidade. Tinha, além disso, o dom de pronunciar seus discursos da maneira a mais patética. Não se contentando em ser veemente, ele falava ainda de uma maneira proporcionada à compreensão dos ouvintes. A santidade de sua vida dava nova força às suas palavras.

Sua fama chegou ao reino mouro de Granada, cujo soberano quis ouvi-lo. Entretanto, São Vicente começou a promover tantas conversões, que os ministros do rei, temerosos do que sucederia à crença muçulmana, pediram-lhe que afastasse dali o grande pregador.

Depois de uma existência toda consagrada a levar almas para Deus, pontilhada de milagres sem conta e pela luta contra o doloroso cisma de Avignon, que culminou pela condenação do antipapa Pedro de Luna e a aceitação completa de Martinho V, eleito pelo Concílio de Constança, São Vicente veio a falecer na Bretanha, em 1419, aos sessenta e dois anos de idade.

Depois dos Apóstolos, provavelmente foi o maior pregador popular

Poucas coisas são bonitas na vida dos Santos quanto situarmos a missão deles no panorama da luta entre a Revolução e a Contra-Revolução.

De acordo com esse panorama, na Europa do século XIV, a Cristandade começa exatamente a entrar em declínio. Era uma decadência eclesiástica terrível que se atestava pelo fato de haver papas exilados em Avignon, sob a férula dos reis da França, um cisma tremendo. Três “papas” que se combatiam reciprocamente, dos quais, naturalmente, um só era válido. Mas tal era a confusão na Cristandade que, ao lado de cada pseudo-papa ou do papa, havia Santos que os apoiavam.

Compreende-se, para isso ser possível, o que significava de putrefação do clero, a qual trazia como consequência a corrupção dos fiéis. Assim, era toda a Idade Média que entrava em putrefação, de caráter mais moral do que intelectual. Não se tratava tanto de uma grande heresia, mas de uma deterioração moral, uma explosão de orgulho e de sensualidade que começava, a qual deveria gerar depois os desvios intelectuais que são os erros da Revolução.

Então a Providência enviou, muito adequadamente para essa época, um Santo que foi grande em sua esfera própria como, por exemplo, o foi São Tomás de Aquino na sua. Porque, se podemos dizer que São Tomás de Aquino foi o Doutor comum, o filósofo dos filósofos, o teólogo dos teólogos, o mestre dos mestres, podemos afirmar que, como pregador popular, depois dos Apóstolos provavelmente ninguém excedeu a São Vicente Ferrer. Nem mesmo Santo Antônio Maria Claret, que no século XIX foi um pregador assombroso, teve de longe a expressão de São Vicente Ferrer.

Ele dizia de si mesmo que era o Anjo do Apocalipse, que tinha vindo para anunciar a derrocada da Civilização Cristã e o começo do fim do mundo. Com efeito, ele lutou enormemente para a moralização dos costumes, com vistas a sustar essa decadência moral.

O Santo oposto à tibieza

Nesse sentido essa ficha é muito sintomática porque fala de conversões de judeus, maometanos, hereges, mas as menciona como fatos colaterais, de uma importância menor dentro do conjunto da obra dele. Enquanto o grande acontecimento era o poder de sua pregação pela qual ele sacudia as consciências meio adormecidas, sendo assim, por excelência, o Santo oposto à tibieza, porque esse tipo de pregador que fala a respeito do Inferno, dos pecados, que tonitrua, pede o castigo do Céu, é exatamente o Santo chamado para falar, não às almas fervorosas, mas sobretudo às tíbias, e feito para sacudir aquelas que de outro modo não se podem convencer. Então se compreende o número colossal de conversões operadas por ele.

Contudo, por mais numerosas que tenham sido, essas conversões foram insuficientes. Delas não surgiu um movimento, uma corrente organizada para combater a Revolução que nascia. O resultado é que São Vicente Ferrer converteu muitas almas, mas não a Cristandade, não converteu a sociedade enquanto tal, pois ele não foi tão ouvido pelos homens de seu tempo quanto eles deveriam tê-lo escutado.

Então, São Vicente Ferrer foi o dique que a Providência levantou contra a Revolução, mas que a maldade dos homens destruiu. Entretanto, na abertura dessa torrente que começa a cair para o abismo, fica de pé a figura grandiosa dele, anunciando as catástrofes que provinham do fato de ele não ter sido ouvido, exatamente como a de um profeta do Antigo Testamento anunciando desgraças ao povo eleito porque não tinha dado atenção aos enviados de Deus.

Assim fica a imensa figura de São Vicente Ferrer pairando no firmamento da Igreja, num pórtico que é o fim da Idade Média e pode ser considerado o começo da Revolução.                v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 4/4/1966 e 4/4/1967)
Revista Dr Plinio 265 (Abril de 2020)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Histoire Universelle de l’Église Catholique. Paris: Librairie Louis Vivès, 1901. v. X, p. 39-110.

2) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.

Como um profeta do Antigo Testamento

São Vicente Ferrer foi grande na Ordem dos Dominicanos como, por exemplo, o foi São Tomás de Aquino em sua esfera própria. Exceção feita dos Apóstolos, provavelmente ninguém excedeu a São Vicente Ferrer como pregador popular.

Ele lutou enormemente para a moralização dos costumes. Pelo poder de sua pregação, sacudia as consciências adormecidas e foi, por excelência, o santo oposto à tibieza. Daí o número colossal de conversões operadas por ele.

Entretanto, por mais numerosas que tenham sido essas conversões, delas não surgiu um movimento organizado para combater a Revolução nascente. Ele converteu muitas almas, mas não a sociedade em seu conjunto. E isso porque os homens de seu tempo não o ouviram tanto quanto deveriam.

Este santo foi o dique levantado pela Providência, mas que a maldade dos homens destruiu. E, na abertura dessa torrente que começa a cair para o abismo, fica de pé a figura grandiosa de São Vicente Ferrer, anunciando as catástrofes que provinham do fato de ele não ter sido ouvido. Exatamente como um profeta do Antigo Testamento, vaticinando desgraças ao povo eleito porque este não dera atenção aos enviados de Deus.

Assim fica ele pairando sobre o firmamento da Igreja, num pórtico que é o fim da Idade Média, e pode ser considerado como o começo da Revolução.

Aí está a imensa figura de São Vicente Ferrer!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 4/4/1966)

Esvoaça do lado de fora, mas não entra

Certa ocasião, quando São Vicente Ferrer entrava em Barcelona — uma das maiores e mais ilustres cidades de seu tempo —, fizeram-lhe uma recepção tão extraordinária que de todas as janelas pendiam tapeçarias em sua honra, o povo o aclamava e ele caminhava debaixo de um pálio, cujas varas eram carregadas pelos principais da cidade. Então, alguém lhe perguntou, baixinho, ao ouvido:

— Irmão Vicente, e a vaidade?

— Esvoaça do lado de fora, mas não entra — respondeu ele.

A resposta de um orgulhoso seria: “Nem sinto tentação”. E um pusilânime diria: “Pobre de mim, estou inundado de vaidade”.

Este Santo deu a resposta certa: Como homem, posso e estou sendo tentado. Porém, a tentação esvoaça do lado de fora, mas, pela graça de Deus, ela não entra.

De fato, neste vale de lágrimas é normal sermos tentados. A tentação tempera a alma. Quem diz “não” para o demônio sai mais forte, mais pertencente a Nossa Senhora. O servo bom e fiel que foi provado e venceu manifesta a sua fidelidade, faz render na luta os seus talentos, colhe louros e os entrega à sua Senhora.

Somos soldados da Igreja Militante e devemos nos entusiasmar com isso.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/1/1970)