A ordem dos Servitas

A Ordem dos Servitas é uma das mais antigas entre as especialmente fundadas para propagar a devoção à Mãe de Deus. O título de Servos ou Escravos de Maria, que os sete fundadores quiseram dar a esta Ordem, prenuncia a devoção de São Luís Grignion de Montfort, que é a da escravidão a Nossa Senhora. Quer dizer, um despojamento completo de todos os bens materiais e espirituais, e até dos méritos de nossas boas obras, presentes, passados e futuros para serem postos nas mãos da Santíssima Virgem.

Com a canonização dos sete fundadores e a aprovação desta Ordem, a Igreja indica que, em relação a Nossa Senhora, devemos ser servos.

Peçamos aos Santos Fundadores dos Servitas que intervenham na Terra e ajudem a estabelecer uma verdadeira devoção a Maria Santíssima entre os homens, e com ela o senso da hierarquia e da Contra-Revolução.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/2/1965)

Enlevo e holocausto

A “Carta Circular aos amigos da Cruz” – I

Serviço, obediência e holocausto em prol da Igreja, nascidos do enlevo pelas perfeições de Deus, são atitudes próprias da alma onde lateja um autêntico amor à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. É o que Dr. Plinio nos convida a compreender, ao comentar — numa série de conferências que equivalem a um retiro espiritual — a “Carta circular aos amigos da Cruz”, escrita por São Luís Grignion de Montfort.

 

São Luís Maria Grignion de Montfort escreveu uma obra com um título glorioso: “Carta Circular aos amigos da Cruz”. Por ser pequena, deu-lhe a forma de carta. A julgar pelo título, foi redigida para afervorar certo número de pessoas conhecidas do santo, particularmente amigas da Cruz ou, pelo menos, com um começo de amor a ela, numa época (início do século XVIII) onde se era pouco amigo da Cruz(1).

Ardorosa linguagem do santo

Esse é um pormenor importante, e não de interesse meramente livresco. Porque uma é a linguagem empregada com os inimigos, outra, com os amigos. Há ainda um terceiro modo de falar, utilizado com os irmãos, aqueles que vibram de entusiasmo pelo mesmo ideal que o nosso, aos quais não queremos apenas afervorar, mas impulsionar nas sendas desse ideal. São Luís escreve numa linguagem que convém às duas últimas categorias, embora mescle considerações diversas.

Com efeito, alguns pensamentos são próprios a estimular o amor à Cruz, outros constituem defesas ou apologias da Cruz, para serem usados em polêmicas contra os inimigos dela. Analisaremos ambos os aspectos, para bem compreendermos a linguagem e o significado da Carta, que assim começa:

Já que a divina Cruz me esconde e me interdiz a palavra, não me é possível e nem desejo vos falar, para vos externar os sentimentos do meu coração sobre a excelência e as práticas divinas de vossa união na adorável Cruz de Jesus Cristo.

Hoje, entretanto, último dia de meu retiro, saio, por assim dizer, da atração do meu interior, a fim de esboçar neste papel alguns leves dardos da Cruz, para com eles transpassar vossos bons corações. Prouvesse a Deus que, para acerá-los, bastasse o sangue de minhas veias, em lugar da tinta da minha pena! Mas, ai de mim! Mesmo se ele fosse necessário, é por demais criminoso. Que o espírito de Deus vivo seja, pois, a vida, a força e o teor desta carta; que sua unção seja a tinta de meu tinteiro; que a divina Cruz seja minha pena, e vosso coração, o meu papel!

Graça especial para se ter amor à Cruz

Percebe-se nesse trecho certo estilo próprio à literatura da época, mas também um pensamento teológico muito profundo. Ou seja, para tudo quanto é bom, faz-se necessária a graça de Deus, e de modo especial no que diz respeito à cruz. Porque o homem é tão egoísta e infenso ao sofrimento que, se não houver uma graça particularmente intensa, pujante, a ação de qualquer pessoa é incapaz de despertar noutra o amor à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Por exemplo, a graça do enlevo pelas coisas celestes, pelas coisas de Deus, proporciona a uma pessoa coragem para que ela carregue grandes cruzes como se fossem pequenas. Quer dizer, esse amor latente por Deus, por Nossa Senhora, pelas grandezas do Céu agem com tal profundidade no homem que, por um ato de consentimento livre, consciente — e ao mesmo tempo subconsciente, o que parece paradoxal, porém verdadeiro — ele se deixa transformar. E o amor à Cruz é o sintoma dessa mudança de mentalidade.

Esse é um ponto fundamental na vida espiritual. Pois quando no coração de alguém cresce o enlevo por algo, ele fica apetente de obediência, serviço e holocausto, que são cruzes. Fazer a vontade de outrem e não a própria: obediência; servir ao próximo e não a si mesmo e a seus egoísmos: serviço; e mais que tudo isso, o holocausto, o sacrificar pelo outro o que se possui, até a imolação da própria vida. Essas três atitudes de alma constituem cruzes e são a substância de toda cruz que existe na Terra.

Pode-se supor que é a esse amor nascido do enlevo pelas coisas de Deus, o qual torna as almas capazes de abraçar a Cruz, é a essa graça especial que se refere São Luís Grignion no exórdio de sua carta.

“Coragem! Combatei valentemente!”

E prossegue:

Estais reunidos, amigos da Cruz, como outros tantos soldados crucificados para combater o mundo, não fugindo dele como os religiosos e religiosas pelo medo de serdes vencidos, mas como valorosos e bravos guerreiros no campo de batalha, sem largar o pé e sem voltar as costas. Coragem! Combatei valentemente!

Como já vimos, uma das características de São Luís Grignion é o espírito combativo, com um quê de fogoso no sentido de apostrofar os erros dos adversários. Então ele, que fundou uma congregação religiosa, reunindo pessoas para fugirem do mundo, conhece a variedade dos dons que existem na Igreja. E compreende que certas almas são chamadas a permanecer no mundo para combater o mal. Porque viver no mundo é sinônimo de lutar contra o mal. É para esses que ele escreve: “valorosos e bravos guerreiros no campo de batalha…” Apenas isso? Não. “Coragem! Combatei valentemente!” Quer dizer, é preciso tomar a iniciativa em defesa da virtude, contra o pecado.

Essas palavras se compaginam com a forte personalidade de São Luís Grignion de Montfort, fazendo-nos imaginar um missionário que fala e brande um crucifixo para os seus ouvintes, convidando-os à luta. Nesse trecho há qualquer coisa do timbre de voz de nosso santo, que é insubstituível. Aqui transparece sua psicologia inteira: abrasado de entusiasmo, não passando um minuto sequer sem um amor a Deus superlativo, lucidíssimo, com os olhos voltados ao mesmo tempo para o ideal que o enlevava e para a ação por ele contemplada. Portanto, da chama da contemplação passava para o ato, realizando um apostolado dardejante, levando muitas pessoas consigo. Era um braseiro ardente, cujo calor comunicativo se sente nessas palavras.

Mais anjo do que homem

Tem-se a impressão, aliás, ao lermos esses escritos de São Luís Grignion, de vermos nele mais um anjo do que um homem, com o amor próprio de um serafim. Constantemente aceso e deitando labaredas em torno de si. Ele possuía uma castidade primeira, uma candura inicial, uma incontaminação da sabedoria, sem nenhuma concessão às máximas mundanas, aos desvios da Revolução. Era um reflexo do espírito de Nossa Senhora agindo entre os homens, como um anjo.

Como se vê, nesses comentários procuramos fazer sentir o tom de voz e quase o calor pessoal de São ­Luís Grignion de Montfort, pois para nós é indispensável compreendermos a personalidade dele, que tanto nos fala à alma. Afinal, ele é o santo da verdadeira devoção a Nossa Senhora, a qual alcança para seus devotos a plenitude de dons como este do amor à Cruz, enaltecido por São Luís nessa sua admirável carta circular.

(Continua em próximo artigo)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 20/5/1967)

A Cooperação de Nossa Senhora com seu Filho

Na seqüência de suas considerações sobre o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, de São Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio nos convida a contemplar as “maravilhas de graça” operadas em Nossa Senhora, cujo claustro materno tornou-se, durante nove meses, a paradisíaca habitação de Deus.

 

Escreve São Luís no tópico 16 do Tratado:

Deus Filho desceu ao seu seio virginal qual novo Adão no paraíso terrestre, para ai ter suas complacências e operar em segredo maravilhas de graça.

Em primeiro lugar, devemos considerar a Encarnação de Deus Filho em Nossa Senhora. Ela, pelo processo da maternidade, foi gradualmente fornecendo-Lhe sua carne e seu sangue, e assim foi sendo formado, dentro de seu seio virginal, o corpo de Nosso Senhor, unido à divindade pela união hipostática. A participação d’Ela no mistério da Encarnação é imensa. Considerando que o corpo de Nosso Senhor, sua carne e seu sangue, são carne da carne e sangue do sangue de Nossa Senhora, não se pode imaginar uma maior intimidade com Deus. O papel de Nossa Senhora nesse mistério foi tal, que Deus quis que Ela antes desse o seu consentimento, para depois dar sua carne, seu sangue e, portanto, algo de seu próprio ser.

Maria criou, governou e ofereceu Jesus em holocausto

…Encontrou sua liberdade em ser aprisionado no seio da Virgem Mãe; patenteou sua força em se deixar levar por esta Virgem santa…

Foi vontade de Deus Pai que Nosso Senhor ficasse contido n’Ela como dentro de uma arca, de um tabernáculo, em que Ele operava maravilhas de graças só por Ela conhecidas. E foi dentro d’Ela, como no interior de um santuário, que Nosso Senhor Jesus Cristo começou a dar glória ao Pai Eterno. No próprio momento em que começou a existir a união hipostática, Deus Pai recebeu de Nosso Senhor Jesus Cristo o mais perfeito ato de amor que jamais se deu na Terra. Ninguém nunca prestou-Lhe um ato de amor tão excelso quanto a humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo.

O Santo mostra ainda como Jesus, que era Senhor onipotente, contido em Nossa Senhora, deixou-se transportar por Ela, não só pelas montanhas da Judeia para visitar Santa Isabel, como por todos os lugares pelos quais Maria o quis.

…Achou sua glória e a de seu Pai, escondendo seus esplendores a todas as criaturas deste mundo. Para revelá-las somente a Maria; glorificou sua independência e majestade, dependendo desta Virgem amável, em sua conceição, em seu nascimento, em sua apresentação no templo, em seus trinta anos de vida oculta, até a morte, a que ela devia assistir, para fazerem ambos um mesmo sacrifício e para que ele fosse imolado ao Pai eterno com o consentimento de sua Mãe, como outrora Isaac, com o consentimento de Abraão á vontade de Deus. Foi ela quem o amamentou, nutriu, sustentou, criou e sacrificou por nós.

Ó admirável e incompreensível dependência de um Deus!… Nossa Senhora foi incumbida de criar Nosso Senhor e de O governar em sua infância, durante a qual Ele tinha para com Ela as mesmas relações de uma criança para com sua mãe. Pois seria falso imaginar que, na presença de outros, Nosso Senhor fazia o papel de criança; e quando não havia ninguém, apresentava-se como Deus. Ele estava junto a Nossa Senhora sempre como menino, do qual Ela cuidava como quem trata a um Deus.

Depois Nosso Senhor cresceu, passando trinta anos de sua vida junto d’Ela, e consagrando aos homens somente três.

Por fim, Ela O levou até o alto da cruz e, ali, ofereceu-O a Deus.

São Luís Grignion resume o papel de Nossa Senhora na Redenção: Ela gerou, criou, acariciou e finalmente acompanhou a vítima ao altar do sacrifício, onde Ela mesma o imolou, como diz o Santo autor. Porque verdadeiramente Nosso Senhor morreu com o consentimento de Nossa Senhora. Ela aceitou que Ele sofresse tudo o que padeceu, e morresse da maneira como expirou.

Dediquemos mais tempo a Nossa Senhora, a exemplo de seu Divino Filho

Há aplicações maravilhosas para nossa espiritualidade a tirar desse fato: Nosso Senhor vivendo trinta anos sob a dependência de Nossa Senhora.

Em nossa vida de piedade, por exemplo, que importância damos, respectivamente, à nossa união com a Virgem Santíssima e ao nosso apostolado? Temos a impressão de que este é muito mais importante que a nossa união com a Mãe de Deus, de tal modo que dedicamos nosso quarto de hora de oração a Ela, e, o restante do tempo a nosso “enorme” apostolado?

Nosso Senhor nos dá exemplo do contrário. Tempo dado à união como Nossa Senhora: trinta anos; ao apostolado: três.

Podemos bem compreender o que representa de homenagem — “homenagem” de um Deus, a palavra parece até absurda —, de glória para a Virgem, o Verbo Encarnado vir ao mundo e passar trinta anos junto d’Ela, dedicando apenas três à realização de sua missão. E entender o que significa a graça de estar junto de Maria Santíssima. Assim sendo, quando vamos fazer uma visita a uma imagem de Nossa Senhora numa igreja, podemos nos unir a esses sentimentos de Nosso Senhor. Convém que, amiúde, interrompamos nossas atividades, e entremos numa igreja para fazer uma visita a Maria Santíssima com esta intenção: imitar Nosso Senhor, que não se apressou em iniciar desde logo sua vida pública, mas consagrou trinta anos a estar junto de Nossa Senhora. Vou seguir seu exemplo; por isso peço-Lhe que, dada minha impossibilidade de agradar como devo a Nossa Senhora, que Ele A agrade por mim neste momento. Quando me coloco diante do tabernáculo, devo pedir a Nosso Senhor a graça de que, em meu nome, Ele trate Nossa Senhora como eu gostaria de fazê-lo, embora seja incapaz.

Eis uma boa visita ao Santíssimo Sacramento e a Nossa Senhora. Com isto se constrói uma vida espiritual digna desse nome. Mas é preciso que sempre tenhamos em mente todas essas idéias, esses princípios, para que possamos utilizá-los quando as ocasiões se apresentarem.

Convicção e resolução em nosso amor, não mera sensibilidade…

Pelo acima exposto, vemos como seria tolo dizer que há secura ou geometrismo na piedade por parte de quem assim procede. O que aí não se pode desejar é o vácuo, a bazófia. Pois o que recomendamos não é secura nem geometrismo, mas coerência: a inteligência ilumina, a vontade quer, e a sensibilidade acompanha o preito de amor da vontade. E se acaso a sensibilidade não acompanhar, não terá maior importância, pois o ato de amor estará feito. O amor reside na vontade.

Não se trata, portanto, de experimentar uma espécie de consolação sensível, sentir o trêmulo da comoção, para só então rezar. Importa, sim, ter convicção e resolução. A Fé nos ensina que Nossa Senhora é imensamente bondosa, e por isso recorremos a Ela com confiança. É uma consideração racional, que não nasceu da sensibilidade. Essa atitude racional na oração, a construção de uma piedade toda ela alicerçada sobre convicções recebidas da Fé, que a razão anipula, isso sim é verdadeirasi um tabernáculo admirável, “como Adão no Paraíso”. Para compreendermos bem o que isto significa, é interessante apelarmos para certos conceitos subjacentes à seção Ambientes, Costumes, Civilizações, que nós escrevemos, sobre a importância da beleza e a propriedade dos ambientes. Estando no seio virginal de Nossa Senhora, Jesus encontrou todo o necessário para suas delícias espirituais: havia ali um ambiente, uma atmosfera que Lhe eram perfeitos, graças às virtudes excelsas de Maria Santíssima. Durante este período, Nosso Senhor teve com Ela uma união verdadeiramente incomparável.

Já consideramos o fato de que, neste período, Nossa Senhora vai fornecendo sua própria carne e seu próprio sangue para a formação do corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Durante esse tempo, havia uma atividade em extremo íntima entre Ele e Ela, sendo preciso notar que Nosso Senhor teve o uso da razão desde o primeiro instante do seu ser. Ele, portanto, vivia em Nossa Senhora dispondo já completamente de sua inteligência. Podemos imaginar a intimidade enmente a seriedade na vida espiritual. O que desejamos é produzir convicções profundas, construir uma estrutura de espírito útil à vida de piedade, e não apenas fabricar uma faísca passageira de emoção mariana.

União inexprimível entre Mãe e Filho

São Luís Grignion lembra, entre outras coisas, que Nosso Senhor, no período de sua gestação, enclausurou-se no ventre puríssimo de Nossa Senhora, e aí encontrou para tre Eles e o alto grau de cada ato de amor? A cada colaboração que Ela prestava para a formação de seu corpo, correspondia da parte d’Ele uma série de graças a Ela concedidas. Durante a gestação de Nosso Senhor havia, portanto, entre Ele e sua Mãe, uma união verdadeiramente inexprimível e de uma sublimidade incomparável.

Em que sentido a consideração dessa união nos pode ser benéfica?

O homem, na Igreja Católica, encontra-se diante de um firmamento de verdades. E assim como, colocados diante do céu físico, contemplamos inúmeras pulcritudes que enriquecem nossa alma, no universo de verdades da Santa Igreja poucas maravilhas podemos considerar tão grandes quanto a intimidade de uma alma inteiramente humana, como era a de Nossa Senhora, com Nosso Senhor Jesus Cristo, durante o tempo da sua Encarnação.

Assim, nos é dado ter uma ideia da intimidade que também nós podemos adquirir, pela nossa santificação, com Nosso Senhor; faz-nos compreender um pouco o que é a vida da graça, e faculta-nos a apetência de uma maior união com Jesus Cristo.

Essas considerações não podem ficar no vácuo. Na vida espiritual devemos propriamente desejar esses dons sobrenaturais, a união com Deus e os bens eternos!

 

 

Erguei-Vos, Senhor!

Já fizemos ver que nossos dias  se inserem no longo processo histórico iniciado com o humanismo, a renascença e o protestantismo, acentuado fundamente com o enciclopedismo e a Revolução Francesa, e por fim com a transformação dos povos cristãos em massas largamente trabalhadas pelos fermentos da imoralidade, do igualitarismo, do indiferentismo religioso ou do ceticismo total.

A descristianização é o signo sob o qual estão colocados todos os fatos dominantes ocorridos no Ocidente, do século XV a nossos dias. Cessada aquela por um movimento inverso, teremos passado de um conjunto de séculos para outro.

Era precisamente um fato desta amplitude, um corte no processo descristianizante e um surto da religião sem precedentes, que São Luís Maria Grignion de Montfort — autor do “Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem” — implorava, esperava e, disto estamos certo, obteve.

O meio para se chegar a este triunfo será uma congregação toda consagrada, unida e vivificada por Maria Santíssima. O que seja propriamente essa congregação, na mente do Santo, não se pode afirmar com certeza absoluta.

Em certo sentido, parece uma família religiosa. Mas há também aspectos por onde se poderia pensar diversamente. De qualquer forma, essa congregação será o instrumento humano para implantar o Reino de Maria.

Essa misteriosa congregação, que será uma “assembléia, seleção, escolha de predestinados feita no mundo e do mundo; rebanho de pacíficos cordeiros a serem reunidos entre lobos; companhia de castas pombas e águias reais entre tantos corvos; batalhão de leões destemidos entre tantas lebres tímidas” [palavras de São Luís Grignion no “Tratado…”], essa congregação só pode ser  constituída por uma ação fecunda da graça nas almas dos que devem compô-la. Mas para Deus nada é impossível: “Ó grande Deus, que podeis fazer das pedras brutas outros tantos filhos de Abraão, dizei uma só palavra como Deus, e virão logo bons obreiros para a vossa seara, bons missionários para a vossa Igreja. Lembrai- Vos de dar a vossa Mãe uma nova Companhia, a fim de por Ela renovar todas as coisas, e terminar por Maria Santíssima os anos da graça, assim como por Ela os começastes”. Como se sabe, companhia significava, no tempo de São Luís, regimento ou batalhão.

Foi neste espírito que Santo Inácio chamou Companhia de Jesus seu Instituto. São Luís Maria concebia a sua Companhia como essencialmente militante. Ela será como que um prolongamento de Nossa Senhora, em luta permanente e gigantesca com o Demônio e seus sequazes: “É verdade que há de haver grandes inimizades entre essa bendita posteridade de Maria Santíssima e a raça maldita de Satanás; mas é essa uma inimizade toda divina, a única de que sejais autor. Porém esses combates e perseguições dos filhos da raça de Belial contra a nação de vossa Mãe Santíssima só servirão para melhor fazer resplandecer o poder de vossa graça, a coragem da virtude de vossos servos e a autoridade de vossa Mãe, pois que Lhe destes desde o começo do mundo a missão de esmagar esse soberbo, pela humildade de seu Coração”.

Este tópico é dos mais importantes, de vez que mostra a modernidade da Companhia, de seu apostolado militante, de seu espírito profundamente — quase diríamos sumamente — marial.

Esses apóstolos, “por seu abandono à Providência e pela devoção a Maria Santíssima terão as asas prateadas da pomba, isto é, a pureza da doutrina e dos costumes; e douradas as costas, isto é, uma perfeita caridade para com o próximo, para suportar-lhe os defeitos; e um grande amor a Jesus Cristo, para levar sua cruz”.

Mas essa devoção marial e essa caridade se realizarão numa pugnacidade extrema, decorrência da própria devoção marial. Com efeito, serão eles “verdadeiros servos da Santíssima Virgem, que, como outros tantos São Domingos, vão por toda parte com o facho lúcido e ardente do Santo Evangelho na boca, e na mão o Santo Rosário, a ladrar como cães fiéis contra os lobos que só buscam estraçalhar o rebanho de Jesus Cristo; que vão ardendo como fogos e iluminando como sóis as trevas do mundo”. E por isto São Luís Maria multiplica as metáforas e adjetivos alusivos à  combatividade dos membros da congregação: “águias reais”, “batalhão de leões destemidos”, terão “a coragem do leão por sua santa cólera e seu ardente e prudente zelo contra os demônios e filhos de Babilônia”.

E é essa falange de leões que ele pede a Deus no tópico final de sua oração: “Erguei-Vos, Senhor: por que pareceis dormir? Erguei-Vos em todo o vosso poder, em toda a vossa misericórdia e  justiça, para formar-Vos uma companhia seleta de guardas que velem a vossa casa, defendam vossa glória e salvem tantas almas que custam todo o vosso sangue, para que só haja um aprisco e um  Pastor, e que todos Vos rendam glória em vosso santo templo!”

Plinio Corrêa de Oliveira (Publicado na “Última Hora”, Rio de Janeiro, 10/9/84)

Jansenismo e consagração a Nossa Senhora

Dirigindo-se a um grupo de jovens que acabavam de fazer a consagração solene a Nossa Senhora, segundo o método de São Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio lhes explicou o contexto no qual  esse santo explicitou e desenvolveu suas doutrinas.

Na França do tempo de São Luís Maria Grignion de Montfort, disseminava-se nos meios católicos uma doutrina denominada de galicanismo. Opunha-se à influência de Roma sobre a França, daí o  nome de galicanismo, alusão ao antigo nome do país: Gália. Queria, por exemplo, a independência do clero francês em relação à Santa Sé.

A esse erro somava-se outro, cujo fautor viveu no começo do século XVII: era um bispo holandês chamado Jansênio. Ele fez uma apresentação da doutrina católica que continha, disfarçadamente, muitos erros. Esses erros começaram a circular, até constituir todo um movimento religioso que atingiu a França: o jansenismo, que era uma espécie de calvinismo mitigado.

Os jansenistas queriam, por exemplo, a diminuição do culto a Nossa Senhora e ao Santíssimo Sacramento. Se tomarmos todos os pontos defendidos pelos protestantes contra os católicos ao longo do século XVI, veremos que Jansênio retomou as teses de Calvino.

Mas Jansênio apresentava essas teses de modo disfarçado. Ele não negava o culto ao Santíssimo Sacramento, mas o subestimava. Ele não negava o culto a Nossa Senhora, mas o subestimava. E  subestimar significa dar a esses cultos uma importância muito inferior ao lugar que devem ter na fidelidade católica.

São Luís Grignion de Montfort, um devoto muito especial da Santíssima Virgem, iniciou discussões com os jansenistas e tomou a resolução de desenvolver e explicitar — com especial insistência — a doutrina católica sobre Nossa Senhora, nos pontos mais característicos, que os calvinistas mais negavam.

Doutrinas e profecias de São Luís Grignion de Montfort

À sua obra de teologia marial, que é também uma obra de apologética — quer dizer, de discussão para converter os hereges —, São Luís Grignion acrescentou mais um caráter, que é a bem dizer profético: tomou a doutrina católica tal como era em seu tempo e acrescentou conclusões, tiradas logicamente dos princípios mariais então professados.

Nessa época a Imaculada Conceição ainda não era um dogma. Foi definida como tal pelo Papa Pio IX no século XIX. A infalibilidade papal, que tem ligações com o dogma da Imaculada Conceição, foi igualmente definida por Pio IX. Mas São Luís Grignion desenvolveu, já no seu tempo, quase todos esses pontos, como conseqüências deduzidas da doutrina católica. A partir dessas  concepções doutrinárias, fez uma previsão. Descreveu as condições morais de sua época, mergulhada numa grande crise, comparada por ele com a que antecedeu o dilúvio.

E descreveu as conseqüências dessa crise. Por fim, ele profetizou o “Reino de Maria” na terra.

Em resumo, sua obra é, primeiramente, de luta contra a heresia — o protestantismo disfarçado, chamado jansenismo —, e, em segundo lugar, de glorificação da Santíssima Virgem, o que constituía um aspecto dessa luta. Essa glorificação de Nossa Senhora  levou-o a tirar conseqüências de Mariologia que foram confirmadas depois pela Igreja. Em terceiro lugar, fez profecias sobre o futuro da França e da Europa, em conseqüência dos erros morais que existiam no tempo  dele, prevendo catástrofes que seriam um pouco a Revolução Francesa, um pouco também a Revolução Comunista e a situação na qual nos encontramos.

Além disso, previu o “Reino de Maria”: uma época em que a devoção à Santíssima Virgem seria levada a seu apogeu. Época também em que a santidade entre os católicos seria levada muito longe, deveria crescer muito. Dizia, por exemplo, que os santos das épocas anteriores seriam, em relação aos do “Reino de Maria”, como gramas comparadas a carvalhos.

O “Tratado”

Esse conjunto de doutrinas e profecias é o “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”. São Luís acrescenta a tudo isso uma forma de devoção especial: a escravidão de amor à  Santíssima Virgem.

Do ponto de vista marial, ele faz a defesa dos privilégios da Santíssima Virgem, citando autores antigos, etc. Do ponto de vista apologético, não ataca diretamente Calvino. Mas quem lê as obras de Calvino e as de São Luís Grignion, vê que o “Tratado” é a contraposição de Calvino e, portanto, de Jansênio, um calvinista disfarçado.

Como Jansênio não se declarava inimigo da Igreja a não ser nas entrelinhas, São Luís Maria Grignion de Montfort deu a resposta nas entrelinhas também, algo inteiramente explicável do ponto de vista tático.

Garantia de ortodoxia Uma pergunta cabe aqui: qual é a ortodoxia de tudo isso? Qual a garantia de que essas doutrinas e profecias estão de acordo com a doutrina católica?

A resposta é esta: São Luís Grignion de Montfort foi canonizado. E antes disso, todos os seus escritos foram analisados por teólogos especialistas e depois passaram por um exame do Papa. Na qualidade de Chefe da Igreja, de sucessor dos Apóstolos, de pessoa que possui o carisma da infalibilidade, o Papa declarou que ele foi santo. Assim são feitas as canonizações.

Logo, todas as obras de São Luís Grignion são em princípio ortodoxas.  Quer dizer que nelas não deve ter sido encontrado nenhum erro teológico ou moral; são inteiramente conformes à doutrina da Igreja.

Isto não significa que tudo o que se encontra nas obras dele seja dogmático, mas simplesmente que nada foi encontrado aí que seja contrário à doutrina católica, tal qual ela é definida nesse momento. Mas é possível que algumas definições posteriores a ele não contenham algo que ele disse.

Sobretudo suas profecias sobre o futuro não têm a garantia da Igreja, porque esta nunca autentica revelações particulares. E São Luís Grignion não apresenta suas profecias como uma revelação, mas como conseqüências lógicas da doutrina por ele sustentada, e como conseqüências históricas  previsíveis do quadro geral da França do seu tempo.

E a Igreja apenas certifica que os escritos e as palavras dele são inteiramente conformes ao que Ela já ensinou. Mas isso é totalmente tranquilizador. Devemos, pois, usar nosso raciocínio para verificar a probabilidade de suas previsões. Eis o que se pode dizer a respeito da ortodoxia.

(Continua)