Santa Germana Cousin

Num século habituado aos prazeres e deleites da vida, onde o sofrimento e a dor eram considerados com repugnância e horror, despontou radiosa uma alma de extrema humildade, colidindo estrondosamente com os preconceitos de seu tempo: Santa Germana Cousin.

Comentarei a vida de Santa Germana Cousin, a virgem de Pribac, que vivera em fins do século XVI.

Assim narra-nos uma ficha com sua história:

“Se houve uma vida triste, inútil e miserável aos olhos do mundo, foi a da Bem-Aventurada Germana Cousin. Uma mão paralisada, uma saúde detestável, nenhuma instrução, um cajado para dirigir ovelhas, a guarda de alguns carneiros, enfim, a morte aos vinte e dois anos, eis o que compôs para o mundo a vida de Germana.

“No estábulo, um recanto pobre da casa, estava seu quartinho: um cubículo de cinco pés de comprimento, sob uma escada. Algumas ramagens de videira como leito, e, como alimento, um pouco de pão e de água era bastante para esta miserável escrofulosa. Sua faina diária era guardar o rebanho da família. E as estações do ano lhe fizeram sofrer muito no que elas têm de mais rigoroso.

“Sua paciência era inalterável, ela não possuía outra resposta às injúrias e aos maus-tratos que de todo lado caíam sobre ela quando voltava para casa, trazendo o rebanho e levando-o para o estábulo. A sua única resposta era calar-se e retirar-se a seu pequeno cubículo”.

Diante de uma vida como essa, quais ensinamentos poderiam ser hauridos para o benefício das almas?

Dois notórios contrastes sucederam-se durante a vida de Santa Germana. Tendo nascido no século XVI, houve uma flagrante divergência entre o pecado dominante deste século e a vida levada por ela, como também a diferença entre as dificuldades da vida terrena que sofrera, em relação à glória sobrenatural pela qual esteve cercada no final de sua existência e sobretudo no Céu.

Por um lado, constata-se um século profundamente marcado pela Renascença, carregando seus pendores defeituosos, que se entregava cada vez mais desbragadamente às pompas mundanas, aos prazeres da vida e a uma ambição pela glória terrena. Embora sendo menos vil que a dominante ambição pelo dinheiro no mundo contemporâneo, não deixava de ser censurável, por possuir um aspecto laico, voltado apenas para o amor-próprio pessoal, desconsiderando a glória celeste que é a única glória à qual o homem deve tender.

Temos então um século de vanglória, centrado no que há de passageiro, transitório e terreno, e que, inconscientemente, faz dessa vanglória um de seus ídolos.

Em meio a este ambiente, nasce uma santa venerada por toda a posteridade por ter sido o contrário da vanglória, levando uma vida pautada pelas maiores humilhações possíveis. Não podendo prestar serviços, pois possuía péssima saúde, Santa Germana era vista com extraordinária crueldade pelos seus mais próximos, maltratada e desprezada com uma raiva irracional que o homem de espírito pagão nutre contra quem apresente qualquer inferioridade intelectual ou física. Ela tinha conjugadas ambas as inferioridades, e era também iletrada.

“De um lado, as pessoas caçoavam da simplicidade dela e de sua devoção. Ela não conhecia nada, exceto o doce nome de Jesus, seu Salvador, e tinha muito cuidado de não se entristecer com seus sofrimentos, com sua miséria, e de pedir a Deus que lhe libertasse, ainda mesmo quando o poder divino, multiplicando os milagres em torno dela, parecia disposto a atender todos os seus desejos”.

 “Ela veio ao mundo paralítica da mão direita e atingida por uma escrofulose. Sua mãe fora levada pela morte logo após seu nascimento. Germana teve que passar toda a sua vida sob a autoridade de uma madrasta que a detestava, maltratava e conservava afastada de seus irmãos e irmãs. Seu pai, Lourenço Cousin, não tinha por sua filha nenhuma espécie de ternura, pouco se inquietando por seus sofrimentos”.

Embora sendo uma pessoa de mínima instrução, que nunca dera provas de grande inteligência, além do aspecto físico tão depauperado e desprezível aos olhos do mundo, esquecida pelo próprio pai e perseguida pela madrasta incessantemente, comprouve à Providência reunir em torno da vida de Santa Germana todas as razões de humilhação imagináveis, para cumulá-la ainda mais de alegria na vida eterna.

Rios que se abriam, neves que davam flores…

“Chegada a hora da Santa Missa, a Bem-Aventurada deixava seu cajado e sua roca, abandonando seu rebanho à guarda do Divino Pastor. Em Germana, a confiança era como uma luz sobrenatural que jamais fora iludida; esta lhe inspirava uma certeza sobre-humana que era posta a serviço de um amor heroico.

“O rebanho, sempre muito bem guardado, mesmo na entrada da floresta de Bocogne, onde foi várias vezes deixado, jamais teve uma ovelha desgarrada, nem o menor prejuízo causado aos campos vizinhos. O que há de mais, o rebanho estava florescente e não havia em toda a aldeia um rebanho mais belo nem mais numeroso.

“Nosso Senhor multiplicou os milagres nas mãos de sua caridosa serva, como Ele outrora havia multiplicado entre as suas mãos divinas. Mas esta explicação não veio ao espírito de todos. Acusaram-na de roubar pão da casa de seu pai, e sua madrasta não foi a última a conceber tais suspeitas. Um dia deu-se conta, ou julgou notar que Germana levava em seu avental um certo número de pedaços de pão que não lhe tinham sido dados. Imediatamente tomou um bastão e pôs-se a correr atrás de Germana. Seu furor contra o suposto roubo lhe fez vituperar todas as injúrias que lhe vieram ao espírito. Dois habitantes de Pribac que a viram, tomados de piedade pela pobre menina ameaçada, apertaram o passo com o desígnio de tomar a defesa dela. Quando chegaram perto da pastora, fizeram-lhe abrir o avental e ele não continha outra coisa, senão um magnífico buquê de belíssimas flores, espargindo um perfume delicioso. Jamais os jardins de Pribac tinham produzido flores semelhantes! Não era uma estação de flores, pois estava-se durante um rigoroso inverno…

“Um dia, Santa Germana não podendo ir à igreja sem atravessar um riacho, o qual, de tal maneira se tinha enchido à noite, tornara-se intransponível, e quando duas testemunhas esperavam para ver o desaponto dela, sem se deter um só instante Germana pôs o pé e as águas se retiraram e fizeram para a humilde pastora de Bocogne o que outrora o Jordão havia feito para a Arca da Aliança e para os filhos de Israel. Os camponeses que estavam lá ficaram tomados de temor e como que fora de si mesmos. Ficaram muito tempo com o olhar fixado sobre Germana que se distanciava a toda pressa, e olhavam para ela e para o riacho que continuava a correr”.

Surge então outro aspecto de Santa Germana, os milagres que se realizaram em grande quantidade à sua volta, comprovando sua autêntica virtude. Milagres dos quais dois são clássicos, um de separar as águas, como sucedeu ao povo hebraico quando transpunha o Rio Jordão, com a Arca da Aliança. O outro milagre faz lembrar o famoso fato da vida de Santa Isabel da Hungria quando levava pão aos pobres. Ocorreu que um cortesão veio a exprobrá-la, perguntando o que trazia em suas mãos, ao que ela respondeu-lhe: “São rosas”, e abrindo o avental notou que de fato o que havia ali eram rosas… Milagre magnífico, semelhante ao realizado por Santa Germana quando os pães transformaram-se num lindo buquê de flores.

Milagres como esses poderiam ser uma forma de Santa Germana dar-se conta de sua própria grandeza e orgulhar-se dela. Não obstante, ela foi um modelo indubitável de humildade, mesmo após a enorme fama de santidade intensamente propagada a seu respeito.

Despretensão, a condição para a santidade

Aos familiares dela não foi dado ver as qualidades extraordinárias que possuía. Mesmo consciente dos milagres que lhe eram atribuídos, a madrasta a perseguiu maldosamente por uma suspeita de roubo, absolutamente infundada.

Mas Germana, possuidora de extraordinário equilíbrio, preferiu permanecer em seu estado a pedir a cura que a privaria de suas humilhações, fazendo possivelmente com que não tivesse alcançado a extraordinária santidade a que chegou. Bem poderia ela ter-se utilizado dos milagres para dizer a sua madrasta: “Não percebe quem sou, e que valho sozinha mais do que toda a aldeia de Pribac e as redondezas somadas? Em determinado momento a senhora pode vir a precisar de mim para algum milagre; porém, tratando-me dessa forma, jamais lhe atenderei. E quando adoecer gravemente? Aqui está quem poderá curá-la. Portanto, respeite-me”.

Ela poderia intimidar por essa forma o ambiente em que vivia, pois todos se curvariam ante suas ameaças. Entretanto, continuando a aceitar todas as humilhações que de início lhe foram impostas pela Providência, Santa Germana recusou o aroma inebriante de seus próprios milagres e das homenagens que lhe eram prestadas, para manter-se fiel até o fim.

Protetora do Papado

Pode-se imaginar essa notícia penetrando nos palácios, nos conventos, nas rodas da alta burguesia, e transmitindo a todos os que ouviam, um convite a confiar nas orações dela. Mas vinha juntamente uma afirmação: “É ouvida por Deus a oração daquele que não tem vanglória, pois ela afasta o homem de Deus. Se te queres unir a Deus, abandona a vanglória”.

Uma mensagem como esta, era uma pregação da humildade contrária ao orgulho característico do século XVI, uma pregação da virgindade contrária à concupiscência efervescente que haveria de culminar na Revolução Francesa.

“Germana foi invocada a favor de Pio VII e mais tarde de Pio IX. A dupla libertação desses dois Soberanos Pontífices seguiu-se de perto ao pedido que foi a ela feito”.

Socorrendo a Igreja em terríveis aflições, pedindo por Pio VII e posteriormente por Pio IX,  Santa Germana transforma-se em protetora da mais gloriosa das instituições existentes na Terra: o Papado. Essa foi a grandeza à qual Deus elevou-a.

Mansidão ou… combatividade?

Para o católico de nossos tempos há alguma lição a ser tirada da edificante vida de Santa Germana?

Adaptadas às circunstâncias do mundo de hoje, devemos observar as mesmas virtudes que por ela foram praticadas. O católico de nossos dias deve ser altivo, batalhador, cônscio de seu valor, não esquecendo, porém, de representar perante seu século as virtudes de Santa Germana Cousin. Muitas vezes negado, malvisto, isolado e perseguido, ele vê constituírem-se em torno de si as inimizades mais gratuitas, enquanto desfazem-se as mais fundadas amizades. Ele tem de lutar de peito aberto contra as potências de sua época, remando contra a maré montante dos vícios e desvios de seu tempo. Não raras vezes torna-se ele objeto de desprezo, senão de ódio. Também Santa Germana era objeto de injúrias pessoais, as quais ela humildemente aceitou.

Ante as injustiças particulares recebidas, devemos recebê-las com mansidão. Entretanto, quando a glória de Deus é tocada, devemos defendê-la como leões. E ao tratar-se de problemas do amor-próprio ou de reivindicações pessoais, devemos ser mansos como cordeiros.

Teremos imitado, então, a nosso modo, as virtudes de Santa Germana, ora inclinando a cabeça perante as humilhações, ora defendendo a glória de Deus como guerreiros.

A pastora transformada em rainha

“Uma noite, dois religiosos surpreendidos pela escuridão se viram obrigados a deter-se numa floresta vizinha para esperar lá a aurora. No meio da noite eles foram acordados por cânticos admiráveis, os seus olhos se abriram, e eles viram uma luz das mais esplendorosas dissipar as trevas. Em alguns instantes essa luz se tornou mais brilhante que o sol. Rodeado por essa luz, um conjunto de virgens apareceu por cima da floresta; elas se dirigiam para Pribac, cantando cânticos maravilhosos. A visão não desapareceu, senão para aparecer uns instantes depois; eram as mesmas virgens que vinham em sentido oposto; elas circundavam uma nova companheira que tinha acabado de juntar-se a elas e que levava sobre a fronte uma coroa de flores nova. Desaparecendo a visão uma segunda vez, deixou os religiosos encantados e conversando sobre o que eles tinham visto e ouvido. 

“Na manhã seguinte, Lourenço Cousin, pai dela, não a vendo aparecer como de costume — Germana sempre matinal e ativa — foi ao alto da escada, chamando-a. Aproximou-se e a pastora dormia o seu último sono.

“Havia quarenta anos que o corpo de Germana repousava no campo santo. O coveiro de Pribac, tendo um dia que preparar uma fossa, se pôs ao trabalho no mesmo lugar onde tinha escavado a da Bem-Aventurada. No primeiro golpe de pá ele levantou uma pedra, mas imediatamente se deteve e deitou um brado; ele tinha diante de si um cadáver que parecia todo recente e o instrumento tinha penetrado na carne incorrupta do cadáver.

“Hoje, seus restos mortais são venerados num relicário cercado de ouro e de luzes. Mais de quatrocentos milagres foram atestados por processos verbais              

Amigas do homem, as belas e poéticas florestas da França foram o ambiente escolhido pela Providência para o lindo milagre da aparição dos coros das virgens.

Dois frades de hábito, sandálias, bordão, com alvas e longas barbas a emoldurar-lhes o rosto, realizavam uma longa viagem a pé, rezando recolhidamente. Exauridos pelo esforço, ao cair da noite dormem na própria floresta, tranquilos, à espera de que venha o dia. Alinhados no chão, protegidos pelas árvores, repousam o merecido sono dos justos.

Aparece então uma luz extraordinária nos primeiros raios da manhã. Eles despertam e indagam-se: o que será? Veem passar uma névoa como que de cristal: é um coro de virgens que atravessam a floresta sem dificuldades em ultrapassar os obstáculos materiais, e desaparecem sobre as montanhas. Passado algum tempo as virgens voltam, trazendo uma a mais, agora sem escrofulose e sem humilhações. E, como nos contos de fada, a pastora transformou-se em rainha, cercada por todas as outras princesas. Caminham alegres para o Céu para receber então a coroa de glória.

“Deposuit potentes de sede et exaltavit humiles” , o orgulho fora castigado, enquanto a humildade ia ser coroada no Céu.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/8/1973)

 

São João Batista

Suscitado para predispor as almas a receberem o Divino Salvador, São João Batista “abatia as colinas e preenchia os vales,,, ou seja, calcava aos pés o orgulho e eliminava a impureza. Foi, além disso, um magnífico exemplo de destemor, ao exprobrar a impiedade e o pecado do rei Herodes. Esse homem que de tal modo abatia a sensualidade, lutava contra o orgulho,  cortava o caminho aos ímpios e servia de modelo de penitência, era digno de ser o precursor de Nosso Senhor Jesus Cristo!

Santo Antônio

A hagiografia e iconografia católicas nos apresenta Santo Antônio de Pádua como um varão de extrema placidez e de uma ordenação de alma que se reflete, até mesmo, nas harmoniosas dobras de seu hábito franciscano.

A invariável compostura da veste é uma espécie de sismógrafo da ordenação de sua mente extraordinária. Rosto quase imberbe, nariz de um adunco muito bonito, com algo de ave de rapina. No arcado das sobrancelhas, uma delicadeza, uma precisão e uma força que se encontram expressas, sobretudo, no olhar. São olhos de quem já passou por todos  os desencantos, de quem conhece o pecado original e seus efeitos, assim como a Satanás, suas pompas e suas obras.

Tudo está analisado com raro discernimento. Na ponta dos lábios delgados, tem ele prontas as respostas que fizeram dele o magnífico defensor da fé contra as heresias. Em toda a sua pessoa  resplandece a pureza, a castidade e a serenidade do santo que tanto realizou a favor da glória de Deus.

Plinio Corrêa de Oliveira

Arca do Testamento e Martelo dos hereges

Uma deformada devoção a Santo Antônio — favorecida pelas imagens dele muito difundidas — o apresenta como bobinho, casamenteiro, festeiro. Entretanto, o verdadeiro Santo Antônio histórico foi o maior conhecedor da Sagrada Escritura em seu tempo, pregador extraordinário e grande polemista que derrotava os hereges.

 

No dia 13 de junho se comemora a festa de Santo Antônio de Pádua, Confessor e Doutor da Igreja. Chamado “Arca do Testamento” e “Martelo dos hereges”. Franciscano. Século XIII.

Fisionomia séria, olhar imperioso e majestoso

Nesse dia as igrejas em todas as nações do Ocidente, pelo menos, enchem-se de fiéis para comemorar a festa de Santo Antônio de Pádua. E por toda parte as imagens de Santo Antônio estão sendo expostas para objeto da veneração dos fiéis.

Este fato me faz lembrar que, estando em 1950 em Pádua, tive ocasião de me documentar a respeito de como era Santo Antônio. E na Basílica de Pádua se mostra um quadro pintado por Giotto, que passa por ser o mais próximo, mais provavelmente representativo da pessoa de Santo Antônio. E se trata, então, de uma pessoa de corpo hercúleo, pescoço taurino, forte, de expressão fisionômica séria, olhar imperioso e majestoso.

Comprei, então, algumas fotografias dessa imagem. As fotografias formavam um maçozinho, que se vendia na entrada da igreja.

E, ao mesmo tempo, comprei uma estampa retirada de uma das pilhas iguais, que eram vendidas às pessoas que iam à basílica, e que representava Santo Antônio não conforme a probabilidade histórica do quadro de Giotto, mas de acordo com uma concepção que figura nas imagens comuns.

Essa estampa representava um homenzinho imberbe, coradinho, com o Menino Jesus no braço, com um ar de quem não entende muito o que está fazendo com o Divino Infante; o Menino Jesus também com uma fisionomia de quem não entende muito o que está fazendo no braço de Santo Antônio, sorrindo os dois, um para o outro, como a dizer: “Desculpe, aqui deve haver algum equívoco. Vamos nos aturar algum tempo.”

Na fisionomia de Santo Antônio, nada havia que falasse do Doutor da Igreja, nada que representasse o homem tido como o maior conhecedor do Novo e do Antigo Testamento, no tempo dele, porque ele sabia as passagens mais raras, mais excepcionais, mais ignotas de todos e tirava delas efeitos de pregação extraordinários. E Santo Antônio é conhecido como o “Martelo dos hereges”, como polemista, homem capaz de discutir, de entrar em debate com os hereges, de achatá-los. Não havia ninguém como ele, e tudo isso coberto ainda com os milagres que completavam sua pregação e faziam com que ele fosse o terror dos hereges.

Tudo isso passou e ficou um Santo Antônio, eu quase diria, ecumênico: bonzinho, bobinho, casamenteiro, festeiro, que arranja questõesinhas. Quer dizer, o verdadeiro Santo Antônio histórico, como se encontra no Céu e como é apontado pela Igreja para nosso modelo, desapareceu quase completamente, para ficar uma imagem que dá apenas um aspecto de Santo Antônio: os muitos favores e graças que ele concede, mas representando uma figura física que nada tem a ver com ele e, sobretudo, com a sua fisionomia moral.

Conquista Orã e defende o Rio de Janeiro

Santo Antônio, além de ser o “Martelo dos hereges” e a “Arca do Testamento”, é venerado como o Patrono das Forças Armadas. E a razão disso, entre outras, está no fato de que Santo Antônio, em certa ocasião, foi objeto de um ato de devoção especial da parte de um almirante espanhol. Uma esquadra espanhola sitiava a cidade de Orã, na Argélia, e não havia meio de conseguir resultado eficaz. Então, o almirante dirigiu-se a uma imagem de Santo Antônio, colocou o chapéu de almirante sobre ela, deu-lhe as insígnias de comando e pediu-lhe que investisse contra Orã. Os mouros fugiram inesperadamente e, interrogados, disseram que tinha estado entre eles um frade vestido com o chapéu do almirante e que tinha ameaçado Orã com o fogo do Céu, e por causa disso, eles tinham achado mais prudente ir embora.

Este aspecto do “Martelo dos hereges”, que ao mesmo tempo incute terror aos mouros e se apresenta a uma cidade infiel ameaçando-a com o fogo do Céu, tudo isso foi abolido. Não se conhecem e não se ressaltam esses aspectos nessa espécie de devoção milagreira que se tem a ele. Vemos, por aí, a lamentável deterioração da devoção aos Santos em nossos dias. Quer dizer, como eles já não representam, nessa legenda popular criada em torno deles, a verdadeira santidade.

Quem, por exemplo, comentará a respeito da vida de Santo Antônio o seguinte fato ocorrido no Rio de Janeiro?

O Rio de Janeiro encontrava-se cercado pelos calvinistas franceses e estava quase completamente rendido, pois a cidade já não tinha meios de resistir. Os frades, então, tomaram a imagem de Santo Antônio, desceram com ela do morro, colocaram numa pilastra que se encontrava ali, e a simples exibição da imagem, de um modo maravilhoso, comunicou tal ardor na cidade que grande número de jovens se alistaram. Foi possível reorganizar a resistência aos franceses que, depois de pouco tempo, foram embora.

De maneira que o Rio de Janeiro não se tornou calvinista, e talvez com repercussão em toda a História da América Latina e, consequentemente, em toda a História da Igreja, por causa dessa ação simbólica da presença maravilhosa de Santo Antônio.

Missão de mostrar o lado combativo, polêmico e contrarrevolucionário de cada Santo

O fato de episódios como esses não serem contados nem comentados leva-nos a verificar duas realidades: em primeiro lugar, como é lamentável essa torção que a vida dos Santos sofreu.

Entretanto, por outro lado, como é admirável a vocação dada por Nossa Senhora àqueles que têm, por missão, restaurar todas essas coisas e mostrar os próprios Santos no seu aspecto combativo, guerreiro, polêmico e contrarrevolucionário, que a Revolução tanto gostaria de esconder e disfarçar.

Nessas condições, devemos pedir a Santo Antônio uma graça especial: Ele que soube ameaçar a cidade de Orã com o fogo do céu, nos faça esse favor de se apresentar em algum lugar do mundo, e ali nos obter, em determinado momento, uma graça que tenho em mente, mas prefiro não dizer qual é.

Esta graça é o melhor pedido que podemos fazer a Santo Antônio por ocasião de sua festa.         v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/6/1965)

Glorificada em socorrer sempre

Na invocação de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, o que se enaltece especialmente não é Maria Santíssima enquanto nos auxiliando com muita frequência, liberalidade e ternura, mas o fato de que esse auxílio é perpétuo.

Por pior que façamos, por mais que abusemos, por mais incríveis que sejam nossas ingratidões, por mais agudo que seja o risco, por mais extraordinário que seja o milagre implorado, por mais extremo e improvável que seja o auxílio pedido, desde que não seja uma coisa má em si, a Mãe do Perpétuo Socorro nos atenderá.
É, portanto, a Mãe que se glorifica em atender sempre, em acudir sempre, em acolher sempre, de maneira a não haver uma hipótese possível em que nós, rezando para Ela, não sejamos socorridos.

Ela pode até atrasar o momento de conceder aquilo que pedimos, mas é para nos dar, depois, o cêntuplo, vindo a nós com as mãos carregadas com dons multiplicados.
Felizes aqueles que Nossa Senhora demora em atender!

(Extraído de conferência de 18/11/1964)

Tesouro da verdadeira Igreja

Célebre por sua imponente beleza e extraordinário significado para a piedade católica, a Basílica de Santo Antônio de Pádua reluz como precioso tesouro da arquitetura engendrada pela Igreja.

Ao considerá-la, vem-me ao espírito, uma vez mais, a comparação com o perpétuo objeto de meu enlevo, de meu encanto e entusiasmo: o mar. Nele, como já tive ocasião de dizer, sempre me agradou contemplar as inúmeras formas de pulcritude com que Deus o criou, os diversos estados em que ele se apresenta a nós, desde a extrema calma até  a extrema agitação, com todas as gamas intermediárias. Ora é o ordenado das grandes ondas que avançam em ofensiva para a terra, sem tumulto nem descabelo, como um  ataque em regra de uma cavalaria nobre. Por vezes as ondas nem sequer arrebentam, apenas se avolumam e se estendem; outras, pelo contrário, estouram na praia ou nos  rochedos, e há um gáudio de gotas pelo ar, bailando alegremente, como se executassem uma lendária dança da vitória. Ora me compraz ver o mar inteiramente calmo, quase  imóvel.

Dir-se-ia que ele se encontra de tal maneira absorto na contemplação do céu, para o qual olha a todo momento, que nem pensa em si mesmo… De repente, a partir de um  ponto qualquer daquela imensidão líquida, algo começa a se mover. Dali a pouco é um vagalhão, é um tumulto aquático, e é outro assalto contra a terra. Dessa vez, porém, as  ondas não se aproximam em fileiras ordenadas, mas parecem vir se empurrando e se acotovelando, cada qual no desejo de tomar a dianteira e conquistar a terra mais  depressa. É a beleza da variedade, do inesperado, do quase susto, do imprevisto, que tem seu encanto próprio. E é essa sucessão de aspectos que torna o mar tão entretido.

Ora, a arquitetura, e especialmente a arquitetura religiosa, pode ter uma variedade de feitios análoga aos movimentos do mar. Será, por exemplo, a calma e a estabilidade de  uma Catedral de Notre-Dame de Paris: irrepreensível, ordenada, perfeita, lindíssima, cheia de lógica, de poesia e candura.

Outras vezes, a arquitetura borbulha e apresenta aspectos meio inesperadas. E é o próprio movimento da alma religiosa, nos seus entusiasmos, nos seus êxtases, nos seus  impulsos, na sua generosidade, nos lances ‘a la’ Santa Teresa de Jesus, ‘a la’ Santo Inácio de Loyola, que nos deixam desconcertados diante de sua grandeza. E isso é o que se  nota no jogo das várias cúpulas e minaretes da Basílica de Santa Antônio de Pádua, borbulhantes como o movediço das ondas do mar.

Olhando-se para o teto da igreja quase se esquece do corpo do edifício. Tem-se a impressão de que todo o resto existe como uma bandeja para carregar bem alto o  movimento musical das coberturas. E assim como podemos imaginar uma melodia num “crescendo” em que as notas se vão sucedendo alegremente umas às outras, assim nos parece que esses minaretes e cúpulas estão jubilosos à espera da hora em que sejam separados da base para poderem subir em direção ao céu. E que essa ansiedade do maravilhoso, uma ansiedade festiva, feliz, é apenas contida por uma corda que mão caridosa a qualquer instante vai cortar.

Noutra analogia com o mar, do mesmo modo como este é também rico e esplendoroso nos mistérios de suas profundezas, igualmente o interior da Basílica de Pádua é um imenso escrínio de tesouros espirituais e artísticos. É, sobretudo, o ambiente criado pela presença do Santíssimo Sacramento, pelas relíquias do grande Santo franciscano, pelas graças de que elas são veículo e que impregnam todo o recinto da igreja, estimulando e condicionando a piedade dos fiéis que ali rezam e se recolhem com edificante  devoção.

Além disso, a profusão de maravilhas que ali deixou a arte cristã, entre abóbadas, colunas e capitéis esplendidamente trabalhados; capelas, altares e murais em que se pode admirar o talento de mestres imortais, e um grande número de pinturas e imagens que datam de diferentes épocas da Cristandade, fazem com que a Basílica pareça um compêndio da história da piedade católica.

Todos esses fatores — beleza arquitetônica, presença do Coração Eucarístico de Jesus, relíquias de Santo Antônio de Pádua, imagens especialmente abençoadas, fiéis que recebem graças e as deixam transpirar de algum modo na sua maneira de ser, de andar e de rezar — concorrem, numa igreja como a Basílica de Pádua, com particular intensidade para conferir uma impressão única de piedade autêntica, e uma sensação de presença verdadeira da verdadeira Igreja, a Esposa Mística de nosso Divino Redentor.

Mártir vigoroso, varonil, de alma inquebrantável

Temos para comentar uma ficha biográfica de Santo Artêmio, mártir. Comandante das forças imperiais, ocupou, sob Constantino Magno, postos de honra no exército. Juliano, o apóstata, que levantara grande perseguição contra os cristãos, mandou degolá-lo. Sobre ele, diz o Padre Rohrbacher1:

Governador do Egito e da Síria

Enquanto os dois sacerdotes, Eugênio e Macário, eram supliciados, um oficial, que permanecera ao lado do imperador, levantou-se e se dirigiu a ele:

“Por que torturas tão cruelmente esses santos homens consagrados a Deus? Não vos esqueçais de que também sois homem, sujeito às mesmas misérias. Se Deus vos constituiu imperador, se recebestes de Deus o império, acautelai-vos para que satanás, que pediu e obteve permissão para tentar Jó, não tenha pedido e obtido permissão para usar-vos contra nós, a fim de passar pelo crivo o trigo de Cristo e semear o joio por toda parte. Mas sua empresa resultará vã; não tem o mesmo poder antigo. Desde que Cristo veio e foi erguido na Cruz, caiu o orgulho dos demônios, seu poder foi calcado aos pés. Não vos iludais, ó imperador, não persigais, por amor aos demônios, os cristãos protegidos por Deus, pois o poder de Cristo é invencível. Vós mesmo vos assegurastes disto.”

Ao ouvir essas palavras, Juliano, fora de si, exclamou: “Quem é o ímpio que ousa usar semelhante linguagem no nosso tribunal?”

Um meirinho respondeu: “Senhor, é o Duque de Alexandria do Egito.”

Com efeito, era Artêmio Governador do Egito e também da Síria havia longos anos, e que acabava de trazer para Juliano as tropas de duas províncias para servirem na guerra contra a Pérsia.

Juliano prosseguiu: “Como? É Artêmio? Ordeno que o despojem de suas dignidades e de suas roupas, e que seja imediatamente castigado pelas palavras que acaba de pronunciar.”

Depois de despido, o mártir teve as mãos e os pés amarrados com cordas pelos algozes; estes o estenderam no chão e açoitaram-lhe o ventre e as costas com nervos de boi, durante um espaço de tempo tão longo que foram obrigados a se alternarem quatro vezes. Contudo, Artêmio não soltou um único suspiro, nem seu rosto se alterou. Dir-se-ia que não era ele quem sofria, mas outra pessoa qualquer.

Todos os assistentes estavam surpreendidos, o próprio Juliano não escondia a admiração.

A idolatria seria irremediavelmente destruída

Levados para a prisão, os três mártires para ela se dirigiram entoando louvores a Deus. Artêmio dizia a si mesmo: “Agora os estigmas de Cristo já estão impressos no teu corpo; só falta dares tua alma, tua vida, com o resto do teu sangue.”

Depois de muitas tentativas infrutíferas, por meio de torturas e argumentos, para levar Santo Artêmio a apostatar, Juliano condenou-o à decapitação. Antes da execução, o mártir pediu momentos para orar. Agradeceu a Deus a graça de sofrer pela glória de seu divino Nome e suplicou-Lhe que Se compadecesse de sua Igreja, ameaçada com terríveis calamidades pelo apóstata Juliano:

“Vossos altares serão destruídos, vosso santuário profanado, o sangue de vossa aliança menosprezado por causa de nossos pecados e das blasfêmias que Ario vomitou contra Vós, Filho Unigênito, e contra vosso Espírito Santo, separando-Vos da consubstancialidade do Pai e supondo-Vos estranho à sua natureza; afirmando que sois criatura, Vós, o Autor de toda a Criação; subordinando-Vos ao tempo, Vós que fizestes os séculos, e dizendo: ‘Havia o Filho que não era’, chamando-Vos de filho da vontade.”

Depois de dobrar três vezes o joelho voltado para o Oriente, novamente o mártir orou, dizendo:

“Deus de Deus, só de um só, Rei de Rei, Vós que estais sentado nos Céus à direita de Deus Pai que Vos gerou, Vós que viestes à Terra para a salvação de todos nós, Vós que sois a coroa dos que combatem pela piedade, ouvi favoravelmente vosso humilde e indigno servo, recebei a minha alma em paz.”

Uma voz respondeu-lhe do Céu que sua oração seria ouvida; além disso, o imperador apóstata pereceria na Pérsia, que teria um sucessor cristão  e que a idolatria seria irremediavelmente destruída. Depois de ouvir essas palavras, cheio de alegria, Artêmio apresentou a cabeça à espada.

Católico combativo que agride, toma a iniciativa e interpela

Vamos recompor um pouco a cena para dar todo o relevo à narração. Imaginemos num circo romano uma tribuna imperial alta, com colunas, coberta por um tecido precioso, o imperador sentado numa espécie de trono, naturalmente com todo o pessoal de serviço por detrás dele, leques se agitando, ‘flabelli’ para impedir que as moscas pousassem nele, uma série de dignatários dentro da tribuna, depois o povo lotando todo o resto do teatro. Provavelmente, como eram os espetáculos, quer dizer, com as arquibancadas necessárias para os nobres, depois para os burgueses e a plebe. Eu creio que já não havia mais a bancada das vestais, porque estas se tinham extinguido. Ao lado, um oficial revestido do traje próprio aos oficiais romanos, com capacete, couraça, armas, junto ao imperador. Esse oficial é um homem de alta categoria. O livro fala em duque. É um anacronismo, pois não havia ainda duques, mas devia ser um chefe de duas importantíssimas unidades do império romano, que vinha a Roma trazendo tropas para serem utilizadas na luta contra a Pérsia. Ele estava, portanto, na tribuna imperial, quiçá muito mais como uma distinção do que como guarda do corpo do imperador. Era um hóspede de honra.

Enquanto dois sacerdotes estão sendo martirizados e o povo olhando para aquilo com uma alegria própria de hienas e de chacais, em certo momento esse homem se levanta: é Artêmio que dirige uma apóstrofe magnífica ao imperador que, embora sendo um indivíduo odiento e impulsivo, não profere uma só palavra e deixa-o dizendo quanto queria.

As palavras de Santo Artêmio mostram bem o caráter de católico combativo que não se limita a deixar-se matar, mas que agride, toma a iniciativa, interpela . O resultado é que, ao invés de dar razões, o imperador pergunta quem é ele . Informado, manda torturá-lo para ver se apostata . Não dando certo a tortura, ordena matá-lo.

A principal força da heresia e do mal está no demônio

A apóstrofe do Santo mártir merece ser considerada um pouco mais detidamente .

Na primeira parte ele pergunta ao imperador qual a razão pela qual ele tortura esses homens santos. Sabendo que o imperador não tem motivo para os torturar, Santo Artêmio o adverte que tenha cuidado porque ele, Juliano, está sendo instrumento de satanás para perseguir a Igreja Católica. Pondera que não adianta persegui-la, porque o poder dos demônios foi quebrado depois de Nosso Senhor Jesus Cristo ter sido elevado ao alto, quer dizer, crucificado. O poder das trevas está quebrado e toda a obra visando conter o Cristianismo fracassará, porque o demônio não tem mais a força antiga.

Vejam a bonita concepção presente por detrás disso: a principal força da heresia e do mal está no demônio cuja força, uma vez quebrada, está também rompida a força do mal. Essa é uma concepção eminentemente nossa, e muito profunda. Depois ele prossegue afirmando que o imperador está fazendo uma obra inútil, além de injusta, porque ele vai ser derrotado.

Então o imperador intervém e manda prendê-lo.

Poder-se-ia dizer que outra cena se abre nesse ou em outro circo romano: Santo Artêmio está sendo martirizado e faz uma oração. Uma voz do Céu lhe diz algo. Podemos imaginar o silêncio na arquibancada e, na arena, aquele homem vigoroso, varonil, de alma inquebrantável pede licença para fazer uma prece, e a recita em voz alta.

O esquema da oração  de  Santo Artêmio é o seguinte: ele declara que a perseguição sofrida pela Igreja é um castigo por causa da heresia de Ario. Então ele faz um duríssimo ato de increpação contra a heresia ariana. Qual é o fundamento dessa concepção dele? Como se pode compreender que a Igreja esteja sofrendo castigo por uma heresia condenada por ela?

A resposta é muito simples: a Igreja a condenou a duras penas; a massa quase completa dos católicos ficou ariana. São Jerônimo, se não me engano, teve essa expressão: o mundo, de repente, acordou e percebeu que se tinha tornado ariano. Para que o arianismo fosse derrotado foi necessária uma luta tremenda, durante a qual os Santos foram perseguidos, verteu-se muito sangue e o mundo não se converteu inteiramente dessa heresia. Depois apareceu o semiarianismo, que era uma tentativa de restaurar a heresia de Ario.

Auxílio para os católicos dos últimos tempos

Por fim, a voz vinda do Céu lhe assegura a morte de Juliano que seria sucedido por um imperador cris tão, e a idolatria irremediavelmente  serviriam de estímulo para pessoas e destruída. Quer dizer, apesar de tudo, vinha o castigo purificador. Poderia ainda haver outras crises, mas a idolatria não renasceria mais nações, as quais ele nunca imaginaria que pudessem vir a existir.

Assim são as coisas na Santa Igreja: nós sofremos e lutamos hoje, mas tendo ouvido isso, Santo Artêmio fez mais ou menos como Simeão, que disse: “Senhor, agora podeis mandar em paz o vosso servo, porque meus olhos viram o Salvador” (cf. Lc 2, 29-30). O mártir certamente pensou: “Senhor, agora podeis mandar em paz o vosso servo, porque estes ouvidos ouviram o anúncio da derrota daquele que é a causa de todos os flagelos, e a afirmação de vossa vitória.” Inclinou a cabeça e foi decapitado. Morreu em paz.

O que Santo Artêmio não viu nem soube é que tantos séculos depois o suplício e a varonilidade dele não sabemos de que auxílio esses sofrimentos serão para os católicos dos últimos tempos, cuja aflição será suprema quando, afinal de contas, estiverem esperando a hora de Nosso Senhor chegar. Talvez eles meditarão nas nossas lutas, nos nossos sofrimentos, na nossa espera pela realização das promessas de Fátima, e encontrarão no que fazemos um conforto que nós mesmos não sentimos, mas que as almas deles receberão pela nossa ação.    v

 

(Extraído de conferência de 19/10/1966)

Santa Edeltrude Vigor e beleza da alma medieval

Como nos mostra Dr. Plinio, a rainha Santa Edeltrude e suas irmãs — também canonizadas — são luminoso exemplo do que foi outrora a “Ilha dos Santos” (o atual Reino Unido), no alvorecer de uma era onde a virtude heróica se fazia freqüente até nos mais altos degraus da sociedade, a partir dos quais se estendia às outras camadas sociais, dando forma àquele conjunto chamado de Cristandade.

 

No dia 23 de junho a Igreja lembra Santa Edeltrude, Rainha e virgem do século VII. Filha de um monarca do Leste Inglês — um dos sete reinos que constituíam a Inglaterra de então — teve ela três irmãs santas: Saxburga, Edilburga e Virtburga. Como sói acontecer naquela época povoada de heróis da Fé, a virtude resplandecia no seio das famílias, e muitos parentes possuíam em comum, não apenas o sangue, mas também a santidade. Neste caso, poder-se-ia construir um esplêndido templo católico no qual houvesse quatro belos altares em honra dessas irmãs bem-aventuradas.

Ousadia e fundação de mosteiro

A respeito de Santa Edeltrude, alguns autores nos apresentam os seguintes dados biográficos:

Nasceu provavelmente por volta de 630 e morreu em Ely, a 23 de junho de 679. Quando ainda muito jovem, foi dada em casamento por seu pai, Anna, Rei de East Anglia, a um certo Tonbert, príncipe a ele subordinado. Deste primeiro marido, Edeltrude recebeu como dote algumas terras na localidade conhecida como a Ilha de Ely.

A santa viveu cinco anos com Tonbert em perfeita continência. Após a morte prematura do príncipe, viveu um pe­río­do de paz com sua vocação religiosa. Seu pai, entretanto, quis que ela se casasse novamente e lhe arranjou a união com Egfrido, filho e herdeiro de Oswy, Rei da Nortúmbria.

 De seu segundo esposo, que consta ter então apenas 14 anos de idade, recebeu mais terras, desta feita em Hexham. Por meio de São Wilfrido (634-709), monge beneditino e Bispo de York, cedeu ditas propriedades para a fundação do mosteiro de Santo André. São Wilfrido tornou-se amigo e guia espiritual de Santa Edeltrude, aprovando e lhe incentivando a guarda da virgindade. Porém, foi a ele que Egfrido recorreu, quando sucedeu seu pai, para fazer valer seus direitos maritais contra a vocação religiosa de Edeltrude.

Primeiramente, o bispo conseguiu persuadir Egfrido a deixá-la viver por certo tempo em sossego, como freira no convento de Coldingham, fundado pela tia dela, Santa Ebba. Mas ante o perigo iminente de ser levada à força pelo rei, Edeltrude fugiu em direção ao sul do país, com apenas duas companheiras, buscando suas terras em Ely. Ali, favorecida por milagres e misericordiosas intervenções divinas, num lugar cercado de pântanos, areias movediças e pelas águas do rio Ouse, iniciou a fundação do mosteiro de Ely.

Como o lugar ficava na região onde Edeltrude nascera, seus parentes de sangue real lhe forneceram os meios necessários para a execução de seus planos. São Wilfrido ainda não havia retornado de Roma, onde lograra obter do Papa Bento II privilégios extraordinários para aquela fundação, quando Edeltrude morreu vítima de uma epidemia a qual ela mesma havia predito.

Por muitos séculos, o corpo da santa foi objeto de devota veneração na famosa catedral de Ely, construída precisamente no local do antigo mosteiro fundado por ela. O atual edifício católico é considerado uma magnífica mostra dos vários estilos góticos, acrescentados durante diversas renovações desde o século IX, sendo que a última parte — o famoso octógono — foi adicionada em 1400.

Uma das mãos da santa é atualmente venerada na igreja católica de Santa Edeltrude, na Ely Place, em Londres. Trata-se do mais antigo templo católico da capital britânica, e durante a Idade Média era considerado uma espécie de feudo dos bispos de Ely, herdeiros daquelas terras de Santa Edeltrude.

Na Idade Média, ao lado da rudeza, autêntica virtude

Percebemos aqui um flash(1) da Inglaterra primitiva, bem como da aurora da Idade Média que contém algo de selvagem e, ao mesmo tempo, de extraordinariamente sobrenatural. Este contraste encerra, a meu ver, uma intensa beleza.

Após a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, os povos que surgem têm príncipes e princesas evidentemente com resquícios de barbárie. Quanto ao aspecto, ao porte, ao estilo, não podermos imaginar Santa Edeltrude e suas três irmãs semelhantes às filhas de Luís XV, pintadas por Nattier, sobre um fundo azul claro: Madames Henriette e Adélaïde, frágeis, como se fossem de porcelana, quase evanescentes, vestidas com sedas vaporosas. Devemos figurá-las como damas vigorosas, cujas mãos estavam afeitas a árduos trabalhos domésticos, embora fossem orgânica e autenticamente princesas de grande valor nos países onde surgiam.

Cumpre salientar, aliás, que elas eram por assim dizer os berços de posteriores dinastias, e seus povos, os pontos de partida de futuras civilizações. Como lembrei acima, habitava ali certa grandeza e a semente de uma alta santidade. Haja vista a confluência de muitos bem-aventurados: somente na corte da nossa biografada encontravam-se ao mesmo tempo quatro santas, ademais de um diretor espiritual igualmente santo! Além disso, uma disseminação tal da virtude que foi possível a Santa Edeltrude convencer aos seus dois sucessivos maridos — um príncipe e um rei — de guardarem a continência na vida conjugal.

Admirável perseverança

Juntamente com tais virtudes, não se pode ignorar algumas manifestações de primitivismo. Por exemplo, uma princesa que deixa seu esposo por este querer romper o voto de castidade, refugia-se num convento e o marido não ousa ir atrás dela nem invadir o recinto sagrado, o que, naquele tempo, era julgado um fato explicável. Hoje seria considerado um escândalo, com notícias espalhafatosas nos jornais, etc.

Seja como for, é admirável a perseverança de Santa Edeltrude na prática da castidade perfeita. O abandono da vida da corte, com todas as suas glórias, para adotar o estado religioso, a sabedoria com que ela governou seu mosteiro (num país então pequeno, isso representava algo muito importante para a própria vida da nação), encaminhando as religiosas para o Céu, tudo isso forma um conjunto de traços fisionômicos iluminados pela santidade, e justifica plenamente a devoção que os fiéis possam ter para com ela.

Assim, nada mais aconselhável e rico em benefícios para nossa alma do que nos recomendarmos às orações de Santa Edeltrude, Rainha e virgem, no dia de sua festa.  v

 

1) Sobre o termo flash, cf. Dr. Plinio número 55.

 

 

Coração de Maria: Imaculado e Sapiencial

Maria Santíssima é verdadeiramente Mãe de uma bondade incomensurável. Seu desvelo para conosco excede a todo amor conhecido, pois não apenas é generoso, terno, envolvente e até heroico, mas parece ultrapassar todos os limites.

Em Fátima, mesmo quando se referiu às punições reservadas para o mundo impenitente, a Mãe de Deus revestiu suas admoestações de profunda tristeza, demonstrando também, por seu modo de se expressar, uma grande pena dos “pobres pecadores”.

Apesar do anúncio da salutar punição, Nossa Senhora encontra-se pronta a nos obter de seu Divino Filho o perdão.

A condição é que utilizemos os meios por Ela indicados: o aumento na devoção a Ela, a oração e a penitência.

Não há por que estranhar o caráter condicional dessa promessa de perdão, vinda de Mãe tão bondosa e misericordiosa. Pois, uma vez que alguém está ameaçado de castigo por causa de seus pecados, o modo de ser poupado é deixar de cometê-los.

Devoção ao Imaculado Coração de Maria

Para salvar as almas “dos pobres pecadores, Deus quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Imaculado Coração” – dizia a Santíssima Virgem na aparição de 13 de julho de 1917, ao tratar do cerne de sua mensagem.

Porém, não foi esta a única ocasião em que Nossa Senhora se referiu à importância dessa devoção. Mencionou-a diversas outras vezes nas suas mensagens, e tal insistência não pode deixar de ser seriamente considerada.

Quem se tomar de verdadeiro e sincero amor por essa boa Mãe, puríssima e inigualável, e pôr em prática a devoção ao seu Imaculado Coração, será favorecido por seu contínuo amparo.

Por maiores que tenham sido os pecados cometidos, Nossa Senhora intercederá pelo fiel devoto junto a seu Divino Filho, obtendo-lhe todas as graças de emenda de vida e perseverança no bom caminho.

A devoção ao Imaculado Coração de Maria é, portanto, um dos principais remédios para a ruína contemporânea.

Coração Imaculado, cheio de Sabedoria

O Coração de Maria Santíssima, ou seja, sua alma, é soberanamente elevado, soberanamente grande, soberanamente sério, soberanamente profundo, porque é sapiencial.

Ela é o vaso de eleição no qual pousou o Espírito Santo, para nele gerar a Nosso Senhor Jesus Cristo. E o único hino que conhecemos como proferido por Nossa Senhora em sua vida terrena, é uma verdadeira maravilha de sabedoria: o “Magnificat”.

O “Magnificat”

“Minha alma engrandece o Senhor; e o meu espírito exulta em Deus meu Criador; porque considerou a humildade de sua serva, por isso todas as gerações me chamarão bem-aventurada”. (Lc. I, 47-48)

Quanto é possível a uma mente criada, Nossa Senhora mediu, por sua sabedoria, toda a grandeza de Deus, e nisto se alegrou. De outro lado, considerou sua pequenez, e então disse:

“Eu me alegro em Deus meu Salvador, porque Ele olhou para a baixeza de sua escrava”.

Isto é um poema! É a escrava que se encanta de ser escrava, de ser pequena, de ver como Deus é infinitamente superior a Ela, e do fundo de seu nada glorifica o Senhor. É o pequeno que reconhece, com agrado, a sua posição.

O escravo não tem direitos, e está colocado abaixo da condição comum dos homens. Pois bem, Nossa Senhora se proclama escrava de Nosso Senhor Jesus Cristo, precursora de todos os escravos que Ela iria ter ao longo dos séculos.

E foi sobre a humildade desta criatura escrava que aprouve ao Senhor deitar os olhos, e por isso Ela exulta: porque a grandeza amou a pequenez.

Eis a verdadeira humildade que ama seu lugar inferior, adorando a grandeza que a eleva. Eis Imaculado Coração de Maria, que também é Sapiencial.

 

Conferência de 21/8/1968 de Plinio Corrêa de Oliveira

São José de Anchieta: dedicação heroica aos índios

Grande taumaturgo, de esmerada cultura europeia e requintados dotes naturais, São José de Anchieta colocou-se inteiramente à disposição da Divina Providência, servindo de instrumento eficaz da graça para a conversão dos indígenas.

 

Há muitos anos, li uma biografia do Padre José de Anchieta que me agradou bastante, mas depois me esqueci dos fatos, e a figura dele me saiu algum tanto do espírito. E agora chegou às minhas mãos um “santinho” que traz uma síntese biográfica dele, com alguns detalhes curiosos e uma beleza própria, que me parece adequada para um comentário. O “santinho” diz o seguinte:

Recebeu o título de ”novo Adão”

O Padre José de Anchieta nasceu em São Cristóvão da Laguna, na ilha de Tenerife, no ano de 1534.

Depois de mencionar os vários lugares onde ele estudou, continua:

Exerceu poder tão extraordinário sobre os animais que mereceu o nome de “novo Adão”.

É lindo o título. Sabemos, pelo Gênesis, que quando Adão foi criado todos os bichos do Paraíso desfilaram diante dele. E Adão foi dando a cada um o nome, de acordo com a sua natureza, quer dizer, uma espécie de definição, classificação científica dos animais. E ele tinha sobre os animais um domínio absoluto.

Notem bem a lógica interna desses dons que o Padre José de Anchieta recebeu. Ele era um missionário mandado ao Brasil para dominar uma natureza ingrata e rebelde ao homem, a fim de permitir que os católicos pudessem implantar aqui o seu domínio, e abrir caminho para a civilização cristã.

Havia nele, portanto, em primeiro lugar na ordem da execução, o aspecto de um lutador contra uma natureza bravia, ainda não dominada, não batizada, por assim dizer, como a natureza europeia.

Mas, depois, ele era também o fundador de uma cidade que haveria de ter um papel enorme na vida de um país e da Contra-Revolução. Quer dizer, ele está na origem de uma série de fundações.

Então, enquanto batalhador contra a natureza agreste, ele foi dotado de um domínio especial sobre os bichos, que eram os maiores inimigos do homem, na ordem da natureza selvagem. Enquanto fundador, foi dotado do dom de profecia. Ele era um profeta, e pode-se ver isto no encanto e na beleza dos fatos da sua vida contados aqui.

Domínio sobre as aves…

Da janela do quarto em que residia, chamava as aves que vinham ter com ele.

Vejam que coisa bonita! No Pátio do Colégio, de manhã cedinho, o Padre Anchieta acorda e vê um belo pássaro. Chama-o para junto de si, a ave pousa, ele passa um pouquinho a mão em suas penas. O pássaro, sentindo o carisma do santo e todo agradado com esta manifestação dele, voa de novo. E as pessoas ali presentes pasmam com este novo Adão, que por esta forma domina a natureza.

Notem também a variedade dos dons da Providência. Para um São Francisco Solano, no Paraguai, Ela dá um violino que, ao ser tocado, aquieta os índios. Aqui, ao Padre Anchieta, que esteve preso entre os índios como refém, a Providência não deu o dom de tocar violino. Ele escreveu com um pau qualquer, sobre a areia, seu famoso poema a Nossa Senhora, em latim, mas não aquietou os indígenas; esteve no meio deles, correndo gravíssimo perigo de vida, e não foi morto. Entretanto, foi-lhe dado o dom de aplacar os bichos.

Podemos imaginar como esse dom impressionava os índios. Porque a cidade era muito frequentada por indígenas mansos, os quais, por sua vez, tinham contato com os índios agressivos. E a fama se espalhava, então, de que o “grão-pajé branco” dominava completamente a natureza. Sem dúvida, isso auxiliava muito a conversão dos indígenas.

Vemos assim, sob uma forma muito poética, elevada e nobre, aquele homem de ferro, um filho de Santo Inácio dos grandes tempos, que subia a pé a Serra do Mar. Pois bem, um homem assim abre a janelinha de seu quarto, numa São Paulo cheia de neblina, de garoa, frente a uma praça com árvores, onde se encontram índios, escravos negros, portugueses, chama dois, três pássaros, dá-lhes alguma coisa para comerem e despede-os. É o primeiro momento de distração de um santo, antes de um dia cheio de trabalho.

…as feras e as cobras

Aqui são narrados outros fatos interessantes: Mesmo as feras e as serpentes venenosas abrandavam ante ele a sua ferocidade, e perdiam o natural veneno. Muitas vezes, bastou a invocação de seu nome para livrar seus devotos das mordeduras venenosas.

As cobras eram o terror do Brasil daquele tempo. Era uma ameaça constante para os bandeirantes e para todo mundo que vinha morar aqui, inclusive para os índios. E além do perigo das serpentes, havia também os outros animais selvagens: a onça, por exemplo. Então ele, quando atacado, ou via alguém agredido por uma fera, mandava esta recuar e era obedecido, ou, se fosse uma cobra, a mesma perdia o seu veneno.

Alguém uma vez definiu que cobra sem veneno é minhoca. Ele, portanto, “aminhocava” as cobras, reduzindo-as a nada.

Considerem que coisa bonita: numa estrada de mato, aparece uma serpente, que está para armar um bote contra uma criancinha. Padre Anchieta ordena: “Para!” A cobra fica imóvel e se deixa capturar. Vão examinar, não tem mais veneno.  Ele sorri e os pais do indiozinho pedem para ser batizados. É um dos feitos do Padre Anchieta dentro da mata.

Coisas destas deveriam se contar nos cursos de História do Brasil. Isso não daria um outro perfume à nossa História?

Ressuscitou mortos e teve o dom de profecia

Nos processos de beatificação que ainda se conservam, juraram os contemporâneos numerosíssimos prodígios do grande taumaturgo, tais como ressurreições operadas na Bahia…

Quer dizer, este homem ressuscitou mortos na Bahia!

…e muitas profecias, como a do desastre de Alcácer Quibir, em que pereceu o Rei Dom Sebastião de Portugal.

Foi a famosa batalha em que o Rei Dom Sebastião atacou os mouros, e ele, com a flor da nobreza portuguesa, foram dizimados. O trono de Portugal tornou-se vacante e, pouco depois, passou para a Casa d’Áustria que governava a Espanha. Mas isso representava, durante algumas décadas, o fim de Portugal.

O Padre Anchieta previu também o dia de sua morte, e, aproximando-se a data de seu falecimento, fez todas as visitas de despedidas, como para uma viagem. Entrava nas casas das pessoas por ele conhecidas — mais ou menos toda a aldeia —, sentava-se e dizia: “Queria agradecer as atenções, as gentilezas, e prometo rezar por vós no Céu. Vou morrer no dia tal, de maneira que eu vim aqui me despedir”.

Imaginem a sensação dos membros de uma família, ao receberem a visita de um homem que eles viram deter as onças, chamar os pássaros, profetizar a queda de Portugal e agora prevê a data da própria morte! Depois, ele levanta-se, cumprimenta e pergunta:

— Não quer nada do Céu?

— Ah! me recomende a Santana, a Nossa Senhora da Assunção, Padroeira de São Paulo, reze por mim, arranje tal caso…

— Pois não, vou providenciar.

Anchieta morreu no dia exato previsto por ele.

É tão bonito, de tal maneira um encanto, que vale a pena comentar isso numa reunião nossa.

O encontro com um velho índio que esperava conhecer a verdadeira Religião

Naquelas andanças do Padre José de Anchieta, mato adentro, não à procura de esmeraldas, mas de almas, a certa altura ele encontrou sentado num tronco de árvore um índio muito velho. Conhecedor dos vários dialetos indígenas, Padre Anchieta se dirigiu afavelmente ao homem, perguntando-lhe se precisava de alguma coisa.

O indígena explicou que estava esperando ali a hora da morte.

— Mas como a hora de sua morte?! — perguntou o Padre Anchieta.

O índio respondeu:

— Sonhei que, quando estivesse velho, viria um homem vestido com esse traje preto com que o senhor está, e me ensinaria a Religião verdadeira, a qual a vida inteira eu quis conhecer. Há tempos me sento neste tronco à espera desse homem. Hoje o senhor veio; queira me ensinar a verdadeira Religião.

Podemos imaginar a comoção do Padre Anchieta! Ensinou-lhe as verdades essenciais da Fé, batizou-o, e depois o homem morreu na paz de Deus.

O pobre índio tinha um tal desejo que, se não fosse a Providência ter pena dele e abrir essa exceção, ele morreria tendo recebido o Batismo de desejo.

Mas, como vale a pena ser batizado com água! Vale tanto, que esse velho indígena — que poderia ter o Batismo de desejo — recebeu da Providência o benefício de ficar esperando, até vir o homem que pudesse pronunciar a fórmula e derramar sobre ele a água mil vezes querida e respeitável.

Imaginemos o lugar em que se deu essa cena:

Naquela época, o que era uma franja de civilização portuguesa no Brasil, levada pelo Padre José de Anchieta no meio de matos que nunca um ente civilizado tinha pisado? Portanto, todo mundo ignorava esse fato, que se passava sem publicidade.

Na selva, com algum sabiá cantando, algumas borboletas azuis esvoaçando de um lado para outro, um raio de sol que entra no meio da vegetação, o índio encantadíssimo, e Anchieta, derramando sobre ele a água de um Tocantins qualquer, dizendo com a voz serena, harmoniosa: “Eu te batizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amém.”

Nessa hora, o índio entra para a Igreja Católica sem que outrem na Terra, a não ser ele e o Padre Anchieta, saiba que a Esposa de Cristo tem ali um novo filho. Fato ignorado, que não é nem sequer suburbano, mas do último extremo, da última franja, da franja mais ousada da civilização.

E assim nasce para a Igreja um filho procurado dentro da gentilidade, e trazido com amor — depois de uma revelação em sonho — para junto de um tronco, onde ele encontrou a salvação.

Após adquirir grande cultura na Europa, é enviado ao Brasil para tratar com índios

No mundo civilizado da época do Padre Anchieta havia um alto grau de cultura. Ele se beneficiou das circunstâncias que aumentaram a categoria de sua personalidade. E quando entrou em liça para lutar por Nossa Senhora, levava todos os elementos positivos que cercaram sua formação, e estava pronto para essa grande obra, porque procurara continuamente aproveitar tudo de bom que havia em torno dele: a virtude ensinada no Seminário e toda a cultura existente nos meios religiosos e no ambiente daquele tempo.

Isso representa um esforço considerável. Ninguém fica um homem muito culto sem ter empregado um grande vigor, pois sem esforço não há cultura.

Agricultura o que é? É o trabalho que o homem faz para tornar a terra útil ao plantio e, depois, a plantação que se faz no solo trabalhado. “Agri” vem de “ager”, campo; cultura é exatamente esse esforço de preparar a terra, de pôr a semente e de cultivá-la para que dê o resultado esperado.

Assim é a cultura do homem, entretanto muito mais nobre do que a cultura do campo, porque o homem é um ser incomparavelmente superior à terra. Por causa disso, a cultura do homem é muito mais exigente do que a agricultura, ou qualquer outra forma de cultura.

Anchieta precisou, portanto, trabalhar, esforçar-se, aprender, decorar, polir-se e adaptar-se de todos os modos possíveis. E, de repente, recebe do Geral da Companhia de Jesus — que decidia o destino de todos os jesuítas, pelo voto de obediência — a ordem de vir para o Brasil.

Depois de todo esse esforço de civilização e de cultura, ele é mandado para cá, a fim de ter contato com os botocudos, os guaianazes, os tupiniquins, com quanta espécie de índios mais ou menos bárbaros e selvagens que havia aqui. Dir-se-ia que todo aquele esforço intelectual anterior estava liquidado. Para tratar com os índios, do que adiantava isso?

Há uma espécie de desilusão nesse primeiro lance: se faz todo um esforço, o homem se torna primoroso; de repente, recebe a ordem: “Vá lá para o mato tratar com os tupiniquins!”

Utilizando seus dotes naturais como instrumento da graça divina

Anchieta tomou todos os recursos intelectuais que havia preparado e aplicou-os para o estudo do seguinte problema: Como são essas almas que Deus me manda evangelizar? Qual é a psicologia delas? Como entendem as coisas? Para começar, qual é a língua desses indígenas? Eles têm uma gramática?  Falar-lhes na sua própria língua é um primeiro passo para ter influência junto a eles e abrir-lhes os corações, porque ficam contentes ao ver que um homem branco, civilizado, aprendeu e fala o idioma deles.

Então, o Padre Anchieta estuda a língua tupi, faz uma gramática, uma espécie de dicionário. Desse material tosco, ele recolhe, com jeito, todos os conhecimentos necessários para entender a alma dos índios, a fim de saber como tratar com eles, para compreender sua instabilidade, como mudam continuamente de atitude e disposição em relação a alguém.

Que coisa difícil é lidar com um selvagem, de maneira que, aos poucos, ele se civilize! É mais árduo elevar um tupiniquim à condição de um católico do que um homem, nas mais altas cortes da Europa, encantar os reis e as rainhas pela sua própria cultura.

Anchieta tomou os recursos que ele tinha e os aproveitou, na aparência, para uma obra inferior, isto é, tratar com “sub-homens”; mas na realidade era uma obra dificílima, uma super-obra, precisamente porque se tratava de tomar os pobres índios, filhos amados de Deus, cuja salvação Ele quer, e elevá-los à condição de homens civilizados.

De que maneira a Providência agiu?

Antes de tudo, mandou graças extraordinárias para esses índios a fim de que, em contato com o Padre Anchieta, seus corações ficassem tocados. A graça fazia com que eles possuíssem admiração pelo santo missionário, se sentissem adoçados em companhia dele, tivessem grande desejo de estar, para falar — um pouquinho que fosse — com ele. Era efeito da graça vinda do alto, que dispunha seus corações para receber aqueles bens naturais que Anchieta pusera na sua própria alma e transmitia a eles. A graça baixava sobre esses dons naturais, dando-lhes um brilho sobrenatural, e ele os apresentava para os índios, que ficavam encantados.

Além disso, havia os milagres realizados por Deus para prestigiar o Padre Anchieta diante dos índios. Vê-se como a Providência ama os indígenas, quer o bem deles, e faz todo o possível para que correspondam à graça.

Salvo por um milagre, contribuiu para salvar inúmeras almas

Dou mais um exemplo. Anchieta estava escrevendo aquele poema a Nossa Senhora — ao qual me referi —, que é um poema lindo, composto em um latim muito puro, nas areias ainda virgens do litoral brasileiro. Escrever um poema em latim! Podemos imaginar o que isso representa de contraste com todo o ambiente que o rodeava.

Como não possuía tinta nem papel, ele escrevia com a ponta de uma vara na areia e decorava. Depois de ter decorado — ele tinha boa memória —, compunha mais um tanto. Evidentemente, uma coisa movediça, porque a noite chega, a maré sobe e apaga tudo; do que ele havia escrito não ficava nada. Portanto, ou guardava na memória, ou não adiantava.

Houve um tratado entre os portugueses e os índios, pelo qual os primeiros se comprometiam a determinadas obrigações para com os indígenas. Mas estes ficaram desconfiados que os portugueses não cumprissem sua parte. Então, o chefe dos portugueses entregou o Padre Anchieta como refém e disse: “Se nós não cumprirmos, matem-no”. E ele, como ainda não sabia falar a língua dos índios, tinha muito tempo livre, e aproveitou-o para escrever esse poema, enquanto aguardava o desfecho do caso.

Estava ele redigindo de costas para o mar — com certeza por causa da posição do sol, de um jogo de luz —, e não percebeu o que estava se dando atrás dele. A maré estava subindo, subindo… Os índios, vendo o que estava acontecendo, começaram a se refugiar em algumas elevações próximas. Eles percebiam que haveria um momento em que o mar deglutiria o Padre José de Anchieta. Então, gritavam frases que o santo missionário não entendia, mas que queriam dizer, mais ou menos, o seguinte: “Preste atenção! Tome cuidado! A água vem chegando!”

Mas, impressionado com a beleza do que estava compondo e, mais ainda, com a incomparável pulcritude moral d’Aquela em honra de Quem ele escrevia, o Padre Anchieta não se incomodou.

Em certo momento, por gestos dos indígenas, o santo missionário percebeu que estavam apontando para alguma coisa atrás dele. O Padre Anchieta olhou, e era o mar que formara uma parede, mas não o cobria porque Deus não permitia. E os índios, por serem muito emotivos e gostarem dele, começaram a berrar, pois não queriam que Padre Anchieta morresse. Só então ele percebeu a situação e saiu correndo. O mar o foi acompanhando, sem degluti-lo, até uma distância onde se espraiou naturalmente na linha do litoral.

Ele estava salvo por um milagre, e foram salvas inúmeras almas de índios que, encantados com aquilo e percebendo haver algo de sobrenatural, começaram a acreditar no que ele dizia.

Vemos em tudo isso o papel da graça, este dom de Deus, recebido no Batismo, que nos faz participar da própria vida divina, e nos confere uma energia, uma clareza de vistas, uma superioridade maiores do que aquelas que nos são próprias segundo a natureza. E começamos a entender, a falar, a fazer coisas maiores do que seríamos capazes naturalmente. É o mais alto dom que uma criatura pode receber.

Quando chegarem horas difíceis, talvez haja momentos em que julgaremos estar tudo perdido. Lembremo-nos de que essas são as horas de ganhar tudo; não duvidemos de nossa vitória, pois é Nossa Senhora Quem combate por nós. Se rezarmos a Deus por meio d’Ela, confiando em Maria Santíssima contra toda aparência, as águas se levantarão em torno de nós e não nos deglutirão, como aconteceu com o Padre José de Anchieta.

 

(Extraído de conferências de 11/10/1971, 7/6/1981 e 27/2/1993)