Deus deseja a pompa dentro da Igreja

Lendo as narrações da Légende Dorée sobre São Basílio Magno, temos uma sensação de distensão. Nossos olhos, exaustos de pousarem em coisas monstruosas deste século, fixam-se naqueles fatos meio encantados e maravilhados, e uma espécie de hino de admiração começa a subir de dentro de nós.

 

A propósito da festa de São Basílio Magno, bispo e doutor da Igreja, temos a comentar os dados tirados da famosa Légende Dorée, de Jacques de Voragine(1).

Coluna de fogo que tocava o céu

Através de uma visão, o eremita chamado Efrém conheceu o grau de santidade que Basílio havia atingido. Em êxtase, Efrém viu uma coluna de fogo que partia da cabeça do Santo e tocava o céu, e ouviu uma voz vinda do alto dizer: “O grande Basílio é como essa imensa coluna que você vê.” Ele foi então à cidade no dia da Epifania para conhecer tão notável personagem. Ao vê-lo vestindo uma estola branca e caminhando majestosamente com seus clérigos, disse consigo mesmo: “Tive trabalho à toa em vir, pois esse homem rodeado de honrarias não pode ser aquele que apareceu na visão. Se nós, ermitãos, que carregamos o peso do dia e do calor, nunca alcançamos nada semelhante, como ele, cheio de tais honrarias, pode ser uma coluna de fogo?” Basílio, que por revelação soube dos pensamentos de Efrém, fez com que ele fosse vê-lo.

Levado diante do bispo, o eremita viu uma língua de fogo que saía de sua boca, e pensou: “Basílio é grande mesmo, é, sim, uma coluna de fogo. O Espírito Santo realmente fala pela boca de Basílio.” Dirigindo-se a ele, Efrém disse:

— Senhor, peço-lhe a graça de me fazer falar grego.

Basílio:

— Você pede uma coisa difícil.

Mas orou por ele, que imediatamente passou a falar grego.

Certa vez, outro eremita viu Basílio andando com trajes pontificais e desprezou-o, pensando consigo mesmo que aquele homem gostava demais de pompas daquele tipo. Uma voz então se fez ouvir, dizendo: “Você gosta mais de acariciar a cauda da sua gata do que Basílio aprecia seus ornamentos.”

As portas de uma igreja se abrem, confundindo os hereges

O Imperador Valente, defensor do arianismo, tirou uma igreja dos católicos para dá-la aos arianos. Basílio foi ter com ele e disse:

— Imperador, está escrito: “A majestade real brilha no amor à justiça. O julgamento do rei é a justiça”. Por que, então, ordenastes de livre e espontânea vontade que os católicos fossem expulsos dessa igreja e que ela fosse entregue aos arianos?

O Imperador respondeu:

— Basílio, não é conveniente que me faleis assim.

Ele replicou:

— Não me importo de morrer pela justiça.

Então o cozinheiro-chefe do Imperador, chamado Demóstenes, partidário dos arianos, tentou intervir, mas Basílio disse-lhe:

— Sua tarefa é cuidar dos guisados do Imperador, e não resolver questões de Fé.

O que o deixou confuso e o fez calar-se.

Disse então o Imperador:

— Basílio, ide e arbitre o problema entre os dois partidos, mas sem se deixar influenciar pelas opiniões do povo.

Ele propôs a católicos e arianos que se mandasse fechar as portas da igreja, nelas colocar os selos de cada um dos partidos, e aquele que conseguisse abrir as portas através de preces teria a posse da igreja. A proposta foi aceita por todos. Os arianos rezaram durante três dias e três noites, e quando chegaram diante das portas da igreja elas não estavam abertas. Então Basílio, à frente de uma procissão, foi até a igreja e, depois de ter feito uma prece, tocou levemente as portas com seu cajado pastoral dizendo: “Deixem o caminho livre, poderes celestes, abram-se, portas eternas, a fim de deixar entrar o Rei da glória.” E imediatamente as portas se abriram, todos entraram dando graças a Deus, e a igreja ficou novamente na posse dos católicos.

Uma legenda que correspondia às aspirações de santidade

Não são fatos rigorosamente históricos porque a Légende Dorée é constituída de narrações semi-legendárias. Alguns dos fatos ali narrados aconteceram, outros não; e dentre os que aconteceram, nem todos são narrados como se passaram, mas foram embelezados pela imaginação popular.

Sem embargo, são fatos lindos que têm um grande valor espiritual, pois indicam como a piedade daqueles povos cheios de devoção ornou a figura dos Santos, imaginou como Deus deveria agir, e modelou uma legenda que correspondia a suas próprias aspirações de santidade. E isso não pode ser tido em conta de mentira, porque não é propriamente mentira, mas um devaneio, uma história contada de um para outro já sabendo que é estilizada, uma espécie de ficção maravilhosa narrada em louvor do Santo.

As narrações referentes a São Basílio são impregnadas daquela poesia e daqueles problemas do Oriente dos primeiros tempos. Esse Santo viveu numa época de heresias. A heresia dos arianos devastava, naquela época, a Igreja Católica, e São Basílio estava numa luta tremenda contra eles e contra o Imperador, porque em geral os imperadores de Bizâncio davam apoio aos arianos.

A razão disto estava em que esses potentados queriam mandar na Igreja, e os bispos arianos se prestavam a isso, enquanto na Igreja Católica não podiam mandar, porque segundo a Doutrina Católica a Igreja é uma sociedade perfeita e soberana, ou seja, na sua esfera própria – que é a espiritual; e a temporal, em matéria de Fé e Moral – ninguém manda nela. Os imperadores, encontrando na Igreja um dique para o seu absolutismo, evidentemente procuravam persegui-la. Era um transbordamento do orgulho humano.

Nesta época florescia na Igreja uma grande graça, a do eremitismo, entendido no seu rigor. O eremita verdadeiro é aquele que vive inteiramente só, numa gruta, num deserto, em geral não em lugares maravilhosos, mas naqueles que não atraem muito a imaginação, não seduzem muito a fantasia nem agradam os sentidos. O eremita vive ali, sozinho, cuidando apenas do louvor de Deus.

Esse estado eremítico é muito conforme à índole do oriental, porque este, com a alma felizmente cheia de fantasia, de imaginação, no sentido reto da palavra, sabe ver o que tantas vezes o ocidental, sobretudo o “hollywoodizado”, não sabe ver: as mil maravilhas do silêncio, os mil deslumbramentos da solidão.

Quando a pessoa vive isolada, seu espírito adquire grandeza, toma voo. Ela não se preocupa a não ser com coisas de ordem superior e então se aproxima de Deus.

O eremita que rola uma pedra à entrada da gruta onde mora para não entrar uma fera durante a noite, mas que também pode ser surpreendido por uma cobra, e corre os riscos do homem sozinho, exposto à luta contra a natureza; o eremita que jejua, se penitencia, se macera, este é o eremita perfeito cuja figura nos aparece aqui.

Então, nesse Oriente cheio da desolação do arianismo, ao que se somava a pretensão dos gregos de Constantinopla de estar em oposição a Roma, inventando doutrinas rebuscadas para opô-las à simplicidade sacrossanta da Doutrina Católica; nesse Oriente também repleto do deslumbramento do eremitismo, com uma explosão de santidade contrastando com o horror da heresia; é nesse Oriente com aspectos variados que nós vemos aparecer a grande figura de São Basílio.

O apego do homem não está necessariamente na proporção do que ele possui

E vemos surgir também, entendendo mal a figura de São Basílio, alguns eremitas. Com frequência aconteceu na Igreja que, quando se preconiza muito o ideal de pobreza, alguns exageram isso e se voltam, à maneira de protestantes, contra a pompa da Igreja. Assim, por exemplo, pouco depois da morte de São Francisco de Assis alguns franciscanos deram origem à heresia chamada dos “fraticelli”, que era comunista, contrária à propriedade privada, a toda honra e pompa, e a todo o brilho da civilização.

Assim também encontramos nesta narração eremitas que, vivendo completamente na solidão e, portanto, não sendo servidos por ninguém, não dispondo de nenhuma pompa, fizeram este raciocínio errado: “Se eu, eremita, vivesse nessa pompa, perderia a minha alma; logo, aqueles que vivem nessa pompa perdem a alma deles”. A primeira parte do raciocínio é verdadeira, a segunda é falsa. Porque cada um salva a sua alma no caminho que Deus quer. E assim o eremita salva a sua alma no isolamento, mas outro que é levado a servir a Deus na pompa salvará a sua alma na pompa. Nem um nem outro pode escolher outro caminho por mera arbitrariedade.

Esses dois eremitas viram São Basílio servindo a Deus na sua grandeza como bispo, e duvidaram então da santidade dele.

O primeiro foi Efrém que viu, num êxtase, uma coluna de fogo a qual subia até o Céu e ouviu uma voz dizer: “Este é Basílio”. Ele foi procurar então o Santo. Chegou lá e encontrou um homem rodeado da pompa episcopal numa cerimônia eclesiástica e pensou: “Não pode ser”. Quer dizer, ele contrariou o que a visão disse a ele. “Por que esse homem vive nessa pompa?”

Ele vai falar com São Basílio e a Providência afetuosamente lhe concede uma graça pela qual compreendeu o quanto estava errado, e acaba por sair sabendo falar grego. Para que ele quereria falar grego não se sabe. É de se esperar que fosse para estudos, pois uma vez que o eremita não deve falar, supõe-se que seria para ler. Ademais, o Santo não lhe teria obtido uma graça para ele violar seu bom propósito de ser eremita. De maneira que se deve entender que ele recebeu essa graça para, compreendendo o grego, conhecer os Padres e Doutores gregos, a versão grega do Evangelho, dos Atos dos Apóstolos.

Depois veio outro eremita e também teve um engano a esse respeito, julgando que São Basílio não era Santo. E a esse a Providência castigou de um modo que, entretanto, provoca um sorriso, mostrando que o apego do homem não está necessariamente na proporção do que ele possui.

São Basílio, embora rodeado de pompa, era desapegado. O eremita tinha uma gata pela qual tinha muito apreço. Então, enquanto fazia um juízo desfavorável a respeito do Santo prelado, ouviu uma voz que lhe dizia que ele gostava mais de acariciar a cauda da gata do que São Basílio apreciava seus ornamentos.

Duas psicologias muito bem expressas

Ainda que sejam casos inventados, são de um muito bom gosto, literariamente muito leves, que distraem a alma, fazem sorrir, e cheios de suco doutrinário. Porque os dois episódios resolvem o famoso problema da pompa dentro da Igreja e mostram que ela está de acordo com os desejos de Deus, e que uma pessoa pode santificar-se nessa pompa, quando é vontade do Criador que assim se santifique.

De outro lado, as finuras da alma humana estão muito bem expressas. O primeiro eremita possui um tipo de psicologia especial. Trata-se de um homem impressionável. Ele vê aquela coluna de fogo, fica muito impressionado, vai falar com São Basílio, tem uma impressão diversa e muda imediatamente de opinião. Pede logo uma graça inverossímil e Deus o atende. É um tipo de psicologia representado com muita finura.

Outro tipo de psicologia apresentado com finura é o do segundo eremita: sentimental, cansadão, sentado à porta de sua gruta, levando uma vida bem sossegada, sem amolação. Entra dia, sai dia, aquela tranquilidade, aquele sossego… Para divertir, uma gata que sabe dizer “miau”, mas não aborrece, não faz objeções, não traz problemas. Um animal que não temos que arrancar das garras do pecado e empurrar para os píncaros da vida espiritual, que se limita a comer alguma coisa que encontra no mato, pode ser uma companhia muito repousante.

Há gatos cujo temperamento é parecido com o de certos homens que se deixam agradar de todo jeito até a hora do arranhão. Isso existe. Mas creio que das menores ingratidões que um homem possa receber na vida é o arranhão de um gato. De maneira que se vê esse eremita adaptado à sua situação.

Então vem um aviso que toca no ponto psicológico diretamente, mas sem uma injúria, sem uma descompostura. É um caso que faz sorrir. Ele se lembra da sua gata e volta corrigido. Vejam como isso é bonito.

Cena grandiosa e profética

São Basílio é chamado diante do Imperador e discute com ele. Entra em cena o diretor da cozinha, que é muito mais do que ser um cozinheiro. Devemos pensar no luxo fabuloso dos imperadores bizantinos, nas grandes comilanças que eles faziam. Havia frequentemente banquetes. Portanto, um diretor de cozinha devia ser um homem bem entendido de gastronomia, de festas.

Ele quer fazer-se de zeloso diante do Imperador e se mete numa discussão onde não tinha nada que ver. São Basílio espirituosamente lhe dá uma resposta: “Você cozinhe comidas, não dogmas!”

É uma coisa prazenteira que se lê sorrindo, mas a lição está bem dada. Há um suco doutrinário, uma substância atrás disso.

Vem depois uma cena grandiosa, profética. Os fiéis da Religião Católica discutem com os ímpios, que constituem a seita ariana, pela propriedade de uma igreja católica que o Imperador tinha dado aos arianos.

O soberano confiou ao Santo a solução do caso. Então, segundo essa narração, São Basílio disse-lhes que selassem com seus respectivos lacres as portas da igreja e rezassem.

Pode-se imaginar a cena magnífica, a tranquilidade de São Basílio e a torcida dos arianos. Estes rezam, rezam, rezam e… nada! São Basílio com mitra, uma grande casula, um báculo, barba branca, olhos serenos, caminhando à frente de um clero piedoso. E todos cantando as ladainhas. Tem-se a impressão de que quando eles chegaram perto, as portas da igreja já estavam para se abrir. Ele se antecipa e, num gesto majestoso, com a ponta do báculo apenas toca na porta e esta se abre. Os hereges foram confundidos e o coro entra cantando, seguido de uma grande multidão de fiéis.

Se essas coisas não se passaram assim, inúmeras outras transcorreram, e as circunstâncias eram tais que podiam ter se passado dessa forma. De maneira que há um resíduo de verdade nisso, até mais verdadeiro do que a narração histórica. Porque aponta para certa maravilha das almas, que é a realidade histórica mais profunda. Pode não ter havido o fato externo, mas houve o fato profundo que é aquele tipo de piedade, de espírito sobrenatural presente por detrás disso.

Quando lemos essas narrações da Légende Dorée, temos uma sensação de distensão. Nossos olhos, exaustos de pousarem em coisas monstruosas, em toda espécie de sujeira e de borra deste século, fixam-se nisso meio encantados e maravilhados, e uma espécie de hino de admiração começa a subir de dentro de nós. Não é verdade que, sendo obrigados a interromper a leitura, sentimos uma espécie de desolação, como uma alma que visse um pouquinho do Céu e fosse obrigada a voltar para o Purgatório?

Admiração humilde e desinteressada

Então, qual é a lição que tiramos disso? É a seguinte: se nós fôssemos tais que conseguíssemos fixar o nosso espírito duravelmente nesse estado de admiração; se gostássemos, acima de tudo, de praticar a virtude da admiração, que desinteressadamente se detém, fica pensando e se maravilha com esses episódios; se tivéssemos dentro da alma um paraíso permanente, uma alegria fixa, estável e contínua que nos acompanhasse, apesar de todas as tristezas, teríamos a certeza de que o fundo da realidade não são as coisas efêmeras que vemos, nem os aborrecimentos que essas coisas nos dão, mas é esse fundo de maravilha, essa ordem de coisas virtuosa, admirável, indescritível que existe na alma das pessoas verdadeiramente santas. Eis o encanto de nossa vida: fazer dessa contemplação nossa alegria humilde e desinteressada.

Humilde porque isto nos alegra, em grande parte, na medida em que vemos não ter nenhuma proporção conosco, pois é muito superior a nós, a ponto de nos sentirmos pequenos diante disso e termos a alegria de nos sentir assim, de nos entusiasmar com algo que é mais do que nós.

Desinteressada porque não temos um papel para representar dentro disso. Não vamos representar nenhum papel ao lado de São Basílio contra o Imperador. Estamos fora. Aqueles fatos não nos engrandecem, não trazem vantagem nenhuma para nós. Nós os contemplamos apenas porque eles são eles. Nós olhamos desinteressadamente para isso.

Este é o modelo da alma medieval. Aqui está um traço do modo de ser medieval que é muito mais do que uma descrição do temperamento – embora entre profundamente no temperamento –: a capacidade de se maravilhar humilde e desinteressadamente. É isso que está nessa disposição de alma.

A alma assim é verdadeiramente fiel, realmente agrada a Deus. É sobre uma alma assim que baixa o Espírito Santo. Porque esses são os humildes que serão exaltados. Os poderosos que serão depostos são aqueles que se agarram a uma porção de coisas – ainda que seja apenas o rabo de um gato – e que fazem disso o seu apego. Esses serão depostos, ou seja, destituídos das coisas a que se apegam. Os humildes, os desinteressados, pelo contrário, serão elevados.

Como se dá essa elevação? Da seguinte maneira: a alma com essa capacidade de se maravilhar humilde e desinteressadamente é como que um mata-borrão. Toda perfeição que toca nela, ela inala, absorve. Aquilo que nós admiramos desinteressadamente nos modela e nós tomamos algo dessa maravilha.

A maravilha contemplada torna o indivíduo maravilhoso. Nada é mais bonito, não há maravilha mais autêntica do que a alma verdadeiramente maravilhável. Essa tem o amor de Deus, porque o amor de Deus é isto: maravilhar-se humilde e desinteressadamente com as coisas de Deus. Não só com as invisíveis conhecidas pela Fé, mas com as visíveis que o Criador colocou por todos os lados.

Eis, portanto, o que devemos procurar e pedir a Nossa Senhora, que foi a mais maravilhável das almas. Basta considerar que foi Ela quem teve mais de perto a maior maravilha que pousou nesta Terra: Nosso Senhor Jesus Cristo.

Megalomania: um defeito que está na linha oposta ao maravilhamento

Nosso Senhor disse que não se deve atirar pérolas aos porcos (cf. Mt 7, 6). Não se pode dar coisas maravilhosas para almas incapazes de se maravilhar. Deus deu o Menino Jesus a Nossa Senhora para viver no seio d’Ela, passar sua infância ao lado d’Ela, e Ele passou trinta anos maravilhando-A, porque Ela era dotada de uma potência de maravilhar-Se que estava na proporção dessa Maravilha.

Por aí compreendemos a capacidade de maravilhar-Se de Nossa Senhora. Resultado: todas as gerações A chamarão maravilhosa, porque quem A chama Bem-aventurada, chama-A maravilhosa. Por quê? Pelo desinteresse com que Ela amou, pela humildade com que admirou. Por isso Se tornou admirável.

Aqui está o mecanismo dessa virtude tão fundamental para a alma contrarrevolucionária, para o espírito católico.

Um dos muitos defeitos que estão na linha oposta ao maravilhamento é a megalomania. O megalômano não se maravilha com nada a não ser consigo. Quando vê algo de maravilhoso fora dele, irrita-se, olha um pouquinho e depois se aborrece, porque ele quer estar no centro de todas as coisas. Este é o contrário do homem verdadeiramente maravilhável.

Que essa citação da Légende Dorée nos sirva de ocasião para pedir a Nossa Senhora que nos dê essa faculdade de alma pela qual nos maravilhemos com o que está acima de nós, humildemente, amando aquilo precisamente por ser superior a nós, e admirando desinteressadamente.              v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/6/1971)
Revista Dr Plinio 262 (Janeiro de 2020)

 

1) VARAZZE, Jacopo (Jacques de Voragine, em francês). Legenda Áurea – Vida dos Santos. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda., 2011. p. 192-193.

 

Carlos Magno: Fundador da Europa católica

Carlos Magno difundiu a cultura, favorecendo a formação de mosteiros onde se formava a Literatura. Foi coroado Imperador pelo Papa, em Roma. Ele aparece na História como um gigante que, ao mesmo tempo, liquida todos os elementos de deterioração e de agressão, e começa a implantar o que hoje é a Europa.

 

A certa altura da História do Ocidente, Carlos Magno aparece como evangelizador dos povos habitantes das regiões que constituíam, então, o centro histórico ocidental, ou seja, toda a orla do Mediterrâneo, compreendendo a Europa, Ásia Menor e África.

Bárbaros pedem licença para se fixarem dentro do Império Romano

O equilíbrio das situações e das forças era completamente diferente. A Ásia era o continente cultivado, florescente, com as grandes tradições, a grande cultura, a grande arte, os grandes impérios,  etc. A Grécia, que ainda era um foco de civilização nos primeiros séculos de nossa era, havia entrado em decadência, tinha sido invadida por outras populações, já não era mais o que fora. A Itália e toda a Europa aquém do Reno e do Danúbio estavam invadidas por bárbaros. Esses bárbaros eram germanos, depois normandos – de uma origem germânica também –, hunos que deram origem  aos atuais húngaros magiares, invadiram a Europa por vários lados.

O Império Romano do Ocidente, que cobria a Europa Ocidental, resistiu durante muito tempo. Mas com o luxo, a degradação dos costumes, etc., o desejo de batalha dos romanos do Ocidente foi  caindo. Eles foram pondo uma resistência cada vez menor aos bárbaros que queriam invadir. Em determinado momento, os bárbaros, situados para além do Reno e do Danúbio, mandaram  comunicar aos chefes militares romanos, colocados ao longo do Reno e do Danúbio, que eles estavam fugindo por sua vez de um invasor mais bárbaro, o qual vinha por detrás. Não sabiam quem  era – tratava-se dos hunos –, mas estava vencendo e acossando a eles. Então, a fim de poderem fazer uma resistência eficaz, pediam licença aos romanos para atravessarem o Reno e o Danúbio e  se fixarem dentro do Império Romano. Assim, eles ficariam protegidos pelos rios e poderiam lutar contra os hunos mais facilmente.

Os bárbaros invadem o Império Romano…

Os romanos acharam que isso era muito inteligente, porque os bárbaros, os germanos, lutariam contra os hunos. Uns aniquilariam outros, e os romanos ficariam sem combater uns e outros.

Estas são as falsas espertezas dos civilizados apodrecidos, muito parecidas com as falsas espertezas dos burgueses de hoje, diante da investida do socialismo, do comunismo. É a mesma  mentalidade. A mentalidade do podre, do decadente, é assim. Eles não só consentiram, mas os soldados romanos ajudaram a estabelecer pontes de madeira para que os bárbaros, os quais tinham sido, durante séculos, mantidos para além dos rios, os atravessassem.

Eles então invadiram o Império, e os hunos, em vez de entrarem pelo Reno, vieram pela Hungria e invadiram o Norte da Itália, o território que seria hoje a Áustria, e foram até Roma. Átila ia  destruir Roma, e o Papa foi de encontro a ele e lhe pediu, como Vigário de Cristo – o chefe dos hunos não era católico, nem mesmo cristão –, que poupasse a cidade de Roma. E Átila contou que  viu no ar uma figura majestosa, venerável, poderosa – era São Pedro –, a qual com espada o ameaçava se fosse por cima de Roma.

Então ele teve medo e voltou atrás. Foi o único fator que conseguiu fazer com que Átila recuasse. O Papa regressou a Roma e a cidade foi poupada.

Vejam, então, a podridão do Império Romano. Os romanos não conseguiram reter os bárbaros, São Pedro conseguiu. E a aparição do primeiro Papa, no ar, fez com que Átila gradualmente se  retirasse da Itália e voltasse para a Panônia – a antiga Hungria –, e se afundou naquelas terras.

…e não queriam que seus filhos estudassem, pois ficariam moles como os romanos

Portanto era a hora de os bárbaros irem embora também. Mas nem se falou disso, pois eles estavam estabelecidos e abancados lá. Então o que fazer? Os governadores e os soldados romanos  tiveram medo dos bárbaros e todos fugiram. Mas da Santa Sé veio uma ordem para todos os bispos e padres não abandonarem seus postos.

Deveriam permanecer nos cargos e continuar a exercer seu ofício, tentando converter os bárbaros. É uma coisa extraordinária realmente. Resultou daí uma situação assim: muitos bárbaros eram  tão bárbaros que eles não conseguiam dormir nas cidades romanas, porque diziam que sentiam falta de ar devido às casas que havia em volta. Aquelas casas tiravam o ar deles. Então iam para o  mato ou o campo, durante a noite, para dormir; e pela manhã voltavam para fuxicar na cidade, o que eles achavam naturalmente interessante, agradável. De um lado.

De outro lado, não queriam que os filhos deles estudassem, porque diziam que se o fizessem ficariam moles como os romanos. E que para ter meninos guerreiros, a fim de tocar a eterna guerra  deles, o único jeito possível era que não estudassem. Eles queriam conservar a barbárie porque tinham horror à civilização; confundiam civilização com podridão. Não eram católicos, mas pagãos.

Para terem ideia de como se foram espalhando pelo Império, eles entraram na França, cobriram essa nação, invadiram a Espanha, Portugal, transpuseram o Mediterrâneo, entraram pela África e  cobriram quase todo o Norte desse continente.

Foi, portanto, uma população imensa que se transmudou, mas que destruiu tudo na sua passagem. A administração romana se retirando, os bárbaros ficaram governando.

Constantinopla e  Alexandria

Podem imaginar o que era governo de bárbaros. As estradas romanas eram as melhores do mundo. Começaram a cair, porque de estrada é preciso cuidar. Se não tem quem cuide,  começa a nascer vegetação na estrada, acontece de tudo. Como esses bárbaros nem tinham ideia de como organizar a proteção de uma estrada, isso tudo ia se deteriorando. As pontes caiam, eles  não consertavam. Ficavam aqueles  abismos, não se podia transitar. Grupos de bandidos circulavam de um lado para outro, não havia polícia. Era o caos mais completo que pode haver.

Para abreviar a narração, os  romanos começaram a se casar com as bárbaras, os bárbaros com as romanas, e foi se formando uma sociedade composta de civilizados podres e bárbaros insuportáveis. Pairava sobre esse caos a  bênção da Igreja, ensinando, batizando, distribuindo os sacramentos quanto podia, dando exemplos de virtude, suscitando Santos que, vivendo no meio deles, iam gradualmente amansando a barbárie e corrigindo a podridão.

De toda esta história apareceu uma população mista, semibárbara, incomparavelmente mais atrasada do que o mundo oriental que tinha sua grande capital em Constantinopla – depois Bizâncio  –, que era a sede do Império Romano do Oriente. Não confundir com o Império Romano do Ocidente, que tinha sede em Roma, às vezes em Milão, enfim, na península itálica. Constantinopla,  lindíssima cidade do Estreito de Bósforo, com uma parte construída na Europa e outra na Ásia.

 E depois os povos da Ásia Menor, dos quais muitos eram ricos e altamente civilizados. Isto ia até o Egito. E a outra grande cidade oriental, não europeia, com civilização, portanto, oriental,  influência grega muito forte, era Alexandria, no Egito. Eram as duas grandes cidades famosas no mundo inteiro. Para esse pessoal dos Bálcãs e do Sul do Mediterrâneo, prevalecia a ideia de que a Europa era uma caipirada. Tinham razão. Uns bárbaros, uns cafajestes, com os quais não havia grande coisa a fazer.

Invasões dos maometanos e dos vikings

No meio de tudo isso, com acontecimentos históricos que seria muito longo narrar, foi gradualmente aparecendo a nação que é a primeira da Europa contemporânea a nascer das mãos da Igreja, a  rança. Depois as outras nações foram se convertendo, a ação dos Santos, da Hierarquia, foi apaziguando esses povos, e se podia supor que as coisas relativamente começassem a melhorar, quando outras circunstâncias imprevistas vieram perturbar tudo isso. As circunstâncias foram tríplices.

Em primeiro lugar, uma invasão maometana. Maomé – também é outra coisa interminável para se contar – fundou uma religião nova, segundo a qual Jesus Cristo era apenas um profeta. Dizia  Maomé que existia um só Deus, Alá, e Jesus Cristo, mero profeta de Alá, não era Homem- -Deus unido hipostaticamente à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Maomé estava animado por  um ódio terrível aos católicos.

Essa religião começou a atuar no Oriente Próximo, mas depois se estendeu pelo Egito e todo o Norte da África. Os maometanos destroçaram o que restava de romano católico e de bárbaro católico.  Invadiram a Espanha e, de invasão em invasão, chegaram até o coração da França, em Poitiers.

Mais ou menos ao mesmo tempo, uma parte dos bárbaros, que não tinha atravessado o Reno e o Danúbio, começaram a invadir de novo as terras católicas, a França, a Alemanha, etc. E o que agravava mais a situação era que um povo muito estranho, como até então não tinha aparecido na História, principiou a agredir a Europa.

Era um povo pagão, de origem germânica, cuja característica principal estava no seguinte fato: o povo inteiro – os famosos vikings – migrou em barquinhos pequenos com proas lindas, e os vikings eram navegadores excelentes. Puseram-se a atacar o litoral europeu e descer pelos rios franceses até o coração da França.

De maneira que tudo era novamente um caos. Primeiro ocorreu a invasão dos árabes, depois a dos germanos. Mas houve também uma ação gloriosa: os convertidos germano-romanos, animados por missionários, sobretudo irlandeses, empreenderam a penetração pacífica, mas muito mais perigosa que todas as outras, no território germânico para converter os germanos.

Surge Carlos Magno

Aquilo que era um renascer do mundo católico se encontrava exposto a terríveis perigos. Foi então que apareceu a figura famosa de Carlos Magno. O que fez Carlos Magno? Ele impôs sua  autoridade a todos que eram descendentes de gauleses, romanos e germanos, essa mistura. Levou sua autoridade até a ponta da Espanha.

No Norte da Espanha, em Santiago de Compostela, visitando a catedral, me falaram de uma capelinha construída por ordem de Carlos Magno, em estilo românico, que fica encaixada na
escadaria da catedral. Eu fiz questão de visitá-la, porque queria prestar homenagem a essa reminiscência do Imperador Carlos e o meu culto a Deus Nosso Senhor, que assim foi glorificado por esse grande homem.

De outro lado, Carlos Magno entrou na Itália e apaziguou a ferro os bárbaros que lá havia. Ele apoiava os missionários e, segundo notícias que desconfio serem falsas – não tive tempo de estudar a  fundo –, punha para os bárbaros germanos esta alternativa: quem se converte está bom; quem não se converte vai morrer. E assim organizou matanças que, notem bem, a Igreja não aprovou. Ele  empregava processos drásticos.

Um desses processos era o seguinte: os germanos, que estavam além do Reno, acreditavam estupidamente na divindade de um carvalho que havia ali, chamado Irmensul, o qual eles diziam que  deitava raízes até o centro da Terra.

Carlos Magno disse: “Vou mostrar a vocês o que é esse carvalho ‘divino.’” Mandou arrasar a árvore. “Olhem o deus de vocês.” Arrasado o carvalho, os germanos não tinham nada que fazer, estava  liquidado o caso.

Um protetor ardorosíssimo da Igreja Católica

Por sua valentia, sua personalidade extraordinária, seu heroísmo, Carlos Magno de tal maneira adquiriu prestígio sobre aquela gente, que foi reconhecido como o soberano aquelas regiões.

Numa noite de Natal, rezando na Basílica de São João de Latrão, que é a Catedral dos Papas em Roma, o Pontífice o coroou como Imperador do Ocidente, fundando assim o Sacro Império Romano que durou exatamente mil anos.

No começo, Carlos Magno não queria, mas afinal de contas, vendo ser vontade do Papa, aceitou. Terminada a Missa, foi aclamado por todo o povo como Imperador do Ocidente, do império que só  terminou no século XIX, quando Napoleão o declarou extinto. Carlos Magno foi um protetor ardorosíssimo da Igreja Católica. Defendeu-a contra os invasores maometanos e bárbaros. Nos últimos
anos de sua vida, os germanos estavam começando a invadir o seu império, e ele ainda lutou contra eles.

Pouco depois ele morreu, tendo levado uma vida carregada de méritos. Esse homem extraordinário difundiu  a cultura, favorecendo a formação de mosteiros onde se estudava e se formava a  Literatura. Ele tinha por conselheiro um monge, Alcuíno, homem muito capaz que começou a fundar a cultura europeia. Então Carlos Magno aparece na História como um gigante, que ao mesmo  tempo liquida todos os elementos de deterioração e de agressão, e começa a implantar o que hoje é a Europa. É o Pai da Europa católica, apostólica, romana, que limpou de invasores grande parte da Europa. Por exemplo, Espanha e Portugal ele defendeu muito contra os árabes, mas em todo caso não bastou; somente no século XV os árabes foram expulsos da Espanha. Seja como for, a luta  foi-se efetuando e o núcleo da Europa de hoje foi ele quem fez.

Por causa disso ele é o Fundador da Europa, mas da Europa católica, que defendeu a população necessária para que a Europa fosse Europa. Ao mesmo tempo, Carlos Magno sobretudo defendeu e expandiu a Fé Católica.

E começou um movimento missionário que foi, ao longo dos séculos, até o Norte da Rússia, convertendo os povos do Mar Báltico. Por esta forma se constituiu a maior semente de cultura existente  o mundo, que foi, na História cristã, o continente europeu.

Ele foi Santo?

Uma vez que ele tinha tais méritos, pode-se perguntar qual foi seu papel diante da Igreja. Ele foi um Santo? A resposta que me parece melhor para dar a essa pergunta é: se um Santo tivesse feito  isto, ter-se-ia dito que é uma obra típica de um Santo, e de um grande Santo. De um dos maiores Santos da História da Igreja.

De outro lado, se ele tivesse sido um homem pecador – não que vive em estado de pecado mortal, mas que de vez em quando peca mortalmente –, dir-se-ia que não poderia realizar esta obra.  Porque é uma obra de apostolado insigne. E segundo Dom Chautard, no famosíssimo livro A alma de todo apostolado – que explica a doutrina da Igreja –, quem não possui vida de piedade intensa, não tem Fé, Esperança e Caridade intensas – são as virtudes teologais –, depois as virtudes cardeais, este não pode fazer uma obra de apostolado fecunda. Então, como Carlos Magno pôde fazer uma das maiores obras de apostolado de todos os séculos se não fosse muito virtuoso? Evidentemente é muito difícil explicar isso.

É verdade que há pontos nebulosos na história de Carlos Magno. Ele se casou com uma princesa da Lombardia – onde havia um povo bárbaro, que tinha ocupado o Norte da Itália –, depois se  separou dela e casou com uma outra. Houve uma anulação de casamento regular? Havia nulidade mesmo de casamento, ou isto foi uma transgressão do princípio através do qual o casamento é  indissolúvel?

Certas matanças feitas por ele a Igreja censura. Realmente não é fácil justificá-las. Dizer a um indivíduo “ou tu crês ou te mato” não se pode fazer. Nem obrigar uma pessoa a crer, ou a dizer que  crê, quando ela não acredita. E Carlos Magno, agindo desta forma, fez mal. Mas qual era o grau de conhecimento que ele tinha de que isto era ruim? Há uma porção de problemas a este respeito.

Católico, guerreiro e monarca por excelência

O fato é que a figura de Carlos Magno se projetou sobre toda a Idade Média. Ele foi o grande pró-homem da Idade Média, quer dizer, homem por excelência, católico por excelência, guerreiro por  excelência, monarca por excelência, Carlos Magno. “Magno” é a palavra latina que quer dizer “grande”: Carlos o Grande. Mas o adjetivo “magno” ficou de tal maneira colado ao nome dele que, mesmo nas nações onde o termo “magno” quase não se usa ou desapareceu de todo, ainda ninguém diz dele “Carlos o Grande”, mas “Carlos Magno”. Há uma magnitude que está inerente a ele.

 Em Aix-la-Chapelle, ele ia tomar águas. Devido a um incômodo qualquer de natureza gástrica, bebia essas águas que lhe faziam muito bem. E até hoje, em Aix-la-Chapelle, há uma fonte de água  mineral, chamada Fonte de Carlos Magno, onde as pessoas doentes da cidade a tomam gratuitamente.

Essa fonte jorra água noite e dia. As pessoas vão com garrafões e os enchem com aquela água. Bebem, faz bem para muita gente pelas suas propriedades químicas, não é uma água milagrosa. Foi  feita a análise química. Essa água fazia bem no tempo de Carlos Magno, e faz bem até hoje em dia. Na cidade de Aix-la-Chapelle ele tinha um palácio, do qual restam lindos vestígios. E mandou  construir a catedral onde assistia ao Ofício num trono, o qual se conserva até hoje e que nós tivemos a felicidade de oscular.

Nesse povo se manteve a ideia de Carlos Magno como um Santo. Desde os primeiros tempos do Imperador até nossos dias, em algumas cidades da zona, se celebra Missa em louvor do que eles  chamam o Bem-aventurado Carlos Magno, com permissão da Igreja. Comemora-se uma festa oficial naquela região, da qual toma parte todo o povo.

“Chanson de Roland”: uma das mais bonitas obras poéticas de todos os tempos

É extremamente improvável admitir a hipótese de que Carlos Magno não esteja no Céu. Porque, embora não tenha sido canonizado, a Igreja autoriza um culto a ele; é impossível imaginar que  esteja no Inferno. Entretanto, a Igreja ainda não se pronunciou a respeito da heroicidade de suas virtudes.

Só mediante um pronunciamento da Igreja infalível é que se pode generalizar o culto dele a todo o orbe católico.  Mas o modo como são tratadas as relíquias dele nessa catedral é como se tratam as relíquias de um Santo.

A vida de Carlos Magno inspirou uma das mais bonitas obras poéticas de todos os tempos, que é a “Chanson de Roland”. Roland, o sobrinho dele, seu principal guerreiro e braço direito, formava,  com outros onze guerreiros, os doze pares de Carlos Magno. Eram seus doze grandes guerreiros, seus grandes sustentáculos, que o ajudaram a fazer essa obra extraordinária de defesa e de  conquista.

Episódios da luta deles foram cantados na canção de gesta de Roland, que é uma verdadeira maravilha. Essa canção de gesta projeta a beleza da figura de Carlos Magno de modo extraordinário, e  contribuiu para formar uma atmosfera de respeito verdadeiramente religioso, por vezes tributado até por pessoas laicas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/12/1988)

 

Mãe de Deus e nossa

A devoção à Santíssima Virgem foi, durante toda a vida de Dr. Plinio, a estrela que o guiou em meio a inúmeras “procelas”. Acompanhemos alguns comentários que deixam transparecer o que sempre transbordou de seu coração: a confiança em Nossa Senhora.

 

Devemos tomar em consideração que a “batalha” a ser enfrentada por cada homem no decorrer de sua vida, é verdadeiramente uma dura batalha. Mas essa batalha pode ser ganha por uma razão fundamental: é que ninguém luta a sós.

O que significa não lutar a sós?

A necessidade de uma ajuda sobrenatural

Temos em nosso auxílio uma proteção sobrenatural, sobre-humana, que é a proteção de Nossa Senhora.

A Ela foi dado conhecer a alma de cada homem de uma forma que ninguém jamais conheceu. A Santíssima Virgem vê até o mais íntimo da alma de cada um de nós, com tal amor, bondade e desejo de ajudar, que isso A levou a consentir nos padecimentos pelos quais seu Divino Filho passou.

Como Nosso Senhor era filho de Nossa Senhora e do Divino Espírito Santo, o Padre Eterno pediu o consentimento d’Ela para a consumação da Paixão de seu Divino Filho. O Padre Eterno não quis fazer algo sem atender ao consentimento d’Ela.

A pergunta feita por Ele a Nossa Senhora possivelmente foi a seguinte:

“Esse Filho, a quem quereis tanto e que é o Filho do próprio Espírito Santo, vai ser morto para a salvação de todo o gênero humano. Vós quereis entregá-Lo para a salvação da humanidade? Se quiserdes, Ele sofrerá como nunca ninguém antes, nem depois d’Ele, terá jamais sofrido. Uma enormidade de tormentos e de aflições se abaterá sobre Ele. Mas se Vós quiserdes, Ele não passará por essas dores, mas os homens não se salvarão e irão para o Inferno. Quereis?”

E Ela respondeu: “Quero!”

Respondeu tendo em vista cada homem, seus pecados e ingratidões.

Para que fôssemos limpos de nossos pecados e resgatados da culpa original, o Filho d’Ela padeceu enormes  tormentos, também para que tivéssemos a força necessária para nossa “batalha” no decorrer da vida.

Sempre que pedirmos a proteção d’Ela, obteremos

Nunca nos faltarão as forças, pois sempre que peçamos a proteção d’Ela, obteremos.

É preciso pedir, pois é insuficiente cobrar a Deus: “Vós prometestes que a tentação nunca seria maior do que as forças para combatê-la, porém agora eu não tenho forças”. A resposta de Deus será: “Esforce-se apenas um pouco que o resto virá”.

Além de esforçar-se é preciso pedir forças a Nossa Senhora.

Portanto, é preciso ter em relação a Ela uma devoção comparável à de São Luís Grignion de Montfort, compreendendo que Ela é medianeira de todas as graças, e todos os pedidos feitos ao Padre Eterno Lhe são agradáveis quando feitos por meio da Santíssima Virgem.

Quando Deus atende a um pedido feito por qualquer homem, Ele o faz através de Nossa Senhora, porque o pedido foi endossado e feito por Ela. Esta é a causa pela qual somos atendidos.

Há uma oração lindíssima — a qual recomendo rezarem — que recorda o desvelo e a mediação de Nossa Senhora para com todos os homens: é o Memorare (Lembrai-vos).

A lindíssima oração do Memorare

“Lembrai-Vos, ó piíssima Virgem Maria…”

Cada palavra tem sua aplicação. O que quer dizer, “piíssima”? Piedosa, tem como superlativo piedosíssima. Mas resume-se dizendo “piíssima”. “Piedosa”, neste caso, não quer dizer rezar muito, mas sim, ter largamente piedade e compaixão dos outros. Poder-se-ia dizer: “Lembrai-Vos, ó compassivíssima Virgem Maria”, que tem muita compaixão, que perdoa muito.

“…que nunca se ouviu dizer…”

A oração começa por essa afirmação, “nunca se ouviu dizer”, ou seja, em nenhum tempo ou lugar, em toda a Terra, alguém, tendo pedido alguma coisa a Ela, foi desamparado.

“…que tendo alguém recorrido à vossa proteção, implorado a vossa assistência, reclamado o vosso socorro, fosse por Vós desamparado…”

Ou seja, “quem, pedindo vossa proteção, implorando que Vós o acompanheis, que olheis para ele, que o sigais, Vós sempre atendeis. Lembrai-Vos disso no meu caso, para que não seja eu a primeira exceção na história de vossa glória.” É uma linda proclamação. Em nenhuma época do mundo a Virgem Maria deixou de atender àqueles que pedem a Ela, em nenhum caso, em nenhuma circunstância.

Se alguém tem a infelicidade de pecar, ou de possuir um vício, ou uma atitude moral — ou imoral — que se repete, não há problema: basta rezar e pedir, porque Nossa Senhora acabará tendo pena.

“Animado eu, pois, com tal confiança, a Vós, ó Virgem entre todas singular…”

Quer dizer: “Vós sois mais Virgem do que todas as virgens, sois a Santa Virgem das virgens”. Pois Ela está para as virgens como as virgens estão para as que não são virgens. Nenhuma virgem do mundo teve a virgindade d’Aquela que foi virgem, antes, durante e depois do parto.

Como pôde Nosso Senhor ter nascido sem violar a virgindade de sua Mãe?

É um mistério que a Onipotência de Deus pode fazer facilmente.

“…como a Mãe recorro e de Vós me valho…”

É como dizer: “Eu me dirijo a Vós como a minha mãe”.

Há algo emocionante, que não raras vezes se dá: os feridos no campo de batalha durante uma guerra padecem, muitas vezes, durante horas e horas, com dores, sangrando, sentindo fome, sede e cansaço. Ficam abandonados. Naturalmente, nesse apuro eles gritam. A maior parte dos gritos é pela mãe! São homens às vezes que perderam a mãe quando eram pequeninos, porém, na hora da morte, é pela mãe que eles bradam.

Ninguém é capaz de amar tanto a alguém, quanto uma boa mãe ama o seu filho.

Mesmo sendo o último dos homens, não há problema, pois Nossa Senhora é a mais alta e a mais excelsa de todas as mães. A compaixão d’Ela vale mais do que os castigos merecidos por nossos pecados. Se nossos pecados são um abismo, a compaixão de Nossa Senhora é uma montanha muito maior do que esse abismo.

“…e gemendo sob o peso dos meus pecados, me prostro aos vossos pés…”

O Memorare é, por definição, a oração de um pecador. Por isso a oração termina dizendo: “…gemendo sob o peso de meus pecados me prostro aos vossos pés”. É um pecador que está gemendo sob o peso de seus pecados, mas posto aos pés da Virgem Santíssima. Portanto, se temos a desgraça de estar em pecado, não deixemos de rezar essa oração com confiança, porque é a oração do pecador: “E gemendo sob o peso dos meus pecados me prostro aos vossos pés”.

“Não desprezeis as minhas súplicas, ó Mãe do Verbo de Deus humanado…”

O coração da mãe está sempre aberto para perdoar e afagar o filho.

“Minha Mãe — Vós sois a Mãe de Jesus Cristo, o Verbo que se fez homem, mas a minha também —, não desprezeis as minhas súplicas. Elas bem podem ser desprezadas, pois são súplicas, por si mesmas, inválidas. Porém, não as desprezeis, porque sou vosso filho e um filho pode pedir isso a sua mãe.”

“…mas dignai-Vos de as ouvir propícia…”

Tem-se a impressão de que Nossa Senhora vai se inclinar bondosamente e ouvir a oração.

“…e alcançar o que Vos rogo. Assim seja.”

O que se está pedindo? Pode ser a emenda de um defeito, de um vício, a aquisição de uma virtude. Tomando em consideração tudo quanto a Igreja ensina sobre Nossa Senhora, temos todos os motivos para crer que Ela vai obter o que rogamos. Devemos pedir tudo à Santíssima Virgem com muito empenho e ardor, mas, sobretudo algo que sobremaneira A agrada: a graça de sermos bons.

O que Ela quer de nós é que estejamos na graça de Deus e cheguemos ao Céu.  Pedir forças para nossa salvação é pedir aquilo que as santas mãos de Maria estão transbordando para nos conceder.

Nossa Senhora é a Onipotência Suplicante

Pelo que foi dito sobre Nossa Senhora, conclui-se que a devoção a Ela é de suma importância. Se Deus é tão perfeito, tão supremo, e nós, homens, tão insignificantes, caso não houvesse uma ligação entre Deus e os homens — que é Nossa Senhora — Ele não nos ouviria. A Justiça, a Pureza, a Santidade d’Ele, postas em contato com as misérias humanas, Lhe causariam horror.

Mas Ele mesmo, com suma bondade, criou vínculos que nos atariam a Ele. Encarnando-se no claustro virginal de Maria Santíssima, Ele se fez homem. Sendo Nossa Senhora Mãe espiritual de todos os homens, pedindo a Ele por nós, Ela assemelha-se a uma mãe que pede a um irmão, em benefício do outro. O irmão não pode resistir. Desta forma, Nossa Senhora é chamada pelos teólogos: “Onipotência suplicante”.

Ela suplica. Porém, sendo sua oração sempre atendida, ao mesmo tempo em que suplica, é onipotente.

É notório que ela atende ao que pedimos. Desta forma, nós, que não mereceríamos ser ouvidos por Deus em nossos pedidos, por causa d’Ela acabamos por merecer.

Mãe de compaixão sem limites

Torna-se muito clara a doutrina acima exposta, tomando em consideração, por exemplo, uma mãe que tenha dois filhos: um filho juiz e um criminoso. Se coubesse ao filho juiz julgar o que é criminoso, a boa mãe certamente se dirigiria ao juiz e diria: “Meu filho, sei que tu és juiz e a ti cabe aplicar a justiça. Os defeitos deste teu irmão são tais que merecem a pena de morte. Entretanto, em justiça — tu, juiz, me deves a vida — poupai a vida deste meu filho que merece a morte, por pedido daquela que te deu a vida”.

A maior das prerrogativas de Nossa Senhora é ser Mãe de Deus. Tudo aquilo que um filho possa dar à sua mãe, Deus deu a Ela.

O valor da súplica de Nossa Senhora é tão grande que os teólogos afirmam: todas as orações de todas as criaturas devem passar por Nossa Senhora, caso contrário, não chegam a Deus. De modo que — dizem eles — se todos os anjos e santos do Céu pedissem algo a Deus sem ser por intermédio d’Ela, não seriam atendidos. Entretanto Nossa Senhora, pedindo sozinha, é atendida.

Essa é a Mãe de uma doçura sem nome e uma compaixão sem limites. Uma mãe que tem tanta pena de seus filhos que, na hora de um filho ruim ser julgado, obtém para ele a salvação.

Aos pés da cruz, intercedendo pelo bom ladrão

É célebre a tocante passagem do Evangelho na qual Nosso Senhor crucificado está entre dois ladrões. Estes últimos conversavam entre si, e o mau ladrão blasfemava contra Nosso Senhor.

O bom ladrão replicou: “Nós merecemos o castigo que estamos sofrendo e por isso vamos morrer. Mas Este é um justo e não merece tal suplício. Por isso, não fales mal d’Ele”.

Pediu a Deus perdão pelos pecados que cometeu.

Jesus disse a ele: “Tu, hoje, comigo estarás no Paraíso”.

Foi a primeira canonização da História! “Hodie mecum eris in Paradiso”.

Nossa Senhora estava aos pés da cruz. Certamente Ela estava rezando pelos ladrões. Nosso Senhor, do alto da cruz, recebeu essa oração e deu graças extraordinárias a ambos. Um deles, por ser ruim as rejeitou; o outro, porém, correspondeu a elas e pediu perdão. A graça da conversão que o bom ladrão recebeu foi tão abundante que Nosso Senhor, ao descer para o limbo a fim de levar para o Céu as almas dos justos que lá se encontravam, levou também a alma dele.

Eu julgo que, se não fosse a oração de Nossa Senhora, nada teria acontecido.

Assim é possível compreender a importância da devoção a Nossa Senhora. Tal devoção é leve, cheia de esperança, de perdão e de afeto materno; constitui a alegria de nossas almas. Sem a devoção a Nossa Senhora, nossa vida de católico seria soturna.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 21/9/1991 e 3/3/1992)

 

Um grande epistológrafo

O Bem-aventurado Sebastião Valfré escreveu alguns livros e muitas cartas, tratando de temas teológicos. A propósito do seu talento epistolográfico, Dr. Plinio faz uma meditação, mostrando a decadência dos modos de comunicar o pensamento humano e como esse mal atingiu também a causa contrarrevolucionária. Entretanto, sempre que Deus permite a sua invencível Igreja ser batida, açoitada pelos ventos, o mal é para o gênero humano, não para ela.

 

Comentaremos a biografia do Bem-aventurado Sebastião Valfré, com base numa ficha tirada da obra do Padre Rohrbacher, Vida dos Santos(1).

Variedade de cartas sobre assuntos de Teologia

Sebastião Valfré, nascido na Saboia, em 1629, morreu em Turim, em 1710. Sacerdote oratoriano, grande apóstolo da caridade, virtude em que se distinguiu durante toda a sua vida. Famoso pela santidade de vida, amor à oração e ciência, manteve enorme correspondência com bispos, sacerdotes e grandes personalidades da corte sobre assuntos de Teologia, ou dando numerosos conselhos sobre questões várias. Apesar de ter todo o seu tempo ocupado, deixou obras realmente úteis: “Curta instrução às pessoas simples”, que obteve grande sucesso, “Exercícios cristãos” e “Meio de santificar a guerra”, esta última destinada aos que abraçavam a carreira das armas.

Especialmente devoto da Santíssima Virgem, quando começava a ensinar Teologia, uma das primeiras verdades sobre a qual chamava a atenção dos alunos era a da Imaculada Conceição. Durante seis meses explicava a Ave-Maria, palavra por palavra, pois cada uma delas lhe servia de tema para as aulas. Além disso, recomendava especialmente a devoção aos Anjos da Guarda. Dizia que em todas as suas necessidades e aflições jamais deixava de invocar seu Santo Anjo e por ele nunca fora abandonado. Além disso, seu zelo era voltado às almas do Purgatório, pelas quais nunca deixava de rezar todos os dias.

Idade Média: época das grandes sumas

A dificuldade em comentar essa biografia encontra-se no fato de que ela contém os grandes traços do sacerdote santo desse período. Ora, como houve muitos sacerdotes santos nessa época, acontece que esses traços todos mais ou menos já estão estudados. Contudo, há alguns pequenos esclarecimentos que podem ser dados.

Talvez cause certa surpresa ver que a correspondência ocupava na vida dele um papel importante. Mas precisamos tomar em consideração que ele viveu exatamente no tempo de Luís XIV, ou seja, no auge do “Ancien Régime”, em que as condições de comunicação do pensamento eram muito diferentes das hodiernas, mas de algum modo já as prenunciavam.

É uma coisa curiosa na história dos descobrimentos, das invenções e das modificações da vida social, como vem nascendo no espírito das nações, com longas antecedências, apetências para as coisas que mais tarde os descobrimentos inesperados vão fazer surgir.

Ao analisarmos as obras escritas na Idade Média, notamos aquelas grandes coleções. É a era do pensamento sério, das sumas; livros escritos em pergaminho, em material volumoso, bibliotecas com aquelas coleções enormes. Quando aparece a imprensa, começam a surgir os livros menores. O material vai se tornando mais leve, mas também, simultaneamente, começam a desaparecer as grandes sumas e as grandes obras de conjunto.

O espírito humano torna-se fragmentário: os livros especializados e as cartas

O espírito humano, perdendo aquela unidade medieval, vai se tornando fragmentário, produzindo obras menores sobre pontos específicos e perdendo apetência para as grandes universalidades, os grandes conjuntos do pensamento. De onde as coleções de livros ainda continuarem a existir, mas com uma tendência a desaparecer e darem origem ao ensaio, ao livro especializado.

Mas já no tempo de Luís XIV e, portanto, da Madame de Sevigné, começam as cartas a tomarem um papel paralelo ao dos livros. As estradas se tornaram muito mais seguras, o transporte por mensageiros a cavalo e a carruagem começou também a se tornar mais fácil, mais seguro e, com isso, a correspondência postal, sem ter adquirido a institucionalização que obteve no século XIX, foi, entretanto, se tornando também mais metódica. Assim, começou a aparecer um estilo novo de comunicação de pensamento mais delgado do que o livro, que é a carta.

Havia cartas de duas espécies: uma tratando de um assunto doutrinário, e outra dando notícias. As que tratavam de assuntos doutrinários eram grandes cartas escritas por personagens eminentes.

Anteriormente a esse nosso Santo, o infame Erasmo, por exemplo, um pouco posteriormente a ele o infamíssimo Voltaire, fizeram uma obra revolucionária enorme através de cartas que eram, muitas vezes, doutrinárias ou de análise de fatos, que eles mandavam a vários outros homens célebres do tempo. Célebres por sua cultura, por seu talento, pela alta posição política, pela ligação que tinham com os acontecimentos da época, ou pela categoria eclesiástica ou nobiliárquica que ocupavam.

Essas cartas, depois, eram copiadas. Por exemplo, um sujeito qualquer que recebesse uma carta de Erasmo ou de Voltaire, tomava a missiva recebida mais a resposta dele e publicava. Aquilo era impresso e distribuído. Ele mesmo mandava para seus relacionamentos, a fim de verem que ele escreveu uma coisa tão importante que o grande Erasmo, o grande Voltaire se dignou responder. Então, as duas cartas constituíam quase que um tratadinho a respeito de algum tema.

Coisa muito apreciada era a carta sobre uma controvérsia entre dois personagens sumos a respeito de determinado assunto. Uma troca de correspondência entre o Cardeal Caetano e Lutero, por exemplo, constituía um fino alimento para os espíritos eruditos.

Surgem os artigos de revista e de jornal

Vemos, assim, como vai nascendo, de longe, o artigo de revista e de jornal. Antes mesmo de haver a revista e o jornal, o espírito humano ia engendrando algo que preparava as condições para esses meios de comunicação.

Concomitantemente, havia os noticiários que circulavam largamente. Antes de a imprensa chegar ao desenvolvimento que ela atingiu no século XIX, existiam nas capitais dos países agências que mandavam as notícias manuscritas para o interior, mediante assinatura. Já eram, portanto, “jornais” manuscritos, antes de haver propriamente os jornais, de tal maneira o espírito humano vai adiante da descoberta. Depois é que vem a descoberta e alcança celebridade. Mas é porque havia condições no espírito humano para notar aquele progresso e aproveitá-lo. Do contrário, aquilo passava desapercebido e ninguém se incomodava.

É bonito notar como a Igreja vai engendrando, para cada nova forma de comunicação, formas novas de talento. De maneira que a epistolografia, a qual desde os tempos dos romanos havia decaído, tomou exatamente a partir do século XVI um realce muito grande. Assim, vemos surgir grandes Santos epistológrafos.

O apogeu do gênero epistolar

O Bem-aventurado Sebastião Valfré, grande teólogo e filósofo, escreveu três livros e uma multidão de cartas que, com certeza, circularam amplamente no tempo dele e fizeram muito bem, pois este era um estilo clássico de se comunicar.

Hoje a carta decaiu enormemente de importância e de qualidade, pois foi substituída pelos modernos meios de comunicação: jornal, rádio, televisão, telefone, etc. Quando estes não existiam, a tendência de quem escrevia cartas, sabendo que as notícias seriam tão bem aproveitadas, era de aprimorar o estilo, arranjar um bonito papel e elaborar uma linda caligrafia. Quer dizer, tudo quanto cerca uma carta chegou ao seu apogeu nesse período. Temos então, nesse tempo, um grande Santo que é também um grande epistológrafo.

No século XIX tivemos o grande jornalismo católico, cujo rei foi Louis Veuillot. Ele se tornou o jornalista católico perfeito, realizando uma coisa que poderia parecer impossível: num estilo definidamente baixa de nível, fazer coisas de alto nível. A forma do jornalismo de Louis Veuillot era a seguinte: ele tinha uma visão penetrante e clara dos “flashes” da realidade. Ele não era nem um pouco um espírito capaz de fazer uma suma. Um ou outro livro de grande porte que ele escreveu não foi bem sucedido. Mas ele tinha uns “flashes” a respeito da realidade, uns “aperçus”, em que ele pegava a coisa com muita clareza. E tinha um francês ligeiro e insolente que exprimia aquilo sucintamente. Em três gotas de tinta ele construía ou destruía uma pessoa, uma argumentação ou uma refutação. Dessa maneira ele teve a forma de talento própria ao estilo jornalístico para defender a causa contrarrevolucionária.

Devemos ver os desígnios de Deus nos castigos que Ele impõe

Notamos aqui os desígnios secretos da Providência. E como são insondáveis as coisas de Deus. É bonito que Deus Nosso Senhor tenha constituído talentos que se adaptassem a essas várias formas que foram aparecendo. Nós não vemos um talento que tenha dado um brado de alarme contra as sucessivas baixas que essas formas representavam. Por quê? Evidentemente, castigo de Deus para a humanidade. Deus, descontente, permitia que a casa fosse caindo em ruínas, e ia dando engenheiros para colocarem escoras nela. Mas não deu engenheiros capazes de deterem a ruína e reconstruírem a casa. Porque havia pecados no mundo que provocavam a cólera d’Ele. Por causa disso, chegamos ao momento em que a casa está a ponto de ruir.

Alguém dirá: “Mas Dr. Plinio, com isso não foi derrotada a Igreja? Ora, se Deus ama a Igreja, não seria razoável que Ele evitasse para ela essa humilhação?”

Cada vez que a Igreja é aparentemente vencida, a derrotada não é ela, mas sim a humanidade. Porque a Igreja existe para beneficio dos homens. Portanto, sempre que Deus permite a sua invencível Igreja ser batida, açoitada pelos ventos, o mal é para o gênero humano, não para ela. Devemos ver os desígnios d’Ele nos castigos que Ele impõe.

Nós temos, com isso, uma meditação a respeito do talento epistolográfico desse Bem-aventurado.

 

(Extraído de conferência de 30/12/1969)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. v. XXII, p. 211-216.