Santo Agostinho – Águia de Hipona

A águia, no momento em que está levantando seu voo, é muito bonita.

Porém, ainda mais belo é o pensamento humano, quando expresso de tal modo que se possa perceber o seu voo. Assim é Santo Agostinho: em seus ímpetos de alma, mostra um voo incomparável.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Nossa Senhora, Rainha da História

Inúmeras vezes, em suas conferências, Dr. Plinio falou a respeito da realeza de Nossa Senhora. Suas elevadas explicitações eram frutos  de uma autêntica piedade mariana.  Imaginando como teria  e desenvolvido a Humanidade no Éden,  caso não houvesse o pecado original, Dr. Plinio narra  o movimento ascensional da História rumo a Nossa Senhora.

 

Com que alegria eu atendo ao pedido que me apresentaram para fazer uma exposição a respeito de Nossa Senhora como Rainha da História!

Para se entender em que sentido Maria Santíssima tem esse título, é preciso compreender o que significa Rainha e História. Esses são temas familiares a nossas almas; tratarei apenas de explicitá-los.

A História tem necessariamente um “unum”

Imaginemos que alguém, ao fazer um histórico de um hotel, o concebesse da seguinte maneira: o que se passou nos quatrocentos ou quinhentos quartos do hotel. Não seria, portanto, a história dele como uma instituição, um estabelecimento que fornece comida, alojamento, com épocas em que os hóspedes são mais numerosos ou menos, a renda é maior ou menor; onde surgem problemas com os empregados, há mudanças de donos porque antigos proprietários morreram ou o venderam.

O histórico seria, portanto, composto de histórias do que se passa naquela população ambulante, os hóspedes que vêm de diversos lugares, passam lá algum tempo, depois voltam ou nunca mais aparecem; são eles animados por desejos, esperanças, realidades diversas, e um hóspede que entra não tem ideia de quem o antecedeu nem de quem o sucederá. Isso não forma a História.

Um historiador que trabalhasse essas informações poderia, quando muito, escrever “histórias em um hotel”. Escolheria esses e aqueles personagens interessantes que passaram pelo hotel, e explicaria em que períodos de suas vidas estiveram lá, quais eram presumivelmente seus pensamentos, suas preocupações, o que faziam, por que ali se hospedaram e, talvez pelo registro das ligações interurbanas do hotel, com quem teriam falado etc. Isto seriam histórias num hotel, mas não a história de um hotel.

Por quê?

A História, como um “unum”, é diferente das histórias fragmentadas e esparsas como as acima imaginadas. Ela é uma narração que tem o mesmo agente, temas conexos, e cuja ação é contínua através dos tempos. Essa é a perfeita História.

Por exemplo, História de uma nação: há um mesmo agente, quer dizer, a nação tomada no seu conjunto, que está agindo. Em geral, os temas têm certa continuidade: relações com os países fronteiriços, problemas internos culturais, sociais, econômicos que vão mudando com o tempo, mas nascem um do outro.

Mas, se não houver uma continuidade de agentes e de temas; mais ainda, se não existir uma continuidade daqueles em relação aos quais a História se desenvolve, ela não forma um todo.

Nossa Senhora é a Rainha de todos os povos

Ora, quando dizemos que Nossa Senhora é Rainha da História, não afirmamos que Ela é a Rainha apenas da História deste ou daquele país, nem sequer de um bloco de países. Por exemplo, Rainha da História dos povos cristãos Ela o é, sem dúvida, a título especial dos povos católicos. Mas a Virgem Santíssima é genericamente Rainha da História de todos os povos. E as relações longínquas entre a Coreia e o Japão, a Coreia e a China, a China e o Japão — relações triangulares complexas, atormentadas, que se desenvolveram entre esses três povos de raça amarela e vizinhos ao longo dos séculos — não tinham a Nossa Senhora como ponto de referência, mas sim como Rainha.

A triste História intertribal da América do Sul, das várias nações de índios cujas tribos se atacavam umas às outras, colaboravam entre si por terem inimigos comuns, se ignoravam e por vezes se perdiam nas vastidões da “jungle”(1) americana; toda essa movimentação dos homens é a História. E Nossa Senhora é a Rainha dessa História, ainda para os povos que A ignoravam. Ela é a Rainha da História inteira.

Digo de propósito “da História inteira”, porque não se refere apenas a tudo o que aconteceu em determinada época, mas desde que o homem foi criado até o momento em que os últimos justos vivos serão chamados a participar do julgamento dos outros — porque serão amados por Deus —, e os malditos escorraçados pela justiça divina. Enfim, enquanto houver homens vivos haverá História, e Nossa Senhora será a Rainha dessa História.

“Post-scriptum” marial da História

Qual é a relação de Nossa Senhora com o centro em torno do qual se move a História?

Compreendendo o “unum” da História, entenderemos melhor como Ela é a Rainha da História. Então, a glorificação de Maria Santíssima como Rainha da História aparecerá claramente aos nossos olhos.

No Reino de Maria haverá uma esplendorosa catedral em honra de Nossa Senhora Rainha da História. Será talvez a catedral de todos os esplendores do Reino de Maria. A vitória sobre o dragão da Revolução para a implantação do Reino d’Ela fecharia uma era na História e abriria outra. Mais ainda: de algum modo terminaria a História e começaria a post-História.

Há uma tese, que nos é cara, de que a História propriamente não se encerraria agora e, portanto, não estaríamos no fim do mundo, embora todas as aparências sejam de fim de mundo. Em razão dos acontecimentos que ocorrem atualmente, podemos dizer que é o fim de um mundo, mas não o fim do mundo.

Porque, pela intercessão de Nossa Senhora e para a realização de uma glória d’Ela, sem a qual a História não pode encerrar‑se — por causa d’Ela e não devido a nós —, a História terá a sua post-História. Como numa carta se pode colocar um “post-scriptum” mais belo do que a própria carta, na História será escrito o “post-scriptum” marial da História: o Reino de Maria. Todas as riquezas, todo o bom gosto e, sobretudo, toda a piedade do mundo devem se mobilizar para comemorar a abertura dessa post-História, que é o fecho de ouro da História do mundo.

Antes mesmo de nascer, Nossa Senhora já reinava na História

Vejamos qual será a continuidade dessa História.

Antes da Torre de Babel, os homens constituíam um só todo, moravam no mesmo lugar, ou em locais tão próximos que tinham contato contínuo entre si. Em suma, o gênero humano não estava disperso pela Terra, todos os povos giravam em torno de alguns acontecimentos centrais e eram o eixo da História.

Nossa Senhora ainda não havia sido criada, mas já era com vistas a Ela e a seu Divino Filho, o Qual haveria de vir, que a História era tecida.

Deus, ao governar a História — e quem pode duvidar que Ele seja o Rei da História? —, tinha em vista a Encarnação do Verbo no claustro puríssimo de Maria Virgem, e, por causa disso, dirigia a História caminhando para esse ponto, esse destino. Nossa Senhora estava, portanto, presente nos planos de Deus e, antes de nascer, já reinava na História, porque tudo era dirigido por Ele de modo tal que desse glória a Ela.

Há alguns reis que o são desde meninos; outros que, estando ainda no claustro materno quando lhes morre o pai, herdam a realeza antes mesmo de terem nascido; mas ninguém é rei antes de ter sido concebido. Nossa Senhora, séculos antes de ser concebida, já era Rainha. Desde sempre Ela estava nos planos do Padre Eterno, no amor do Verbo, nas ansiedades de seu Divino Esposo, o Espírito Santo, e, por causa disso, tudo corria em direção a Maria Santíssima. Isto é ser Rainha!

Depois da dispersão da Torre de Babel — que estava sendo construída por pessoas tomadas de orgulho, pretendendo que ela chegaria até o Céu —, os homens foram para as direções mais variadas. A História nos mostra que uns perderam contato com os outros. Como um planeta que tivesse explodido no céu, dando origem a muitas estrelas pequenas e algumas Vias Lácteas, a Humanidade eclodiu, fazendo surgir corpúsculos, grupos humanos que se ignoraram uns aos outros do modo mais completo.

Entretanto, acima disso pairava um “unum”, o qual fazia com que a História humana se desenrolasse. Qual era esse “unum”, e como Nossa Senhora é Rainha desse “unum”?

Fivela que prende o reino angélico ao reino animal

De fato, o gênero humano tem uma unidade. Nos planos de Deus, os homens constituem intermediários entre os anjos, seres puramente espirituais, e, de outro lado, os animais, seres materiais; e mais abaixo estão as plantas e os minerais. O ser humano é, por assim dizer, a fivela que prende o reino angélico ao reino animal.

Embora não sejamos, nem de longe, elevados como os anjos — os de menor categoria entre eles, quando têm aparecido a simples mortais, mostram-se tão esplendorosos, que quem os vê começa a tremer pensando estar diante do próprio Deus —, entretanto temos este título de glória: somos o liame que une o imensamente grande com o imensamente pequeno, onde, portanto, a harmonia se afirma, triunfa.

Essa é uma explicação pela qual convinha que nesse ponto de junção, ou seja, o gênero humano, o próprio Deus se encarnasse para honrar a Criação inteira. De nenhum modo o Criador poderia honrar tanto a Criação, quanto se encarnando. Ele se põe no centro de sua obra; a corola da flor do universo somos nós, homens. No centro dessa corola está Nosso Senhor Jesus Cristo e junto d’Ele, com o véu de mãe, está Nossa Senhora.

O homem simboliza, melhor do que o anjo, todo o universo

Na mente de Deus, esta categoria da criação tão magnífica, de uma posição tão excelente, tão honrada por Ele, deveria realizar uma glória especial.

O que vem a ser aqui a glória?

É o deleite que Ele tem com a honra que recebe pelo fato de que seres à sua imagem e semelhança Lhe prestam culto e veneração. E a homenagem oferecida pelo homem simboliza melhor a de todo o universo do que a homenagem prestada pelo anjo.

A estrela mais distante e da qual, talvez, não tenhamos conhecimento até o fim do mundo — corpo material com reluzimento e propriedades físicas e químicas no equilíbrio do universo —, entretanto, participa de nós e temos algo com que a honramos, porque ela é matéria, e a matéria está presente em nós. E se as estrelas não tivessem brilho, mas pudessem conhecer e soubessem que há homens, elas começariam a cintilar.

Deus quis que esse gênero humano assim constituído tivesse certa forma de beleza e de excelência física, que não fosse senão o espelho de algo muito mais magnífico, precioso e nobre, que condiciona a beleza física, que é a beleza espiritual: o “lumen” do intelecto, a força da vontade, o cognoscitivo e o vibrátil da sensibilidade, formando em cada homem um exemplar e um padrão especial de beleza.

História da Humanidade se não tivesse havido pecado original

Caso não tivesse havido o pecado original, Deus intencionava nesta linha criar cada ser humano com seu papel nesse universo de beleza: nasceria e, depois de passar algum tempo no Paraíso terrestre, seria chamado ao Céu, sem a morte, e brilharia por toda a eternidade, cintilando diante de Nosso Senhor.

É claro que, neste plano, toda a História desenvolvida no Éden teria como ponto central a Encarnação do Verbo. O amor de Deus por essa espécie de criaturas iria se manifestando cada vez mais, de maneira tal que os homens até então existentes, e a própria natureza, exprimissem um santo, calmo e ardoroso alvoroço: “O que virá agora, já que Ele nos ama tanto?” E, em certo momento, viria o insuspeitado, o inimaginável: o próprio Deus se faria carne e habitaria entre nós. E apareceria o Homem ultra‑ arquetípico, elevado a uma glória incomparavelmente maior do que a simples natureza pode dar, mas Homem, ligando sua natureza humana à natureza divina, formando uma só Pessoa, a segunda da Santíssima Trindade.

Movimento ascensional da História rumo a Nossa Senhora

Como se daria isso?

É claro que o gargalo magnífico, pelo qual se chegaria até esse acontecimento único, seria Nossa Senhora, a Virgem perfeita, da qual Ele nasceria. Ela, a incomparável, a única para cuja construção gradual tudo confluísse, de maneira que os profetas teriam dentro de si uma palpitação, que era um pressentir de Maria que viria. A perfeição de todos os seres humanos de algum modo prenunciaria a d’Ela; poderíamos assim imaginar uma ascensão gradual da Humanidade até Nossa Senhora, a flor que se abriria e o Verbo estaria em seu interior. Rainha da História…

Não estaríamos no alto do morro do qual se desce, mas depois haveria algo mais alto. Porque as criaturas, conhecendo a Encarnação do Verbo e Nossa Senhora, convivendo com Ele e com Ela — por quanto tempo não se sabe —, num convívio pacífico, amoroso, reverente, como gostamos de imaginar ter sido na noite de Natal, no dia de Pentecostes, nas grandes festas de Nosso Senhor Jesus Cristo; haveria aquela paz, alegria, glória, sabedoria, majestade e, ao mesmo tempo, misericórdia e bondade indizíveis; surgiria então — eu emprego um termo moderno e desdourado — uma pista de voo ainda mais alta.

No alto do morro se construiria uma catedral; e muito mais magnificente do que o morro seriam os séculos da História cristã.

Como seria a festa da gloriosa Ascensão do Verbo Encarnado? Ele subiria ao Céu certamente sem Paixão, sem cruz. E, depois, a Assunção de Nossa Senhora? Como seriam as alegrias de todo o gênero humano? Os homens ficariam no Paraíso terrestre e Nosso Senhor viria apenas nas espécies eucarísticas? Ou, com a ausência do pecado, a inocência do gênero humano — podemos imaginar a beleza do gênero humano inocente! — levaria Deus Nosso Senhor a tornar a presença d’Ele frequente entre homens?

Ninguém pode ter ideia, porque viriam alcandores sobrepujados por outros alcandores, no ápice dos quais sempre estaria Nossa Senhora, Rainha de todos os anjos e santos; Rainha de tudo aquilo quanto a graça engendrasse de grande, porque d’Ela nasceu Nosso Senhor Jesus Cristo, o Homem‑Deus.

Portanto, por mais que a História glorificasse Maria Santíssima e Nosso Senhor, Ela pairaria acima de tudo e atrairia a Si a História. Aí está a Rainha da História: o movimento ascensional de toda a História rumo a Ela para chegar a Ele.

Com a Virgem Maria a História se evanesce em santidade, virtude e beleza

Para que isto tivesse tido a sua verdade, não era preciso que, depois de Adão e Eva, nenhum outro homem pecasse. O pecado original propriamente, o pecado do gênero humano, foi cometido em Adão e Eva porque eles eram o gênero humano naquele tempo. Mas seus descendentes já não continham todo o gênero humano. De maneira que os pecados deles não seriam pecados originais, nem se transmitiriam aos seus descendentes.

Caso aqueles que pecassem fossem postos fora do Paraíso, deveriam aguentar a vida nesta Terra como pudessem. E surgiria a sub‑História, como as notas ao pé da página de um livro. O grande eixo central da História seria dos homens que teriam continuado no Paraíso.

Em determinado dia a coleção dos homens estaria completa. E Nossa Senhora representaria às Três Pessoas da Santíssima Trindade: “Vede, o número misterioso, intencionado por Vós, está completo. No Céu, os lugares dos anjos malditos, que apostataram, estão também preenchidos, vosso plano está realizado; a História chegou ao auge de sua glória!”

Como seriam esses homens perfeitíssimos do final da História? Como seria, então, o Reino de Maria? Aquela época em que os homens pudessem dizer a Nossa Senhora: “Vós realizais o que há de mais maravilhoso na História. Vós sois o ponto terminal, a História convosco se evanesce em santidade, virtude e beleza. Vós sois o aroma que se desprende da flor, ou seja, o melhor que a flor deita de si. Vós sois o aroma da História, o perfume de todas as misericórdias e todas as justiças daquele Infinito que nos criou”.

A História terminaria quando o último justo tivesse atingido o píncaro de sua justiça, e Deus dissesse ao gênero humano: “Ó salvos no Céu, ó salvos na Terra, ó amados por toda parte, acabou!”

Que glória e que hino! Todos os homens deixando o Paraíso terrestre para viver no Céu! Mas, não se restringindo às belezas insondáveis da visão beatífica e do Céu empíreo, eles de vez em quando desceriam à Terra e, olhando os diversos lugares, comentariam uns com os outros: “Lembra‑se? Lembra‑se?”

Devido ao pecado original, Deus não desistiu de seu plano, mas o transcendeu

Esse era o plano e essa seria a linha reta da História. Não se realizaram… O homem pecou. Mas, no momento trágico de sua expulsão do Paraíso terrestre, Deus revelou ao homem que a História continuaria, Ele realizaria seu plano e viria a Virgem que esmagaria a serpente. O Criador profetizou ao homem a História, a qual não seria de paz, de beleza e de harmonia, mas de luta, de guerra; o gênero humano cindido entre duas raças, a da Virgem e a da serpente, e a vitória permanente da Virgem sobre a serpente, calcando-a aos pés.

Nessa profecia estava contida a promessa do Salvador que viria. E, portanto, da Encarnação do Verbo e de tudo quanto aconteceu em virtude disso.

Deus não desistiu de seu plano nem da História que os homens desfiguraram pelo seu pecado. Ele os transcendeu em magnificência, fazendo dessa luta uma História de algum modo mais bela do que a História daquela paz.

A nossa grande guerra contra os filhos do demônio, por vários aspectos, é mais bela do que a própria História do Paraíso.

Considerem a hipotética História do Paraíso: que magnificência! Mas seria uma História que não teria mártires, cruzados, nem homens que estraçalhassem o erro pelo vigor de sua lógica.

Sendo verdadeiro o provérbio português “quanto maior a altura, tanto maior é o tombo”, também é verdade que quanto maior é o tombo, tanto mais alto é o soerguimento. E a altura da vitória se medirá pela profundidade do tombo, e por mais outro tanto que se elevará acima.

Esta é a História com a post-História, a História do Reino de Maria que vem se aproximando.

Se Nossa Senhora era a Rainha da História, nos planos cheios de bondade, impregnados de encanto paradisíaco de Deus Nosso Senhor, por essa mesma razão Ela é Rainha da história dos tormentos, das aflições, das lutas, das angústias, das incertezas, das batalhas, das polêmicas, da vitória. Portanto, Ela é verdadeiramente a Rainha da História.

Poder-se-ia perguntar: “E a História triangular de chineses, coreanos e japoneses, que ligação tem com tudo isso?” Aliás, é a História noturna, porque longe do Sol da Justiça, que é Nosso Senhor Jesus Cristo.

Para ver as coisas simplificadamente, toda essa História correu até o momento em que São Francisco Xavier chegou ao Japão, pregando a Nosso Senhor Jesus Cristo. De um modo ou de outro, tudo havia sido um conjunto de tentames da Providência para aproximar esses povos e prepará‑los para aquela hora de bem‑aventurança.

Uns rejeitaram, outros aceitaram e batalharam. Eles ignoravam qual era o ponto central em torno do qual lutavam, a fim de que se soerguessem tanto quanto possível de dentro da lama do paganismo, para poderem estender as mãos ao apóstolo magnífico que lhes fora mandado pelo zelo de Santo Inácio; e aos missionários que se lhe seguiram, ao longo da História desses povos.

O centro é este: o momento magnífico da vitória do Reino de Maria, em que eles deverão converter‑se. E Nosso Senhor e Nossa Senhora, ainda que eles não soubessem, eram o centro dessa História. Maria Santíssima é ou não é a Rainha dessa História?

Leme e figura de proa

Rainha em que sentido?

Como nós gostamos muito de lógica, de definições bem feitas, buriladas, lapidadas e de cada coisa colocada em seu lugar, estou certo de que todos desejam entender bem qual é aqui o papel da rainha.

Até aqui eu descrevi a rainha como uma espécie de modelo ideal, que exerce uma presidência honorífica, atrai pelo esplendor, inspira pela magnificência de sua ação de presença e de seu exemplo. Mas uma rainha não é apenas isso.

Em ponto muito pequeno, puramente terreno, “in partibus infidelium”, nas regiões dos infiéis, há uma rainha cujo papel, de certa forma, é análogo ao que foi dito: a Rainha da Inglaterra. Se se comparasse um fósforo com o Sol, ainda haveria exagero no tomar em consideração o papel do fósforo, de tal maneira é grande a desproporção entre essa Rainha e a Rainha da História. A Rainha da Inglaterra tem uma ação de presença, ela encanta, deslumbra, anima. Porém ela não reina, porque reinar não é só isso; é governar. Dizer que a rainha não governa, mas reina, equivale a afirmar que é uma figura de proa no navio.

A figura de proa tem seu papel no navio, porque é um estandarte. Mas é uma coisa inteiramente diferente do leme. Para reinar é preciso ser leme e figura de proa.

Maria Santíssima dirige a História…

Em que sentido Nossa Senhora tem nas mãos o leme da História?

Ela conhece as intenções de Deus a respeito da História; tais intenções são o plano de Deus condicionado às orações, aos atos de virtudes e aos pecados dos homens.

Depois da Redenção infinitamente preciosa de Nosso Senhor Jesus Cristo, os homens pertencem a seu Corpo Místico, formando com Ele uma unidade sobrenatural em cuja realidade interna o mais delicado disso se passa. Tomando essa verdade em consideração, é do modo pelo qual reagimos às graças, dizendo sim ou não, e também da maneira pela qual os outros aceitam ou recusam os favores divinos, que Deus realiza um balanço geral. Nesse balanço Ele faz pesar a sua bondade e a sua justiça infinitas.

Mas o próprio Deus, na sua insondável bondade, quer mais do que Ele mesmo faz. Os homens são tão ruins que Deus daria aos homens menos do que Ele quer. Por uma disposição de sua sabedoria, verdadeiramente magnífica, Deus constituiu esta situação: uma criatura inteiramente humana, mas absolutamente perfeita; além disso, Filha do Padre Eterno, Mãe de Deus Filho e Esposa do Divino Espírito Santo, que sempre está em condições de retocar, ao menos em parte, o que homens fazem e, por assim dizer, corrigir — se a palavra “corrigir” não fosse inadequada —, reformar, rever, segundo os planos da misericórdia de Deus, aquilo que sua justiça faria. De maneira que Maria Santíssima está sempre pedindo: “Meu Pai Eterno, meu Filho adorável, meu Esposo perfeitíssimo, recuai um pouco, adoçai um tanto, ajeitai aqui, fazei mais acolá…”

E a rogos de Nossa Senhora, que nunca deixou de ser atendida, Deus como que passa a borracha sobre o plano da História escrito a lápis, e deixa a Santíssima Virgem traçar a ouro o plano verdadeiro, o qual corresponde ao mais fundo da intenção d’Ele.

Deus não A teria criado se não fosse isso. Mas se não A tivesse criado, ficaria difícil ou impossível — hesito diante do termo — fazer a História tão bela como é. Nossa Senhora enfeita essa História. E somente por isso, de um lado, Ela é a Rainha da História, porque Ela imprime, por um profundo consentimento de Deus, à História um rumo, que Deus sem Ela não teria imprimido. Nossa Senhora, portanto, dirige o leme da História.

De outro lado, Maria Santíssima não se limita a isso. Ela pede também, para alguns, o castigo. É natural. Quando surgir o Anticristo, virá o momento em que o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, com um sopro de sua boca, o exterminará. Mas esse momento não será apressado por Nossa Senhora? Ela dirá: “Eis que os últimos bons que restam bradam e pedem que venhais! Vinde, por favor, vossa Mãe Vos pede.” E pelo sopro dos lábios de Nosso Senhor estará encerrada a História.

Compreendemos, então, a direção da História, direção “intercessiva”. Deus é quem dirige tudo, mas a intercessão de Nossa Senhora é segundo os planos do Criador. E Ela realiza a vontade de Deus, obtendo a modificação dos planos d’Ele. Deus reina, mas por meio de Maria Santíssima, a Quem Ele quis dar toda a glória que se pudesse imaginar a uma tão excelsa missão de intercessora de todo o gênero humano. Assim, Ela dirige a História.

…e a modela como um artista faz com a argila

Há mais. Nossa Senhora dirige a História geral dos homens, que é composta pelas Histórias de cada nação; e a História de cada nação é composta pelas histórias de cada família; e a história de cada família se compõe das histórias de cada homem. E, como família, entendo pai e mãe, unidos em legítimo matrimônio, e filhos dele decorrentes; e também as famílias espirituais, suscitadas por Maria Santíssima ao longo da História. É a reação delas que condiciona a História.

Nossa Senhora intervém na história de cada um de nós, do último mendigo que possa estar implorando misericórdia, porque é um bêbado e um inútil, até o maior potentado da Terra. Por todas as pessoas a Santíssima Virgem intervém até o último momento de suas vidas, pedindo ao Padre Eterno, a Nosso Senhor Jesus Cristo e ao Divino Espírito Santo que mandem graças para converter esse, melhorar aquele. E são derramadas graças que a pessoa pode recusar totalmente, ou só a meias. Por isso a história, mesmo dos malditos, sofre certa inflexão devido a algum pedido da Virgem Maria.

Até lá vai o poder de Nossa Senhora. E a oração d’Ela, interveniente junto a cada homem e “intercessivamente” junto a Deus, modela a História como um artista modela a argila para fazer uma imagem. Portanto, Maria Santíssima é operante na História.

O fator determinante de todo o curso da História é nossa atitude diante das graças que recebemos através de Nossa Senhora. Todos os nossos pedidos sobem ao Céu por meio d’Ela, e só são gratos a Deus porque são apresentados por Ela.

É conhecido o princípio de que, se o Céu inteiro pedisse sem Maria Santíssima não obteria; Ela, pedindo sozinha, obtém. Tal é a gloriosa, magnificente e régia intercessão de Nossa Senhora.

Considerando tudo isso, compreendemos bem o que significa o poder d’Ela como Rainha da História.

Aspecto “catedralício” da História

Um homem inteligente, que olha para uma catedral, não tem a visão apenas das pedras com as quais ela é construída; sobretudo ele vê o “unum”, que é a catedral.

Se a uma pessoa que foi olhar uma catedral perguntamos:

— O que você viu?

— Um montão de granitos.

Pensamos: “É claro que ele viu uma quantidade enorme de granito, mas se viu só isso ou principalmente isso é um estúpido.”

O modo de relacionar esses granitos entre si forma uma coisa muito superior: a catedral. O granito foi “per accidens”, por acaso, circunstancialmente, um meio para se chegar a ver a catedral.

Assim Nossa Senhora vê a História da Humanidade, da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, a História d’Ela e do seu Divino Filho.

Quer dizer, Maria Santíssima vê o plano de Deus e a inter‑relação do agir da Humanidade e do agir de Deus, mas da Humanidade formando um todo; e dentro da Humanidade, outros todos: as nações, as regiões, as famílias. Ou seja, Ela contempla todos os componentes e o grandioso todo do gênero humano que é a fivela entre o anjo e a criatura meramente material; o gênero humano ao qual Nossa Senhora e, em sua natureza humana, o Divino Filho d’Ela pertencem, com honra insondável para o gênero humano.

Então, Maria Santíssima vê o conjunto dos pecados que conduzem a um grande movimento único de pecado: a Revolução. Mas Ela observa também o conjunto das virtudes e um grande movimento único que combate os pecados. E, como um homem não estúpido contempla uma catedral, os olhos virginais de Nossa Senhora veem o aspecto “catedralício” da História, isto é, a Revolução e a Contra‑Revolução.

A Virgem Maria é Rainha da Contra‑Revolução e, em certo sentido, Rainha da Revolução.

Como? A Revolução como tal é uma rebeldia contra Nossa Senhora, e Maria Santíssima não pode ser Rainha dessa rebeldia, a não ser neste sentido: Ela tem o direito, a missão e o poder de punir, e manda como a rainha sobre o escravo revoltado.

Aí está uma exposição sobre Nossa Senhora como Rainha da História.

Que a misericórdia de Maria Santíssima pouse sobre esta reunião, e faça com que produza frutos de salvação para nós e dê glória a Ela.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/4/1982)

 

1) Selva.

 

Nossa Senhora

Eu venho tão do alto… E posso tudo. Em Mim reside o reflexo perfeito da bondade incriada e absoluta. Aquilo que Eu quero doar porque sou boa, aquilo que desejo conceder porque sou Mãe, aquilo que posso dar porque sou Rainha, isso, meu filho, Eu dou! Eu não te digo uma palavra, mas faço algo muito melhor que falar a teus ouvidos… Eu te comunico uma graça que murmura no  fundo de tua alma.

Sentes essa paz que transborda de Meu coração, que te envolve, te penetra e te cumula? Essa paz que nenhuma alegria terrena pode trazer, e que te  faz sentir uma tranqüilidade interior, na qual ressoa minha voz, inaudível a teus sentidos: Tudo está resolvido! E aquilo que não estiver, resolver-se-á. Confia em Mim, Eu acertarei tudo.

As aparências podem não ser essas. Mas… Aceita esse sorriso, percebe esse sussurro, contempla essa bondade… E não duvides jamais!

Plinio Corrêa de Oliveira

São Raimundo Nonato – "Os exemplos arrastam…"

São Raimundo Nonato, religioso mercedário, ofereceu-se para substituir alguns cristãos prisioneiros na cidade de Túnis.

Tendo sido aceita a proposta, iniciou-se para ele uma série de horrendos tormentos: seus lábios foram cruelmente perfurados e transpassados por um cadeado de ferro, para que assim não pudesse falar de Jesus Cristo aos carcereiros.

Após oito meses de atrozes sofrimentos, alguns mercedários de Espanha acudiram com o valor necessário para resgatá-lo.

Com fortaleza de alma inabalável, de volta a Europa, São Raimundo foi por toda parte — com os lábios mal cicatrizados e com dores horríveis — pregando a Cruzada.

A eficácia de sua pregação era incomparável, pois — ante este homem que em meio a tantos sofrimentos permaneceu inquebrantável e ainda mais cheio de ânimo e coragem — não havia quem não se sentisse arrastado a segui-lo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/8/1967)

São Fiacre – O perfume da Idade Média

São Fiacre viveu no século VII e é o patrono dos jardineiros. Contemplando sua vida, nota-se a maravilha de uma graça que se evola e perfuma toda a História. Isso descansa nossas almas e nos  coloca diante da perspectiva de que o Céu e a Terra estão unidos e reconciliados.

 

No dia 30 de agosto comemora-se a festa de São Fiacre, anacoreta. A respeito dele vejamos uma linda ficha retirada do livro Vida dos Santos, do Padre Rohrbacher(1).

Filho de um rei da Escócia

São Fiacre nasceu no começo do século VII, de uma ilustre família irlandesa. Os escoceses afirmam que ele era filho de um de seus reis, e que foi educado com os seus irmãos pelo Bispo de Connan. Fiacre aproveitou bem essa educação, pois abandonou, jovem ainda, seus pais e sua família, para servir a Deus em terra estrangeira e na solidão.

Indo para a França, procurou o Bispo de Meaux para pedir que lhe cedesse algum lugar isolado em sua diocese. O Bispo de Meaux, que era também um Santo, encheu-se de alegria e disse a Fiacre:  Tenho, não longe daqui, uma floresta de meu patrimônio, que os habitantes chamam Breuil, e acredito ser própria à vida solitária.”

Os dois Santos foram visitar o lugar e o bispo deu ao emigrado irlandês o que lhe seria necessário. São Fiacre, com a bênção do prelado, limpou o bosque, ergueu uma igreja em honra da  Santíssima Virgem, com uma casa ao lado onde habitava, e recebeu  os hóspedes que ele alimentava com o produto de seu jardim.

Mais tarde construiu uma espécie de hospital, onde ele mesmo servia os pobres e, muitas vezes, os curava pela virtude de suas orações. Mas não permitia nunca que as mulheres penetrassem em  sua ermida. O artigo que impede as mulheres de entrarem em mosteiros de homens é uma regra inviolável  entre os monges irlandeses.

São Fiacre não se desfez dessa regra enquanto viveu, e ainda hoje vê-se, por respeito à sua memória, que as mulheres não entram no lugar onde ele vivia em Breuil, nem na capela, onde foi enterrado.

Ana de Áustria, Rainha da França, dirigindo-se para esse lugar em peregrinação, contentou-se em rezar à porta do seu oratório. Os escoceses contam que, durante esse tempo, tendo vagado o trono da Escócia, os deputados desse país vieram implorar a São Fiacre que subisse ao poder, mas ele recusou, humilde, mas firmemente. O santo anacoreta morreu a 30 de agosto de 670, e foi  enterrado em seu oratório.

Milagres sem conta tornaram seu nome célebre na França, onde geralmente os jardineiros o honram como seu patrono. Com efeito, rezando em seu oratório e trabalhando no seu jardim, São  Fiacre mereceu um trono no Céu. Um jardim, também como um oratório, pode tornar-se um lugar de meditação e de prece.

Modelo de fidelidade ao primeiro propósito

Não sabemos o que mais especialmente assinalar nessa narração: a beleza das várias peripécias que a vida desse Santo teve, ou o conjunto dos fatos que se ligam para deixar um perfume de  legenda em torno dele.

Do ponto de vista da pulcritude das peripécias, poucas coisas são mais belas do que imaginarmos um Santo, filho de um rei, que vai para um lugar distante, foge das pompas da realeza, põe-se  numa floresta, encontra-se com outro Santo, e os dois se dirigem juntos a um lugar na floresta onde acham um ponto adequado para viver; e esse príncipe passa lá a vida inteira, renunciando às  honras da realeza.

Mas, depois de praticar por longo tempo a vida eremítica, ele recebe uma oportunidade de se arrepender do que fizera, uma ocasião para voltar ao trono do qual talvez tivesse nostalgia. Ele recusa  essa segunda possibilidade, e morre como simples jardineiro e humílimo guardião de hospital, na floresta de Breuil, na França, na Diocese de Meaux.

Acho que talvez a segunda recusa seja mais nobre e bela do que a primeira. Porque uma coisa é um homem deixar algo dele. Muitas vezes, pelo costume que ele tem daquilo que vai abandonar, o  indivíduo não sente a falta que lhe fará; depois, ele ainda não experimentou a amargura daquilo para onde ele vai, não imagina bem a coisa como ela é. Pode-se conjeturar que para um príncipe  habituado a um palácio real, e um pouco farto das pompas régias, seja muito sedutor e atraente a ideia de, em certo estado de espírito, ser um solitário na floresta.

Mas depois que o príncipe deixou o principado e foi morar na floresta, ele viu quanto dói não ser príncipe, e a floresta já perdeu a sua poesia; ele passa a encetar uma luta contra bichinhos, contra  o calor, contra mil coisas prosaicas da vida de todos os dias, e tem a oportunidade de aquilatar bem o sacrifício que fez. Então, na segunda ocasião recusar pode ser muito mais nobre do que na  primeira.

Lembro-me de um caso contado por um ímpio inglês do século XIX, que em certa ocasião fora visitar uma Cartuxa na Espanha. Olhando para o lugar com um belo panorama, aqueles frades  procedendo muito bem, ele teve uma exclamação: “Que lindo local!” E o cartuxo – naturalmente é uma piada ímpia –, rompendo  a regra de silêncio, disse para ele: “Lindo para ver, horrível para ficar.”

E caiu no silêncio de novo, para terminar seus dias na Cartuxa. O dito era ímpio, mas exprimia algo de verdadeiro. As situações mais belas ao entrar, depois são, às vezes, duras de ficar. E vemos  esse homem que permanece a vida inteira fiel ao primeiro propósito de sua juventude. Aqui está uma beleza de fidelidade, de continuidade que devemos apreciar.

É próprio da Igreja civilizar e até dulcificar a natureza

De outro lado, notamos também que quadro extraordinário: o  silêncio da floresta de Breuil, na Diocese de Meaux, naquele isolamento – de uma natureza que era mais vigorosa do que a natureza  europeia de hoje –, entra dia, sai dia, entra noite, sai noite, ninguém passa, e apenas aquele Santo reza, isolado! E como é próprio da Igreja civilizar e até cultivar, plantar e dulcificar a natureza,  São Fiacre vai, aos poucos, empurrando a erva daninha e a natureza selvagem de perto de si, e assim vai nascendo em torno de sua cabaninha um jardinzinho. Podemos imaginar o Santo que acaricia a florzinha, planta mais um pouco e dá glória a Deus franciscanamente, pela admiração à flor que vem nascendo.

Depois, o viajante que é um perseguido e passa por ali, o Santo o consola, dá-lhe um bom conselho, e o forasteiro conta posteriormente na cidade que existe naquela floresta um eremita…Vem,  então, um doente que o Santo cura. Aos poucos, aquilo se transforma numa ermidazinha e num hospitalzinho, e aquela obra toda vai se ampliando e, mais do que isso, como um perfume de odor agradável a Deus, a reputação desse Santo se estende por toda a zona.

Vai além da floresta de Meaux, ganha as aldeias, chega até às capitais, e os príncipes e as princesas organizam excursões para beijar o pé do Santo, que os recebe com humildade, respeitosamente,  deixa-os fazer, cura-os, consola-os, etc. Então se diz que um novo Santo surgiu na França, é o grande São Fiacre. Assim, há um aroma de Jesus Cristo que se espalha por toda uma região.

Fiacre, um nome que repercute até os dias de hoje

Para termos ideia da sua personalidade basta notar isto: a permanência da proibição imposta por ele, não permitindo que as mulheres entrassem lá. Pois bem, as próprias mulheres amaram essa  proibição. E mesmo quando uma rainha esteve em visita ao local, ela que, como soberana, podia violar a clausura de acordo com o Direito Canônico, não a transgrediu porque São Fiacre não tinha  querido. Ela ajoelhou junto à porta e, com toda a majestade de Infanta da Espanha, de Arquiduquesa d’Áustria, de Rainha da França – não se podia ser mais do que isso! – osculou as grades que  outrora São Fiacre tinha feito para que ela não entrasse. Isso tudo indica uma espécie de veneração que se estende de geração em geração, e torna São Fiacre célebre na França.

Como vimos, São Fiacre é, até em nossos dias, o patrono dos jardineiros na França, e concorre com um outro Bem-aventurado Fiacre, que dirigia carros de rua em Paris no século XVI, e do qual  veio o nome de fiacre para os carros de aluguel, que durante algum tempo havia na Europa. Recebiam o nome de fiacre por causa do segundo São Fiacre. E assim o nome Fiacre vem retumbando até os dias de hoje.

Essa é a beleza da vida dos Santos, a maravilha dessa graça que se evola e perfuma toda a História, e descansa nossas almas. Depois de passarmos o dia com aborrecimentos, às vezes também com  decepções, considerar a festa de um São Fiacre é algo que nos dá repouso, distensão e nos faz compreender um pouco daquele perfume que, outrora, teve a Idade Média. Régine Pernoud escreveu   um livro intitulado A Luz da Idade Média. Nós poderíamos redigir um com o título “O perfume da Idade Média”, com todos esses imponderáveis que a Idade Média trazia consigo.

Em meio às trevas dos dias de hoje, podemos pensar no que será o Reino de Maria, após os castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima. Quem sabe se ouviremos também falar da glória de  algum Santo que, num lugar inteiramente ermo, deserto, onde só há árvores – e sobre o qual algum erudito de então dirá ter sido a região central de uma grande megalópole contemporânea –, glorificará a Deus, num isolamento espantoso.

Então, diremos a um de nossos irmãos de vocação: “Lembra-se do tempo em que se comentavam as peculiaridades daquele centro urbano horroroso? Agora não resta nada, mas existe a glória de  tal Santo, de cuja vida se contam tais e tais episódios”. E nossos olhos se fecharão em paz, com a ideia de que o perfume do Céu voltou para a Terra, e o Céu e a Terra estão unidos e reconciliados.

Esta é a perspectiva que encontramos diante de nós.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/8/1968)

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. v. XV, p. 339-344.

Comentários à oração composta por Santo Agostinho ao Divino Espírito Santo

Prece ao Espírito Santo

Ó Divino amor, ó vínculo sagrado que unis o Pai e o Filho, Espírito onipotente, fiel consolador dos aflitos, penetrai nos abismos profundos do meu coração e fazei aí brilhar vossa resplandecente luz. Derramai vosso doce orvalho sobre essa terra deserta, a fim de fazer cessar sua longa aridez. Enviai os dardos celestes de vosso amor até este santuário de minha alma, de modo que nela penetrando acendam chamas ardentes que consumam todas as minhas fraquezas, minhas negligências e meus langores.

Vinde, vinde doce Consolador das almas desoladas, refúgio no perigo e protetor na aflição desamparada.

Vinde, Vós que lavais as almas de suas sordícies, e que curais suas chagas.

Vinde, força dos fracos, apoio daqueles que caem.

Vinde, doutor dos humildes e vencedor dos orgulhosos.

Vinde, Pai dos órfãos, esperança dos pobres, tesouro dos que estão na indigência.

Vinde, estrela dos navegantes, porto seguro dos que náufragos.

Vinde, força dos vivos e salvação dos moribundos.

Vinde, ó Espírito santo, vinde e tende piedade de mim. Tornai minha alma simples, dócil e fiel, e condescendei com minha fraqueza. Condescendei com tanta bondade, que minha pequenez ache graça diante de vossa grandeza infinita, minha impotência diante de vossa força, minhas ofensas diante da multidão de vossas misericórdias. Amém.

(Fonte: prière au Saint-Esprit tirée des oeuvres du grand Docteur de l’Eglise d’Occident)

 

Eu queria, antes de ser feita leitura, dizer o seguinte: o voo que essa oração tem, ainda quando não se detenha em analisar cada palavra. Mas Santo Agostinho começa e já vai voando não sei para que altura.

A oração é lindíssima e há passagens que é preciso considerar.

“Fiel consolador dos aflitos”. – A consolação não é apenas trazer um sentimento de doçura e de ânimo que possa compensar a aflição que se está sofrendo. Mas é o fortificador. “Consolador” propriamente é dar força. Então “fiel consolador” é quem dá força sempre. Tonificador e fortificador contínuo dos aflitos: isso nos dá muito mais precisão do que nós devemos pedir. Não é apenas que tenhamos uma sensação de alento, de ânimo, de doçura, nos abrolhos de uma provação muito profunda, mas que tenhamos a força para resistir a essa provação. E não se trata de uma força de bravata, de espadachim, é uma força forte mesmo! É disso que se trata.

“…penetrai nos abismos profundos do meu coração e fazei aí brilhar vossa resplandecente luz”. – Aqui também é necessário considerar a palavra “coração”. Ela abrange a afetividade e ocupa aí não um lugar de contrabando, mas um lugar digno, porém é muito mais: são os abismos da alma onde se desenrola a Revolução tendencial; é – digamos assim – um certo “subconsciente da alma”. Então pede que esta força do Divino Espírito Santo penetre aí e que dê à pessoa o que é próprio à força. É um lugar misterioso da alma em que há trevas: é difícil perceber o que lá dentro se passa.

Outro elemento a se observar: não pede tanto uma palavra quanto uma luz. Os senhores vêem o alcance da oração.

“Derramai vosso doce orvalho sobre essa terra deserta, a fim de fazer cessar sua longa aridez.” – Ele supõe que as profundezas desta alma estejam na aridez. É, portanto, uma alma que está atormentada pela provação da aridez. O que pede então para isso? “Vosso doce orvalho sobre essa terra deserta…” Os senhores estão vendo que aí está mais próximo da palavra “consolação” no sentido comum do termo, ou seja, é um bálsamo, uma suavidade, um orvalho, algo desse gênero.

“…vosso doce orvalho sobre essa terra deserta.” – Ele não se refere a uma terra seca, mas é uma terra onde não há nada, uma terra vazia. E é nesse vazio da alma que deve vir um doce orvalho. São esses vazios interiores que se tem e que se traduzem do seguinte modo: cada um de nós – isso constitui até uma obrigação de polidez – no trato, causa a impressão de bem-estar, de satisfação, etc. Porém há uma certa região da alma onde, por efeito do pecado original, a pessoa sente a saciedade de si mesmo e ao mesmo tempo uma espécie de insuficiência. Não se basta a si próprio, sente-se uma solidão interior que constitui um tormento. E querer fazer cessar esse tormento é uma das molas do instinto de sociabilidade. A pessoa fica com a ideia de que a companhia de A, B ou C pode estancar esse sentimento de carência e não há maior engano, porque ninguém pode fazê-lo a não ser o Divino Espírito Santo. E qualquer outra coisa que não seja isso, é uma ilusão e uma estupidez que não tem nome.

“Enviai os dardos celestes de vosso amor até este santuário de minha alma, de modo que nela penetrando acendam chamas ardentes que consumam todas as minhas fraquezas, minhas negligências e meus langores.” – Os senhores estão vendo que ele toma esta “terra deserta” e a trata ao mesmo tempo de “santuário”, porque há uma continuidade na descrição do estado de alma da pessoa.

Diz: “Enviai os dardos celestes de vosso amor até este santuário de minha alma“ – Esta terra deserta é ao mesmo tempo um santuário. Mas um santuário que ele figura abandonado, que compara a uma terra deserta. É um santuário que está no escuro. Como isso descreve bem certos estados de alma, certas crises espirituais, em que o interior da alma é ao mesmo tempo uma terra deserta e um santuário no escuro.

Não sei se lhes é tão claro quanto me parece a ideia do santuário no escuro que precisa ser penetrado pelas flechas vindas do Céu, que só elas podem penetrar até lá. Vê-se que ele não espera de outrem esta solução, nem este arranjo. São as flechadas, os dardos vindos do Céu que podem penetrar nesta terra deserta e fazer ali algo que só Deus pode realizar.

“Enviai os dardos celestes de vosso amor até este santuário de minha alma”. – O amor sobrenatural a Deus é algo que de Deus parte, que Ele mesmo dá. E que quando não dá, não vem de dentro da alma. É um dom dEle. E é pela oração que  devemos obter esse dom. E devemos pedi-lo por meio de Nossa Senhora, a Medianeira universal de todas as graças. E quando nossa alma está como terra deserta, ou santuário na obscuridão, é este o momento exato de pedir isto que vem do Céu, e que se acende porque só Deus pode iluminar isto. Só Deus pode acender, só Deus pode reacender e dEle é que tudo isso procede, a rogos de Nossa Senhora. Como é útil nós nos lembrarmos disso na nossa vida espiritual!

“…de modo que nela penetrando acendam chamas ardentes que consumam todas as minhas fraquezas, minhas negligências e meus langores”. – Então, é nesta terra deserta, nas sombras tenebrosas desse santuário que está no escuro, que há “faiblesse, négligence et langueur” (fraquezas, negligências e langores). A enumeração é muito saborosa, porque não menciona perfídias, maldades, intenções atrozes, crueldades. Ele toma uma certa família de defeitos e menciona. Esses defeitos são: as fraquezas; negligências, que são um fruto da fraqueza: quando o indivíduo não resiste à fraqueza, o fruto normal é a negligência; langores… É quase a causa e o efeito. Os langores vêm das fraquezas, estas e os langores produzem as negligências. É, portanto, a alma mole.

Isso é um estado de alma de um número incontável de fiéis de nossos dias diante da situação da Igreja Católica. E se os bons da causa da Contra-Revolução são tão isolados e tão abandonados, não o seriam se simplesmente essas almas não fossem nem negligentes, nem fracas, nem langorosas. Aqui Santo Agostinho tem em vista – por uma razão que não sei qual seja – uma linha especial de almas. Não são os bandidos, não são os que conspiram em guerras, os que querem morticínios, não é disso que se trata. Ele tem aqui especialmente em consideração os “santuários abandonados”, esse gênero de fraqueza e de moleza…

“Vinde, vinde doce Consolador das almas desoladas, refúgio no perigo e protetor na aflição desamparada”. – Considerem bem aqui a ideia de uma doçura forte, ou de uma força doce. É muito próprio ao sabor das coisas celestes nos fazerem sentir a bondade, a doçura de Deus, ao mesmo tempo que ipso facto comunicam uma força muito grande. Por exemplo, quando somos objeto de uma graça que nos fale da doçura do Sagrado Coração de Jesus ou do Imaculado Coração de Maria, e experimentamos tal doçura. Sem percebermos saímos mais resistentes às tentações, mais fortes no perigo, mais perseverantes na Fé. Quer dizer, uma doçura que comunica força! Não há, portanto, uma dicotomia entre força de um lado e doçura de outro. A doçura comunica força, a força comunica doçura. É  uma coisa só.

“…doce Consolador das almas desoladas”. – A desolação não é uma tristeza qualquer. É uma espécie de auge, de píncaro de tristeza. Na linguagem comum, quando se diz “estou desolado”, não se quer dizer apenas que estou muito triste. Mas “estou tristíssimo, em mim não há quase senão tristeza”. Não exclui naturalmente a fórmula de cortesia: “Estou desolado, estou…” Não exclui isso. Mas aí a palavra fica balofa, como tantas coisas que a cortesia neo-pagã torna balofas. Entretanto o sentido próprio da desolação é esse. Nós podemos falar da desolação de Nosso Senhor no Horto das Oliveiras, pois foi uma desolação.

“…refúgio nos perigos”. Quais são os perigos? Os perigos que ele tem em vista não são principalmente os do corpo, mas os que afetam a alma. A salvação da alma é continuamente posta em perigo por toda espécie de circunstâncias. O refúgio nesse perigo é o Divino Espírito Santo, com suas graças, sua ação nas profundidades de nossa alma, etc. E com isso eu gostaria – se me fosse possível – comunicar às almas uma certa segurança. As pessoas sentindo dentro de si o enigmático desse santuário no escuro e desta terra árida, ficam achando que têm dentro delas problemas que não vão vencer, e se põem meio desanimadas de continuar no caminho da salvação. Se se tiver em vista que o Divino Espírito Santo é o Esposo de Nossa Senhora, e que não recusa coisa nenhuma a Ela, as pessoas terão ânimo, porque para tudo isso o Espírito Santo é o remédio. Podem pedir as graças dEle e obterão.

“…Protetor na aflição desamparada” (détresse). – “Détresse” é uma palavra muito bonita. “Détresse” é uma aflição desamparada, um apuro muito carregado. Quantas situações de vida espiritual há assim? A pessoa está na “détresse”, pede ao Espírito Santo e contra o curso normal dos seus pensamentos, a concatenação normal das suas idéias, a pessoa sai da “détresse”. É uma impressão qualquer, uma coisa qualquer, que toca a alma e muda. É a ação do Divino Espírito Santo…

“Vinde, Vós que lavais as almas de suas sordícies, e que curais suas chagas”. – A construção da frase, se está bem traduzida do latim, é a seguinte: Vós sois quem por excelência lava as almas. Quer dizer, “Vós que fazeis isto”, inclina o espírito a admitir: “Vós que sois o único a fazer isto”. É para onde propende o espírito.

Aqui, mais uma vez, é um alento cheio de doçura. Porque as pessoas muitas vezes consideram o interior de suas almas e notam-no tão cheio de chagas purulentas, tão cheias de sordícies, que a pessoa desanima. Mas é claro que vai desanimar, porque ela não tem força para isso! É preciso uma força do Céu que lhe dê ânimo, que lhe dê meios para isto, ou que opere isto, por vezes sem que ela tenha que fazer outra coisa senão dizer “sim”. Entra aquela luz e cura a alma…

Mas por que, na nossa vida espiritual, não temos toda a esperança, todo o ardor que este modo de ver a ação do Espírito Santo comunica? É ou não verdade que essa consideração daria às nossas almas outro élan para subir, para continuar para frente do que habitualmente nós temos?

“Vinde, força dos fracos, apoio daqueles que caem”. – É tão claro que não tenho nada a dizer.

“Vinde, doutor dos humildes e vencedor dos orgulhosos.” – Isso é muito bonito! O doutor que esclarece, que ensina aos que são humildes, antes de tudo em face dEle. E que, portanto, não são orgulhosos que imaginam que sua cabeça contém a solução para todos os problemas, mas sabem que é o Divino Espírito Santo que possui a solução para todos os problemas. E que é preciso rezar, é preciso pedir, é preciso implorar, mas implorar muitas vezes e com humildade. Eu não resolvo, eu Plinio, porque não sou capaz de resolver! Mas se eu rezar, também não obtenho. Se eu pedir por meio de Nossa Senhora, Ela que é Mãe de misericórdia reza por mim e Ela obtém. Mas aí é fácil, é seguro e é rápido que obterei. Isso me mantém alegre e de pé no meio das aflições que todo homem tem no meio desse vale de lágrimas. Eu tenho receio de estar dizendo banalidades…

A oração tem uma concisão, uma substância extraordinária!

“Vinde, Pai dos órfãos, esperança dos pobres, tesouro dos que estão na indigência”. – Aqui também se deve considerar o lado da vida espiritual, que é sempre o que o Santo tem em vista antes de tudo: a santificação de quem vai rezar, que vai usar a fórmula.

“…Pai dos órfãos…” – Quanto órfão existe em matéria de vida espiritual! (…) Como o homem ao longo da viagem nesta terra é um órfão! Ainda que ele atinja os 81 anos, é um órfão! Então Ele é Pai dos homens que sentem a terrível orfandade desta vida. Esta vida é uma orfandade.

“…Pai dos órfãos, esperança dos pobres…” – É aquele que não tem nada para esperar, e que internamente é um pobre, quer dizer, não tem títulos para pedir, não tem direito quase de pedir, vive da misericórdia. É dele que o Divino Espírito Santo é Pai cheio de bondade, de acessibilidade.

“…tesouro dos que estão na indigência” – Não temos diante de Deus méritos nenhum para alegar. Estamos na indigência. Mas o Divino Espírito Santo é o nosso tesouro. Nós pedimos e Ele dá.

Estão vendo quanta substância contém essa oração e quão magnífica ela é?!

“Vinde, estrela dos navegantes, porto seguro dos que náufragos”. – São dois conceitos: um é a estrela dos navegantes. O que lembra a invocação a Nossa Senhora: Ave Maris Stella. Se Ela é a Estrela do Mar, Ela é a Estrela dos que navegam, evidentemente. Mas, então, por que se diz do Espírito Santo a mesma coisa que d’Ela se diz? Porque o que se diz da Esposa, se diz também do Esposo. E Ela é a Estrela dos navegantes porque Ela é a Esposa mística daquele que é a Estrela dos navegantes por excelência, que é o Divino Espírito Santo.

Ou seja, para todos que vão andando pela vida, com os seus riscos, com seus problemas, etc., a Estrela é o Divino Espírito Santo. Ele fala primeiro dos navegantes e depois dos náufragos. O náufrago… pode se imaginar o navio que se destroçou. O sujeito se agarra a um destroço, a uma “épave”, e vai por onde as águas tocam. De repente, as correntes marítimas o levam para dentro de um porto. Esse porto é o Divino Espírito Santo. Quer dizer, os vagalhões da alma, das paixões, levam o homem de um lado para outro e ele está entregue às apetências mais desregradas, aos orgulhos mais desordenados, às coisas mais sem remédio. Para ele não há mais porto. Não há mais!… Ou seja, não haveria se não fosse a oração de Nossa Senhora ao Divino Espírito Santo, que é o porto seguro dos que naufragaram. Entrou lá, está tudo resolvido.

“Vinde, força dos vivos e salvação dos moribundos”. – Vejam que bonita alternativa: força dos vivos e salvação dos que moribundos! Quase não se tem o que dizer… O homem está vivo, a vida é uma luta, ele precisa ter força. Mas ao morrer, precisa de uma graça autônoma de todas as que recebeu na vida: é a graça da boa morte. E esta salvação a pessoa tem se rezar ao Divino Espírito Santo.

Eu toda a vida considerei muito pungente aquela cerimônia que havia nas arenas antes de começar o martírio. Havia jogo de gladiadores, depois imolavam os mártires. E os gladiadores entravam em ordem, paravam diante da tribuna do Imperador, e diziam: “Saudação a ti, ó César, os que vão morrer te saúdam! – Ave Caesar, morituri te salutant!” Quer dizer, uma coisa pungente. Aquele César – em geral um soldadão tosco, boçal, semi-bêbado, sensual, ordinário, venal, que tinha subido comprando seu cargo, refestelado na segurança da tribuna imperial – vê chegar junto a ele os que vêm em marcha, fortes, jovens, com espadas, com tridentes, com redes, com lanças, etc., para começarem o combate. E sabe que vão lutar apenas para divertir aquele pândego que está ali em cima! Situação triste na vida, mas é isto: são os “morituri” (os que vão morrer). Todo homem, quando está na iminência da morte, pode dizer não a um César imundo, mas a Deus infinitamente perfeito: “Ave, ó Deus, o que vai morrer te saúda!” É a última saudação antes da morte! Pois bem, para que essa saudação seja perfeita, é necessário o auxílio do Divino Espírito Santo, sempre a rogos de Maria, sem A qual nós não conseguimos nada.

“Vinde, ó Espírito santo, vinde e tende piedade de mim. Tornai minha alma simples, dócil e fiel, e condescendei com minha fraqueza”. – É uma frase lindíssima, que a bem dizer perde sendo comentada, porque há uma beleza que qualquer comentário deslustra. É preciso tomar como uma fonte donde nasce a água. Não vale a pena captar a água; deixa brotar da fonte assim aos borbulhões. Assim está Santo Agostinho…

Enfim, para meter a camisa de força do comentário de alto a baixo do texto, vem então o seguinte: “Vinde, ó Espírito santo, vinde”. – Os senhores vejam a ênfase: “vinde, vinde!  E tende piedade de mim”. Aquele necessitado de piedade implora com insistência, pede duas vezes: “Vinde, vinde!” E agora vem a enumeração do que quer da piedade. O ter misericórdia dele, para seu caso concreto, o que significa? Então vem: “Tornai minha alma simples, dócil e fiel”. As três palavras devem ser consideradas juntas, pois constituem uma espécie de tríptico. Simples é a alma que não tem requebros, vaidades, complicações. O contrário, portanto, de quem não quer se ver a si mesmo direito, que não quer olhar-se de frente, que não é “pão, pão, queijo, queijo”. Nosso Senhor disse: “Seja vossa linguagem sim, sim, não, não”. “Seja o vosso pensar interior sim, sim, não, não. Tenha a coragem de ver a verdade e o erro, mas também no que diz respeito a vós! Não é só o mundo objetivo, externo a vós, mas também no que diz respeito a vós interiormente. Tende essa coragem!”

Esta é uma alma simples. A alma simples é dócil. Por que? Quanto mais uma alma é complicada em obedecer, tanto mais a essa alma falta simplicidade. Não sei se os senhores conhecem uma coisa que não sei se se usa hoje, mas antigamente, quando eu tinha tempo de prestar atenção nessas coisas, eu via os empregados às vezes passarem no chão uma espécie de carapinha de palha de aço para limparem o lugar, nem sei bem para o que era. Depois enceravam. Acho que era para tirar sujeira impregnada no chão.

Há almas complicadas como aquelas palha de aço! Engruvinhada uma coisa na outra… Então se propõe uma coisa: “Pode, mas se der tal coisa, se fizer assim, e se acontecer de outro jeito, e se der uma carambola assim… então eu estou de acordo”. São as almas às quais faltam docilidade. Complicadas no obedecer. Pelo contrário, as almas simples recebem um convite do Espírito Santo: “Pois não”. Vão e fazem!… Nós poderíamos examinar um pouco: somos parecidos com a palha de aço ou retos como a lâmina de uma espada? É uma pergunta que se poderia fazer.

Dócil e fiel. A fidelidade é muito difícil para a palha de aço; ela é muito mais fácil para o gládio. Alma-gládio e alma-palha de aço: não poderíamos fazer disso uma classificação para as almas? E se fôssemos nos analisar… Os senhores sabem o que acontece? A palha de aço começaria a ferver: “Não, é assim, mas é preciso considerar tal coisa, eu tenho tal atenuante! É verdade que tenho tal agravante… Eu vejo que você acha isso de mim e por isso é meu inimigo, você vê essa agravante! – como se ver a verdade em alguém fosse ser inimigo de alguém! – e também tem tal lado, tal, tal, tal! Em todo caso, você também tem tal coisa!” Eu não estou em jogo. Está em jogo você, meu caro! Vamos conversar… Isso é a palha de aço! Quanto há, por vezes, palha de aço em nossas almas.

Alguém poderia, enquanto estou falando, responder: “Mas, Dr. Plinio, não tem saída, eu sou palha de aço mesmo!…” Meu filho, não diga isso… Você ajoelhe, reze a Nossa Senhora com confiança para que Ela faça vir sobre si o Divino Espírito Santo, e as coisas mudem.

 

Mater mea, fiducia mea (Minha Mãe, minha confiança)

“…e condescendei com minha fraqueza…” – Eu não conheço a etimologia da palavra “condescendência”. Mas sou tentado a achar, pelo sentido da palavra mais do que pela composição dela, que é “descer com”: “Tende a bondade de descer dentro de mim até o fundo, mas com bondade, em espírito de perdão, uma tendência a curar-me, a sarar as minhas chagas, e não a castigar-me. Descei até esse fundo culpado de minha alma, descei até lá, mas descei como Pai, como médico, como curador. Tende pena de mim, e sarai as minhas chagas!”. É uma oração que se pode fazer, que se deve fazer.

E condescendei ao quê? À fraqueza. Mais uma vez é a preocupação com os lânguidos, etc. “Eu sou fraco, deveria ter energia e não tenho. Vejo outros que têm energia, e me pergunto: como é que vou sair desse buraco? Enérgico eu não sou…” Reze, meu filho! Reze com coragem, reze com ânimo! Você deixará de ser fraco.

“Condescendei com tanta bondade, que minha pequenez ache graça diante de vossa grandeza infinita”. – Um poca, por exemplo, que só gosta de conversar sobre coisinhas, só trata de assuntinhos sem importância, que não tem alma grande para nada… Ele vê, por exemplo, uma reunião onde todos os presentes estão preocupados com grandes temas, e pensa: “Eu estou achando isso cacete. Eu gosto tanto de tratar de coisinhas… Eu tenho que resolver a que horas amanhã vou levar meus sapatos para consertar. E gosto de pensar nisso. Estão aí estas águias voando alto e eu sou tão chulo, tão droga… Eu tenho vontade de me esconder até”… Não faça isso. Faça o contrário. Mostre-se! Mas mostre-se ao olhar de Deus, o Qual, aliás, vê tudo… quer eu me mostre, quer eu não me mostre. Ele vê tudo… vê também se estou querendo me esconder como Adão e Eva depois do pecado. Então é melhor eu dizer: “Vede, Senhor, eu sou tão zero, tão poca, tão nada! Mas Vós podeis dar-me aquele nível para o qual Vós me criastes. Vinde e agi!”

“…que minha pequenez ache graça diante de vossa grandeza infinita”. – O que significa “encontrar graça”? É Deus considerar do alto de Sua onipotência a minha impotência. E considerando exatamente a minha impotência, Ele vê nisso uma razão para sorrir e me tratar com bondade e me suspender, dar-me um poder que eu não tenho. Esse é o sentido dessa oração.

… minha impotência diante de vossa força, minhas ofensas diante da multidão de vossas misericórdias”. – Tal é a multidão de vossa misericórdia, que encontro – para qualquer espécie de culpa que tenha – a vossa bondade que vem de encontro a mim.

Isso seria o sentido da oração! A qual recomendo aos senhores que guardem. Eu peço a um dos senhores para dar ao Sr. Fernando a fim de guardar para mim, porque no meu bolso vai se transformar num “chiffon” a qualquer momento. E que a rezem de vez em quando, tendo um movimento para tal, pois seria sumamente conveniente.

Plinio Corrêa de Oliveira (Domingo, 20 de maio de 1990)

Uma verdadeira procura do Absoluto

No colóquio de Óstia, entre Santa Mônica e Santo Agostinho, vemos a beleza de dois Santos conversarem sobre como seria a vida eterna dos bem-aventurados, e a alegria daquela mãe santa em ver o filho, outrora perdido, incendiado de desejos de contemplar o Céu.

É uma verdadeira procura do Absoluto. Depois de terem considerado todas as coisas materiais, começaram a contemplar as espirituais e a alma, como elemento para se ter ideia da beleza da perfeição de Deus. Por fim, chegaram à conclusão de que, no ápice de tudo, figura a Sabedoria eterna e incriada.

Esses dois Santos mantêm uma conversa que é uma oração, a qual vai subindo de ponto em ponto até chegar, num êxtase, ao seu ápice. Tudo isso com tanta simplicidade, junto à janela de um quarto dos fundos de uma hospedaria de Óstia, dando para um jardim. Uma verdadeira maravilha!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 31/8/1965)

Santo Agostinho

Quando lemos as “As Confissões” de Santo Agostinho, facilmente aquilatamos a profundidade de sua alma e a retidão de seu espírito de convertido. Podemos “ouvir” nas linhas o latejar de seu coração arrependido pelos pecados de sua vida passada, e nos é dado admirar, semeado por aquelas páginas imortais, o talento maravilhoso de um homem chamado por Deus a enriquecer a Igreja com altíssimos ensinamentos e explicitações.

O belo e vigoroso alçar de uma águia aos ares, atraída pelos fulgores do sol, nada é em comparação com o voo luminosíssimo do pensamento de Santo Agostinho. Ele se eleva no firmamento da doutrina católica com um ímpeto que se diria quase inimaginável numa alma humana.

Pois esse foi o grande Bispo de Hipona, uma das maiores intelectualidades que houve na História, um gigante da Fé, da sabedoria e da santidade, para todos os séculos até o fim do mundo..

Plinio Corrêa de Oliveira

Rainha dos Apóstolos

Como Nossa Senhora exercia sua realeza sobre os Apóstolos?

A situação era, debaixo de todos os pontos de vista, delicada; uma dessas situações que a sabedoria divina, por assim dizer, se empenha em resolver com brilho especial. A Santíssima Virgem era Rainha do Céu e da Terra. Portanto, Rainha e Mãe da Santa Igreja Católica. Porém, na Igreja, Ela não possuía um cargo especial de jurisdição.

Quer dizer, a Hierarquia Católica foi, desde o primeiro instante, constituída essencialmente pelo papa, pelos bispos e pelos sacerdotes incumbidos de participar, com os bispos e sob a ordem destes, do governo da Igreja. Ora, Nossa Senhora, sendo do sexo feminino, não podia pertencer à Hierarquia. Isso criava, então, uma situação bonita e complexa: Ela era Rainha da Igreja, mas na Igreja era súdita daqueles de quem Ela era Rainha. E Maria Santíssima devia prestar, enquanto membro da Igreja discente, homenagem, reverência, obediência àqueles de quem Ela era Rainha.

Mas, de outro lado, ponham-se, por exemplo, na posição de São Pedro — o Chefe da Igreja, o Príncipe dos Apóstolos: dar ordens a Nossa Senhora, sua Rainha? Ele ordenava e Ela obedecia. Mas, pensem um pouco… Que Rainha!

Imaginemos — para termos uma pálida ideia dessa situação — que a esposa de um rei fosse, de repente, parar numa ilha que é dirigida por um governadorzinho qualquer das terras de seu marido. A função de governador é dele, a rainha reinante propriamente não governa. Mas como ele vai dispor a respeito da rainha?

E essa comparação não é inteiramente verdadeira. Porque Nossa Senhora não era Rainha apenas, mas Esposa do Divino Espírito Santo e Mãe do Rei da Igreja, que é Nosso Senhor Jesus Cristo. Ela possuía uma autoridade de outra natureza, de outro tipo, sobre a Igreja Católica.

Ela obedecia a São Pedro, de uma obediência efetiva, humilde, enlevada, cheia de entusiasmo; nunca ninguém obedeceu melhor à Sagrada Hierarquia do que a Santíssima Virgem, porque, sendo a obediência à Sagrada Hierarquia uma virtude essencial, então Nossa Senhora a praticou de um modo inconcebivelmente perfeito. Mas, de outro lado, Ela possuía esse reinado sobre as almas dos Apóstolos, que Ela exercia de modo perfeito.

Quer dizer, Nossa Senhora tinha um conhecimento, antes de tudo, profundo, bem entendido, sobrenatural, da mentalidade de todos os Apóstolos, sacerdotes e discípulos de Nosso Senhor. Ela privava, conversava com eles.

O que era esse conversar? Não pensemos que consistia apenas numas consultinhas. Devia ser normalmente um trato por onde eles e Nossa Senhora discorriam; não iam eles contar novidades insípidas, banais, mas falavam das coisas de Deus e de tal maneira que havia uma comunicação de alma, propriamente uma conversa.

Naturalmente, compreendemos como seria a conversa de qualquer pessoa com Nossa Senhora. Quer dizer, a pessoa balbucia alguma coisa e Ela se põe a falar. O resto é enlevo, veneração, admiração, é absorção e tudo quanto podemos imaginar.

Mas eles também diziam algo. Não eram solilóquios em que apenas Ela falava. Eles conversavam. E, como boa Mãe, Maria Santíssima gostava de ouvir o que eles tinham a dizer. E Ela sabia qual a missão de cada um na Igreja, porque conhecia o passado, o presente e o futuro; na economia da Providência, Nossa Senhora conhecia não só a função que eles tinham, ou teriam, mas o que Deus queria que fizessem: de um, que convertesse um povo; de outro, que morresse lapidado; de outro, que construísse uma igreja; de outro, que transpusesse o mar e fosse fundar uma cristandade num ponto remoto.

Conhecendo tudo isso, em todo trato que tinha com eles, Ela ia dispondo a alma de cada um de acordo com os desígnios de Deus. Daí decorria um convívio lindíssimo, maravilhoso, que os Apóstolos e os que se aproximavam d’Ela sabiam notar e respeitar no mais alto grau.

Vemos assim o efeito de Pentecostes. Os Apóstolos, que tinham tratado com Nosso Senhor, foram tão frios com o Redentor na hora extrema; dir-se-ia que não entenderam Nosso Senhor. Mas depois de terem recebido o Espírito Santo, a vista deles ficou inteiramente clara; conhecendo a Mãe de Deus, insondavelmente perfeita, mas infinitamente inferior a Nosso Senhor Jesus Cristo, eles, entretanto, sabiam admirá-La, dar-Lhe o apreço e a veneração que deviam.

Assim, na Igreja nascente Ela irradiava, para um círculo inicial de pessoas, toda essa beleza. Houve, então, um altíssimo grau de devoção a Nossa Senhora. E a primeira expansão da Igreja foi intensamente iluminada por este fogo maravilhoso: a presença e a ação de Maria Santíssima.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 31/5/1972)

 

Rainha da graça

Maria é o receptáculo no qual se encontram todas as graças criadas por Deus. Ela é tão imensa na ordem da virtude e da santidade, que corresponde de modo superexcelente a essa torrente de graças, que A faz grande como ninguém.

Proclamada a Rainha da graça, é a Rainha da ordem sobrenatural e, portanto, Rainha por plenitude.

Eu gostaria de ver uma catedral dedicada a Ela, onde se unissem num só olhar, estes dois aspectos: Rainha intangível, mas curvada, com um sorriso, sobre os mais indignos e miseráveis, a dizer-lhes: “Continuo sendo vossa Mãe, e por isso me curvo até vós, por mais que estejam baixo. Até lá chega minha misericórdia e vos salva!”

Essa harmonia que reúne os dois extremos da Criação é mais um título da grandeza d’Ela.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/9/1990)